Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO | ||
Descritores: | USUCAPIÃO FRACCIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA | ||
Data do Acordão: | 01/25/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Sumário: | O fracionamento de prédio rústico não ocorre por via do ato declarativo titulado na escritura de justificação em que é invocada a usucapião; antes tem lugar por via da aquisição, aquando do início da posse, do direito de propriedade ali declarado. (Sumário da Relatora) | ||
Decisão Texto Integral: | ACÓRDÃO Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora I – As Partes e o Litígio Recorrente / Autor: Ministério Público Recorridos / Réus: (…) e (…), (…), (…) e (…), (…) O presente processo consiste em ação declarativa constitutiva extintiva intentada pelo Ministério Público, aludindo ao regime inserto no art. 1379.º do CC, com vista à anulação dos negócios jurídicos constantes das quatro escrituras de justificação notarial através das quais os 1.ºs, 2.º, 3.ºs e 4.ª RR invocaram os direitos de propriedade, adquiridos originariamente por usucapião, de parcelas de terreno compostas de terra de semeadura, sitas em Agualva de (…), freguesia e concelho de Palmela, com as áreas de 1.357,00, 3.146,00, 1.573,00 e 1.473,00 metros quadrados, respetivamente, suprindo, desta forma, a inexistência de títulos adequados para procederem ao registo. Alega o A que as parcelas de terreno em causa foram desanexadas de um prédio rústico composto de vinha e horta, em violação do disposto no art. 1376.º do Código Civil quanto ao fracionamento dos prédios rústicos; logo, é proibida por lei a divisão dos prédios originais operada por esses negócios jurídicos. Os RR sustentaram ter adquirido, cada um por si, a respetiva parcela por usucapião, inexistindo qualquer ato de fracionamento recente. Pugnaram, assim, pela improcedência da ação. II – O Objeto do Recurso Decorridos os trâmites processuais legalmente previstos, foi proferida sentença julgando a ação totalmente improcedente, decidindo-se que o reconhecimento judicial da usucapião se sobrepõe e prevalece sobre o fracionamento ilegal do prédio, na senda da vasta jurisprudência ali citada. Inconformado, o Ministério Público apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da sentença recorrida. Conclui a sua alegação de recurso nos seguintes termos: «Ainda que se tenha verificado a usucapião, tal instituto jurídico não prevalece sobre as normas que proíbem o fracionamento de prédios rústicos por ofensa da área de cultura mínima; Estas últimas normas constituem a disposição legal em contrário, mencionada no próprio art.º 1287º do Código Civil; Assim, os negócios jurídicos titulados pelas escrituras juntas aos autos são anuláveis, por ofensa do disposto no art.º 1376º do Código Civil.» Não foram apresentadas contra-alegações. Assim, em face das conclusões da alegação do Recorrente, que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso[1], sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso[2], importa apreciar se é de proceder o pedido de anulação dos atos titulados nas escrituras públicas outorgadas pelos RR em Novembro de 2013 à luz do regime inserto nos arts. 1376.º e 1379.º do CC. III – Fundamentos A – Os factos provados em 1.ª instância 1. No dia 22 de Novembro de 2013, por escritura pública celebrada no Cartório Notarial da Lic. Sandra Bolhão em Setúbal, os 1.ºs réus justificaram a posse de uma parcela de terreno com a área de 1.573,00 m2, sita em Agualva de (…), freguesia de Marateca, concelho de Palmela, composta de terras de semeadura, confrontando de Norte com (…), de Sul com Rua (…), de Nascente com (…) e de Poente com (…). 2. No dia 22 de Novembro de 2013, por escritura pública celebrada no mesmo Cartório Notarial, o 2.º réu justificou a posse de uma parcela de terreno com a área de 3.146,00 m2, sita em Agualva de (…), freguesia de Marateca, concelho de Palmela, composta de terras de semeadura, confrontando de Norte com (…), de Sul com Rua (…) e (…), de Poente com o (…) e de Nascente com (…). 3. No dia 22 de Novembro de 2013, por escritura pública celebrada no mesmo Cartório Notarial, os 3.ºs réus justificaram a posse de uma parcela de terreno com a área de 1.573,00 m2, sita em Agualva de (…), freguesia de Marateca, concelho de Palmela, composta de terras de semeadura, confrontando de Norte com (…), de Sul com Rua (…), de Poente com (…) e de Nascente com (…). 4. No dia 29 de Novembro de 2013, por escritura pública celebrada no mesmo Cartório Notarial, a 4.ª ré justificou a posse de uma parcela de terreno com a área de 1.473,00 m2, sita em Agualva de (…), freguesia de Marateca, concelho de Palmela, composta de terras de semeadura, confrontando de Norte com (…), de Sul com Rua (…), de Poente com (…) e de Nascente com (…). 5. Tais prédios foram, assim e naquela data, desanexados de um prédio rústico composto de vinha e horta, inscrito na matriz sob o art.º (…), da Freguesia de Marateca. 6. A totalidade do prédio veio à posse de (…) e marido (…) por óbito dos pais dela, por adjudicação em partilha verbal, por volta do ano de 1960. 7. Com vista à regularização documental e divisão do prédio como consta atualmente do registo predial, (…) e marido fizeram partilha com os restantes herdeiros de (…) e de (…), (pais de …) em 1983, por via da qual a totalidade do imóvel, foi formalmente inscrita a seu favor, não obstante já se encontrar dividido desde 1969. 8. Em 1969, (…) e marido dividiram no terreno o prédio em diversas parcelas com vista a futura doação aos filhos. 9. Em 1984, (…) e marido doaram a parcela de terreno justificada pelos aqui réus (…) e cônjuge (…), à filha daqueles (…), que por sua vez, no ano seguinte, em 1985, vendeu de modo verbal aos identificados réus. 10. Pelo que há mais de vinte anos à data da outorga da escritura pública de justificação por usucapião, que os réus (…) e (…) possuem a parcela de terreno com 1.573 m2, em Agualva de (…), descrita na CRPP sob o nº (…), o que fazem em nome próprio, ininterruptamente, a qual se encontra desde há muito demarcada, com total exclusividade e independência. 11. Os réus (…) e cônjuge praticam desde sempre nessa parcela de terreno todos os atos inerentes à qualidade de exclusivos proprietários, cultivam na, executam demais trabalhos de cariz agrícola, colhem frutos, edificaram uma benfeitoria em que residem, o que fazem na plena convicção de exercerem direito próprio e exclusivo, à vista de todos desde o início da posse e sem oposição e quem quer que seja. 12. De modo contínuo e de boa-fé não obstante, até à celebração da escritura de justificação em apreço, não existir título que justificasse a divisão e as transmissões sequenciais verificadas, por não tituladas, por isso à data sem registo predial. 13. Em 1972, (…) e marido doaram duas parcelas de terreno, cada uma com 1.573 m2, às filhas (…) e (…), que por sua vez, no ano seguinte, em 1973, as venderam verbalmente ao réu (…), que depois as anexou, por serem contíguas, constituindo um prédio único há mais de trinta anos. 14. Desde essa altura que o réu (…) tem em seu poder a parcela justificada, o que faz em nome próprio, ininterruptamente, desde sempre também demarcada, com total exclusividade e independência. 15. O réu (…) também pratica nessa parcela os atos inerentes à qualidade de exclusivo proprietário, cultiva-a, executa demais trabalhos agrícolas, colhe frutos, o que faz na plena convicção de exercer direito próprio e exclusivo, à vista de todos desde o início da posse e sem oposição de quem quer que seja. 16. Também com continuidade e de boa-fé, sem antes dispor de título justificativo. 17. Em 1975, a referida (…) e marido (…), doaram verbalmente a parcela de terreno aos réus (…) e marido (…). 18. Desde essa altura que os réus (…) e marido (…) detêm o poder sobre a parcela justificada, o que fazem em nome próprio, ininterruptamente, há muito demarcada e independente. 19. Os réus (…) e marido praticam desde sempre no terreno todos os atos inerentes à qualidade de exclusivos proprietários, cultivam-na, edificaram aí a casa em que residem, o que fazem na plena convicção de exercerem, como efetivamente exercem, direito próprio e exclusivo, à vista de todos desde o início da posse e sem oposição e quem quer que seja. 20. Em 1975, (…) e o marido (…), doaram verbalmente esta parcela de terreno à ré (…). 21. Desde essa altura que a ré (…) detém o poder sobre a parcela justificada, o que faz em nome próprio, ininterruptamente, em imóvel demarcado e independente. 22. A ré pratica desde sempre nessa parcela os atos inerentes à qualidade de exclusiva proprietária, cultiva-a, colhe frutos, o que faz na plena convicção de exercer um direito próprio e exclusivo, à vista de todos desde o início da posse e sem oposição e quem quer que seja. 23. O que a ré sempre fez e faz de modo contínuo e de boa-fé. 24. Os réus justificaram assim para si as mencionadas quatro parcelas de terreno, que se encontravam há muito devidamente autonomizadas. 25. Todas as parcelas de terreno, que desde, pelo menos, a década de oitenta do século passado estão fisicamente consolidadas e demarcadas. B – O Direito Do fundamento para anular os atos titulados pelas escrituras públicas outorgadas pelos RR em Novembro de 2013 O Recorrente sustenta que os negócios jurídicos titulados pelas referidas escrituras são anuláveis por ofensa ao disposto no art. 1376.º do CC, atenta a área de cultura mínima definida legalmente. A 1.ª Instância, embora reconhecendo que foi violado o regime legal atinente à unidade de cultura mínima fixada para a respetiva zona geográfica, já que cada uma das parcelas não atinge 0,5ha, julgou a ação improcedente por as normas relativas ao fracionamento dos prédios rústicos não produzirem efeito quanto à aquisição do direito de propriedade por usucapião. Ora, o art.º 1376.º do CC, sob a epígrafe «Fracionamento», no seu n.º 1, prescreve que «Os terrenos aptos para cultura não podem fracionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do País.» O art. 1379.º do mesmo diploma, na versão vigente à data da outorga das escrituras públicas em causa, prescreve que: «1 – São anuláveis os atos de fracionamento … contrários ao disposto no artigo 1376.º (…). 2 – Têm legitimidade para a ação de anulação o Ministério Público (…). 3 – A ação de anulação caduca no fim de três anos a contar da celebração do ato (…)» Trata-se de proibição que teve em vista eliminar os minifúndios que não dispusessem de condições mínimas de rentabilidade económica agrícola ou florestal, confinando-se, portanto, a terrenos com tal aptidão, deixando de fora os terrenos destinados a fins que não fossem a cultura.[3] Porém, atento o regime legal então em vigor[4], a sanção civil para a violação daquela proibição é a anulabilidade, tendo carácter limitativo não obstante tal proibição radicar em razões de interesse público, pelo que, decorrido o prazo de impugnação dos atos afetados por esse vício de anulabilidade, o mesmo deixa de relevar seja para que efeito for, não podendo, por exemplo, impedir a aquisição por usucapião.[5] Na senda de tal regime, a Portaria n.º 202/70, de 21/04, no seu artigo 1.º, fixa a área de unidade de cultura, em hectares (ha), para as diversas Regiões de Portugal continental, com referência aos tipos de cultura agrícola dos terrenos, classificando-os, para tal efeito, em terrenos de sequeiro e terrenos de regadio, subdividindo estes em terrenos de cultura arvense e terrenos de cultura hortícolas. Para a região de Setúbal, onde se inserem as parcelas versadas nas escrituras públicas aqui postas em crise, a unidade de cultura é de 2,5ha para terrenos de regadio arvenses, 0,5ha para terrenos de regadio hortícolas e 7,5ha para terrenos de sequeiro. No caso em apreço, as parcelas foram desanexadas de um prédio rústico composto de vinha e horta. É certo que inexiste menção factual a partir da qual possa caraterizar-se tal prédio como terreno de regadio ou de sequeiro (sendo estes os que não dispõem de qualquer sistema de rega ou de aproveitamento de águas, incluindo das águas pluviais, e os de regadio os que dispõem de tais sistemas, que permitem o aproveitamento tanto de águas próprias como alheias[6]). Porém, na medida em que cada uma das parcelas de cuja propriedade, adquirida originariamente, se arrogam os RR não atinge 0,5ha (corresponde a 5.000 m2), é manifesto que o fracionamento do prédio rústico composto de vinha e horta (por ser, assim, apto para cultura), implicou a constituição de parcelas de área inferior à superfície mínima fixada para a região em que se inserem, em violação do disposto no art. 1376.º, n.º 1, do CC. Nos termos do já citado art. 1379.º, n.º 1, do CC, são anuláveis os atos de fracionamento contrários ao disposto no art. 1376.º do CC. Cumpre, então, apreciar se, conforme sustentado pelo Recorrente, os negócios jurídicos titulados pelas escrituras públicas outorgadas pelos RR em Novembro de 2013 são anuláveis por via do citado regime legal. As referidas escrituras públicas em causa constituem o instrumento através do qual cada um dos RR (ou grupo de RR) declararam ser possuidores de uma parcela de terreno desanexada do prédio rústico composto de vinha e horta, com exclusão de outrem, sendo que, atendendo à duração e carateres da concreta posse, adquiriram a referida parcela por usucapião, suprindo, desta forma, a inexistência de título adequado para procederem ao registo – cfr. docs. juntos com a p.i. Consubstanciam, assim, escrituras de justificação notarial. A escritura de justificação notarial “tem por escopo providenciar aos interessados um meio de titulação de factos jurídicos relativos a imóveis que ou não possam ser provados pela forma original ou cuja eficácia se desencadeia legalmente sem necessidade de observância de forma escrita, como a usucapião ou a acessão”.[8] Associa-se, pois, à dinâmica do registo predial – art. 116.º, n.º 1, do CRP – mormente à prova documental do facto jurídico a registar, imprescindível para o registo – cf. art. 43.º, n.º 1, do mesmo diploma.[9] Outorgada a escritura pública, a mesma constitui um documento autêntico que faz prova plena do facto jurídico que titula, da declaração efetuada perante o oficial público; não a faz, porém, da verdade dessa declaração, não prova que sejam verdadeiras as afirmações do justificante perante o notário – cfr. arts. 363.º, n.º 2, 371.º, n.º 1 e 372.º, n.º 1, do CC.[10] Como qualquer outro ato notarial, a escritura de justificação notarial pode padecer de nulidade por vícios de forma (cfr. art. 70.º do Código do Notariado) ou pelos fundamentos enunciados desde logo no art. 71.º do Código do Notariado. Para além disso, é passível de ser impugnada judicialmente, conforme previsto no art. 101.º do Código do Notariado, visando a eliminação dos efeitos dos factos aquisitivos nela declarados[11] e implicando na sua ineficácia[12], por parte de quem tenha legitimidade, ou seja, pelos sujeitos afetados direta ou indiretamente pelo negócio jurídico ali em causa, por titulares de direito incompatível com o direito invocado pelo justificante ou por quem represente interesse juridicamente relevante.[13] «A impugnação da justificação notarial não está limitada apenas aos que afirmam ser os proprietários do imóvel ou que invocam direito real em colisão com o direito daqueles que justificaram notarialmente, reconhecendo-se também interesse em agir àqueles que invocam direito, diverso do direito de propriedade ou outro direito real cujo exercício pode ser afetado se a ação não for proposta. (…) O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação (artigo 30.º/2 do CPC) e obviamente têm de ser fundadas e ponderadas criteriosamente as razões que são indicadas pelo impugnante, designadamente quando o impugnante não invoca direito que esteja em colisão direta com o direito de propriedade que o justificante conseguiu ver reconhecido.»[14] Certo é que a justificação notarial não constitui ato translativo nem constitutivo de direitos. |