Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1809/17.1T8EVR.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: EXTINÇÃO DE SOCIEDADE
LIQUIDAÇÃO DA SOCIEDADE
SÓCIO
LIQUIDATÁRIO
REPRESENTAÇÃO
LEGITIMIDADE
Data do Acordão: 09/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – Com a extinção da sociedade, que apenas se verifica com a inscrição, no registo, do encerramento da liquidação, deixa de existir a pessoa coletiva, que perde a sua personalidade jurídica, mas as relações jurídicas de que a sociedade era titular não se extinguem.
II – Extinta a sociedade, os bens que não tiverem sido partilhados pertencem aos sócios (nº 1 do art. 164º do CSC), verificando-se assim uma sucessão daqueles nesses bens, que pertenciam à defunta sociedade.
III - As ações que haja necessidade de intentar para fazer reconhecer e efetivar o direito a esses bens podem ser propostas pelos liquidatários, atuando judicialmente como representantes da generalidade dos sócios; ou pelos sócios, sendo, porém, que estes apenas podem propor ações limitadas ao interesse de cada um.
IV - A não passagem dos recibos é ilícita, embora se trate de um problema colocado entre o locador e a administração fiscal. O artigo 787º, nºs 1 e 2, do Código Civil, relativo ao documento de quitação, comprovativo do pagamento, refere o direito do devedor de exigir do credor a passagem de tal documento, podendo recusar a prestação enquanto a quitação não for dada.
V – Não tendo a sociedade arrendatária alguma vez exigido do senhorio a passagem dos recibos da renda, sempre tendo pago esta, não podem agora os sócios reclamar uma indemnização por alegados prejuízos causados à extinta sociedade, pela não passagem dos recibos de renda.
VI - O caso julgado pressupõe a repetição de uma causa, tendo por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior, desde logo porque uma tal eventualidade contribuiria para abalar o prestígio dos tribunais e não garantiria o mínimo de certeza e segurança jurídicas relativamente à definição de uma determinada relação jurídica, até para a tornar exequível. (sumário do relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
F… e M… instauraram a presente ação declarativa, com processo comum, contra J… e mulher Ma…, pedindo que os réus sejam condenados:
a) a reconhecerem aos autores o direito de retenção do prédio rústico denominado “Herdade da D…”;
b) a reembolsar e indemnizar os autores nas quantias peticionadas nos artigos 25, 67, 79, 97, 100, 104 e 108 da petição inicial no montante de € 93.508,80;
c) bem como em juros de mora à taxa legal desde a citação e até integral pagamento.
Alegaram, em síntese, que em 16.12.1998, a sociedade M…, Lda. e os réus celebraram um contrato de arrendamento que teve por objeto o dito prédio rústico, tendo os autores, sócios daquela sociedade intervindo nesse contrato como fiadores da sociedade, a qual foi declarada dissolvida administrativamente em 19.11.2015, estando os autores a preparar a reversão desse ato administrativo.
Mais alegaram que os réus enriqueceram à custa do empobrecimento da sociedade “M…”, a qual além de ter pago rendas superiores ao que era devido, sem que os réus nunca tenham passado qualquer recibo, efetuou ainda benfeitorias na propriedade arrendada em montante superior a € 200,000,00. Além disso o réu impôs à “M…” o pagamento de 2/3 das faturas da eletricidade, sob pena de cortar esta, quando as partes haviam acordado que a “M…” pagaria apenas metade do consumo de eletricidade.
Como a M… instalou um contador de energia no armazém para saber o que efetivamente consumia, o réu, para obstar a que mais tarde aquela viesse reclamar contra o que estava a pagar a mais, cortou a luz em 03.01.2011, obrigando a sociedade a adquirir um gerador trifásico que custou € 9.000,00, o qual trabalha a diesel, o que causou à “M…” prejuízos que estimam em € 39.029,91, correspondente à diferença que aquela sociedade suportou a mais daquilo que deveria pagar, caso tivesse consumido a eletricidade fornecida pela EDP e pago metade do consumo acordado.
Os réus contestaram e deduziram reconvenção.
Por exceção arguiram a ineptidão da petição inicial por contradição entre o pedido e a causa de pedir e a falta de interesse em agir dos autores, e impugnaram a generalidade da factualidade alegada e os valores peticionados.
Em reconvenção pedem os réus que os autores, na qualidade de fiadores do contrato de arrendamento, sejam condenados:
a) a cessar a ocupação ilícita do prédio denominado “Herdade da D…” e a restituí-lo de imediato aos RR. Reconvintes, livre de pessoas e bens;
b) a pagar aos réus/reconvintes a quantia de € 26.781,99, equivalente ao total do valor das rendas do período entre 1 de janeiro de 2007 e 3 de fevereiro de 2015;
c) a pagar aos réus/reconvintes a quantia de € 135.926,00, a título de indemnização pela não cessação da ocupação e falta de entrega da herdade, à razão de € 133,00 diários, relativa ao período entre 3 de fevereiro de 2015 e 21 de novembro de 2017;
d) a pagar aos réus/reconvintes a quantia diária de € 133,00, a título de indemnização pela não cessação da ocupação e falta de entrega da herdade, pelo período que vier a decorrer entre 21 de novembro de 2017 e a data em que vier a ocorrer a entrega efetiva da herdade, a liquidar em execução de sentença;
e) os juros de mora vincendos, à taxa supletiva legal em vigor para as obrigações civis, sobre as quantias acima indicadas.
f) como litigantes de má-fé em multa e indemnização aos réus, a liquidar.
Houve resposta, concluindo os autores como na petição inicial e pela sua absolvição do pedido reconvencional
Admitida a reconvenção, foi dispensada a audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador, o qual relegou para a sentença o conhecimento das exceções invocadas, sob ponderação de «que se mostra necessário a produção de prova prévia relativa aos factos correspondentes às mesmas», com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto julgo a presente acção improcedente por não provada e procedente por provado o pedido reconvencional e em consequência:
a) absolvo os Réus J…, e mulher M… dos pedidos formulados pelos Réus F… e MA….
b) condeno os Autores F… e M… a restituírem de imediato aos Réus J…, e mulher MA…, livre de pessoas e bens o prédio denominado "Herdade da D…", com a área de 192,850ha sito na freguesia de S. Sebastião da Giesteira, Évora, inscrito na respectiva matriz sob o artº. … da Secção "G", descrito na C. R. Predial de Évora sob a ficha ….
c) Mais condeno os Autores a pagarem aos Réus as rendas em dívida e não pagas entre 1 de Janeiro de 2007 e 3 de Fevereiro de 2015 no valor de € 26.781,99 (vinte e seis mil setecentos e oitenta e um euros e noventa e nove cêntimos) acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data da notificação da contestação e até integral pagamento.
d) condeno ainda os Autores a pagarem aos Réus a quantia de € 135.926,00 (cento e trinta e cinco mil euros e novecentos e vinte e seis cêntimos) a título de indemnização pela não cessação da ocupação e falta de entrega da herdade, à razão de € 133,00 diários, relativa ao período entre 3 de Fevereiro de 2015 e 21 de Novembro de 2017, acrescida de juros de mora desde a data da notificação da contestação e até integral pagamento.
e) vão ainda os Autores condenados a pagar aos Réus a quantia que se vier a apurar em liquidação de sentença, à razão diária de € 133,00 (cento e trinta e três euros) enquanto se mantiver, após 21 de Novembro de 2017 a ocupação e a não entrega da herdade aos Réus.
f) custas pelos Autores.
*
As partes não litigaram de má-fé.»
Inconformados, os autores apelaram da sentença, tendo finalizado as alegações com as seguintes conclusões (transcrição):
«1 - A presente sentença terá que ser liminarmente revogada
2 - Os AA são parte legítima na presente acção.
3 - O depoimento da testemunha M…, é credível, e não se aceita a suspeição do Mº Juiz “a quo”
4 - Bem como é credível o depoimento da testemunha A…, que relatou os prejuízos da empresa M…, por falta de passagem dos respetivos recibos das rendas e energia.
5 - Os pontos dados como não provados com os nº s 2, 3, 4, 5, 6, 7, 9, e 10, terão que ser dados como provados.
6 - A condenação dos AA no pagamento das rendas em atraso e na indemnização já constituía caso julgado, pelo que a douta sentença, violou o caso julgado.
7 - Os AA haviam quanto a esta matéria, invocado a litispendência em sede de resposta a reconvenção.
8 - A douta sentença, que não tem nada por onde se aproveite, violou o disposto nos art. 164 nº 2 do C. Sociedades Comerciais, art. 103 RGIT e art.23 nº 3 do CIRC, art. 20 nº 1 e 4 e 205 nº 1 da CRP e art. 30 nº 1 e 3, 154, 607 nº 2, 3 e 4, 615 nº 1 al. b), c), d) e e) e ainda 628 do CPC.
Nos termos exposto e nos mais que doutamente V. Exas suprirão, deve a douta sentença ser revogada na sua totalidade e substituída por outra que condene os RR no pagamento da quantia reclamada, ou se assim não se entender sempre a douta sentença, devera ser revogada e substituída por outra que corrija a quantidade de erros contantes na sentença recorrida.»

Os réus não contra-alegaram

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), as questões a decidir, atenta a sua precedência lógica, consubstanciam-se em saber:
- se os autores, sócios de uma sociedade extinta, têm legitimidade para instaurar a presente ação destinada a reconhecer o alegado direito da sociedade, por sucessão na posição desta;
- se deve ser alterada a matéria de facto;
- se devem os réus ser condenados no pagamento das quantias peticionados pelos autores;
- se se verifica a exceção do caso julgado quanto ao pedido reconvencional.
Como questão prévia, haverá ainda que tomar posição sobre a alegada exceção de litispendência no que tange à reconvenção.

III – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICO-JURÍDICA
A 1ª instância considerou provados os seguintes factos:
1 - Em 16 de Dezembro de 1998 foi celebrado por escrito um contrato de arrendamento rural entre os ora Réus como 1ºs subscritores e a M…, Lda., como 2º subscritor.
2 - Os Autores figuram nesse mesmo contrato como fiadores 3ºs subscritores.
3 - Da cláusula 1ª de tal contrato que "... O 1º subscritor é dono e legítimo proprietário do prédio rústico denominado "Herdade da D…", com a área de 192,850ha sito na freguesia de S. Sebastião da Giesteira, Évora, inscrito na respetiva matriz sob o artº. … da Secção "G", descrito na C. R. Predial de Évora sob a ficha … ...".
4 - Da cláusula 10ª deste contrato consta que "... Os terceiros contraentes constituem-se fiadores da inquilina para todas as obrigações emergentes do presente contrato e das suas dez renovações, afastando o limite estipulado no artº. 655º do C.C. e renunciando ambos expressamente ao benefício da excussão prévia ...".
5 - Este contrato foi celebrado, pelo prazo de sete anos (alterado para dez, reconhecido pelos Réus o facto da arrendatária não se tratar de "agricultor autónomo)", com início em 30 de setembro de 1998, sendo automaticamente renovável por períodos de um ano, até ser denunciado por alguma das partes.
6 - A renda anual estipulada foi de 2.000.000$00, sendo à data de setembro de 2006 no valor de € 12.220,00.
7 - Da cláusula 4ª daquele contrato consta ainda que "... No prazo de 12 meses a 2ª subscritora obriga-se a edificar uma casa de habitação com 4 divisões, cozinha, 2 instalações sanitárias e arrecadação, conforme planta anexa, tudo com área aproximada de 120m2 de área de construção e 75m2 de cave, um furo artesiano e um curral para porcos ...".
8 - A M… ficou também obrigada a pagar as contas de eletricidade da herdade, cujos consumos sejam da responsabilidade da inquilina.
9 - A M… sempre pagou a energia do seguinte modo:
a) A energia vinha por cabo subterrâneo do contador de consumos dos Réus até a um armazém referido na cláusula 3ª do contrato de arrendamento.
b) Como a M… não tinha contador de energia, foi acordado que esta pagaria cerca de metade dos consumos.
10 - Os Réus entregavam as faturas ao H…, empregado dos Réus e que reside na herdade, normalmente ao fim de semana.
11 - Entre janeiro de 2009 e dezembro de 2010, o consumo de energia referido nas faturas apresentadas pelos Réus foi no montante de € 6.483,70.
12 - A M… pagou aos Réus € 4.322,07 e os Réus pagaram € 2.161,23.
13 - No período referido o consumo total de energia constante nas faturas foi de 45.037kwh.
14 - A M… pagou aos réus entre dezembro de 1998 e Dezembro de 2010 a quantia total de € 20.638,33.
15 - As cópias das faturas entregues pelos Réus estavam em nome do Réu varão.
16 - Por carta datada de 15 de fevereiro de 2007 e recebida pela M… a 21 do mesmo mês, o contrato de arrendamento foi denunciado pelos Réus com efeitos a 30 de Setembro de 2008.
17 - A M… nessa sequência interpôs ação judicial contra os Réus deduzindo oposição à denúncia e pediu a prorrogação do prazo do arrendamento e, subsidiariamente, uma indemnização no valor de € 229.661,36, a pretexto de benfeitorias realizadas no prédio.
18 - Os Réus contestaram e reconvieram, pedindo, nomeadamente, para além da improcedência de todos os pedidos formulados pela Autora M… a declaração de inadmissibilidade da oposição à denúncia do contrato, e a condenação da mesma a reconhecer a denúncia, desocupar o prédio locado e pagar-lhes € 133,33 por cada dia em que, após 30 de Setembro de 2008, não procedesse à sua devolução livre de pessoas e bens, € 67.408,35 de indemnização pela fruição não remunerada de vantagens, comodidades e benefícios traduzidos na edificação e demais cómodos por si erigidos no prédio, se as rendas vencidas desde 1998 viessem a ser julgadas excessivas, e uma multa e uma indemnização a liquidar, a título de litigância de má-fé.
19 - Esta ação correu termos sob o nº 1851/07.0TVLSB pelo 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Évora e, depois, na Instância Central de Évora, Secção Cível e Criminal J3.
20 - Por saneador-sentença de 13 de setembro de 2010 o Tribunal julgou improcedente o pedido principal deduzido pela Autora de prorrogação do prazo de arrendamento, e procedentes os pedidos formulados pelos Réus de declaração de inadmissibilidade da dedução de oposição à denúncia do contrato, condenando a Autora a reconhecê-la e a desocupar o locado a partir do trânsito em julgado da presente sentença.
21 - Posteriormente, após realização da audiência de discussão e julgamento, por sentença de 20 de Abril de 2015 o Tribunal julgou improcedentes os pedidos subsidiários deduzidos pela Autora M…, Lda., e parcialmente procedente o segundo pedido reconvencional e consequentemente condenar a reconvinda M…, Lda. no pagamento, a título de sanção pecuniária compulsória, da quantia de € 133,00 por cada dia em que não proceda à entrega da "Herdade da D…" nos termos já judicialmente ordenados e condenou ainda a Autora M… como litigante de má-fé numa multa equivalente a 20UC e numa indemnização que fixou em € 3.800,00.
22 - Por acórdão de 2 de Junho de 2016 o Tribunal da Relação de Évora confirmou aquelas duas decisões, o qual veio a transitar em julgado.
23 - Em 22 de Janeiro de 2015 a M… propôs nova ação judicial contra os Réus a qual correu termos pela Instância Central de Évora, Secção Cível e Criminal J1 sob o nº 169/15.0T8EVR, na qual pedia a condenação dos Réus no pagamento da quantia total de € 76.514,19 e o reconhecimento do direito de retenção do prédio até que tal valor fosse pago.
24 - Nessa ação alega para tanto que despendeu diversos montantes que entendeu serem-lhe devidas, quer a título de reembolso, quer a título de indemnização por despesas e prejuízos suportados que não deveria ter de suportar, nomeadamente com IRC pago em excesso por não dedução de despesas com rendas e eletricidade paga em excesso, aquisição de um gerador e combustível por os Réus lhe terem cortado a eletricidade e asfaltamento de um caminho tido como benfeitoria.
25 - Nesta ação foi por despacho de 9. 9. 2015 foi ordenado que os autos aguardassem por 6 meses que a Autora esclarecesse qual a sua situação jurídica mediante apresentação de certidão devidamente atualizada, quer da sua matrícula, quer do estado do processo identificado a fls. 125 e 126 desses autos.
26 - Por despacho de 18. 4. 2016 foi julgada deserta a instância por a Autora não ter cumprido o ordenado no anterior despacho nem justificado tais incumprimentos.
27 - Em todas as ações judiciais que decorreram entre a M… e os Réus o patrocínio judiciário foi sempre exercido pelo seu gerente e responsável o ora Autor enquanto advogado.
28 - Por Aviso publicado em 18 de Junho de 2014 no sítio da Internet destinado à publicação on-line de atos societários e de outras entidades foi notificada a M… e os seus credores do início do procedimento administrativo de dissolução e encerramento daquela.
29 - No mesmo sítio da Internet foi por Aviso publicado em 3 de fevereiro de 2015 foi notificado o despacho final do Sr. Conservador do Registo Comercial de Lisboa com a decisão de dissolução e encerramento da liquidação da M… e o consequente cancelamento da sua matrícula.
30 - Através da AP. 291/20151119 foi inscrito no registo comercial a dissolução e encerramento da liquidação da M… e o consequente cancelamento da sua matrícula.
31 - O valor total das rendas pagas entre 1999 e 2006 foi de € 79.807,68.
32 - A herdade ainda se mantém na posse dos Autores.[1]
33 - À data de 21 de novembro de 2017 encontrava-se em dívida a título de indemnização devida aos Réus pela não restituição da herdade a quantia de € 135.926,00.
34 - Por despacho de 22. 10. 2018, já transitado em julgado foi declarada extinta a instância por inutilidade superveniente da lide quanto ao pedido de reconhecimento do direito de retenção dos Autores sobre o imóvel "Herdade da D…".
35 - Os Réus não passaram recibos de renda.
36 - Os Réus apenas utilizavam a casa aos fins de semana esporadicamente.
37 - Em data não concretamente apurada os Réus e a M… acordaram em alterar o acordo inicial quanto ao pagamento da eletricidade, por via da qual a M… passou a pagar 2/3 e os Réus 1/3 do valor das faturas.
38 - A M… sempre pagou a sua parte e nunca reclamou dos valores por si pagos.
39 - A casa dos Réus tem luz elétrica e piscina para além de iluminação nos portões que é ligada esporadicamente.
40 - Os Réus puseram termo à partilha da eletricidade em 3 de Janeiro de 2011 devido aos atrasos nos reembolsos por parte da M… das faturas da EDP que aqueles pagavam.
41 - Em dezembro de 2004 o Réu marido enviou ao gerente da M…, e este recebeu, um escrito do seguinte teor:
«... Dr. C…
Os meus melhores cumprimentos Apesar dos meus esforços e contactos telefónicos e escritos, não consigo que o Doutor me contacte.
Nesta conformidade necessito de saber o seguinte:
1) Até dia 20.1.2005 necessito saber se quer continuar com a electricidade fornecida por mim.
2) Esta pergunta baseia-se no facto de me dizer na sua última missiva, que a "electricidade" está muito cara. (V.P.F.)
Assim, agradeço que me participe, o que se lhe oferecer comunicar.
Isto porque não desejo nem pretendo, que alguma coisa o afecte, por má conduta da minha parte.
Nunca quis nem quererei, que o Doutor sofra da minha parte qualquer prejuízo, seja em que situação for.
Sou seu amigo e continuarei a sê-lo, salvo se achar, que não deve aceitar, esta minha amizade. Receba as mais cordiais saudações.
Assinatura ilegível ...».
42 - A M… após 3 de janeiro de 2011 passou a utilizar um gerador trifásico a diesel.
42 - a): O gerador trifásico trabalhava cerca de 8horas por dia e consumia cerca de 2 litros diesel/hora.[2]
43 - Desde 1 de Janeiro de 2007 e até 3 de fevereiro de 2015 a M… não pagou a renda aos Réus correspondente ao montante de € 26.781,99.

E foram considerados não provados os seguintes factos:
1 - A M… tenha pago rendas abusivamente cobradas e efetuado benfeitorias na propriedade arrendada em montante superior a € 200.000,00.
2 - A M… tenha solicitado aos Réus a passagem desses recibos de renda.
3 - A M… tenha aceite pagar a eletricidade contra sua vontade.
4 - A M… consumisse menos energia do que a que pagava.
5 - O gerador trifásico tenha custado € 9.000,00 à M….
6 - O gerador trabalhasse cerca de 8horas por dia e consumisse cerca de 2 litros diesel/hora.[3]
7 - A M… aquando da celebração do contrato e por exigência dos Réus tenha entregue € 14.963,94 (3.000.000$00 à data) para asfaltar o acesso que liga a Estrada Municipal que liga S. Sebastião da Giesteira ao Monte.
8 - A M… tenha entregue dois cheques com os nºs 2021693.9 e 2021695.5 sobre o BES.
9 - Os Réus dão acesso pelo portão da sua entrada a pessoas que os Autores não permitem entrar na propriedade.
10 - Esses indivíduos tenham agredido um colaborador dos Autores, arrancam porteiras, cortaram e levaram cadeados dos portões, cancelas de ferro, danificam as cercas e bens dos Autores.

Questão prévia
Depois de afirmarem na conclusão 6ª que a condenação dos autores no pagamento das rendas em atraso e na indemnização viola o caso julgado, dizem os recorrentes na conclusão 7ª que “os AA. haviam quanto a esta matéria, invocado a litispendência em sede de resposta à reconvenção».
E, de facto, assim foi, tendo os autores alegado naquele articulado de resposta à contestação/reconvenção que a sociedade “M…” havia sido condenada no saneador da ação que correu termos na Instância Central de Évora, Secção Cível e Criminal – J3, sob o nº 1851/07.0TVLSB, a reconhecer a denúncia do contrato e a desocupar o locado, tendo a mesma interposto recurso de apelação que foi aceite, com efeito suspensivo, tendo junto alegações em tempo, tendo igualmente recorrido da sentença final proferida naqueles autos, sendo que «[o] Tribunal da Relação de Évora, não se pronunciou sobre o recurso do despacho saneador (cfr. artigos 37º a 41º).
Ter-se-ão, porém, os recorrentes esquecido de dizer que o despacho que admitiu o recurso do saneador, proferido em 21.02.2011, junto com a resposta à reconvenção, fixou a sua subida a final[4], nos próprios autos.
Ora, sendo assim, e tendo a “M…” interposto recurso da sentença, o recurso do saneador retido haveria de ser apreciado no acórdão desta Relação proferido em 02.06.2016 que, de acordo com o ponto 22 dos factos provados – que não foi impugnado -, confirmou aquelas duas decisões, tendo o mesmo, aliás, transitado em julgado.
E, seja como for, entendendo a recorrente “M…” que o acórdão enfermava de nulidade por omissão de pronúncia, devia ter arguido a mesma em tempo, utilizando o mecanismo processual ao seu dispor para o efeito, não podendo agora os recorrentes vir esgrimir com uma exceção de litispendência de todo inexistente.

Da legitimidade (substantiva) dos autores
Escreveu-se na sentença recorrida:
«Como resultou provado o contrato de arrendamento foi celebrado pela sociedade M…, Lda., e os alegados prejuízos que constituem a causa de pedir foram causados àquela sociedade ao tempo arrendatária, pelo que a ser eventualmente procedente a acção seria titular desse direito a sociedade e não os seus sócios.
Acontece porém que a sociedade foi declarada dissolvida, liquidada e a sua matrícula cancelada no registo comercial conforme se alcança da AP. 291/20151119 da Conservatória do Registo Comercial de Montemor-o-Novo, pelo que à data da entrada em juízo da presente acção, em 6. 10. 2017, a sociedade já não tinha existência, logo não existiam sócios por não existir sociedade, e as relações jurídicas em que fosse parte e eventuais direitos ou obrigações da sociedade extinguiram-se, também eles com a dissolução da sociedade, (neste sentido veja-se o Acórdão citado pelos Réus a fls.101 dos autos, com o qual concordamos e Raul Ventura in Dissolução e Liquidação de Sociedades, pág. 436 e sgs.).
Resulta do exposto que após a dissolução/extinção da sociedade os anteriores sócios ficam impedidos de agir em nome e representação da sociedade.
Diga-se ainda que os Autores enquanto tal não têm interesse em agir, quer o pedido quer os factos que suportam o peticionado não ocorreram com aqueles enquanto pessoas singulares, já que como anteriormente referimos de sócios não se pode falar pois a sociedade já estava dissolvida e liquidada, com a respectiva matrícula cancelada quando a presente acção foi intentada.»
Discorda-se em absoluto da apreciação constante do transcrito passo da sentença.
A extinção de uma sociedade verifica-se com a inscrição, no registo, do encerramento da liquidação (art. 160º, nº 2, do Código das Sociedades Comercias[5]), o que ocorreu in casu.
Como refere o Prof. Raúl Ventura[6], a fattispecie extintiva da sociedade é complexa, integrando um facto que coloque a sociedade na fase de liquidação e um processo de liquidação lato sensu (mais ou menos complexo): a extinção é um efeito legal do registo do encerramento da liquidação.
Escreveu-se Acórdão do STJ de 26.06.2008[7]:
«Dissolvida a sociedade, esta entra em liquidação (art. 146º/1), mantendo ainda a sua personalidade jurídica (art. 146º/2). Os seus administradores passam a ser liquidatários, salvo disposição estatutária ou deliberação noutro sentido (art. 151º/1), competindo-lhes, em tal veste, ultimar os negócios pendentes, cumprir as obrigações da sociedade, cobrar os créditos, reduzir a dinheiro o património residual e propor a partilha dos haveres sociais (art. 152º/3). Com a proposta respectiva, submetem a deliberação da sociedade (art. 157º/4) um relatório completo da liquidação, acompanhando as contas finais (art. 157º/1). Aprovada a deliberação, será requerido o registo do encerramento da liquidação - e é com este registo que, finalmente, a sociedade exala o último suspiro, isto é, se considera “extinta, mesmo entre os sócios” e sem prejuízo das acções pendentes ou do passivo ou activo supervenientes.
Com a extinção, deixa de existir a pessoa colectiva, que perde a sua personalidade jurídica e judiciária, mas as relações jurídicas de que a sociedade era titular não se extinguem, como flui do disposto nos arts. 162º, 163º e 164º.
Estes normativos tratam de matérias conexas, todas elas derivadas da subsistência de relações jurídicas depois de extinta a sociedade».
Ao caso sub judice importa o regime estatuído pelo artigo 164º do CSC.
O que se prevê e regula no nº 1 deste preceito não é mais do que a constatação (verificação), posterior ao encerramento da liquidação e após extinção da sociedade, da existência de bens não partilhados, não se exigindo que tais bens sejam supervenientes, no sentido estrito da sua ocorrência histórica, mas apenas que não hajam sido partilhados[8].
Previne-se aqui a repristinação da sociedade: uma vez «desaparecida a sociedade-sujeito, e mantidos vivos os direitos da sociedade (…), só os sócios podem ser os novos titulares desse activo (…)»[9].
As ações para cobrança de créditos, possibilitadas pelo nº 2 do artigo 164º do CSC – e, no que ora releva, no caso previsto na segunda parte daquele preceito, a reivindicação de tais direitos de crédito por parte de antigos sócios, enquanto cotitulares sucessores, ficará limitada ao interesse de cada um –, estarão sempre sujeitas ao prazo máximo de prescrição de cinco anos, a contar do registo da extinção da sociedade (art. 174º, nº 3 do mesmo código)[10].
Afigura-se assim indiscutível que os autores são os titulares do direito creditório, limitado ao interesse de cada um, resultante dos alegados prejuízos causados pelos réus à extinta sociedade M… da qual os autores eram os sócios.
Cumpre, pois, contrariamente ao decidido na 1ª instância, reconhecer aos autores legitimidade substantiva para instaurar a presente ação, pelo que haverá que apreciar o pedido que formularam de condenação dos réus no reembolso e indemnização no montante de € 93.508,80.

Da impugnação da matéria de facto
Como resulta do artigo 662º, nº 1, do CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes e a prova produzida impuserem decisão diversa.
Do processo constam os elementos em que se baseou a decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto: prova documental, depoimentos de parte dos legais representantes da autora e da ré e depoimentos das testemunhas registados em suporte digital.
Considerando o corpo das alegações e as suas conclusões, pode dizer-se que os recorrente cumpriram formalmente (em parte) os ónus impostos pelo artigo 640º, nº 1, do CPC, já que especificaram os concretos pontos da matéria de facto que consideram incorretamente julgados, indicaram os elementos probatórios que conduziriam à alteração daqueles pontos nos termos por ela propugnados, referiram a decisão que no seu entender deveria sobre eles ter sido proferida e também não deixaram de indicar com exatidão as passagens da gravação em que fundam o seu recurso, pelo que nada obsta ao conhecimento do recurso na parte atinente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
No que respeita à questão da alteração da matéria de facto face à incorreta avaliação da prova produzida, cabe a esta Relação, ao abrigo dos poderes conferidos pelo artigo 662º do CPC, e enquanto tribunal de 2ª instância, avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objeto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento da matéria de facto.
Foi auditado o suporte áudio e, concomitantemente, ponderada a convicção criada no espírito do Sr. Juiz, o qual tem a seu favor o importante princípio da imediação da prova, que não pode ser descurado, sendo esse contacto direto com a prova testemunhal que melhor possibilita ao julgador a perceção da frontalidade, da lucidez, do rigor da informação transmitida e da firmeza dos depoimentos prestados, levando-o ao convencimento quanto à veracidade ou probabilidade dos factos sobre que recaíram as provas.
Infere-se das conclusões dos recorrentes – e são estas que delimitam o objeto do recurso[11] - que estão em desacordo com a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo, relativamente aos pontos 2, 3, 4, 5 , 6 , 7, 9, e 10 dos factos não provados, que entendem deverem ser julgados provados (conclusão 5ª).
Vejamos, pois, cada um dos pontos assinalados.
No ponto 2 deu-se como não provado que a “M…” tenha solicitado aos réus “a passagem desses recibos de renda”, sendo que no ponto 1 foi dado como não provado que A M… tenha pago rendas abusivamente cobradas, pelo que a alusão no ponto 2 à “passagem desses recibos de renda” só pode significar que os mesmos visam as “rendas abusivamente cobradas”.
Ora, não tendo os recorrentes impugnado o ponto 1 dos factos não provados, não podem pretender que seja dado como provado que solicitaram aos réus a passagem de recibos de rendas “abusivamente cobradas”.
Aliás, são os próprios recorrentes que afirmam no corpo das alegações que «[o] numero 1 nada tem a ver com a presente acção».
Ademais, está dado como provado que os réus não passaram recibos de renda (ponto 35 dos factos provados).
Logo, o ponto 2 dos factos provados, coerentemente com o que se deu como não provado no ponto 1, mostra-se corretamente julgado.
No ponto 3 deu-se como não provado que a “M…” tenha aceite pagar a eletricidade contra sua vontade.
Este facto mostra-se corretamente julgado, pois a testemunha M…, que segundo os recorrentes «explicou com razão de ciência tudo o que se referia a energia», nada referiu a este propósito, isto é, que a “M…” tenha aceite pagar a eletricidade contra a sua vontade, não resultando da restante prova - documental ou testemunhal - que assim tenha sido.
Mantém-se assim intocado o ponto 3 dos factos não provados.
Nos pontos 4, 5 e 6 deu-se como não provado que:
- a “M…” consumisse menos energia do que a que pagava.
- o gerador trifásico tenha custado € 9.000,00 à “M…”.
- o gerador trabalhasse cerca de 8horas por dia e consumisse cerca de 2 litros diesel/hora.
Sobre estas matérias depôs a já aludida testemunha M…, amigo do autor a quem prestava serviços, gratuitamente, na resolução de problemas decorrentes de avarias na bomba elétrica e do gerador trifásico, como paga por autor enquanto advogado lhe ter tratado de alguns assuntos.
Afirmou-se na fundamentação da decisão de facto, relativamente a esta testemunha, ser o seu «depoimento tendencioso, pouco credível, veja-se o seu depoimento quanto aos consumos de electricidade registados e constantes das facturas, em que não foi feita qualquer prova documental do afirmado pela testemunha, o mesmo se diga quanto ao gerador e seu preço, não foi junta qualquer documentação relativa ao gerador e suas especificações técnicas, desconhece o Tribunal qual a sua marca, modelo, data de aquisição, preço ou qualquer elemento que pudesse confirmar as declarações prestadas pela testemunha».
Depois de ouvirmos o depoimento desta testemunha, não nos parece que a mesma foi tendenciosa, o que não se pode confundir com convencimentos pessoais da testemunha, o que de certo modo abala também a sua credibilidade.
Não nos podemos esquecer que os depoimentos das testemunhas têm de ser analisados no seu conjunto e pesam-se caso a caso, no contexto em que se inserem, tendo em conta a razão de ciência que invocam e a sua razoabilidade face à lógica, à razão e às máximas da experiência.
Assim, no que à factualidade dada como não provada no ponto 4 diz respeito, não resulta do depoimento da aludida testemunha que a “M…” gastasse menos energia do que aquela que pagava, não bastando para tanto ter visto uma ou duas faturas para concluir que assim foi.
Acresce que foi dado como provado e não foi impugnado, que os réus apenas utilizavam a casa aos fins de semana esporadicamente (ponto 36) e que em data não concretamente apurada os réus e a “M…” acordaram em alterar o acordo inicial quanto ao pagamento da eletricidade, por via da qual a “M…” passou a pagar 2/3 e os réus 1/3 do valor das faturas, sendo que a “M…” sempre pagou a sua parte e nunca reclamou dos valores por si pagos (pontos 37 e 38).
Mantém-se assim inalterado o ponto 4 dos factos provados.
No que tange ao ponto 5, em momento algum do seu depoimento referiu a testemunha que o gerador trifásico em causa custou à “M…” 9.000,00, sendo certo que não foi junto aos autos nenhum documento comprovativo de tal aquisição e por aquela quantia.
Referiu, aliás, a testemunha que não sabia porque razão não pediram os autores um novo contador da luz, em vez de comprarem um gerador trifásico, afirmando que o consumo deste é mais dispendioso.
Não pode, pois, deixar de se considerar como não provada a matéria do ponto 5.
Quanto ao ponto 6, referiu a testemunha que para fornecer energia a equipamento e luz para a casa dos caseiros e tiragem de água do furo, o gerador teria que trabalhar pelo menos 8 horas dia, e que o mesmo gastava entre 2,5 l a 2,8 l /h de gasóleo normal.
Ora, tendo em conta os conhecimentos técnicos da testemunha, que comercializa maquinaria agrícola e de rega, não encontramos razões para não valorar o seu depoimento nesta parte, pelo que deve ser dada como provada a matéria em questão.
Assim, elimina-se o ponto 6 dos factos não provados, o qual será aditado aos factos provados com a seguinte redação:
«42-a): O gerador trifásico trabalhava cerca de 8horas por dia e consumisse cerca de 2 litros diesel/hora.»

No ponto 7 foi dado como não provado que a “M…” aquando da celebração do contrato e por exigência dos réus tenha entregue € 14.963,94 (3.000.000$00 à data) para asfaltar o acesso que liga a Estrada Municipal que liga S. Sebastião da Giesteira ao Monte.
Sobre esta matéria não foi feita qualquer prova, tendo mesmo a testemunha J…, agricultor e rendeiro, declarado nunca ter ouvido falar em dinheiro pago pela “M…” para alcatroar a estrada.
Mantém-se assim incólume o ponto 7 dos factos não provados.
A matéria dos pontos 9 e 10 dos factos provado é absolutamente irrelevante para a sorte da ação, pois não tendo os autores peticionado qualquer indemnização por alegados danos sofridos em consequência de uma conduta permissiva dos réus, nada interessa saber se estes dão (ou davam, uma vez que já lhes foi entregue o arrendado) acesso pelo portão da sua entrada a pessoas que os autores não permitem, e se essas alegadas pessoas agrediram um colaborador dos autores, arrancaram porteiras, cortaram e levaram cadeados dos portões, cancelas de ferro, danificando as cercas e bens dos autores.
Torna-se assim despiciendo qualquer discussão sobre o acerto ou não da decisão de dar como não provada a matéria de facto em causa.
Improcede, assim, no essencial, a impugnação da matéria de facto feita pelos recorrentes, com exceção do ponto 6 dos factos não provados que se deve considerar provado.

Do mérito da ação
Com a presente ação pretendem os autores que os réus sejam condenados a reembolsá-los e a indemnizá-los nas quantias peticionadas nos artigos 25, 67, 79, 97, 100, 104 e 108 da petição inicial no montante de € 93.508,80.
Porém, não lograram os autores fazer prova dos prejuízos invocados, como lhes competia (art. 342º, nº 1, do Código Civil). É o caso do pagamento de valores a mais de eletricidade do que foi acordado com os réus, da compra de um gerador trifásico, e de benfeitoria útil realizada.
Assim, a propósito dos alegados pagamentos excessivos das faturas de eletricidade por parte da “M…”, provou-se, como já vimos, que os réus apenas utilizavam a casa aos fins de semana esporadicamente (ponto 36) e que em data não concretamente apurada os réus e a “M…” acordaram em alterar o acordo inicial quanto ao pagamento da eletricidade, por via da qual a “M…” passou a pagar 2/3 e os réus 1/3 do valor das faturas, sendo que a “M…” sempre pagou a sua parte e nunca reclamou dos valores por si pagos (pontos 37 e 38), e foi dado como não provado que a “M…” consumisse menos energia do que a que pagava.
Quanto à compra do gerador trifásico, além de não se ter provado o valor do seu custo, pode-se dizer que a sua aquisição se ficou a dever à própria conduta da “M…”, já que o facto de os réus terem posto termo à partilha de eletricidade em 3 de janeiro de 2011 se ficou a dever aos atrasos nos reembolsos por parte daquela sociedade das faturas da EDP, que os réus pagavam.
Provou-se, é certo, que o gerador trifásico trabalhava cerca de 8horas por dia e consumia cerca de 2 litros diesel/hora, o que aponta para consumos superiores aos da eletricidade.
Porém, aceitando como exato o referido pela testemunha M…, a opção de comprar um gerador trifásico em vez de solicitar um contador da luz à EDP revelou-se uma escolha pouco racional, pois como afirmou aquela testemunha, era tudo uma questão de fazer contas, sabendo-se que era mais dispendiosa a opção pelo gerador.
E, ademais, provou-se que os réus puseram termo à partilha da eletricidade em 3 de janeiro de 2011 devido aos atrasos nos reembolsos por parte da M… das faturas da EDP que aqueles pagavam.
De igual modo resultou indemonstrado que a “M…”, aquando da celebração do contrato e por exigência dos réus, tenha entregue € 14.963,94 (3.000.000$00 à data) para asfaltar o acesso que liga a Estrada Municipal que liga S. Sebastião da Giesteira ao Monte.
Por último, quanto ao alegado prejuízo sofrido com a não passagem de recibos da renda pelos réus, é inegável que estes nunca passaram tais recibos (ponto 35 dos factos provados).
É sabido que o devedor pode livrar-se da obrigação, em caso de mora do credor, mediante o depósito da coisa devida. É a chamada consignação em depósito prevista no art. 841º do Código Civil. Contudo, a consignação em depósito é facultativa.
A sociedade “M…” arrendatária não procedeu à consignação em depósito. Além disso nunca interpelou os senhorios no sentido de estes passarem os recibos de quitação, nem os advertiu de que enquanto tal incumprimento se mantivesse não pagaria as rendas.
Pelo contrário, sempre pagou as rendas desde o início do contrato, em dezembro de 1998, até dezembro de 2006 (inclusive).
A não passagem dos recibos é ilícita, embora se trate de um problema colocado entre o locador e a administração fiscal. Seja como for, o artigo 787º, nºs 1 e 2, do Código Civil, relativo ao documento de quitação, comprovativo do pagamento, refere o direito do devedor de exigir do credor a passagem de tal documento, podendo recusar a prestação enquanto a quitação não for dada.
Contudo, a “M…” nunca exigiu dos senhorios a passagem de documento de quitação – o recibo, pelo que não podem vir agora os autores reclamar uma indemnização por alegados prejuízos causados à extinta sociedade “M…” pela não passagem dos recibos de renda.
Por conseguinte, a ação improcede, embora com fundamentação totalmente diversa da alinhavada na sentença recorrida.

Da exceção do caso julgado (reconvenção)
Insurgem-se os recorrentes quanto à sua condenação no pedido reconvencional, defendendo que a mesma violou o caso julgado formado pelas decisões proferidas na ação instaurada pela sociedade “M…” contra os aqui réus, que ali deduziram igualmente reconvenção, a qual correu termos sob o nº 1851/07.0TVLSB pelo 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Évora e, depois, na Instância Central de Évora, Secção Cível e Criminal J3, (pontos 18 e 19 dos factos provados).
O caso julgado pressupõe a repetição de uma causa, tendo por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (art. 580º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil[12]), desde logo porque uma tal eventualidade contribuiria para abalar o prestígio dos tribunais (que certamente ficaria comprometido com a possibilidade de produzir decisões contraditórias sobre a mesma situação concreta) e não garantiria o mínimo de certeza e segurança jurídicas relativamente à definição de uma determinada relação jurídica, até para a tornar exequível[13].
Como nos ensina o Prof. Manuel de Andrade[14], o caso julgado material «consiste em a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais (e até a quaisquer outras autoridades) – quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (acção destinada a fazer valer outro efeito dessa relação). Todos têm que acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão».
O caso julgado pressupõe, tal como, aliás, a litispendência, uma tripla identidade: de sujeitos, de causas de pedir e de pedidos, havendo identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico e identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico (arts. 580º nº 1, e 581º, nºs 2 a 4).
Daí que, «[t]ransitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º…» (art. 619º, nº 1).
Por outro lado, «[a] sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga …» (art. 621º).
Ora, quanto à identidade de sujeitos não há dúvida que a mesma se verifica, considerando tudo o que acima deixámos dito a propósito da legitimidade substantiva dos autores/reconvindos, sabendo-se, ademais, que extinta a sociedade, são os sócios que respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha, nos termos do artigo 163º do CSC.
E também se verificará a identidade de pedidos?
Com resulta dos pontos 18 a 21 e dos documentos que suportam a factualidade dos mesmos constante, na ação nº 1851/07.0TVLSB os réus pediram, em reconvenção, além do mais: i) seja reconhecida a inadmissibilidade de dedução de oposição à denúncia do contrato de arrendamento efetuada pelos réus a 21 de fevereiro de 2007 e, consequentemente, seja a autora/reconvinda condenada a desocupar o locado a partir do dia 30 de Setembro de 2008; ii) a autora/reconvinda seja condenada no pagamento de € 133,33 por cada dia em que, após 30 de Setembro de 2008, não proceda à devolução livre de pessoas e bens do locado.
No despacho saneador conheceu-se do primeiro daqueles pedidos, tendo o mesmo sido julgado procedente, condenando-se a autora “M…” a desocupar o locado a partir do trânsito em julgado do saneador-sentença.
Por sua vez, na sentença proferida naqueles autos decidiu-se:
«Julgar o segundo pedido reconvencional deduzido pelos Reconvintes J… e Ma… parcialmente procedente, por provado, e, consequentemente, condenar a Reconvinda M…, Lda. no pagamento, a título de sanção pecuniária compulsória, da quantia de €133,00 por cada dia em que não proceda à entrega da “Herdade da D…” nos termos já judicialmente ordenados.
Na presente ação os réus deduziram idêntico pedido reconvencional, como se vê do relatório deste acórdão, à exceção da pretensão de condenação dos autores a pagar-lhes a quantia de € 26.781,99, equivalente ao total do valor das rendas do período entre 1 de janeiro de 2007 e 3 de fevereiro de 2015.
A circunstância de agora os réus/reconvintes pedirem a condenação dos autores a pagar-lhes a quantia de € 135.926,00, a título de indemnização pela não cessação da ocupação e falta de entrega da herdade, em nada altera a questão, pois esse valor resulta de uma mera liquidação da condenação proferida na ação nº 1851/07.0TVLSB, ou seja, o pagamento, a título de sanção pecuniária compulsória, da quantia de €133,00 por cada dia em que não proceda à entrega da “Herdade da D…”.
Também a causa de pedir é a mesma, porquanto em ambas as ações o facto jurídico de que emergem os pedidos deduzidos pelos réus/reconvintes é a denúncia do contrato de arrendamento efetuada pelos réus em 21 de fevereiro de 2007.
Não podia, assim, a sentença recorrida ter condenado os autores nos termos constantes das alíneas b), d) e e) do respetivo dispositivo.
Tendo-o feito, violou o caso julgado material constituído pelo saneador-sentença e pela sentença proferidos na ação com o processo 1851/07.0TVLSB.
Em suma, tem-se por verificada a tríplice identidade entre a ação que correu termos no indicado processo 1851/07.0TVLSB e a presente ação, no respeitante à pretensão de condenação dos autores a restituírem aos réus o prédio denominado "Herdade da D…” [al. b) do dispositivo da sentença][15], e no pagamento das quantias a que se alude nas alíneas d) e e) daquele dispositivo e, consequentemente, por verificada a exceção de caso julgado material, ao abrigo do disposto no artigo 581º do CPC, o que determina a absolvição dos autores da instância quanto a tais pretensões deduzidas na presente ação, nos termos conjugados dos artigos 576º, nº 1 e 2, 577º, alínea i), e 578º do CPC.
No que respeita à condenação dos autores no pagamento da quantia de € 26.781,99, equivalente ao total do valor das rendas do período entre 1 de janeiro de 2007 e 3 de fevereiro de 2015[16], nada a opor ao decidido, considerando, por um lado, que está provado que naquele período de tempo a “M…” não pagou a renda aos réus correspondente ao montante de € 26.781,99[17], e, por outro lado, a qualidade de fiadores que os autores assumiram no contrato de arrendamento dos autos [cfr. art. 627º, nº 1, do CC].
Procede assim parcialmente este segmento do recurso.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência:
a) revoga-se a sentença na parte relativa às condenações que constam das alíneas b), d) e e) do respetivo dispositivo, absolvendo os autores da instância reconvencional quanto aos pedidos a que respeitam essas condenações;
b) confirma-se a sentença na parte em que absolveu os réus do pedido [al. a) do dispositivo], ainda que com fundamentação não coincidente;
c) confirma-se a sentença na parte relativa à condenação dos autores/reconvindos constante da alínea c) do respetivo dispositivo.
*
Custas aqui e na 1ª instância por autores e réus, na proporção do decaimento.
*
Évora, 24 de setembro de 2020
(Acórdão assinado digitalmente no Citius)

Manuel Bargado (relator)
Albertina Pedroso (1º adjunto)
Tomé Ramião (2º adjunto)
_______________________________________________

[1] Facto eliminado por esta Relação nos termos da discussão da matéria de facto infra.

[2] Facto aditado em consequência da impugnação da matéria de facto infra.

[3] Facto eliminado em consequência da impugnação da matéria de facto infra, tendo transitado para o elenco dos factos provados.

[4] Nos termos do artigo 695º do CPC pré-vigente. Este artigo, que foi revogado pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24/08, era aplicável in casu, uma vez que os artigos 11º, nº 1, e 12º, nº 1, deste diploma legal prescrevem que as disposições do presente diploma entram em vigor no dia 1 de janeiro de 2008, e acrescentam que “não se aplicam aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor”.

[5] Doravante CSC.

[6] Comentário ao Código das Sociedades Comerciais - Dissolução e Liquidação de Sociedades, 1987, p. pp. 436 e ss.

[7] Proc. 08B1184, in www.dgsi.pt.

[8] Acórdão do STJ de 30.05.2017, proc. 593/14.5TBTNV.E1.S1, in www.dgsi.pt.

[9] Raúl Ventura, ob. cit., p. 480.

[10] Neste sentido, os acórdãos desta Relação de 17.11.2016, proc. 593/14.5TBTNV.E1, relatado pelo aqui relator e subscrito pela 1ª adjunta (não publicado), e de 28.06.2018, proc. 2079/16.4T8STR.E1, no qual o ora relator interveio como adjunto, disponível in www.dgsi.pt.

[11] Sendo por isso irrelevantes e inconsequentes as considerações que os recorrentes tecem no corpo alegatório sobre determinados pontos da matéria de facto dada como provada.

[12] Diploma a que pertencem as normas infra referidas sem menção de origem.

[13] Cfr. Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, vol. III, pp. 94-96.

[14] In Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, p. 305

[15] Em qualquer caso não podiam os autores ser condenados a restituir algo que já não possuíam. Com efeito, o despacho de 22.10.2018 a que se alude no ponto 34 dos factos provados foi proferido porque «[n]o decurso destes autos tal imóvel foi entregue aos Réus no âmbito de acção de execução que corre termos pelo Juízo de Execução de Montemor-o-Novo sob o nº 113/18.2T8MMN, facto que os Autores não negam, …».

[16] Alínea c) do dispositivo da sentença.

[17] Dispõe o artigo 1045º, nº 1, do Código Civil que se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda que as partes tenham estipulado.