Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
512/10.8 GEALR.E1
Relator: MARIA FILOMENA SOARES
Descritores: CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
DEPOIMENTO INDIRECTO
VALORAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 11/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
I – O depoimento por ciência indireta só depois de confirmado é que se torna válido como meio de prova. Mas a lei abre uma exceção a esta regra: “o testemunho de “ouvir dizer” é válido como meio de prova, quando for impossível a inquirição da pessoa que “disse”, em razão da sua morte, de anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser encontrada – art. 129.º, n.º1, parte final, do CPP.

II – O referido preceito não exige que a “impossibilidade” de ser encontrada a testemunha fonte seja “absoluta”, no sentido de esgotamento de todas as diligências tendentes a encontrá-la, bastando-se, outrossim, com uma “impossibilidade relativa”, decorrente do insucesso das diligências efetuadas para a encontrar no local onde era suposto que devia estar, insucesso esse que permite antever que só a muito custo (ou quiçá, nem mesmo assim) ela será encontrada.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal (1ª Subsecção) do Tribunal da Relação de Évora:

I
No âmbito do processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, nº 512/10.8 GEALR, do Tribunal Judicial de Almeirim, mediante acusação pública, sem precedência de contestação, foi submetido a julgamento o arguido A., filho de…, nascido em 25.09.1990, solteiro, sem profissão e residente em… Almeirim, e por sentença proferida e depositada em 08.11.2011, foi decidido:
“(…)

julgo a acusação procedente, por provada, e, em consequência, decide-se:

1.Condenar o arguido A.como autor material de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 1 e 2 do Dec. Lei nº2/98, de 03-01, na pena de 13 (treze) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período na condição de o arguido, no prazo da suspensão, vir juntar aos autos documento comprovativo de que frequentou, ao menos, o número mínimo de aulas teóricas (“código”) legalmente exigidas para se apresentar a exame escrito, e regime de prova.

2. Vai o arguido condenado nas custas do processo, fixando-se em 2 UC a taxa de justiça;
(…)”.

Inconformado com a decisão, dela recorreu o arguido, extraindo da respectiva motivação do recurso as seguintes conclusões:

1) O arguido A. foi condenado como autor material de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 1 e 2 do Decreto Lei n.º 2/98, de 03-01, na pena de 13 (treze) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período na condição de o arguido, no prazo da suspensão, vir juntar aos autos comprovativo de que frequentou, ao menos, o número mínimo de aulas teóricas (“código”) legalmente exigidas para se apresentar a exame escrito.

2) Não concordando com a, aliás, douta Sentença do Tribunal a quo vem junto de V. Exas interpor recurso da mesma.

3) Os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (al. a) do n.º 3 do art. 412.º do C.P.P.) são os seguintes: “1 – No dia 27 de Junho de 2010, pelas 20 horas e 20 minutos, o arguido conduziu o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula XP---, pela EN 114, em Almeirim, tendo intervindo em acidente de viação, por despiste. 3 – O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, ciente das características do referido veículo e do local onde conduziu, bem como do facto de não ser titular de carta de condução ou qualquer outro documento válido que o habilitasse a conduzir e que, por isso, não podia conduzir.4 – Não obstante, o arguido quis e conseguiu conduzir nas referidas circunstâncias.”

4) O entendimento perfilhado na decisão de que se recorre não é aquele que deve ser retirado da análise do depoimento da testemunha, das declarações do arguido e da restante documentação.

5) Outro deveria ter sido o entendimento constante na decisão do Tribunal a quo, relativamente aos factos dados como provados pois das declarações do arguido, do depoimento prestado pela testemunha e da restante documentação, só podia o Decisor a quo ter dado como não provada toda a factualidade descrita nos pontos 1, 3 e 4 da matéria de facto provada.

6) Diz o Tribunal a quo que: “[r]espondeu à matéria de facto da forma supra descrita tendo em consideração as declarações do arguido, em audiência de julgamento, conjugadas com o depoimento de VF e com a análise crítica da documentação junta aos autos (…).”

7) O depoimento da testemunha VF. impõe decisão diversa da recorrida - (al. b) do n.º 3 do art. 412º do Cód. de Processo Penal).

8) Da inquirição da testemunha VF. resulta um depoimento indireto:

Início – minuto 01.32
Ministério Público (M.P.) – “Houve mais alguém nesse acidente ou foi só esse veículo?”
Testemunha VF. – “Foi um despiste, ou seja, foi só um veículo.”
M.P. – “Sabe quem é que conduzia esse veículo?”
Testemunha VF. – “É assim, segundo o que foi apurado no local pelo ocupante…”
M.P. – “Quem é o ocupante?”
Testemunha VF. – “Era um José.”
M.P. – “JG?”
Testemunha VF. – “O nome completo não sei.”
M.P. – “Era só José.”
Testemunha VF. – “Sim. Sim. Informou-nos, quando questionado sobre quem era o condutor…”
M.P. – “Que era o arguido”
Testemunha VF. – “Sim, exatamente.”
M.P. – “Quando chegaram ao carro o arguido não estava lá?”
Testemunha VF. – “Encontrava-se dentro da ambulância.”
M.P. – “E este rapaz, o A., estava muito magoado?”
Testemunha VF. – “Estava a ser assistido pelos bombeiros.”
M.P. – “O conhecimento que o Senhor tem de que fosse o Senhor A. que ia a conduzir o veículo foi transmitido pelo tal José?”
Testemunha VF. – “Sim.”
M.P. – “O Senhor na altura falou com o arguido?”
Testemunha VF. – “Ele estava inconsciente.”
M.P. – “E este José quando lhe deu esta informação estava consciente?”
Testemunha VF. – “Estava lúcido.”
M.P. – “Sabe onde ele anda agora?”
Testemunha VF. – “Não, não o conheço.”
Fim – minuto 02.56

9) O depoimento desta testemunha resultou do que lhe disse a testemunha JG no dia da alegada prática dos factos.

10) Pelo que de seguida se dirá, entende-se que houve violação na utilização do artigo 129.º CPP.

11) Na prova testemunhal a regra é de que a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento direto e que constituam objecto da prova – 128.º, n.º 1 CPP. Tendo a testemunha tal conhecimento direto dos factos quando os percepcionou de forma imediata e não intermediada, através dos seus próprios sentidos.

12) Nos termos do artigo 129.º CPP: "Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas."

13) A lei não proíbe de forma absoluta a produção de depoimentos indiretos. O que o código proíbe é a valoração de tais depoimentos, se o juiz não chamar a depor a pessoa indicada pela testemunha como fonte do conhecimento que transmitiu ao tribunal.

14) Pode o depoimento indireto ser valorado sempre que a inquirição da fonte não seja possível, por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser encontrada.

15) Diz-se na douta sentença: “[d]ebalde se procurou localizar e convocar para julgamento JG, porquanto se encontrará ausente do país há já alguns meses (v. fls 97 e informação policial recolhida em julgamento).”

16) Não é suficiente, para considerar o depoimento indireto válido por impossibilidade de ser encontrada a testemunha, o envio frustrado de uma notificação e uma certidão negativa de onde consta que os vizinhos disseram que a testemunha está fora do país.

17) Na douta sentença, para considerar válido o depoimento indireto da testemunha VF., foram invocados os seguintes acórdãos: acórdão da Relação do Porto de 13/12/2006; acórdãos da Relação de Lisboa de 17/04/2008 e 10/11/2005; acórdão da Relação de Coimbra, de 12/04/2011.

18) Todos os acórdãos traduzem a ideia de que para a validade do depoimento indireto basta a impossibilidade relativa de encontrar a testemunha.

19) Mas apenas o acórdão da relação do Porto de 13/12/2006 identifica concretamente as diligências levadas a cabo para notificar a testemunha.

20) No acórdão da relação do Porto de 13/12/2006, ao contrário do que sucedeu nos presentes autos, foram realizadas diversas tentativas para notificar a testemunha por via postal registada. Quanto às certidões negativas, delas constam informações da mãe da testemunha dizendo que a mesma se encontrava em determinado país.

21) Nos restantes acórdãos – Relação de Lisboa de 17/04/2008, Relação de Lisboa de 10/11/2005 e Relação de Coimbra de 12/04/2011 – era sabido o paradeiro das testemunhas apesar de não se dizer quem prestou tal informação.

22) Nos presentes autos houve apenas uma tentativa de notificação, por via postal registada, da testemunha JG. A carta foi devolvida e antes do julgamento não foram realizadas mais tentativas de notificação.

23) Faltando a testemunha à audiência de discussão e julgamento, dela não prescindiu o Digníssimo Magistrado do Ministério Público.

24) Da certidão negativa (fls. 110) consta que a testemunha não se encontrava na morada dos autos.

25) Segundo informações dos vizinhos, a testemunha encontra-se no estrangeiro.

26) Não sabendo tais vizinhos qual o país em questão.

27) Alguém, que não se sabe ter qualquer relação com a testemunha, além da de vizinhança, dizer que a aquela está no estrangeiro não deveria servir para formar a convicção do Tribunal a quo quanto à impossibilidade de encontrar a testemunha e não tentar por outros meios encontrá-la.

28) A frustração de apenas uma notificação e a informação vaga de vizinhos não identificados não traduz todos os esforços que poderiam ter sido levados a cabo para encontrar a testemunha que, diga-se, é essencial ao processo.

29) A impossibilidade relativa é definida no Acórdão da Relação do Porto, de 13/12/2006 como a “decorrente do insucesso das diligências efectuadas para as encontrar no local onde era suposto que deviam estar, insucesso esse que permite antever que só a muito custo (ou, quiçá, nem mesmo assim) elas serão encontradas.”

30) Nos presentes autos, tendo em conta os esforços realizados para encontrar a testemunha JG, nem na presença de uma impossibilidade relativa podemos afirmar que estamos.

31) Pelo exposto, entende-se que o depoimento não pode ser valorado. Não devendo ser tido em conta pelo Tribunal a quo para fundamentar a responsabilidade criminal do arguido.

32) A testemunha em causa – JG – foi a única que presenciou o acidente.

33) A testemunha interveio no acidente, pois é descrita como ocupante da viatura sinistrada.

34) Pode colocar-se a hipótese de a testemunha ter tido outro papel no acidente, nomeadamente a condução do veículo.

35) Pois, como foi referido pela testemunha VF, o arguido encontrava-se inconsciente quando chegou ao local e o referido JG ter-lhe-á contado uma versão dos factos que não se sabe ser verdadeira.

36) O Arguido não confessou os factos, ficando sem se saber quem conduziu o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula XP----.

37) Do depoimento da testemunha VF. ficamos sem saber também se viatura tinha mais ocupantes, o que é essencial à boa decisão dos autos por implicar a certeza quanto ao condutor do veículo e causador do acidente.

Início – minuto 02.57
Defensor – “Só encontrou duas pessoas que viajassem no veículo?”
Testemunha VF. – “Só encontrei essas duas.”
Defensor – “Mas podiam haver mais. Tem a certeza que só lá iam duas?”
Testemunha VF. – “É assim, foi-me informado por pessoas que tinham fugido dois indivíduos, mas nunca se conseguiu apurar quem é que eram ou se realmente iam lá.”
Defensor – “Supostamente o Senhor descobriu duas, mas podiam ser mais?”
Testemunha VF. – “Sim.”
Fim – minuto 03.39

38) Do depoimento da testemunha VF. não pode resultar a convicção do Tribunal a quo para dar como provado que foi o arguido a conduzir o veículo dos autos. Além de ser um depoimento indireto, revela desconhecimento quanto a factos essenciais para a prova dos factos constantes da acusação que nem do depoimento indireto decorrem.

39) “Enquanto para acusar importa a convicção do Ministério Público sobre a indiciação suficiente, e para pronunciar também a indiciação suficiente é bastante, já para a condenação importa a prova. Por indiciação suficiente entende-se a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em razão dos meios de prova já admitidos no processo, uma pena ou medida de segurança; a prova é a certeza moral dos factos objecto do processo.” SILVA, Germano Marques da, Curso de Processo Penal, Volume II, Verbo, 4ª Edição, p. 117.

40) Não deve o depoimento indireto ser admitido por não estarem preenchidos os requisitos legais necessários à sua valoração, nomeadamente, a impossibilidade da testemunha ser encontrada, visto, como já se disse, não terem sido realizados todos os esforços admissíveis para o efeito.

41) Tendo o Tribunal a quo formado a sua convicção, para dar como provados os factos constantes da acusação, no depoimento indireto e não podendo este ser valorado há insuficiência de prova quanto aos factos que foram erradamente dados como provados.

42) Não pode o arguido ser condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, visto não haver certeza quanto à condução efetiva do veículo causador do acidente.

43) O princípio in dubio pro reo “(…) destina-se a proteger as pessoas que são objecto de uma suspeita ou acusação, garantindo que não serão julgadas culpadas enquanto não se demonstrarem os factos da imputação através de uma atividade probatória inequívoca.” – Idem, p. 121.

44) No caso dos presentes autos, não havendo prova inequívoca, deve funcionar o supra referido princípio, o que implica a necessária absolvição do arguido.

45) Ainda para fundamentar a sua decisão entendeu também o Tribunal a quo que “(…) o próprio arguido, pese embora alguma flutuação de discurso, não ousou negar, de forma peremptória, a condução da XP como descrito na acusação pública, optando por dizer não saber se o fez ou não.”

46) O facto de o arguido não negar (e muito menos de forma peremptória) a prática de um acto, não implica que aquele se considere provado. É à acusação que cabe a prova dos factos imputados ao arguido. A não negação, nem afirmação, de tais factos pelo arguido não implica a produção de qualquer prova.

47) Diz também o Tribunal a quo: “(…) o discurso do arguido foi flutuando ao sabor das perguntas que lhe foram sucessivamente feitas (para ter uma ideia, basta ouvir atentamente o que ia sucessivamente dizendo, por exemplo, sobre a condução da XP e sobre a propriedade da mesma), sendo a sua postura corporal reveladora, ainda, de um elevado nível de nervosismo e de ansiedade.”

48) Não é admissível aferir da culpabilidade do arguido com base no seu “nível de nervosismo e de ansiedade”.

49) Do julgamento poderá resultar para o arguido uma condenação, pelo que é natural que qualquer pessoa – o homem médio – colocada na posição de arguido se mostre nervosa e ansiosa.

50) Todo o formalismo inerente à situação em causa não se coaduna com um estado de espírito alegre ou despreocupado.

51) Ao assentar a prova testemunhal num depoimento de alguém que relata o que não viu, mais motivos tem um arguido – o homem médio – para estar ansioso quanto ao desfecho do processo.

52) O ambiente formal vivido num Tribunal potencia estados de nervosismo e ansiedade, pelo que não deveria o Tribunal a quo recorrer a tais considerações para entender que o arguido praticou os factos descritos a acusação.

53) Não podendo, pelos motivos supra expostos, ser valorado o depoimento indireto e não tendo sido produzida mais prova, deve o arguido ser absolvido do crime pelo qual foi condenado.

Nestes termos, e nos melhores de direito, Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora deverão absolver o arguido do crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei nº2/98, de 03-01 pelo qual vem condenado.

PORQUANTO,
SÓ ASSIM FARÃO A COSTUMADA JUSTIÇA!”.

Notificado, o Digno Magistrado do Ministério Público apresentou articulado de resposta, concluindo nos termos seguintes:

a) Sendo as conclusões um resumo do pedido, estas deverão ser claras, precisas e concisas, na medida em que são as questões nelas sumariadas que hão-de ser objecto de conhecimento e decisão por parte do Tribunal ad quem;

b) Quando tal não se verifique, como é o caso, das duas, uma: ou tribunal convida o recorrente a aperfeiçoar as mesmas ou, então, o recurso deverá ser rejeitado por as conclusões, na sua essência e matriz, não respeitarem o formalismo exigido por lei;

c) Porém, se o Tribunal ad quem, em obediência ao princípio da celeridade e pragmatismo, entender que, apesar disso, já está na posse de todos os dados e elementos para poder agir, conhecer e decidir, nada se tem a opor;

d) O Tribunal terá tido em devida conta toda a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, bem como terá ponderado e sopesados todos os elementos e dados probatórios;

e) O Tribunal a quo, para a formação da sua convicção e para a valoração da prova, ter-se-á estribado em todos os dados e elementos objectivos recolhidos e produzidos com bom fundamento legal;

f) Salvo disposição em contrário, a prova é avaliada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção da entidade competente (artigo 127º, do Código de Processo Penal);

g) O artigo 129º do Código de Processo Penal permite a valoração do depoimento indirecto, alicerçada na impossibilidade de se proceder à inquirição das pessoas indicadas pela testemunha de ouvir dizer (“relata refero” - conto o que me contaram), em razão de morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem as mesmas encontradas, e valorada à luz do princípio da livre apreciação da prova;

h) A impossibilidade de inquirição das testemunhas referidas pela testemunha de ouvir dizer é aferida no caso concreto, segundo critérios de razoabilidade;

i)In casu, a testemunha JG foi notificado para comparecer em audiência de discussão e julgamento, na qualidade de testemunha, na única morada conhecida nos autos, por carta registada com aviso de recepção, veio a mesma devolvida, com a menção “Objecto não Reclamado/Não Atendeu”;

j) Já em sede de audiência de discussão e julgamento, e porque o depoimento de JG como testemunha não foi prescindido pelo Ministério Público, foi ordenada a notificação do mesmo, desta feita através da GNR de Almeirim (cfr. fls. 105-107), que lavrou certidão negativa “em virtude de segundo informações obtidas através de vizinhos, o mesmo encontra-se fora do país há já alguns meses. Desconhece-se qualquer contacto” (cfr. fls. 110);

l) Forçoso será concluir que foram realizadas as diligências suficientes e possíveis para localizar a testemunha, JG, que se mostraram infrutíferas, verificando-se, pois, uma impossibilidade de encontrar tal testemunha, o que legitima e fundamenta o depoimento prestado pela testemunha, VF, na parte em que este alude ao que aquela testemunha lhe disse, nos termos do disposto no artigo 129º do Código de Processo Penal;

m) Ao alegar que o Tribunal a quo alicerçou a sua convicção no depoimento prestado pela testemunha, VF, o recorrente está a impugnar a convicção adquirida pelo Tribunal a quo, esquecendo-se da regra/princípio da livre apreciação da prova, inserta no artigo 127º do Código de Processo Penal que, evidentemente, não se confunde com a insuficiência da prova para a decisão de facto proferida (artigo 410º/2, alínea a), do Código de Processo Penal), pelo que, neste particular, a motivação não deverá proceder;

n) O nosso ordenamento jurídico consagra, como bem saberá o recorrente, o princípio da livre apreciação da prova, segundo o qual, como já supra se disse, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do Juiz/entidade competente;

o) À luz daquele princípio, o Juiz a quo credibilizou, e bem, o depoimento prestado pela testemunha, VF, conjugando-o com os demais elementos probatórios carreados para os autos;

p) Não pode o recorrente impor a sua versão dos factos como boa, substituindo-se ao julgador, como pretende com o presente recurso, ao fazer da prova a sua apreciação própria;

q) A pena cominada estará no seu ponto óptimo de equilíbrio;

r) Não terá sido violado qualquer inciso legal;

s) Por via disso, rejeitando-se, eventualmente, o recurso ou negando-se-lhe provimento, será feita justiça.

Assim decidindo, farão Vossas Excelências, uma vez mais, a costumada
Justiça!”.

O recurso interposto pelo arguido foi admitido [cfr. fls. 182].

Remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto deu o seu parecer, alegando, em síntese, queO magistrado do Ministério Público da 1ª instância respondeu à questão suscitada, sendo a pertinência da argumentação ali desenvolvida, bem como dos fundamentos e elementos (factuais normativos) aduzidos, que genericamente sufragamos, nos dispensa do aditamento de outros considerandos em defesa da posição assumida. Acompanhamos, portanto, a resposta do Ministério Público na 1ª instância (…)”.

Em consequência, conclui que o recurso não merece provimento.

Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido usado o direito de resposta.

Foi efectuado exame preliminar e colhidos os vistos legais.
Foi realizada a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II

Como é sabido, o âmbito do recurso – seu objecto e poderes de cognição – afere-se e delimita-se através das conclusões extraídas pelo recorrente e formuladas na motivação (cfr. artigos 403º, nº 1 e 412º, nºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as previstas no artigo 410º, nº 2, do aludido diploma, as cominadas como nulidade da sentença (cfr. artigo 379º, nºs 1 e 2, do mesmo Código) e as nulidades que não devam considerar-se sanadas (cfr. artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1, do Código de Processo Penal; a este propósito v.g. ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19.10.1995, publicado no D.R. I-A Série, de 28.12.1995 e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25.06.1998, in B.M.J. nº 478, pág. 242, de 03.02.1999, in B.M.J. nº 484, pág. 271 e de 12.09.2007, proferido no processo nº 07P2583, acessível em www.dgsi.pt e bem assim Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82).

Acresce que, no âmbito dos poderes de cognição do Tribunal, este “não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”, como claramente decorre do preceituado no artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4º, do Código de Processo Penal.

Porque assim, vistas as conclusões do recurso em apreço, verificamos que a única questão aportada ao conhecimento desta instância é a seguinte:

(i) - Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto, nos termos prevenidos no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal.

III

Com vista à apreciação da suscitada questão, a sentença recorrida encontra-se fundamentada nos seguintes termos [cuja transcrição se procede na parte pertinente e necessária ao conhecimento da elencada questão]:
“(…)
Fundamentação de facto:

A) Factos Provados:
1. Da prova produzida em audiência de discussão e julgamento resultaram provados os seguintes factos, com relevo para a decisão da causa:

(a). Sobre os factos descritos na acusação pública:
1. No dia 27 de Junho de 2010, pelas 20 horas e 20 minutos, o arguido conduziu o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula XP---, pela EN 114, em Almeirim, tendo intervindo em acidente de viação, por despiste.

2. À data, o arguido não era titular de carta de condução ou qualquer outro título válido que o habilitasse a conduzir.

3. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, ciente das características do referido veículo e do local onde conduziu, bem como do facto de não ser titular de carta de condução ou qualquer outro documento válido que o habilitasse a conduzir e que, por isso, não podia conduzir.

4. Não obstante, o arguido quis e conseguiu conduzir nas referidas circunstâncias.

5. Mais sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
*
6. Mais se provou que o arguido está inscrito em Escola de Condução desde 05/05/2011 (ligeiros).
*
(c). Sobre a situação pessoal do arguido:
7. O arguido vive com os seus pais, em casa destes.
8. O arguido vive a expensas dos seus progenitores.
9. Tem o 6.º ano de escolaridade.
*
(d). Sobre os antecedentes criminais:
10. O arguido praticou os factos supra descritos, pese embora já tenha sofrido as seguintes condenações, com trânsito em julgado:

a.(1) Em 01/07/2008, pela prática em 05/06/2008 de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, nos autos de processo especial sumário com o n.º ---/08.8GEALR, do Tribunal Judicial de Almeirim, na pena de 55 dias de multa, à razão diária de € 5,00.

b. (2) Em 05/11/2008, pela prática em 07/10/2008 de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, nos autos de processo especial sumário com o n.º ---/08.5GEALR, do Tribunal Judicial de Almeirim, na pena de 50 dias de multa, à razão diária de € 5,00.

c. (3) Em 20/07/2009, pela prática em 08/07/2009 de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, nos autos de processo especial sumário com o n.º ---/09.3TBALR, do Tribunal Judicial de Almeirim, na pena de 210 dias de multa, à razão diária de € 6,00.

d. (4) Em 18/09/2009, pela prática em 13/09/2009 de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, nos autos de processo especial sumário com o n.º ---/09.3GEALR, do Tribunal Judicial de Almeirim, na pena de 5 meses de prisão, suspensa por 1 ano, entretanto declarada extinta.

e. Em 17/02/2010, pela prática em 24/09/2008 de um crime de furto qualificado, nos autos de processo comum com intervenção do tribunal singular com o n.º ---/08.1GEALR, do Tribunal Judicial de Almeirim, na pena de 12 meses de prisão, suspensa por igual período.

f. (5) Em 14/06/2010, pela prática em 16/06/2009 de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, nos autos de processo comum com intervenção do tribunal singular com o n.º ---/09.4PTSTR, do Tribunal Judicial de Santarém (1.º Juízo Criminal), na pena de 12 meses de prisão, suspensa por igual período.

11. Posteriormente aos factos em discussão, o arguido foi condenado, por sentença transitada em julgado:

a. (6) Em 21/03/2011, pela prática em 26/02/2011 de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, nos autos de processo especial sumário com o n.º ---/11.0GTSTR, do Tribunal Judicial de Rio Maior (1.º Juízo), na pena de 13 meses de prisão, substituída por 395 horas de trabalho a favor da comunidade.

b. (7) Em 29/03/2011, pela prática em 14/03/2011 de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, nos autos de processo especial sumário com o n.º ---/11.0GEALR, do Tribunal Judicial de Almeirim, na pena de 13 meses de prisão, substituída por 390 horas de trabalho a favor da comunidade.
*
B) Factos não provados:
Com relevo para a boa decisão da causa, inexistem factos por provar.
*
C) Fundamentação:

(a). Sobre os factos descritos na acusação pública:

O Tribunal respondeu à matéria de facto da forma supra descrita tendo em consideração as declarações do arguido, em audiência de julgamento, conjugadas com o depoimento de VF. e com a análise crítica da documentação junta aos autos, nomeadamente da pesquisa da base de dados do IMTT, a fls.36, a participação de acidente de viação, a fls.03, e as cópias dos autos de contra-ordenação, a fls.17 e a fls.18, a cópia do termo de responsabilidade, a fls.27, a cópia do requerimento de registo automóvel, a fls.28, e a informação prestada pela Escola de Condução.

Vejamos, começando por ver resumidamente o que aqueles disseram em audiência (até porquanto o mesmo se encontra registado em suporte digital).

O arguido admitiu ter ficado ferido em decorrência do despiste de que fala a acusação pública. Não obstante, afirma não se recordar se conduzia ou não a viatura em causa, afirmando ainda que a mesma não é sua.
Mais disse que JG também vinha na XP.
Mais afirmou estar presentemente inscrito em Escola de Condução.

VF. foi o militar que elaborou o auto de notícia.

Afirmou que o expediente foi elaborado tendo em atenção o que lhe disse na altura JG, o qual lhe contou que a XP era conduzida, no momento do acidente, pelo arguido.

Cumpre ainda dizer que o mesmo JG foi oportunamente arrolado pela acusação pública como testemunha. No entanto, não foi possível localizar o mesmo e trazê-lo a julgamento, porquanto se encontrará ausente do país há já alguns meses (v. fls.97 e informação policial recolhida em julgamento).

Cumpre decidir.
Em face da prova produzida, é fácil concluir pela verificação de um acidente de viação, por despiste, em que participou a XP----, tal como vertido na acusação pública.

Resta saber quem conduzia nessa altura a XP.

Aqui, temos, como se viu, o depoimento de VF o qual identificou indirectamente (por via de JG) o arguido como sendo esse condutor.

Ora bem.

No que respeita à prova testemunhal, dispõe o artigo 128.º, nº. 1, do Código de Processo Penal que «A testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova».

A testemunha tem conhecimento directo dos factos, quando os percepcionou de forma imediata e não intermediada, através dos seus próprios sentidos. Já no âmbito do testemunho indirecto, a testemunha refere meios de prova, aquilo de que se apercebeu foi de outros meios de prova relativos aos factos, mas não imediatamente dos próprios factos; é o vulgarmente designado testemunho de ouvir dizer.

Ora, a regra é que o testemunho indirecto só serve para indicar outro meio de prova directo.

Por isso, o artigo 129.º, n.º 1, do Código de Processo Penal dispõe que: «Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas».

Daqui resulta, em primeiro lugar, que a regra é a do testemunho directo. Mas, por outro lado, a lei não proíbe de forma absoluta a produção de depoimentos indirectos.

O que o código proíbe é a valoração de tais depoimentos, se o juiz não chamar a depor a pessoa indicada pela testemunha como fonte do conhecimento que transmitiu ao tribunal.

No entanto, o depoimento indirecto pode ser valorado sempre que a inquirição da fonte não seja possível, por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser encontrada, sendo o mesmo apreciado nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal - v. neste sentido, acórdãos do STJ de 20/11/2002, em CJ, X, III, 232, Ac. da RP de 07/11/2007, e Ac. da RE de 30/01/2007, disponíveis em www.dgsi.pt.

Pois bem.
Como se disse, o saber de VF resultou do que lhe disse JG.

Debalde se procurou localizar e convocar para julgamento JG, porquanto se encontrará ausente do país há já alguns meses (v. fls.97 e informação policial recolhida em julgamento).

Nestas circunstâncias, aquele depoimento indirecto (de VF) pode ser valorado, em face da constatação da impossibilidade de se encontrar o referido JG (v., neste sentido, os acórdãos da RP de 13/12/2006, relatado pela Senhora Desembargadora Leonor Esteves, da RL de 17/04/2008, relatado pelo Senhor Desembargador Carlos Benido, e de 10/11/2005, relatado pelo Senhor Desembargador João Carrola, e da RC de 12/04/2011, relatado pelo Senhor Desembargador Paulo Guerra.

Dito isto, e como também já se referiu, importa valorá-lo no cotejo com a demais prova produzida.

E, assim analisada, não temos quaisquer dúvidas ao afirmar que era o arguido o condutor da XP, tal como vertido na acusação pública.

Em primeiro lugar, cumpre notar que VF apenas acorreu ao local do acidente e conversou com JG por força da sua actividade profissional, não se percepcionando, pelo modo como depôs e sempre se referiu ao arguido, outro interesse que o da realização da justiça.

Em segundo lugar, não há o menor indício que possa levantar alguma dúvida sobre a veracidade do narrado por VF.

Isto porque, e ponto número um, o próprio arguido, pese embora alguma flutuação de discurso, por fim não ousou negar, de forma peremptória, a condução da XP como descrito na acusação pública, optando por dizer não saber se o fez ou não.

Ponto número dois, e contrariamente ao pretendido pelo arguido (que chegou a afirmar não fazer ideia de quem seria a XP), a XP é sua desde 06/05/2010 (v. documentos a fls. 27 e a fls.28, não impugnados por quem quer que fosse).

E, ponto número três, tanto assim é que o arguido assinou, em 22/08/2010, dois autos de contra-ordenação, por conta também do acidente em apreço (v. documentos a fls.17 e a fls.18, igualmente não impugnados por alguém).

Finalmente, ponto número, o discurso do arguido foi flutuando ao sabor das perguntas que lhe foram sucessivamente feitas (para ter uma ideia, basta ouvir atentamente o que ia sucessivamente dizendo, por exemplo, sobre a condução da XP e sobre a propriedade da mesma), sendo a sua postura corporal reveladora, ainda, de um elevado nível de nervosismo e de ansiedade.

Deste modo, não existe qualquer dúvida que o arguido praticou os factos, tal como descrito pela acusação pública.
*
(b). Sobre a situação pessoal do arguido:
O Tribunal atendeu, aqui, às declarações do arguido, que se afiguraram neste particular credíveis e merecedoras de confiança.
*
(c). Sobre os antecedentes criminais:
Para prova da existência de antecedentes criminais registados ao arguido atendeu-se ao teor do CRC junto aos autos, a fls.85 e seguintes.

-IV-

III – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:
A – ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL DOS FACTOS:

A formulação de um juízo de censura neste domínio pressupõe que a conduta do agente seja passível de negar, de forma efectiva, bens jurídicos protegidos, exigindo-se que o acto praticado seja simultaneamente típico, ilícito e culposo.

Por referência à acusação deduzida, importa agora, pois, verificar se o arguido praticou, ou não, o crime que lhe é imputado.

Ora, não se suscitam dúvidas, ante o que se apurou, de que o arguido cometeu o crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 1 e 2 do Dec. Lei n.º 2/98, de 03.01, por referência aos artigos 121.º, n.º 1, 122.º, n.º 1, e 123.º, estes do Código da Estrada.

Na verdade, o mesmo sabendo que a sua conduta era proibida por lei, e agindo deliberada e conscientemente, conduziu um ligeiro de passageiros, sem que para tal estivesse habilitado, já que não era titular de carta de condução ou de qualquer outro documento que lhe permitisse tal condução.

Assim sendo, estão verificados os elementos objectivo e subjectivo do crime que lhe é imputado, podendo concluir-se que agiu com dolo directo.
(…)”.

IV
Com vista à apreciação da supra editada questão, [(i)] importa, antes demais e para o efeito, recordar que constitui princípio geral que as Relações conhecem de facto e de direito, nos termos do estatuído no artigo 428º, do Código de Processo Penal, sendo que, no tocante à matéria de facto, é também sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem: primeiro da impugnação alargada, se tiver sido suscitada, incumbindo a quem recorre o ónus de impugnação especificada, previsto no artigo 412º, nºs 3 e 4, do citado diploma, condição para que a mesma seja apreciada e, depois e se for o caso, dos vícios a que alude o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.

O erro de julgamento, ínsito no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.

Nesta situação, de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância. Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4, do artigo 412º, do Código de Processo Penal. É que nestes casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. E, é exactamente porque o recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando (violação de normas de direito substantivo) ou in procedendo (violação de normas de direito processual), que o recorrente deverá expressamente indicar e se lhe impõe o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos constantes do nº 3, do artigo 412º, do Código de Processo Penal.

Assim: impõe-se-lhe a especificação dos “concretos pontos de facto” que considera incorrectamente julgados, especificação esta que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorrectamente julgado; impõe-se-lhe a especificação das “concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida”, especificação esta que só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida, acrescendo que o recorrente deve explicitar por que razão essa prova impõe decisão diversa. Isto é, impõe-se ao recorrente que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado. E, sendo caso, impõe-se-lhe a especificação das “provas que devem ser renovadas”, que só se satisfaz com a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento no tribunal de primeira instância, dos vícios referidos nas alíneas do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal e das razões para crer que aquela renovação da prova permitirá evitar o reenvio do processo – cfr. artigo 430º, nº 1, do citado diploma.

No fundo, o que está em causa e se exige na impugnação mais ampla da matéria de facto é que o recorrente indique a sua decisão de facto em alternativa à decisão de facto que consta da decisão recorrida, justificando em relação a cada facto alternativo que propõe porque deveria o Tribunal ter decidido de forma diferente.

Ou, por outras palavras, como se afirma no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 08.03.2012, publicado no D.R. I Série, nº 77, de 18.04.2012, “Impõe-se ao recorrente a necessidade de observância de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta especificação dos concretos pontos da matéria de facto, que considera incorrectamente julgados, das concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, tudo com referência ao consignado na acta, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso. Esta exigência é de entender como contemplando o princípio da lealdade processual, de modo a definir em termos concretos o exacto sentido e alcance da pretensão, de modo a poder ser exercido o contraditório.

A reapreciação por esta via não é global, antes sendo um reexame parcelar, restrito aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, necessário sendo que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, não bastando remeter na íntegra para as declarações e depoimentos de algumas testemunhas.

O especial/acrescido ónus de alegação/especificação dos concretos pontos de discórdia do recorrente (seja ele arguido, ou assistente), em relação à fixação da facticidade impugnada, bem como das concretas provas, que, em seu entendimento, imporão (iam) uma outra, diversa, solução ao nível da definição do campo temático factual, proposto a subsequente tratamento subsuntivo, justifica-se plenamente, se tivermos em vista que a reapreciação da matéria de facto não é, não pode ser, um segundo, um novo, um outro integral, julgamento da matéria de facto.

Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1.ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1.ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo.”.

Postos estes considerandos e sem os olvidarmos, vejamos:

O recorrente impugna o acervo fáctico constante dos pontos 1., 3. e 4. da decisão sobre matéria de facto dada como provada, alegando que prova não foi produzida na instância que permitisse dar como provados tais factos que, em consequência e no seu entendimento, por terem sido incorrectamente julgados, devem ser dados como não provados. Funda a sua divergência, por um lado, na circunstância de do depoimento da testemunha VF não se poder extrair que a mesma presenciou os factos objecto da acção penal, mais precisamente que presenciou a condução do veículo ligeiro de passageiros, de matrícula XP---, por parte do arguido e, por outro, que este depoimento, porque indirecto, não pode ser valorado por não ter sido observado o disposto no artigo 129º, nº 1, segunda parte, do Código de Processo Penal. Em abono do seu argumentário alega, ainda, que a circunstância de o arguido não ter negado (expressamente) os factos por que vinha acusado não permite concluir que admita a sua prática.

Ora, ressalvado o devido respeito pelo esforço argumentativo do recorrente, desde logo reclama evidência, que ademais cumpre salientar, a coincidência de opinião entre o recorrente e o Tribunal a quo, na medida em que ambos afirmam não só que o depoimento da testemunha VF é um depoimento indirecto, como as declarações do arguido não podem ser havidas como confessórias dos factos por que vinha acusado. É o que se alcança, sem esforço, da leitura atenta da fundamentação/motivação da decisão de facto constante da decisão recorrida.

E, precedendo audição do CD contendo a prova (por declarações do arguido e por depoimento da indicada testemunha), também não se nos suscitam dúvidas sobre a correcção da percepção alcançada pelo Tribunal a quo em razão daqueles meios de prova produzidos em julgamento. Efectivamente o arguido afirmou que “esteve no acidente”, mas “não sabe quem conduzia”, “não se recorda do acidente”, “não pode confirmar que ia a conduzir”, “não pode dizer nem que sim, nem que não” e a testemunha VF, militar da G.N.R., que em razão e por causa da sua actividade profissional, tomou conhecimento dos factos em apreço e elaborou o auto de notícia, disse “foi um despiste” e teve conhecimento da identidade do condutor do veículo de matrícula XP----, porque o “ocupante José o informou que era o arguido”, sendo que quando chegou ao local aquele – o arguido – se encontrava “dentro da ambulância”.

Diferentemente, porém, do entendimento do recorrente, entendeu o Tribunal a quo que aquele depoimento indirecto da testemunha VF podia ser valorado, como em verdade o foi.

E, não podemos deixar de afirmar a nossa concordância com o decidido, neste conspecto, pelo Tribunal a quo, que de forma cuidada, lógica e fundamentada, com pertinente citação jurisprudencial, explicou e justificou porque podia e devia valorar tal depoimento indirecto.

Não se questiona que estamos perante depoimento indirecto posto que a versão da testemunha, mais precisamente a identificação a que procede do arguido como sendo o condutor do veículo automóvel de matrícula XP----, se limita a reproduzir aquilo que ouviu dizer de uma outra pessoa, também arrolada como testemunha, JG (o dito “ocupante”), mas que por impossibilidade em ser encontrada não presta, em audiência, depoimento.

Dispõe o artigo 129º, nº 1, do Código de Processo Penal que “Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas”.

Como se lê no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.04.2008, proferido no processo nº 2677/08-9, disponível em www.dgsi.pt/jtrl, e citado na decisão recorrida, “Obviamente que o depoimento indirecto, sem mais, de uma testemunha cujo conhecimento lhe advém do que ouviu dizer a determinada pessoa, é, em princípio, meio proibido de prova em processo penal, nos termos do artº 129º, do CPP.

Nos termos do artº 125º, do CPP “são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei”.

A prova é sempre apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, de acordo com o disposto no artº 127º, do CPP.

Sobre o objecto e limites da prova testemunhal dispõe o nº 1 do artº 128º, do CPP, que “a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto de prova”.

“Constituem objecto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime” – artº 124º, nº 1, do CPP.

Tem-se conhecimento directo de um facto quando dele se colheu percepção através dos sentidos, isto é, quando se apreende o facto por contacto imediato com ele por intermédio dos olhos, dos ouvidos, do tacto, etc.

No depoimento indirecto a testemunha refere meios de prova; aquilo de que se apercebeu foi de outros meios de prova relativos aos factos (o relato de um facto com base num conhecimento que se obteve através de outrem –“testemunho de ouvir dizer”– ou por elementos informativos que não se colheu de forma imediata – ou seja, através de um documento, de uma fotografia, etc.).

No nosso ordenamento processual penal, a regra é a da invalidade do depoimento por ciência indirecta por ser incompatível com o processo penal de estrutura acusatória por ser contrário aos princípios da imediação e do contra-interrogatório.

É a própria Constituição que estabelece no seu artº 32º, nº 5 que “o processo criminal tem estrutura acusatória”.

O processo de estrutura acusatória procura assegurar a pacificação do posicionamento jurídico da acusação e da defesa em todos os actos jurisdicionais.

Isto significa que ao sistema acusatório está inerente o princípio do contraditório, de acordo com o qual a audiência de julgamento e determinados actos instrutórios (na fase da instrução, o debate instrutório; no inquérito, a discussão sobre a verificação dos pressupostos e requisitos das medidas de coacção) estão estruturados em termos de um debate ou discussão entre a acusação e a defesa.

Ou seja, na audiência de julgamento (e no debate instrutório quanto às provas indiciárias suplementares a apresentar no debate – cfr. arts. 32º, nº 5, da Constituição e 297º e segs. do CPP), a acusação e a defesa são chamadas a oferecer provas, a controlar as provas contra si oferecidas e a discretear (arts. 32º, nº 5, da Constituição, 89º, nº 1, 298º, 301º, nº 2 e 302, nºs 2 e 4, do CPP quanto ao debate instrutório) sobre o valor e resultado probatórios de umas e outras, ficando excluída a possibilidade de condenação (ou de pronúncia, na instrução) com base em elementos probatórios que não tenham sido discutidos em audiência, ainda que constantes dos autos – cfr. arts. 327º, 348º, 355º e 360º, do CPP.

Por isso, sempre que o depoimento de uma testemunha resultar “do que ouviu dizer” a pessoas determinadas, no julgamento, o juiz tem a faculdade de chamar essas pessoas a depor para que o possam ou não confirmar – art. 129º, nº 1, primeira parte, do CPP.

Daqui resulta que o depoimento por ciência indirecta só depois de ser confirmado é que se torna válido como meio de prova.

Mas a lei abre uma excepção a esta regra: o “testemunho de ouvir dizer” só é válido como meio de prova, quando for impossível a inquirição da pessoa que “disse”, em razão da sua morte, de anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser encontrada – artº 129º, nº 1, parte final, do CPP.”.

Volvendo aos autos, no caso em apreço, a testemunha que “disse”, JG, foi, como já se afirmou, oportunamente arrolada como testemunha [cfr. acusação pública constante de fls. 50 a 53]. Contudo, não se mostrando notificada da designação de julgamento para o dia 13.10.2011, [cfr. fls. 97 – carta registada com a.r. devolvida com a menção “Objecto não reclamado/Não atendeu” e acta constante de fls. 105 a 107], nessa sessão, não tendo o Digno Magistrado do Ministério Público prescindindo do seu depoimento, foi determinada a sua notificação através do órgão de polícia criminal que veio a lavrar certidão, negativa, “em virtude de segundo informações obtidas através de vizinhos, o mesmo encontra-se fora do país há já alguns meses. Desconhecendo-se qualquer contacto”[cfr. fls. 110]. Em consequência, na sessão de julgamento que teve lugar no dia 24.10.2011 [acta constante de cfr. fls. 111 e 112], aquele Magistrado prescindiu do seu depoimento, não se tendo produzido, naquele acto, qualquer outro meio de prova.

Vale o exposto por se afirmar que o Tribunal a quo diligenciando pela notificação e comparência em julgamento da testemunha que “disse”, JG, confrontou-se com a impossibilidade de a encontrar e ante o teor daquela certidão negativa não se vislumbra que outras diligências úteis e razoáveis poderia determinar sem que se revelassem ineficazes e/ou representassem um retardamento intolerável e desaconselhável do processo e/ou colocassem em risco a eficácia da prova, entretanto, produzida (cfr. artigo 328º, nº 6, do Código de Processo Penal). É que, como afirmado no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13.12.2006, proferido no processo nº 0615421, disponível em www.dgsi.pt/jtrp, cremos que no caso de depoimento indirecto, o artigo 129º, nº 1, segunda parte, do Código de Processo Penal não exige que a “impossibilidade” de ser encontrada seja “absoluta”, no sentido de esgotamento de todas as diligências tendentes a encontrá-la, bastando-se, outrossim, com uma “impossibilidade relativa, decorrente do insucesso das diligências efectuadas para as encontrar no local onde era suposto que deviam estar, insucesso esse que permite antever que só a muito custo (ou, quiçá, nem mesmo assim) elas serão encontradas.”.

Porque assim, tornando-se impossível tomar depoimento à testemunha que “disse” à testemunha que depôs, nada impede que o Tribunal a quo valore, como valorou, o depoimento indirecto da testemunha VG, nos termos prevenidos no artigo 127º, do Código de Processo Penal.

“A este propósito, escreveu-se no Acórdão do Tribunal Constitucional de 8-07-99, in BMJ 489º, pág. 12: “A disciplina contida no referido artigo 129º, nº 1 – mostrou-se no mesmo aresto -, também não viola o princípio da estrutura acusatória do processo, nem o da imediação, nem a regra do contraditório: de facto, aquele preceito, ao mesmo tempo que admite o testemunho de ouvir dizer, impõe que as pessoas referenciadas nesse depoimento sejam, elas próprias, chamadas a depor. E, desse modo, garante a imediação e possibilita a cross-examination. Só assim não será (isto é, as pessoas referidas são chamadas a depor) se a sua inquirição não for possível, “por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas”. Nessa hipótese, tornando-se impossível interrogar as pessoas que as testemunhas de outiva indicaram como fonte, tem de considerar-se razoável e proporcionada a limitação introduzida à proibição do depoimento indirecto. Tanto mais que este depoimento é apreciado pelo tribunal, segundo as regras da experiência e o princípio da livre convicção (cfr. artº 127º, do CPP).” – cfr. supra citado aresto do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.04.2008.

Isto é, o artigo 129º, nº 1, do Código de Processo Penal contém uma proibição de prova que não é absoluta e que, por isso, não gera necessariamente e sempre uma proibição de valoração de prova.

Ademais o recorrente também despreza que para avaliar da racionalidade, que não arbitrariedade ou impressionismo, e lógica da convicção expressa no relato dos factos, não é necessária a verificação naturalística destes, na sua plenitude e produção imediata, bastando que os realizados/verificados, de acordo com as regras da experiência, permitam inculcar e projectar a intenção dos demais e a vontade de os realizar.

Relevante a este propósito, para além dos meios de prova directos, são os procedimentos lógicos para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido: as presunções.

A noção de presunção (noção geral, prestável como definição do meio ou processo lógico de aquisição de factos e, por isso, válida também no processo penal) consta do artigo 349º, do Código Civil: “Presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”.

Importam, neste âmbito, as chamadas presunções naturais ou hominis, que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido.

As presunções naturais são, afinal, o produto das regras de experiência – o juiz, valendo-se de um certo facto e das regras de experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto.

Como salientava Vaz Serra, in B.M.J. nº 110, “Provas (Direito Probatório Material) ”, pág. 180 a 198, “Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (…) ou de uma prova de primeira aparência”.

Em formulação doutrinariamente sedimentada, as presunções devem ser “graves, precisas e concordantes”. “São graves, quando as relações do facto desconhecido com o facto conhecido são tais que a existência de um estabelece, por indução necessária, a existência do outro. São precisas, quando as induções, resultando do facto conhecido, tendem a estabelecer, directa e particularmente, o facto desconhecido e contestado. São concordantes, quando, tendo todas uma origem comum ou diferente, tendem pelo conjunto e harmonia, a afirmar o facto que se quer provar”.

A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerumque accidit) certos factos são a consequência de outros.

No valor da credibilidade do id quod, e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção, e na medida desse valor está o rigor da presunção.

A consequência tem de ser credível: se o facto base ou pressuposto não é seguro, ou se a relação entre o indício e o facto adquirido é demasiado longínqua, existe um vício de raciocínio que inutiliza a presunção.

Deste modo, na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.

A presunção intervém, assim, quando as máximas da experiência da vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar que certo facto é a consequência típica de outro ou outros.

A ilação derivada de uma presunção natural não pode, porém, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal, em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável.

Há-de pois existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de descontinuidade e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido.

No caso em apreço, como resulta da decisão recorrida, o Tribunal a quo não deixou de dar sedimentação e, por tal via, a necessária transparência, ao decidido neste particular, como se alcança, sem necessidade de outros considerandos, da simples leitura da motivação da decisão de facto e, por isso, afigura-se-nos consonante com as regras da experiência comum a afirmação não só da descrita actuação do arguido como sendo, no apontado circunstancialismo de tempo e lugar, o condutor do veículo automóvel de matrícula XP----, bem como a afirmação de que o mesmo actuou no evento com o demonstrado e inequívoco propósito de o realizar, ou seja, com dolo directo.

Acresce que o recorrente também olvida o princípio da livre apreciação da prova, ínsito no artigo 127º, do Código de Processo Penal, norma de acordo com a qual “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”.

É sabido que livre convicção não se confunde com convicção íntima, caprichosa e emotiva, dado que é o livre convencimento lógico, motivado, em obediência a critérios legais, passíveis de motivação e de controlo, na esteira de uma “liberdade de acordo com um dever”, no ensinamento do Professor Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, vol. I, Reimpressão, Coimbra Editora, 1984, pág. 201 a 206, que o processo penal moderno exige, dever esse que axiologicamente se impõe ao julgador por força do Estado de Direito e da Dignidade da Pessoa Humana.

De harmonia com o aludido princípio da livre apreciação da prova, o julgador é livre ao apreciar as provas, estando tal apreciação apenas “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório” – cfr. Professor Cavaleiro Ferreira, in “Curso de Processo Penal”, vol. I, pág. 211. “A livre convicção não pode ser vista em função de qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios, mas antes deve perspectivar-se segundo as regras da experiência comum, num complexo de motivos, referências e raciocínio, de cariz intelectual e de consciência, que deve de todo em todo ficar de fora a qualquer intromissão interna em sede de conhecimento. Isto é, na outorga, não de um poder arbitrário, mas antes de um dever de perseguir a chamada verdade material, verdade prático-jurídica, segundo critérios objectivos e susceptíveis de motivação racional.” – cfr. Professor Figueiredo Dias, ob. e loc. citados e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08.02.2012, proferido no processo nº 38/10.0 TAFIG.C1, disponível in www.dgsi.pt/jtrc.

Em abono do princípio da livre apreciação da prova a que se refere o citado artigo 127º, do Código de Processo Penal (e que, como se afirma no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10.10.2007, proferido no processo nº 8428/2007-3, disponível em www.dgsi.pt “é apenas um princípio metodológico de sentido negativo que impede a formulação de “regras que predeterminam, de forma geral e abstracta, o valor que deve ser atribuído a cada tipo de prova”, ou seja, o estabelecimento de um sistema legal de prova legal” e que, “não obstante o seu carácter negativo, este princípio pressupõe a adopção de regras ou critérios de valoração da prova” e esta “valoração há-de conceber-se como um actividade racional consistente na eleição da hipótese mais provável entre as diversas reconstruções possíveis dos factos.”), o caminho trilhado pelo Tribunal a quo na convicção formada e nos motivos dela determinantes, que o recorrente quer colocar em crise, mostra-se, como já se afirmou, perfeitamente explicado, de forma lógica e objectivável e, nessa medida, porque beneficiou da imediação e da oralidade, deve prevalecer.

Como se pode ler no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.05.2010, proferido no processo nº 11/04.7 GCABT.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt/jstj, “Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova.”. Só assim não será, quando as provas produzidas impõem decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido, o que sucederá, sem preocupação de enunciação exaustiva, designadamente, quando o julgador decidiu a apreciação dos meios de prova ou de obtenção de prova ao arrepio e contra a prova produzida (v.g. dá como provado determinado facto com fundamento no depoimento de determinada testemunha e ouvido tal depoimento ou lida a respectiva transcrição constata-se que a dita testemunha disse coisa diversa da afirmada na decisão recorrida ou nem se pronunciou sobre aquele facto), ou quando o tribunal valorou meios de prova ou de obtenção de prova proibidos, ou apreciou a prova produzida desrespeitando as regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis, ou quando a apreciação da prova produzida contraria as regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, enfim, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência, ou, ainda, quando a apreciação se revela ilógica, arbitrária e violadora do favor rei.

Ora, também nesta vertente, não se vislumbra que o Tribunal a quo haja violado o princípio in dubio pro reo, como reclamado pelo recorrente, uma vez que, pelos motivos expendidos na decisão recorrida, a prova consente (e impõe) a convicção formada pelo Tribunal de primeira instância e a violação de tal princípio suporia, de um lado, a formação de uma convicção positiva sem suporte probatório bastante, o que não ocorre, ou de outro, que o Tribunal demonstrada uma dúvida razoável ante a prova produzida a havia resolvido contra o arguido, o que também não ocorre.

Vale o exposto por se afirmar que, quando o recorrente impugna a decisão proferida sobre matéria de facto, não pode esquecer e descuidar que a prova produzida há-de impor, e não apenas permitir, decisão diversa da recorrida. Como se afirma no Acórdão do Tribunal desta Relação de Évora de 15.03.2011, proferido no processo 212/04.8 TACTX.E1, disponível em www.dgsi.pt/jtre, “se perante determinada situação de facto em concreto, as provas produzidas permitirem duas (ou mais) soluções possíveis e o juiz, fundamentadamente, optar por uma delas, a decisão (sobre matéria de facto) é inatacável: o recorrente (tenha ele, nos autos, a posição processual que tiver), ainda que haja feito da prova produzida uma leitura diversa da efectuada pelo julgador, não pode opor-lhe a sua convicção e reclamar, do tribunal de recurso, que por ela opte, em detrimento e atropelo do princípio da livre apreciação da prova.”.

Ante o que se deixa expendido, forçoso é concluir pela improcedência da reclamada impugnação ampla da matéria de facto.

Porque assim, a alteração da factualidade assente na primeira instância só poderá ocorrer pela verificação de algum dos vícios a que aludem as alíneas do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal, a saber: (a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; (b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e (c) o erro notório na apreciação da prova – cfr. ainda artigo 431º, do citado diploma –, verificação que, como acima se deixou editado, se nos impõe ex officio, avivando que a este propósito o recorrente nada reclama.

Em comum aos três vícios, o vício que inquina a sentença ou o acórdão em crise tem que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum. Quer isto significar que não é possível o apelo a elementos estranhos à decisão, como por exemplo quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, só sendo de ter em conta os vícios intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma – cfr. Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 16ª ed., pág. 871, Simas Santos e Leal-Henriques, “Recursos em Processo Penal”, loc. supra mencionado.

A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (vício a que alude a alínea a), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), ocorrerá, como ensina Simas Santos e Leal-Henriques, ob. e loc. citados, quando exista “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher.

Porventura, melhor dizendo, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final.

Ou, como vem considerando o Supremo Tribunal de Justiça, só existe tal insuficiência quando se faz a «formulação incorrecta de um juízo» em que «a conclusão extravasa as premissas» ou quando há «omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão»”.

A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (vício a que alude a alínea b), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), consiste na “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.

Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.” – cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. e loc. supra mencionados.

O erro notório na apreciação da prova (vício a que alude a alínea c), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), constituiu uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.

Ou, dito de outro modo, há tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.” – cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. e loc. citados.

Um tal vício de erro notório na apreciação da prova não se verifica quando a discordância resulta da forma como o tribunal apreciou a prova produzida. O simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal e expressa na decisão recorrida não conduz ao aludido vício.

Ora, do texto da decisão recorrida, como se vê da transcrição supra, a mesma apreciou os factos aportados a julgamento e bem assim aqueles que resultaram da discussão da causa em audiência de julgamento.

Do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum, não se perfila a existência de qualquer um dos vícios elencados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.

Investigada que foi a materialidade sob julgamento, não se vê que a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a solução de direito atingida, não se vê que se haja deixado de investigar toda a matéria de facto com relevo para a decisão final, como não se vê qualquer inultrapassável incompatibilidade entre os factos provados ou entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão, e de igual modo não se detecta na decisão recorrida, por si e com recurso às regras de experiência, qualquer falha ostensiva na análise da prova ou qualquer juízo ilógico ou arbitrário. De igual modo, do texto de tal decisão não se detecta qualquer violação do favor rei, na medida em que se não verifica, nem demonstra, que o Tribunal de julgamento haja resolvido qualquer dúvida contra o arguido.

Por outro lado, conceda-se, a decisão recorrida não deixa de expor, de forma assaz límpida, lógica e profícua, os motivos que fundamentaram a decisão sobre a matéria de facto, com exame muito criterioso das provas que abonaram a decisão, tudo com respeito do disposto maxime no artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal.

A decisão recorrida está elaborada de forma equilibrada, lógica e suficientemente fundamentada. O Tribunal a quo decidiu segundo a sua livre convicção e explicou-a de forma objectiva e motivada e, portanto, capaz de se impor aos outros.

Em consequência de tudo o que se deixa expendido, forçoso é concluir que a factualidade assente pelo Tribunal a quo se mantém nos seus precisos termos e sedimentada se mostra, não se vislumbrando na sentença recorrida vício ou nulidade cujo conhecimento ex officio se imponha a este Tribunal da Relação.
Em suma, o recurso interposto está votado ao naufrágio, mantendo-se o decidido na instância nos seus precisos termos.

V
Em vista do decaimento total no recurso interposto pelo arguido, ao abrigo do disposto nos artigos 513º, nº 1 e 514º, nº 1, do Código de Processo Penal, e 8º, nº 5, com referência à Tabela III anexa, do Regulamento das Custas Processuais, impõe-se a sua condenação em custas, fixando-se a taxa de justiça devida em 4 (quatro) unidades de conta.

VI

Decisão
Nestes termos acordam em:

A)- Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido A. e, em consequência, manter a decisão recorrida nos seus precisos termos.

B) - Condenar o recorrente nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) unidades de conta.

[Texto processado e integralmente revisto pela relatora (cfr. artigo 94º, nº 2, do Código de Processo Penal)]

Évora, 25 de Novembro de 2014

Maria Filomena Valido Viegas de Paula Soares

Fernando Paiva Gomes Monteiro Pina