Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2375/21.9T8STR.E1
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: ESCRITURA PÚBLICA
CONFISSÃO
DECLARAÇÃO CONFESSÓRIA EXTRAJUDICIAL
ÓNUS DA PROVA
PROVA PROÍBIDA
DIREITO DE PREFERÊNCIA
TERRENOS CONFINANTES
TERRENO PARA CONSTRUÇÃO
Data do Acordão: 11/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. Apesar de não fazer prova plena quanto à veracidade da declaração, se na escritura pública de compra e venda, com base nas declarações dos contraentes perante o notário se fez constar o preço do imóvel, essa declaração vale como confissão nos termos e para efeitos dos arts. 352º e 358º, nº 2, do Cód. Civil;
II. E se assim é, nos termos do art.º 347.º do Cód.Civil , recai sobre o confitente, o ónus da prova da inveracidade da declaração confessória, defrontando-se com as limitações ao nível do direito probatório material no que concerne à apresentação de prova testemunhal ou ao uso de presunções judiciais (art.ºs 393.º, n.º 2, e 351.º do CC). Tais limitações apenas cedem quando exista outro meio de prova, maxime prova documental, que torne verosímil a inveracidade da declaração, servindo, então, a prova testemunhal ou o recurso a presunções judiciais como complemento dessa prova indiciária.
III. As situações vertidas na alínea a) do art.º 1381ºdo Cód. Civil reflectem situação excepcional impeditiva do exercício do direito de preferência, implicando ónus de prova factual por parte daquele ou daqueles contra quem a preferência pretende exercer-se;
IV. A prova de o prédio adquirido vai ser destinado a algum fim que não seja a cultura (art.º 1381º, a) do Cód. Civil) não se basta com uma mera intenção do adquirente: é necessário que tal destino diverso seja incontroverso.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO
1. QUINTA DAS COMEIRAS, SOCIEDADE AGRÍCOLA E TURÍSTICA, LIMITADA demandou AA e PAUMAMI – CONSTRUÇÕES, LDA pedindo o reconhecimento a seu favor de direito de preferência quanto o prédio rústico, que identifica, objecto de contrato de compra e venda celebrado entre os Réus.
Para tanto, alegou que, apesar de ser proprietária de prédio rústico, com área inferior à unidade de cultura e confinante com o prédio rústico vendido pelo 1.º Réu à 2.ª Ré, também com área inferior à unidade de cultura, os termos desta venda não lhe foram previamente comunicados para efeitos de exercício do direito de preferência a que alude o art. 1380.º, n.º 1 do Cód. Civil, direito esse que a Autora diz deter e efetivamente pretender exercer.
Regularmente citados, os Réus contestaram e deduziram reconvenção conjuntamente.
Na contestação, defenderam-se impugnando, de forma motivada, factualidade alegada na petição inicial e sustentando a inaplicabilidade do invocado direito de preferência ao caso concreto.
Em reconvenção (deduzida apenas a título subsidiário para o caso de a acção ser julgada procedente), pediram a condenação da Autora no pagamento do preço real da venda, no valor de € 50.000,00 (i.e., superior ao preço de € 25.000,00 declarado no contrato de compra e venda).
A Autora replicou, impugnando a matéria fática da reconvenção.
Concluiu pela total improcedência do pedido reconvencional.
Finda a fase dos articulados, foi dispensada a audiência prévia e proferido despacho saneador, que admitiu a reconvenção. Procedeu-se ainda à definição do objeto do litígio e à enunciação dos temas de prova.
Realizada audiência final, veio, subsequentemente, a ser proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolveu os Réus AA e PAUMAMI – CONSTRUÇÕES, LDA. da totalidade do pedido.

2. É desta sentença que desaprazida recorre a Autora, formulando, na sua apelação, as seguintes conclusões:
1. O prédio alienado (prédio ...27) é um prédio rústico composto por olival e cultura arvense em Olival, com a área de 37.200 m2;
2. O prédio confinante (prédio ...47), propriedade da R., é igualmente um prédio rústico que inclui parte urbana como complemento à atividade agrícola constituída por «casa de rés do chão para lagar de azeite, dependências, palheiro e logradouro»;
3. As áreas dos terrenos confinantes são inferiores às da unidade de cultura estabelecidas para o local (área da Lezíria do Tejo);
4. Nos termos do artº 1380º, nº 1, do Código Civil, a A. tem direito de preferência na aquisição do prédio ...27.
5. O 1º R. não informou previamente a A. sobre a intenção de venda do prédio ...27, nem as demais cláusulas do respetivo contrato;
6. O prédio alienado destina-se, única e exclusivamente, a fins agrícolas, não sendo possível dar- lhe outro destino, a não ser que haja alguma alteração ao PDM, ou que tivesse sido deferido pela Câmara Municipal de Santarém algum pedido de viabilização para utilização do terreno para fins diferentes dos agrícolas;
7. Os R.R. não fizeram prova de que o terreno alienado poderia ter outro fim que não o agrícola, competindo-lhes a eles, mais especificamente à 2ª R., fazer prova de que poderiam legitimamente utilizar tal imóvel para outros fins, nomeadamente para estaleiro de construção civil;
8. Antes pelo contrário: – como se comprova da certidão da Câmara Municipal de Santarém ora junta, para tal imóvel não existe, até agora, qualquer pedido de licenciamento;
9. Ora não basta que o adquirente do prédio rústico confinante tenha intenção de lhe dar um fim diferente que não o de cultura, é também necessário que esse fim seja um fim viável e lícito – o que não é o caso;
10. A considerar-se de outra forma, para contornar as regras do ordenamento do território bem como dos interesses de ordem pública, de cariz social e económico, subjacentes ao instituto do direito de preferência na alienação de prédios rústicos confinantes, bastaria que o adquirente declarasse que pretendia destinar tal prédio a um qualquer fim não agrícola, fosse ele qual fosse, mesmo que inviável ou ilegal, como seja, uma urbanização, uma unidade hoteleira, uma fábrica de material bélico, um aterro sanitário, etc.;
11. Assim o facto provado nº 7. deverá passar a facto não provado;
12. Não basta declarar-se a intenção de no prédio rústico adquirido se pretender construir um estaleiro de apoio à atividade de construção civil, era também necessário provar-se – o que não fez – que essa sua intenção subjetiva era lícita e viável.
13. A sentença recorrida violou o estipulado no artº 1380º do Código Civil, bem como o artº 1381º, alínea a), do mesmo diploma, na medida em que o terreno alienado tem apenas um fim agrícola e não se destina a algum fim que não seja a cultura.
14. Deve ainda dar-se como não provado o facto 4., de que, para além do preço constante na escritura de compra e venda, a 2ª R. efetuaria obras em instalações do 1º R, obras essas que ascenderiam a 25.000,00 €.
15. Para prova de tal facto 4., a meritíssima Juiz baseou-se no documento junto a fls. 47 e 48, bem como do depoimento das testemunhas BB, CC, DD e EE;
16. Ora, quanto ao documento de fls. 47 e 48, trata-se de um papel manuscrito, sem qualquer comprovativo da data em que foi escrito e assinado, nem se as assinaturas correspondem às do 1º R. bem como às de quem representa a 2ª R., visto que esta é uma pessoa coletiva, e as assinaturas não foram reconhecidas por quem quer que seja, nem, muito menos, foi autenticado tal documento particular.
17. Ainda que tal documento tivesse sido elaborado e assinado pelos R.R. antes da celebração da escritura pública de compra e venda, ao considerar-se que o mesmo implica uma obrigação de pagamento do preço da venda do imóvel, em conformidade com o preceituado no artº 879º, alínea c) do Código Civil, o mesmo teria de ser efetuado por meio de escritura pública ou por documento particular autenticado – o que não foi o caso, pelo que não é válido conforme estipula o artº 875º do Código Civil.
18. Também o comprovativo do preço da compra e venda através dos depoimentos das testemunhas não é o meio próprio para comprovar o preço do imóvel alienado.
19. Para além do mais, a testemunha BB, a instâncias quer do mandatário dos R.R., quer da meritíssima, quer do mandatário da A., sempre referiu que só teve conhecimento dos factos depois, e através do que lhe contou o Sr. BB, sócio-gerente da R. Paumami, pelo que tal depoimento nada prova.
20. De igual forma a testemunha CC, que tem uma relação de subordinação jurídica relativamente ao 1º R., é trabalhador deste com as funções de encarregado, refere que o terreno vendido pelo seu patrão não tem condições nem é rentável para ser amanhado, tem muitas pedras e, em resposta ao que o mandatário dos R.R. lhe perguntou, se o preço fora metade em dinheiro, metade em trabalho, respondeu “aí não sei. Depois não sei o que eles acordaram”.
21. Portanto, também este depoimento não é de molde a fazer prova do preço do imóvel alienado.
22. Quanto ao depoimento da testemunha EE, irmão do 1º R., muito embora tenha referido que o irmão tinha vendido o imóvel por 50.000,00 €, e que foi pago parte em dinheiro e grande parte em trabalhos, a instâncias da meritíssima Juiz não conseguiu concretizar quais os trabalhos já executados e outros a executar pela 2ª R. como complemento do preço constante na escritura, nem referiu um valor concreto, ou tão pouco estimado, de cada uma desses trabalhos.
23. Pelo que, também tal testemunho não pode ser valorizado como provando o preço pago pela 2ª R. ao 1º R.
24. Acresce que a testemunha admitiu saber os preços que correm na zona pela venda de terrenos, tendo referido que os preços variam entre os 7.000,00 € e os 15.000,00 € por hectare, dependendo da perspetiva “se dá para construir ou se não dá”
25. Ora, sendo o terreno vendido um prédio rústico de 37.200,00 € sem grande viabilidade económica para a agricultura, pois que constituído por pedras, e não sendo um terreno para construção, pelo raciocínio desta testemunha, o seu valor rondaria os 26.040,00 €, muito longe, portanto, dos 50.000,00 € que pretendia fazer crer ao Tribunal ter sido o preço da compra e venda.
26. Quanto ao depoimento da testemunha DD, serralheiro civil que presta há mais de dez anos trabalhos para a 2ª R., refere que efetivamente efetuou trabalhos que lhe foram encomendados pelo Sr. BB, sócio da Paumami, em terrenos que eram do 1º R.;
27. Mais referiu que tais trabalhos foram faturados à Paumami, não constando, no entanto, nos autos quaisquer dessas faturas ou orçamentos discriminados com os trabalhos efetuados ou a efetuar pela 2ª R em prol do 1º R.
28. A instâncias do mandatário dos R.R. afirmou que fez por duas vezes serviços nessas condições – a pedido do Sr. BB, nos terrenos do Sr. AA – sendo que um dos trabalhos foi à volta de sete ou oito mil euros e o outro, no valor de oito ou nove mil euros.
29. Portanto, tais trabalhos teriam ascendido a cerca de dezasseis mil euros, muito distante dos 25.000,00 € que os R.R. afirmam ter sido o valor de tais trabalhos como parte do preço pago pela compra e venda do imóvel em causa.
30. Os R.R. não lograram provar que o preço constante na escritura de compra e venda não foi o preço real do imóvel transacionado, nem que, a existirem outras contrapartidas válidas e eficazes como preço, o seu valor ascenderia a outros 25.000,00 €.
31. Pelo que deverá ser dado como não provado o facto 4.
32. Ao decidir de outra forma, a sentença recorrida, para além, como se disse, ter violado os artºs 1380º e 1381º, alínea a), violou ainda o estipulado nos artºs 342º, 879º, alínea c) e 865º, todos do Código Civil.
Nestes termos e sobretudo pelo que mui doutamento será suprido, deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se a douta sentença recorrida e condenando-se os Réus no pedido, devendo ser reconhecido à A. o direito de haver para si a parte vendida pelo preço de 25.000,00 € como consta na escritura de compra e venda, com custas pelos réus como se espera e é de JUSTIÇA.

3. Contra-alegaram os Réus, concluindo a sua peça como segue:
1. O recurso a que se responde não tem qualquer fundamento de facto ou direito;
2. A A. invoca factos novos para fundamentar o recurso interposto.
3. O Tribunal superior em sede de recurso apenas se pode pronunciar sobre os factos alegados pelas partes até ao encerramento da audiência de discussão e julgamento.
4. A A. invocou apenas em sede recurso uma alegada inadmissibilidade de construção no prédio objecto da preferência.
5. À contestação oferecida pela Ré onde foi alegada a aquisição do prédio em questão nos autos para construção de um estaleiro de apoio à sua atividade comercial, construção civil, a A. ao replicar, nunca alegou a inadmissibilidade de construção no local.
6. Na resposta à contestação a A. apenas se pronunciou quanto à primeira parte do artigo 1381º alínea a) do CC , isto é, quanto à natureza rustica do prédio da A, “ “Quando algum dos terrenos constitua parte componente de um prédio urbano ….”, e não respondeu quanto à exceção invocada pelos RR “ ..ou se destine a algum fim que não seja a cultura.”
7. É legalmente inadmissível vir a A. fora de tempo, impugnar a admissibilidade da construção, como se um facto novo se tratasse.
8. Nos autos nenhuma prova foi realizada quanto à inadmissibilidade da construção, pois nunca foi facto controvertido.
9. Sendo a questão da alegada inadmissibilidade uma questão nova, apenas suscitada pela A. em sede de recurso, está vedada a sua apreciação ao tribunal de recurso, nos termos do artº 608 nº 2 do C.P.C.
10. Da articulação entre o artigo 651º, nº 1 do CPC e os artigos 425º e 423º do mesmo Código resulta que a junção de documentos na fase de recurso, sendo admitida a título excecional, depende da alegação e da prova pelo interessado nessa junção pela impossibilidade de apresentação antes do recurso ou caso seja introduzida um elemento novidade no julgamento que torne necessária nova prova.
11. A A. junta um documento em sede de recurso sem preencher qualquer dos requisitos legalmente previstos.
12. A A. junta um documento e justifica a sua junção tardia pelo facto de apenas ter sido pedido após a prolação da sentença, e tal não é justificação nem da impossibilidade da sua junção no momento devido, nem resultante de qualquer elemento novo que o julgamento tenha introduzido à apreciação do Tribunal .
13. Os RR em sede de contestação invocaram a aquisição do prédio em causa, pela Ré, para a instalação de um estaleiro da adquirente, conforme se alcança dos artigos 34º, 41º, 42º 43º daquele articulado,
14. A A. teve oportunidade de se pronunciar quanto às exceções alegadas pelos RR, em sede de Réplica que oportunamente apresentou e nunca alegou a ilicitude e inviabilidade da construção no prédio adquirido pela Ré, nem da inexistência de pedido de licenciamento para aquele prédio.
15. Perante a invocação pelos RR que a Ré adquiriu o prédio em questão para a construção de um estaleiro de apoio à sua atividade comercial de construção civil, à A. caso correspondesse à verdade e não é, cabia alegar a ilicitude ou inviabilidade da construção, o que nunca fez.
16. A A. nunca alegou a ilicitude/inviabilidade da construção pretendida pela Ré.
17. Tendo os RR excecionado a inoperância do direito de preferência por o prédio não se destinar a cultura, incumbia à Autora, alegar e provar que o mesmo não tinha a apetência para o fim que a Ré compradora o havia adquirido e/ou por existência de algum impedimento legal, o que sempre poderia ter aduzido na réplica que apresentou, mas nãoo fez, nem apresentou ou alegou qualquer prova nesse sentido.
18. Mesmo que o documento agora junto pela A. fosse admissível, o que por mera hipótese académica se admite, dele não consta que o prédio adquirido pela Ré, apenas pudesse ser utilizado para fins exclusivamente agrícolas.
19. O documento junto pela A. em sede de recurso deverá ser desentranhado dos autos, pois além de ser extemporâneo, nem sequer tem a virtualidade de provar a alegação da A.
20. Não tendo a A. invocado a ilicitude ou inviabilidade da construção pretendida pela Ré adquirente, os RR não tinham que provar o que não se mostrava controvertido.
21. A A. não alegou na resposta à contestação, nem provou, e nem podia provar, por não corresponder à verdade, que o prédio adquirido pela Ré não tinha apetência para o fim que o havia adquirido.
22. O facto considerado como provado nº 7 deve manter a sua redação, quer por corresponder à verdade, quer porque a alegação da A. não procede.
23. O facto provado no ponto 7 dos factos provados, assim foi considerado atento o depoimento das testemunhas FF, com registo de áudio 20220401102807_2966567_2871713, prestadas ao minuto 4.13 e ao minuto 08.13; pela testemunha GG com registo de áudio 20220401104635_2966567_2871713, ao minuto 03.13 e 05.31; BB com registo de áudio 20220401110819_2966567_2871713 ao minuto 02.24 ; CC com registo de áudio 20220401111652_2966567_2871713, ao minuto 03.12 ; e EE com registo de áudio 20220401112439_2966567_287713 ao minuto 04.34.
24. Todas testemunhas supra referidas, incluindo testemunhas indicadas pela A. confirmam que a Ré adquiriu o prédio ao Réu para ali construir um estaleiro de apoio à sua atividade de construção civil.
25. As testemunhas da A. FF e GG, são perentórias a confirmar que a A. apenas pretendeu exercer o direito de preferência porque ali ia ser construído um estaleiro.
26. Decorre das declarações supra indicadas, que a Ré desde logo tratou de preparar o terreno adquirido e objecto da preferência.
27. O artigo 1380º, nº1 do CC. vincula o exercício do direito de preferência à efetiva exploração dos terrenos rústicos para fins de cultura agricola, não se bastando com o facto de serem aptos para cultura.
28. As declarações da testemunha indicada pela A. GG, com registo de áudio 20220401104635_2966567_2871713, ao minuto 03.13 e ao minuto 05.31 demonstram que a A. apenas pretendeu exercer o direito de preferência sobre o prédio em questão, quando soube que a Ré ali pretendia construir um estaleiro, nomeadamente, porque a A. pretendia evitar que a construção do estaleiro “ tirasse a traça da casa “.
29. A testemunha HH, ao minuto 2.33, com registo de áudio 20220401105949_2966567_2871713, declara que no prédio em questão não é uma propriedade agrícola, porquanto no prédio não existe produção de culturas atual.
30. O prédio adquirido pela Ré, tem fraca aptidão para a agricultura, dada a sua natureza rochosa, conforme se alcança das declarações da testemunha CC ao minuto 02.27, com registo de áudio 20220401111652_2966567_2871713.
31. Quanto à finalidade do prédio da A., a prova produzida foi no sentido de que os terrenos que integram o prédio da A. estavam abandonados, para além de que se destinavam a um projecto de turismo rural.
32. O turismo rural não é uma atividade agricola, mas antes atividade industrial.
33. A A. não fez prova dos requisitos legalmente previstos para o exercício do direito de preferência, como não impugnou a exclusão do mesmo alegada pelos RR.
34. A A. sabia e reconhecia que a intenção da Ré adquirente era a construção de um estaleiro.
35. O facto considerado como provado nº 7 deve manter a sua redação, quer por corresponder à verdade, quer porque a alegação da A. não procede.
36. Quanto ao facto constante do ponto 4 dos factos provados, o mesmo foi considerado como provado atento o documento junto pelos RR, assim como pelo teor das declarações das testemunhas BB, prestadas ao minuto 03.27 e 06.34 com registo de áudio 20220401110819_296567_2871713; CC, prestadas ao minuto 04.06 com registo de áudio 20220401111652_2966567_2871713; DD, prestadas ao minuto 03.07 e 07.00 com registo de áudio 20220401113644_2966567_2871713 e EE prestadas ao minuto 03.36 com registo de áudio 20220401112439_2966567_287713.
37. Todas as testemunhas foram unanimes e era do seu conhecimento, algumas até por terem participado nas obras em questão, que o negócio envolveu um pagamento em dinheiro e outro em trabalhos prestados pela Ré a favor do Réu, trabalhos esses quase concluídos.
38. Para além do documento junto pelos RR em sede de contestação, a prova testemunhal produzida é e foi mais que suficiente, para demonstrar a forma de pagamento do prédio adquirido pela Ré.
39. Quanto ao documento junto pela contestante, que atesta a forma de pagamento que os RR acordaram, a A. não alcançou demonstrar o seu inverso, muito contrário, o que resultou da audiência de julgamento é que o seu teor foi totalmente confirmado pelas testemunhas acima identificadas.
40. Quanto ao valor do prédio, nada dos autos resulta quanto a uma avaliação do seu preço, sendo mais uma nova questão que a A. levanta em sede de recurso, o que definitivamente não lhe é permitido.
41. Nada do que a A. alega em sede de recurso, abala a sentença proferida,
42. Sentença que não merecendo qualquer reparo, deve ser mantida.
Assim se fazendo a costumada Justiça”.

4. OBJECTO DO RECURSO

4.1. Questão prévia: Da admissibilidade da junção de documento nesta sede.

Entende a apelante que deveria ter ficado assente que o prédio rústico objecto do contrato de compra e venda entre os Réus se destinava à actividade agrícola, não sendo possível dar-lhe outra utilização.
Para comprovar a impossibilidade de utilização do prédio rústico em causa para fins diferentes dos agrícolas, requer a junção aos autos de um documento emitido pela C.M.S. no qual é declarado inexistir qualquer pedido de licenciamento para o mesmo prédio rústico.
Vejamos.
A questão do destino do prédio rústico objecto da compra e venda entre os Réus/apelados é diversa da (im) possibilidade da sua alteração.
Que o mesmo era destinado à actividade agrícola não há dúvidas: tal emerge do facto de o mesmo ser “composto de solo subjacente de cultura arvense de olival e oliveiras”, como ficou consignado no ponto.2 dos factos provados.

A circunstância de não lhe poder ser dado outro destino não foi sequer alegada ( se bem que também não tivesse de o ser pela A.).

É consabido que os documentos são meios de prova cuja exclusiva função é a de demonstrar os factos alegados (artigo 341.º do Código Civil) daí que a sua junção, em regra, deva ser efectuada na fase instrutória da causa, nos momentos que actualmente se mostram previstos no artigo 423.º do CPC. Ora, a junção de documentos com as alegações de recurso só é passível de ser efectuada no âmbito do recurso de apelação em que nos movemos, quando se verifique alguma das situações prevenidas no artigo 651.º do CPC, do qual resulta que “as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância”.

Da conjugação do disposto nos artigos 425.º e 651.º do CPC, verifica-se que apenas é admissível a junção de documentos no âmbito das alegações de recurso de apelação nestes tipos de situações:
-quando não tenha sido possível a sua apresentação até ao encerramento da discussão em primeira instância;
- quando a apresentação se tenha tornado necessária apenas em virtude do julgamento proferido pela primeira instância.
Assim, quanto à primeira das referidas possibilidades - documentos cuja junção não tenha sido possível até ao encerramento da discussão em primeira instância - o preceito abrange quer a superveniência objectiva do documento, quer a superveniência subjectiva decorrente, por exemplo, do desconhecimento da existência do documento, ou mesmo da junção de documentos que tenham sido formados posteriormente àquele momento temporal.
No entanto, os documentos supervenientes a que o preceito se refere, não podem ser todos e quaisquer documentos que se reportem a factos já constantes da instrução da causa.
Na verdade, considerando que os recursos se destinam ao controle da decisão impugnada, hão-de admitir-se apenas os que tenham relevância processual quanto a factos supervenientes estranhos ao objecto da lide ou que se destinem a pôr-lhe termo, como sejam, o documento comprovativo do óbito da parte; a confissão, desistência ou transacção realizada através de documento autêntico ou particular; ou aqueles que, tendo havido impugnação da matéria de facto, se enquadrem na previsão do n.º 1, do artigo 662.º, isto é, aqueles documentos que, sendo novos e supervenientes, só por si, tenham força probatória suficiente para destruir a prova em que a decisão da primeira instância assentou.
No caso vertente é evidente que o documento em apreço não constitui documento superveniente para os fins em vista só pelo facto de , como refere a apelante, ter sido pedida a sua emissão junto da CMS só após a prolação da sentença.
Face ao exposto, indefere-se a requerida junção.

4.2. Posto isto o objecto do recurso delimitado pelas enunciadas conclusões (cfr.artºs 608º/2, 609º, 635º/4, 639º e 663º/2, todos do CPC) reconduz-se à apreciação:
4.2.1. Da impugnação da seguinte matéria de facto:
- Se o factos vertidos nos pontos 4 e 7 do rol dos provados deve transitar para os não provados:
4.2.2. Da reapreciação jurídica da causa: Da (in) verificação dos pressupostos do direito de preferência por parte da Autora. Do eventual conhecimento da reconvenção.

II. FUNDAMENTAÇÃO
5. É o seguinte o teor da decisão de facto inserta na sentença recorrida:
Factos Provados
“1. Mediante a AP. 9 de 06.12.1991, encontra-se registada a aquisição, por compra, a favor da Autora do “prédio misto” denominado “Casal do Torrão - Quintinha”, composto de terra de semeadura com oliveiras, solo subjacente de cultura arvense e casa de rés-do-chão para lagar de azeite, dependências, palheiro e logradouro, com uma área de 46.040 m2, sito na freguesia de São Vicente de Paúl, concelho de Santarém, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santarém com o n.º ...47 e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...1 e na matriz predial urbana sob o artigo ...18 (doravante, abreviadamente, prédio ...47).
2. Por escritura pública outorgada em 09.07.2021 no Cartório Notarial de Santarém, lavrada de fls. 59 a 60v do Livro de Notas 48-A do dito Cartório, o 1.º Réu declarou vender à 2.ª Ré, que declarou comprar, pelo preço de € 25.000,00, o “prédio rústico”, composto de solo subjacente de cultura arvense de olival e oliveiras, com uma área de 37.200 m2, sito em Cabeça do Arneiro ou Quintina, na União de Freguesias de São Vicente de Paúl e Vale de Figueira, concelho de Santarém, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santarém com o n.º ...27 e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...9 da Secção X, cuja aquisição a favor do 1.º Réu se achava registada pela AP. 2012 de 02.07.2018 (doravante, abreviadamente, prédio ...27).
3. A aquisição da favor da 1.ª Ré do prédio ...27 encontra-se registada junto da Conservatória do Registo Predial pela AP. 2729 de 14.07.2021.
4. Além do preço constante da escritura pública que antecede, o 1.º Réu e a 2.ª Ré acordaram entre si que, em contrapartida da venda do prédio ...27, esta efetuaria a favor do 1.º Réu obras em instalações deste, nomeadamente, a recuperação de um barracão com cerca de 1200 m2 e a construção de uma plataforma em ferro e betão para suporte de equipamento para bombas de abastecimento e equipamento de rega, obras essas a que os Réus atribuíram o valor de € 25.000,00.Eliminado conforme decisão infra.
5. Os prédios ...47 e ...27 confinam entre si e são ambos de sequeiro.
6. O 1.º Réu não informou previamente a Autora sobre a intenção de venda do prédio ...27, nem a identidade da 2.ª Ré, enquanto interessado na compra daquele, o preço e os demais termos e condições da venda.
7. A 2.ª Ré é uma sociedade comercial que se dedica à atividade de construção civil e adquiriu o prédio ...27 para ali construir um estaleiro de apoio à referida atividade – Eliminado conforme decisão infra.

Factos Não Provados
- Que o prédio ...47 não se destine predominantemente a exploração agrícola.

6. Do mérito do recurso
6.1. Da impugnação da matéria de facto:
Entende a apelante que o facto vertido no ponto 4 dos “provados” ( Além do preço constante da escritura pública que antecede, o 1.º Réu e a 2.ª Ré acordaram entre si que, em contrapartida da venda do prédio ...27, esta efetuaria a favor do 1.º Réu obras em instalações deste, nomeadamente, a recuperação de um barracão com cerca de 1200 m2 e a construção de uma plataforma em ferro e betão para suporte de equipamento para bombas de abastecimento e equipamento de rega, obras essas a que os Réus atribuíram o valor de € 25.000,00 ) deveria transitar para o dos “ não provados” porquanto o documento de fls. 47 e 48 que serviu de prova à 1ª instância não reveste qualquer fidedignidade[1].

Mesmo que assim não fosse, acrescenta, nem por isso o mesmo poderia ter a virtualidade de provar que o preço da compra e venda havia sido de 50.000,00 e não de 25.000,00 como declarado na escritura pois que “tudo leva a crer que este acréscimo de preço da compra e venda não passa de um expediente para que, caso prevaleça o direito de preferência do A. dividirem entre eles os 25.000,00 que este teria de pagar a mais , para além do constante da escritura”.

Vejamos então se lhe assiste razão.

Para justificar o decidido referiu-se na sentença o seguinte:
“O Tribunal ficou convencido quanto à veracidade da factualidade descrita em 4 através da análise crítica do documento junto a fls. 47 e 48, do qual consta justamente os termos do acordo da venda, que abrangia, além do preço escriturado de € 25.000,00, a realização por parte da 2.ª Ré a favor do vendedor (1.º Réu) das obras de construção ali identificadas. Ora, esta versão está, de resto, inteiramente de harmonia com os depoimentos das testemunhas BB, CC, DD e EE, que asseguraram que a 2.ª Ré procedeu efetivamente à concretização daquelas obras, a maior parte das quais já concluídas. Ressalte-se que a razão de ciência destas testemunhas é muito relevante, já que as três primeiras intervieram na execução das obras nas instalações do 1.º Réu a pedido da 2.ª Ré, tendo sido esta – disseram - quem lhes pagou os custos das mesmas. Por outro lado, EE é irmão do 1.º Réu e colabora com este na sua atividade, tendo evidenciado estar a par das condições da venda realizada entre os Réus, incluindo o valor global atribuído pelas partes ao negócio: € 50.000,00. Estas testemunhas responderam ao que lhes foi perguntado de modo espontâneo, objetivo e detalhado, próprio de quem fala com verdade. Mereceram, pois, credibilidade.”.

Poderia o Tribunal ter respondido como respondeu ao facto em apreço com base nesta prova?

Em primeiro lugar, não nos podemos olvidar que os Réus deduziram reconvenção mediante a qual peticionam o pagamento pela Autora/reconvinda da quantia de € 50.000,00 que reputam ser o “valor real do negócio” – cfr. arts.º 57º e 58º da contestação/reconvenção.
E isto ao arrepio do valor declarado na escritura como sendo o preço da venda do imóvel (€ 25.000,00).
Porém, a circunstância de o negócio ter sido celebrado por uma escritura pública, i.e. um documento autêntico, significa que, nos termos do art.º 371.º, n.º 1, do Código o mesmo faz “prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles tenham sido atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador.”

Apesar de não fazer prova plena quanto à veracidade da declaração, se na escritura pública de compra e venda, com base nas declarações dos contraentes perante o notário se fez constar o preço do imóvel, essa declaração vale como confissão nos termos e para efeitos dos arts. 352º e 358º, nº 2, do Cód. Civil.[2]

E se assim é, nos termos do art.º 347.º do Cód.Civil , recai sobre o confitente, no caso os confitentes, o ónus da prova da inveracidade da declaração confessória, defrontando-se com as limitações ao nível do direito probatório material no que concerne à apresentação de prova testemunhal ou ao uso de presunções judiciais (art.ºs 393.º, n.º 2, e 351.º do CC). Tais limitações apenas cedem quando exista outro meio de prova, maxime prova documental, que torne verosímil a inveracidade da declaração, servindo, então, a prova testemunhal ou o recurso a presunções judiciais como complemento dessa prova indiciária[3].

Parece-nos que o documento de fls. 47 não constitui um princípio de prova minimamente verosímil para demonstrar a prova do facto contrário à constante da declaração confessória, ou seja, de demonstrar não ser verdadeira a afirmação feita na escritura pública de que o preço da venda era de € 25.000,00 mas, sim, de € 50.000,00.

Tal documento mostra-se manuscrito e assinado por pessoas não concretamente identificadas.

Na contestação o mesmo é apelidado de “papel” que terá sido assinado pelos “contestantes”[4] e no qual “constam as condições em que o prédio foi negociado”.
Na mesma peça é afirmado que: “Não obstante na escritura celebrada constar o preço de 25.000,00 a verdade é que, para além daquele montante, a contestante se comprometeu a fazer as obras atrás referidas” (art.º 50º).
E mais adiante: “Pelo que entre os Réus foi atribuído a tais obras o valor de metade do prédio vendido”.

Percorrendo tal “papel” a verdade é que nele se não faz a mínima alusão a um valor de €50.000,00 como sendo o valor do negócio ou como tendo as obras aí descritas o valor de € 25.000,00 (o que a somar ao valor da venda do prédio perfaria € 50.000,00).

E para além de não precisar o valor de tais obras, nem sequer é acompanhado de documentos da sua efectiva realização (v.g. facturas/recibos quer de mão de obra, quer de materiais).

Em suma: Os Réus/apelados não juntaram nenhuma prova documental que possa constituir um princípio de prova de que a declaração por si feita na escritura pública de compra e venda, de que o preço[5] de € 25.000,00 pela transmissão da propriedade do prédio, não correspondia à verdade.

E, por consequência, não poderiam ter-se socorrido da prova testemunhal para fazer prova da alegada inveracidade da sua declaração confessória.

Sem embargo, sempre se diga que, ainda que assim não fosse, a mesma não teria em qualquer circunstância a virtualidade de o demonstrar, como bem salienta a apelante.

Percorrendo a prova testemunhal indicada, que ouvimos, conclui-se que nenhuma testemunha depôs com o mínimo rigor e consistência.
Do depoimento da testemunha BB, que é amigo do II, gerente da sociedade Ré, e colaborador ocasional dele, resulta que tudo o que afirmou foi-lhe dito por ele, II.
Começou por referir “não saber valores” do negócio apesar do BB lhe ter dito que uma parte era em dinheiro e outra em trabalhos que andava a fazer mas que mais tarde soube por ele que o terreno tinha custado cerca de 50 mil euros e que era uma parte em dinheiro e outra em trabalhos que tinha em curso.
Em momento algum soube dizer qual a parte do “preço” que seria paga em dinheiro, tendo sido a senhora Juiz que lho revelou quando o questionou.

Por seu turno, CC, que trabalha para o R. AA numa firma que ele tem, nada soube dizer em concreto sobre os termos do negócio da venda do terreno a não ser o que ouviu dizer do patrão (nem soube dizer se era “metade em cheque”).
Aliás, depreende-se do seu depoimento que a sociedade Ré já estava a fazer obras numa quinta... pois foi a própria testemunha que aí exerce as funções de encarregado, que foi abordada pelo II no sentido de saber se o AA estaria interessado em vender o terreno em causa.

EE, por seu turno, que é irmão do Réu AA, limitou-se a corroborar o afirmado na contestação sem qualquer consistência ( vendeu a propriedade por 50 mil euros, uma parte em dinheiro e outra em serviços , uns já efectuados, outros que estão por efectuar) tanto mais que nem sequer presenciou as negociações, tendo reconhecido não estar “ muito dentro da situação”.

Por último, DD, que presta serviços à Paumani como serralheiro, também pouco ou nada adiantou ao depoimento das demais relativamente ao valor do negócio. Apenas referiu ter efectuado trabalhos ao AA a pedido do BB ( uma plataforma, reparação de uns telhados) que lhas pagou. Instado a explicar a razão, não a conseguiu revelar com rigor ( acho que …) Os valores que referiu, sem muita certeza, 8 mil um e 8/9 mil outros não perfazem os 25.000 euros.
Referiu ter facturado tais trabalhos à Paumani mas as facturas não se mostram sequer juntas aos autos.

Em consequência de tido o que aqui fica dito, procede a impugnação relativa ao facto nº 4 que se elimina do rol dos provados e transita para os dos “Não provados”.

Vejamos se o mesmo desfecho deve ter a resposta ao ponto 7 inserto nos factos provados ( A 2.ª Ré é uma sociedade comercial que se dedica à atividade de construção civil e adquiriu o prédio ...27 para ali construir um estaleiro de apoio à referida atividade).
Segundo a apelante, a Ré adquirente não provou nos autos que o fim subjectivo que pretende dar ao prédio rústico adquirido e declarou ser um estaleiro de obras, é lícito e viável.
Para justificar o decidido, afirmou-se na sentença o seguinte: “Consideraram-se demonstrados os factos mencionados em 7 pela concatenação e confronto dos depoimentos das testemunhas FF, GG, BB, CC e EE que, de forma unânime, asseverarem que a 2.ª Ré adquiriu o prédio ao 1.º Réu para ali construir um estaleiro de apoio à sua atividade, que é a construção civil. Não só os relatos destas testemunhas foram coincidentes, como nenhuma outra prova foi produzida suscetível de infirmar a sua versão.”.

Vejamos.
Como é consabido, o fim do prédio transmitido a apurar é o fim tido em vista pelo comprador com a sua aquisição, podendo a prova dessa intenção (facto psicológico) ser efetuada por qualquer meio e não tendo que ser declarada no acto formal de aquisição.
Contudo esta intenção não pode resumir-se a um mero estado subjetivo, devendo existir uma possibilidade real, física e legal, desse destino diferente da cultura do prédio verificar-se.[6]
Por conseguinte, a prova deste facto (integrador da excepção) não pode ser feita , como foi, através de depoimentos testemunhais inconsistentes, desacompanhada da demonstração de que essa intenção é exequível ( i.e. permitida por lei) e que não passa de uma mera aspiração.
É que assim não fosse, fácil se tornaria torpedear o direito legal de preferência através da mera invocação do propósito de dar ao prédio um destino diverso.
E o certo é que tal prova não foi de todo feita.
Como não o foi sequer o objecto social da Ré, designadamente através da competente certidão.
Pelo exposto, elimina-se igualmente o ponto 7 do rol dos provados que passa a integrar o do “não provados”.

6.2. Da reapreciação jurídica da causa: Da (in) verificação dos pressupostos do direito de preferência por parte da Autora.

Como primorosamente se sintetiza no Acórdão do STJ de 18.1.1994[7] :“ É verdade que, nos termos do nº1 do art.º 1380º do Cód. Civil os proprietários de terrenos confinantes de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante (…).
Estes são os pressupostos constitutivos do direito de preferência cujo ónus de prova pertencia aos autores: art.º 342º, nº1 do Cód. Civil ; Prof. A.Varela, M.Bezerra e S. Nora , Manual de Processo Civil, 2ª ed., pag.452.
Contudo, há situações excepcionais, perante as quais, mesmo que, por hipótese, se verifiquem os pressupostos do direito de preferência, este, é legalmente, arredado.
É nesta linha de pensamento que releva o disposto, designadamente na alínea a) do art.º 1381ºdo Cód. Civil, segundo a qual: “Não gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes: a) Quando algum dos terrenos constitua parte componente de um prédio urbano ou se destine a algum fim que não seja a cultura.” (…).

Retomando o citado artigo 1381º, alínea a) do Cód. Civil, facilmente se constata que reflectindo situação excepcional impeditiva do exercício do direito de preferência, implica ónus de prova factual por parte daquele ou daqueles contra quem a preferência pretende exercer-se, conforme direito probatório material ex vi art.º 342º, nº2 do Cód. Civil; e ,processualmente, configura-se como matéria de excepção peremptória : art.º 493º, nº3 do Cód. Processo Civil”.( sublinhado nosso).

Ora, é indiscutível – e isso foi admitido pela 1ª instância – que se verificam os pressupostos do direito legal de preferência previsto no art.º 1380º, nº. 1, do Cód. Civil, a saber:
a) Que um prédio rústico tenha sido vendido ou dado em cumprimento;
b) Que o preferente seja proprietário de um outro prédio rústico confinante com o prédio alienado;
c) Que, pelo menos, um daqueles prédios tenha uma área inferior à unidade de cultura;
d) Que o adquirente do prédio não seja proprietário de prédio rústico confinante.

Porém, em contrapartida, não demonstraram os Réus/apelados, como era seu ónus, ser o prédio adquirido destinado a algum fim que não seja a cultura ( art.º 1381º, a) do Cód. Civil) e assim, não lograram impedir validamente a preferência da Autora/apelante.

Efectivamente, como atrás de aflorou, tal demonstração não se basta com uma mera intenção do adquirente : é necessário que tal destino diverso seja incontroverso.

A própria letra da lei (art.º 1381º) reforça este entendimento : “Não gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes : a) Quando algum dos terrenos (…) se destine a algum fim que não seja a cultura”( sublinhado nosso).

Não se divisa, assim, qualquer impedimento ao exercício do direito do direito de preferência por parte da Autora que, por isso, deverá ser reconhecido.


6.3. Da reconvenção

Deduziram os Réus reconvenção, no pressuposto da procedência do pedido da Autora, pedindo a condenação desta no pagamento do “preço real” da venda, no valor de € 50.000,00.

Uma vez que não conseguiram fazer prova de ter a venda do prédio ascendido a tal preço mas apenas ao constante da escritura, o pedido reconvencional está inevitavelmente condenado ao insucesso, sendo certo que está assegurado, por via da procedência da acção, o pagamento da quantia de € 25.000,00 à Ré PAUMAMI – CONSTRUÇÕES, LDA e que foi oportunamente depositada.

III. DECISÃO

Por todo o exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e em consequência decide-se:
a) Reconhecer à Autora, QUINTA DAS COMEIRAS, SOCIEDADE AGRÍCOLA E TURÍSTICA, LIMITADA o direito de preferência na compra do prédio rústico composto de solo subjacente de cultura arvense de olival e oliveiras, com uma área de 37.200 m2, sito em Cabeça do Arneiro ou Quintina, na União de Freguesias de São Vicente de Paúl e Vale de Figueira, concelho de Santarém, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santarém com o n.º ...27 e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...9 da Secção X, substituindo-se esta à Ré PAUMAMI – CONSTRUÇÕES, LDA. no mesmo contrato, enquanto compradora, mediante o pagamento do preço de € 25.000,00, já depositado, determinando-se o cancelamento da inscrição a favor da mesma Ré no registo predial.

b) Julgar a reconvenção totalmente improcedente por não provada.

Custas em ambas as instâncias pelos Réus/apelados.

Évora, 10 de Novembro de 2022
Maria João Sousa e Faro (relatora)
Florbela Moreira Lança
Elisabete Valente

__________________________________________________

[1] Conquanto no momento oportuno (réplica) não o tivesse impugnado nos termos previstos no art.º 444º do CPC.

[2] Cfr. Ac. STJ de 14.9.2021 ( rel. Manuel Capelo).

[3] Cfr. Ac. STJ de 17/12/2015 ( rel. Abrantes Geraldes).

[4] Sendo certo que um deles é uma sociedade comercial.

[5] O preço é, na compra e venda, necessariamente uma quantia em dinheiro que é entregue ao vendedor como contrapartida da entrega da coisa por parte deste.

[6] Neste sentido, entre outros Acórdão do TRC de 23.5.2017, Ac. STJ de 17.10.2019.

[7] In BMJ 433, pag. 481 e seguintes.