Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
77/13.9PESTB-B.E1
Relator: FILOMENA SOARES
Descritores: PRISÃO PREVENTIVA
DOENÇA
DILIGÊNCIAS DE PROVA
Data do Acordão: 05/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A circunstância do arguido não juntar qualquer documento clínico que comprove o seu alegado estado de saúde não dispensa o tribunal a quo de o notificar para o juntar, tanto mais que o recorrente informa que a sua alegada doença até é anterior à sua detenção e sujeição a prisão preventiva, bem como não dispensa o tribunal a quo de providenciar oficiosamente pela realização das diligências requeridas, ou outras que tenha por pertinentes, e, em função do resultado alcançado e informado, ajuizar da bondade (ou falta dela) do pretendido afinal pelo arguido (eximir-se, fundadamente ou não, à medida de coação de prisão preventiva que lhe foi imposta).
Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I

[i] No âmbito do processo de inquérito nº 77/13.9 PESTB, que corre termos no DIAP, 1ª Secção, da Comarca de Setúbal, o arguido JLCB, em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, realizado no dia 31.10.2014, foi sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, indiciado pela prática de um crime de tráfico de produto estupefaciente, p. e p. pelo artigo 21º, nº 1, do Decreto Lei nº 15/93, de 22.01 e de dois crimes de detenção de arma proibida, p. e p. pelos artigos 2º, nºs 1, alínea a) e 3, alínea p) e 86º, nº 1, alínea d), da Lei nº 5/2006, de 23/02 [com as alterações introduzidas pelas Leis nºs 59/2007, de 04.09, 17/2009, de 06.05, 26/2010, de 30.08 e 12/2011, de 27.04].

[ii] Na sequência de requerimento formulado pelo arguido JLCB [no âmbito do qual requeria ao Mmº Juiz de Instrução a realização de relatórios a efectuar junto da DGRS e do “Centro Hospitalar de Setúbal, EPE” “com o fito de apurar as consequências do encarceramento no seu estado de saúde físico e psicológico” e bem assim de “episódios de urgência ocorridos durante a prisão preventiva” com vista a ser revogada a medida de coacção aplicada e substituída por outra menos gravosa, designadamente a de “obrigação de permanência na habitação, sujeita a controlo electrónico, prevista no artigo 201º, do Código de Processo Penal” ou, assim não sendo entendido, a “suspensão da execução da prisão preventiva até que o seu estado de saúde estabilize, nos termos do artigo 211º, do Código de Processo Penal”], precedendo parecer da Digna Magistrada do Ministério [pugnando pelo indeferimento do requerido pelo arguido e manutenção da medida de coacção a que o mesmo se acha sujeito], por despacho judicial proferido em 19.01.2015, foi decidido:
Vem o arguido JLCB requerer, a folhas 1242 e seguintes, a alteração da medida de coação a que se encontra sujeito - prisão preventiva - com o essencial fundamento de que não é a mesma compatível com o seu atual estado de saúde que, ademais, se degrada a cada dia.

O arguido não junta, contudo, qualquer documento clínico que comprove o que alega.

Admite-se com muita facilidade que um estabelecimento prisional não oferecerá as melhores condições seja para quem for, e que a temperatura e humidade serão factores perturbadores da saúde de qualquer pessoa.

Contudo, se não vislumbram concretas razões que possam levar este tribunal a alterar a decisão tomada em sede de interrogatório judicial, em outubro último. Aliás, nem invoca o arguido qualquer alteração das circunstâncias que determinaram a aplicação da medida de coação a que se encontra sujeito.

Assim, e sendo a saúde do arguido o único factor que o próprio apresenta para a alteração pretendida, e sem naturalmente qualquer desconsideração para com tão relevante argumento, se não pode deixar de entender não existirem quaisquer sólidas (porque nem sequer documentadas documentadas, seja de que forma for) razões que permitam o pretendido ou que justifiquem, pelo menos por ora, ponderação entre a legítima e muito relevante saúde do arguido e as razões que determinaram a sua clausura em estabelecimento prisional.

Não obstante, estamos certos ser possível aos serviços prisionais adaptarem, até certo ponto, as rotinas de moda a que a medicação do arguido seja tomada conforme prescrição médica; e que a medicação entregue ao arguido seja, naturalmente, a prescrita.

Notifique, remetendo-se cópia deste despacho e do requerimento do arguido aos serviços prisionais e ao diretor do estabelecimento prisional onde se encontra o arguido.”.

[iii] Inconformado com esta decisão, dela recorreu o arguido, extraindo da respectiva motivação de recurso as seguintes conclusões:

1ª O Arguido dirigiu ao Excelentíssimo Senhor Juiz de Instrução Criminal um requerimento com o qual pedia, exactamente o seguinte:
- Ordenar a elaboração de um relatório junto dos serviços da DGRS, com o fito de apurar as consequências do encarceramento no seu estado de saúde físico e psicológico;

- Ordenar que se oficie o Centro Hospitalar de Setúbal – EPE, solicitando a remessa de cópia do processo clínico do Arguido, com especial enfoque para os episódios de urgência ocorridos durante a prisão preventiva;
- Ordenar a elaboração de um relatório clínico, onde constem não só todos os episódios de doença que levaram o Arguido ao hospital, assim como todas as alterações de medicação já prescritas;
- Ordenar a elaboração de um relatório junto dos serviços da DGRS, com o propósito de aferir se a habitação do arguido reúne as condições necessárias para a aplicação do Dispositivo de Identificação Pessoal, vulgo pulseira electrónica;

e, consequentemente, Na elevada convicção de que o alegado no presente Requerimento será corroborado pelos relatórios requeridos,

- Revogar a medida de coacção aplicada e ordenar a aplicação de uma menos gravosa, que se coadune com a actual condição de saúde do Arguido, nomeada e concretamente, Obrigação de Permanência na Habitação, sujeita a controlo electrónico, prevista no artigo 201.º do Código de Processo Penal;

- Ou, caso Vossa Excelência não defira o pedido anterior, o Arguido roga, pelo menos, pela suspensão da execução da prisão preventiva, até que o seu estado de saúde estabilize, o que faz nos termos do artigo 211.º do Código de Processo Penal.

O Arguido, invocando o descrito perigo de morte, roga a Vossa Excelência uma justa, adequada e proporcional revisão do seu estatuto coactivo.

2ª O Tribunal a quo decidiu, apreciando o requerido, decidiu exactamente assim:
Vem o arguido JLCB requerer, a folhas 1242 e seguintes, a alteração da medida de coacção a que se encontra sujeito – prisão preventiva – com o essencial fundamento de que não é a mesma compatível com o seu actual estado de saúde que, ademais, se degrada a cada dia.
O arguido não junta, contudo, qualquer documento clínico que comprove o que alega.
Admite-se com muita facilidade que um estabelecimento prisional não oferecerá as melhores condições seja para quem for, e que a temperatura e humidade serão factores perturbadores da saúde de qualquer pessoa.
Contudo, se não vislumbram concretas razões que possam levar este tribunal a alterar a decisão tomada em sede de interrogatório judicial, em Outubro último. Aliás, nem invoca o arguido qualquer alteração das circunstâncias que determinaram a aplicação da medida de coacção a que se encontra sujeito.
Assim, e sendo a saúde do arguido o único factor que o próprio apresenta para a alteração pretendida, e sem naturalmente qualquer desconsideração para com tão relevante argumento, se não pode deixar de entender não existirem quaisquer sólidas (porque nem sequer documentadas, seja de que forma for) razões que permitam o pretendido ou que justifiquem, pelo menos por ora, ponderação entre a legitima e muito relevante saúde do arguido e as razões que determinaram a sua clausura em estabelecimento prisional.
Não obstante, estamos certos ser possível aos serviços prisionais adaptarem, até certo ponto, as rotinas de modo a que a medicação do arguido seja tomada conforme prescrição médica; e que a medicação entregue ao arguido seja, naturalmente, a prescrita.
Notifique, remetendo-se cópia deste despacho e do requerimento do arguido aos serviços prisionais e ao director do estabelecimento prisional onde se encontra o arguido
3ª Verifica-se uma omissão de pronuncia por parte do Tribunal recorrido relativamente a todos os pedidos formulados pelo arguido com excepção para o pedido de revogação da sua prisão preventiva, o qual havia logicamente que ser apreciado após a concretização dos anteriores.
4ª Verifica-se uma omissão de pronuncia por parte do Tribunal recorrido relativamente ao pedido de suspensão da prisão preventiva do arguido.
5ª O arguido invoca, desde já, a nulidade do Despacho recorrido, por omissão de pronuncia do Tribunal a quo relativamente aos pedidos que aquele lhe dirigiu no seu requerimento de fls. 1242 e seguintes, vício que argui nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 e do n.º 2 do art. 379º do Cód. do Processo Penal.
Nestes termos e ressalvado o douto suprimento de Vossas Excelências, deveráser declarada a nulidade do despacho recorrido e, consequentemente, ordenada a sua correcção, com a decisão fundamentada sobre cada um dos pedidos que o arguido dirigiu ao Tribunal.

Só assim se fazendo JUSTIÇA!”.


[iv] Admitido o recurso [cfr. fls. 56 dos presentes autos], notificados os devidos sujeitos processuais, a Digna Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de 1ª instância respondeu ao recurso interposto, concluindo nos seguintes termos:
1. O despacho ora recorrido não nos merece qualquer reparo.
2. O Recorrente invoca um estado de saúde de índole cardíaca., alegadamente já existente em período anterior à data em que lhe foi aplicada a medida de coacção prisão preventiva, porém não junta qualquer suporto documental (declaração médica ou uma prescrição dos medicamentos) comprovativa dos alegados problemas.
3. Um estado de saúde tão grave seria impeditivo ou pelo menos condicionante no exercício da “actividade” (venda de estupefacientes) do Recorrente.
4. Porém, é claramente perceptível do teor do inquérito que o Recorrente, pelo menos desde Julho de 2014 até à data da sua detenção em 29 de Outubro de 2014, desenvolvia a sua actividade a qualquer hora do dia e da noite, sem limitações de horários e períodos de descanso, nunca demonstrando qualquer condicionante física que impedisse o “frenesim” de tal actividade.
5. Praticamente durante todo aquele período temporal e a qualquer hora do dia (ou noite), o Recorrente circulava na cidade de Setúbal, a fim de se encontrar com os seus “clientes” e lhes entregar produto estupefaciente.
6. Não é função do Juiz de Instrução ordenar a realização de diligências de prova unicamente com base num requerimento apresentado pelo Recorrente, sem qualquer suporte probatório (facilmente possível de ser junto já que se trata do estado de saúde do mesmo).
7. O Mm. Juiz de Instrução solucionou o problema invocado pelo Recorrente ao ordenar que os serviços prisionais adaptassem as rotinas daquele E.P. de modo a que a medicação do Recorrente fosse tomada conforme prescrição médica e que a medicação entregue fosse a prescrita.
8. Ao contrário do sustentado, pelo recorrente, o douto despacho não nos merece qualquer reparo, devendo por isso, ser negado provimento ao presente recurso.
V. Excias, porém, com elevada prudência, decidirão como for de
JUSTIÇA!”.

[v] O Mmº Juiz a quo não fez uso do disposto no artigo 414º, nº 4, do Código de Processo Penal.

[vi] Remetidos os autos a esta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido que “(…) a tese defendida pelo arguido, na sua motivação de recurso, (…), não colhe, como bem demonstra a argumenta­ção expendida na Resposta ao Recurso apresentada pela magistrada do Ministé­rio Público junto do Tribunal da primeira instância (…).
Resposta a que se adere, na íntegra, por se mostrar devidamente fundamen­tada, relativamente às questões suscitadas pela arguido, analisando de forma cla­ra e precisa todos os argumentos apresentados, concordando-se, assim com os fundamentos constantes da decisão recorrida, tendo-se interpretado a aplicado correctamente os factos e o Direito, sendo certo que o alegado pelo recorrente não possui a virtualidade de abalar aquele despacho que deverá ser mantido nos seus precisos termos.
Na verdade, o recorrente invoca que já antes do início da sua prisão preven­tiva apresentava vários problemas de saúde, sobretudo de natureza cardíaca, que se têm vindo a agravar depois da sua permanência no Estabelecimento Prisional, com frequentes crises, bastante debilitantes, no entanto e perante o quadro de doença que descreve, não junta o arguido qualquer documentação, clínica, nomeadamente, declaração médica ou prescrição dos medicamentos que toma, susceptíveis de comprovar as alegadas crises de índole cardíaca.
Acresce que pelo menos desde Julho de 2014 até à data da sua detenção, ocorrida em 29 de Outubro de 2014, e de acordo com os relatórios de intercep­ções telefónicas e dos relatórios de vigilância, o recorrente desenvolvia a sua actividade (venda de produtos estupefacientes), a todas as horas do dia e da noite, sem quaisquer limitações de horários, não demonstrando qualquer condicionante de ordem física que impedisse tão intensa actividade.
Por outro lado, e sem qualquer elemento probatório da sua alegada debili­dade a nível cardíaco, pretendia o recorrente fazer impender sobre o Tribunal a indagação da sua situação de saúde e a solicitação de Relatórios clínicos, a fim de obter a consequente alteração da medida de coação a que se encontra sujeito.
Não é essa decerto a função do Juiz de instrução, como bem refere a magis­trada do Ministério Público, junto da primeira instância, “… a realização de dili­gências de prova unicamente com base num requerimento apresentado pelo Re­corrente, sem qualquer suporte probatório (facilmente possível de ser junto já que se trata do estado de da saúde do mesmo.”.
Apesar disso e com vista a solucionar o problema suscitado e de melhorar as condições de assistência ao arguido, o Mm. Juiz de Instrução ordenou que os serviços prisionais adaptassem de forma conveniente as rotinas daquele Estabele­cimento Prisional, para que o arguido possa tomar a medicação de acordo com a respectiva prescrição médica.
Na verdade, o despacho recorrido não enferma de qualquer vício, não verificando a omissão de pronúncia a que alude a alínea c) do n.º l e do n.º 2 do arti­go 379º do Código de Processo Penal.
Dispõe o artigo 379º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal, que se verifica a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia “Quando o tribunal dei­xe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”. Tal nulidade por omissão de pronúncia refere-se a questões e não a razões ou argumentos invocados pelo sujeito proces­sual em defesa do seu ponto de vista.
Perante tais considerações facilmente se conclui, que no caso concreto, não se está perante a omissão de pronúncia a que alude o referido dispositivo legal, e bem andou o Mm. Juiz ao decidir “não existirem razões sólidas que justifiquem, pelo menos por ora, ponderação entre a legítima e muita relevante saúde do arguido e as razões que determinaram a sua clausura em estabelecimento prisio­nal.” (…)”.
Em consequência conclui que deve ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido e confirmada a decisão impugnada.

[vii] Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, tendo o recorrente feito uso do direito de resposta. No âmbito desta salienta que a questão que quer aportada ao conhecimento deste Tribunal ad quem, mais do que a manutenção (ou não) da prisão preventiva do arguido, é “(…) A questão que verdadeiramente urge ser apurada trata-se tão somente de verificar qual o presente estado de saúde do Arguido (…)” e que o Tribunal a quo, no entendimento do recorrente, não curou, omitindo pronúncia “(…) relativamente aos pedidos que lhe foram dirigidos no requerimento (…)” o que “(…) acarreta o vício da nulidade, nos termos da alínea c) do n. 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal (…)”.
Em conclusão, pugna, uma vez mais, pela nulidade do despacho recorrido.
Efectuado o exame preliminar, foram colhidos os vistos legais.
Foi realizada conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II

Como é sabido, o âmbito do recurso – seu objecto e poderes de cognição – afere-se e delimita-se através das conclusões extraídas pelo recorrente e formuladas na motivação [(cfr. artigos 403º, nº 1 e 412º, nºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as previstas no artigo 410º, nº 2, do aludido diploma, as cominadas como nulidade da sentença (cfr. artigo 379º, nºs 1 e 2, do mesmo Código) e as nulidades que não devam considerar-se sanadas (cfr. artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1, do Código de Processo Penal; a este propósito cfr. ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19.10.1995, publicado no D.R. I-A Série, de 28.12.1995 e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25.06.1998, in B.M.J. nº 478, pág. 242, de 03.02.1999, in B.M.J. nº 484, pág. 271 e de 12.09.2007, proferido no processo nº 07P2583, acessível em www.dgsi.pt e bem assim Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82).].
Acresce que, no âmbito dos poderes de cognição do Tribunal, este “não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”, como decorre claramente do preceituado no artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4º, do Código de Processo Penal.
Porque assim, vistas as conclusões do recurso em apreço, verificamos que a questão aportada ao conhecimento desta instância se resume à seguinte:
(i) - Se o despacho/decisão recorrido (supra transcrito no ponto I, [ii], do presente aresto) padece de invalidade por omissão de pronúncia [(i) relativamente a requerida realização de diligências e (ii) a pedido de suspensão da prisão preventiva, nos termos prevenidos no artigo 211º, do Código de Processo Penal].
III

Apreciando a questão [(i)] trazida ao conhecimento deste Tribunal ad quem pelo recorrente, temos por inquestionável que o dever de fundamentação das decisões judiciais decorre, desde logo, do preceituado no artigo 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, ao dispor que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.”. E, a lei processual penal, hoje entendida como direito constitucional aplicado, no seu artigo 97º, nº 5, estatui que, “Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.”.
Acresce que o dever de fundamentação das decisões judiciais constitui, nos modernos Estados de Direito, um dos pressupostos do chamado “processo equitativo” (que se traduz, sinteticamente, em três exigências: i) informação ao acusado, de modo detalhado, acerca da natureza e dos motivos da acusação, para que dela se possa defender; ii) um procedimento leal, sem influências externas na formação do juízo; iii) um juiz imparcial, que exerça a função em posição de terciaridade relativamente aos interesses objecto do processo e não dê a alguma das partes tratamento de favor ou de desfavor.), a que aludem os artigos 6º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (que no seu nº 1, estatui “Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a protecção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça.”) e 20º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa (que dispõe “Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.”).
E, como refere o Professor Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 3ª Edição, Editorial Verbo, 2009, pág. 289, “A fundamentação dos actos é imposta pelos sistemas democráticos com finalidades várias. Permite a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autodisciplina.”.
Porém, como também afirma aquele ilustre Professor, a propósito das invalidades (nulidades e irregularidades) e seu prazo de arguição, in “Curso de Processo Penal”, vol. II, 4ª Edição, Editorial Verbo, 2008, pág. 100, é de “extraordinária relevância o [de] conhecimento das regras do processo” posto que “O desconhecimento pode comprometer irreversivelmente o exercício de direitos.”.
No caso em apreço, ressalvado o sempre e devido respeito pelo esforço argumentativo do recorrente, não podemos deixar de afirmar que o enquadramento jurídico da invalidade de que afirma padecer o despacho/decisão recorrido labora em manifesta confusão, na medida em que chama à colação para tipificar a alegada omissão de pronúncia [relativamente a requerida realização de diligências e a pedido de suspensão da prisão preventiva], o regime próprio e específico do acto decisório sentença (ou acórdão, se proferido por um tribunal colegial) prevenido no artigo 379º, do Código de Processo Penal, sob o título “Nulidade da sentença”, ademais passível de ser arguido ou conhecido em recurso – cfr. nº 2, do mencionado artigo 379º e 410º, nº 3, do aludido diploma – e, por isso, subtraído ao regime previsto nos artigos 120º e 123º, do citado Código.
Tendo por inquestionável que o despacho/decisão recorrido não reveste a natureza de sentença – v.g. artigo 97º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal – a invalidade por alegada omissão de pronúncia que, em rigor, in casu se traduziria numa falta de fundamentação (ainda que parcial) do despacho/decisão recorrido seria subsumível e regida pelas normas que regulamentam, em geral, as consequências da inobservância das prescrições legais estabelecidas para a prática dos actos processuais prevenidas nos artigos 118º a 123º, do Código de Processo Penal.
Neste conspecto, vale no direito processual penal português o chamado princípio da tipicidade ou da legalidade e da taxatividade a que alude o artigo 118º, do Código de Processo Penal, norma que dispõe que:
1. A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei.
2. Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular.
3. As disposições do presente do presente título não prejudicam as normas deste Código relativas a proibições de prova.”.
Do cotejo dos artigos 119º, sob o título “Nulidades insanáveis”, 120º, sob o título “Nulidades dependentes de arguição” e 123º, sob o título “Irregularidades”, todos do Código de Processo Penal, temos por certo que a invalidade que o recorrente alega padecer o despacho/decisão recorrido, por inobservância do preceituado no artigo 97, nº 5, do Código de Processo Penal, a verificar-se, constituiria uma irregularidade, na medida em que não se encontra entre as causas elencadas nos artigos 119º e 120º referidos como geradoras de nulidade insanável ou de nulidade dependente de arguição (sanável).
Porque assim, de harmonia com o estatuído no nº 1, do mencionado artigo 123º, o prazo de arguição de tal irregularidade pelo recorrente seria de 3 (três) dias a “(…) contar daquele em que tiver[em] sido notificado[s] para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado” e, desde logo, perante o Tribunal de 1ª instância.
Ora, da compulsa dos autos, [mais precisamente do que constitui fls. 1 ou seja o rosto da certidão que instrui os presentes autos] o despacho/decisão recorrido foi proferido, como se deixou editado, em 19.01.2015 e notificado ao recorrente por via postal expedida em 19.01.2015 e a irregularidade em apreço invocada em sede de peça recursiva, dirigida por conseguinte a este Tribunal ad quem, em 22.01.2015. Vale o exposto por se afirmar que, embora não dirigida a sua arguição ao Tribunal de 1ª instância, como se lhe impunha, o recorrente invoca-a tempestivamente.
Dispõe o artigo 123º, nº 2, do Código de Processo Penal que “Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado.”.
O que se questiona, agora, é pois saber se este Tribunal ad quem deve conhecer oficiosamente de uma tal irregularidade, a verificar-se, uma vez que o recorrente alegou tal invalidade em prazo, mas em sede de peça recursiva.
Como refere Maia Gonçalves em anotação ao artigo 123º, do Código de Processo Penal, in “Código de Processo Penal Anotado e Comentado”, 15ª edição-2005, Almedina, pág. 306, “Apesar de as irregularidades serem consideradas em geral vícios de menor gravidade do que as nulidades, a grande variedade de casos que na vida real se podem deparar impõe que não se exclua a priori a possibilidade de ao julgador se apresentarem irregularidades de muita gravidade, mesmo susceptíveis de afectar direitos fundamentais dos sujeitos processuais.
Daí a grande margem de apreciação que se dá ao julgador, nos nºs 1 e 2, que vai desde o considerar a irregularidade inócua e inoperante até à invalidade do acto inquinado pela irregularidade e dos subsequentes que possa afectar, passando-se pela reparação oficiosa da irregularidade. Trata-se de questões a decidir pontualmente pelo julgador, com muita ponderação pelos interesses em equação, maxime as premências de celeridade e de economia processual e os direitos dos interessados.”.
E a este propósito importa recordar o teor do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.09.2006, proferido no processo nº 06P1934, disponível in www.dgsi.pt/jstj., onde se lê a propósito do domínio das irregularidades, o seguinte: “(…) Estamos, assim, perante a questão da natureza difusiva da invalidade. Neste plano são configuráveis duas posições extremas e antagónicas: uma, parte da indivisibilidade do processo penal, compreendido como um conjunto de actos em estreita interdependência, para sustentar a invalidade de todo o processo, ainda que só um acto esteja viciado. A segunda, arranca do carácter fragmentário do processo penal, agora entendido com um conjunto de peças que encaixam, mas que conservam a sua autonomia, para restringir a invalidade apenas ao acto viciado.
Só que, conforme Conde Correia (obra citada pág. 125 [“Contributo para a análise da inexistência e das nulidades processuais”]), a escolha de uma daquelas soluções, na sua pureza original, contenderia com valores fundamentais dos ordenamentos processuais penais. A extensão da invalidade a todo o processo choca com a economia processual. A restrição da invalidade ao acto viciado atinge, no seu âmago, a garantia de legalidade do procedimento e os interesses individuais e colectivos que a conformam. Por isso mesmo, em geral, a solução encontrada procura conciliar aqueles interesses, evitando os inconvenientes da sua exasperação e alargando as vantagens incitas em cada um deles. Por um lado, negando a extensão automática da invalidade a todos os actos anteriores, contemporâneos ou posteriores, de alguma forma conexionados com o acto inválido. Por outro lado, reconhecendo que estes têm influência sobre o procedimento, podendo contaminá-lo com os germens da invalidade. Esta posição intermédia, normalmente adoptada pelos legisladores, caracteriza-se, portanto, por estender a invalidade apenas a determinados actos, em particular aqueles que, sejam anteriores, coevos ou sucessivos, dependem do acto viciado. O elemento fundamental e também mais debatido das noções de invalidade sucessiva e derivada é, assim, a ideia de dependência. Não é suficiente uma simples relação acidental ou ocasional, nem a mera ligação cronológica. Pelo contrário, exige-se uma dependência real e efectiva. O acto inválido deve ser uma premissa lógica e jurídica do acto posterior, de tal forma que, faltando aquele, a validade deste fica, em definitivo, abalada. Mutatis mutandis o acto sucessivo deve ser consequência necessária do acto antecedente ou contemporâneo, de modo que, com a sua invalidade, este torna-se incapaz de cumprir a sua função.
A este propósito Franco Cordero distingue entre actos propulsores do processo, que constituem elementos necessários ao seu desenvolvimento e actos de aquisição probatória, que são meros componentes do processo, com carácter eventual ou acidental. Aqueles comunicam a invalidade que os afecte aos restantes (devido ao nexo de dependência necessária existente entre eles) pelo que o remédio consiste no retorno do processo ao ponto onde foi praticado o acto imperfeito. Estes já não estão ligados aos subsequentes por um nexo de dependência efectiva, ficando excluída a propagação automática da invalidade. (…).
Para Creus torna-se essencial uma relação de conexão entre o acto inválido e aquele que pode ser afectado por extensão. Precisando, afirma o mesmo processualista que se trata de actos que, apesar de serem anteriores ou concomitantes na sequência procedimental em relação ao acto defeituoso, concretizam-se processualmente através da realização deste. A relação de conexão que se estende aos actos abrangidos pelos efeitos anulatórios como que se manifesta numa integridade conceptual em que se unifica indissoluvelmente o destino dos actos plurais anulados. (…).”.
Posto isto, ponderando os interesses em causa, as premências de celeridade e de economia processual e os direitos dos interessados, in casu do próprio recorrente, preso preventivamente, salvo o devido respeito por melhor opinião, somos do entendimento que se a este Tribunal ad quem, nos termos do artigo 410º, nº 3, do Código de Processo Penal se impõe o conhecimento da “inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada”, por identidade de razão se imporá o de irregularidade de conhecimento oficioso, isto é, de irregularidade que não deva considerar-se sanada, tanto mais quando a sua verificação bule ou é passível de bulir com a violação de direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados. Em sentido semelhante já opinámos no Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, proferido em 20.12.2011, no processo nº 2090/10.9 TBLLE.E1, disponível in www.dgsi.pt/jtre.
Aqui chegados, sem desdouro do articulado de resposta oferecido pela Digna Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de 1ª instância e do parecer emitido pela Exmª Procuradora-Geral Adjunta nesta instância, afigura-se-nos que, em verdade, se como se afirma no despacho/decisão recorrido não se desconsidera a saúde do arguido, nem “tão relevante argumento”, ante a notícia, por ele oferecida, de padecer de doença do foro cardíaco que alegadamente se terá agravado com a situação de reclusão e a requerida realização de “relatórios a efectuar junto da DGRS e do “Centro Hospitalar de Setúbal, EPE” com o fito de apurar as consequências do encarceramento no seu estado de saúde físico e psicológico” e bem assim de episódios de urgência ocorridos durante a prisão preventiva”, por forma a aquilatar, posteriormente, da manutenção (ou não) nos moldes em que se mostra decretada da medida de coação a que o arguido se acha sujeito e/ou da ponderação da aplicação do preceituado no artigo 211º, do Código de Processo Penal, o despacho/decisão recorrido carece efectivamente de fundamentação (de facto e de direito), omitindo pronúncia sobre pretensões que foram dirigidas ao Mmº Juiz de Instrução e que poderão ter (ou não) relevância na definição ou redefinição do estatuto pessoal do arguido no âmbito dos autos em referência.
Flui do que se deixa expendido que a circunstância do arguido não juntar qualquer documento clínico que comprove o seu alegado estado de saúde não dispensa o Tribunal a quo de o notificar para o juntar, tanto mais que o recorrente informa que a sua alegada doença até é anterior à sua detenção e sujeição a prisão preventiva, como providenciar oficiosamente pela realização das diligências requeridas ou outras que tenha por pertinentes e, em função do resultado alcançado e informado, ajuizar da bondade (ou falta dela) do pretendido afinal pelo arguido, eximir-se fundadamente ou não à medida de coação de prisão preventiva que lhe foi imposta.
Assim, ao abrigo do disposto nos artigos 410º, nº 3, 97, nº 5, 118º, nº 2 e 123º, todos do Código de Processo Penal, o despacho/decisão recorrido padece de irregularidade nos termos supra expendidos, devendo ser substituído por outro que convide o recorrente à apresentação de documentação clínica (anterior à sua prisão preventiva) que comprove a alegada situação de doença, designadamente do foro cardíaco e que terá naturalmente em seu poder e bem assim determine a realização das diligências requeridas ou de outras que tiver por pertinentes com vista a aquilatar se a prisão preventiva, exigida por razões cautelares do processo, se tornou temporariamente impossível por força do estado de saúde do arguido, isto é, de “doença grave” do mesmo não compaginável, de todo em todo, com a reclusão em Estabelecimento Prisional, nos termos prevenidos no artigo 211º, do Código de Processo Penal.
Tudo, obviamente, sem prejuízo do reexame oficioso dos pressupostos da prisão preventiva nos termos prescritos no artigo 213º, do Código de Processo Penal.
IV

Nos termos do disposto no artigo 513º, nº 1, do Código de Processo Penal, não são devidas custas.

V

Decisão
Nestes termos, acordam em:
A) – Conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido JLCB, declarando irregular (na parte afectada) o despacho/decisão recorrido, nos termos do disposto nos artigos 410º, nº 3, 97, nº 5, 118º, nº 2 e 123º, todos do Código de Processo Penal e, em consequência determinar a sua substituição por outro que convide o recorrente à apresentação de documentação clínica e determine a realização das diligências requeridas ou de outras que o Mmº Juiz de Instrução tiver por pertinentes com vista a aquilatar se a prisão preventiva, exigida por razões cautelares do processo, se tornou temporariamente impossível por força do estado de saúde do arguido, isto é, de “doença grave” incompaginável em absoluto com a sua reclusão em Estabelecimento Prisional;
B) – Não serem devidas custas.

[Texto processado e integralmente revisto pela relatora (cfr. artigo 94º, nº 2, do Código de Processo Penal)]

Évora, 05-05-2015

Maria Filomena Valido Viegas de Paula Soares

Fernando Paiva Gomes Monteiro Pina