Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
686/22.5T8STB.E1
Relator: MÁRIO BRANCO COELHO
Descritores: ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO JUDICIAL DA REGULARIDADE E LICITUDE DO DESPEDIMENTO
ERRO NA FORMA DE PROCESSO
DESPEDIMENTO POR EXTINÇÃO DE POSTO DE TRABALHO
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
Data do Acordão: 06/09/2022
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Sumário:
1. A acção especial regulada nos arts. 98.º-B e segs. do Código de Processo do Trabalho aplica-se à decisão de despedimento individual, comunicada por escrito, inequivocamente assumida pelo empregador.
2. A inexistência de procedimento é apenas relevante para a qualificação do despedimento como ilícito, não é relevante para impedir a aplicação desta forma de processo.
3. Esta forma de processo aplica-se no caso de comunicação escrita na qual a trabalhadora é informada do seu despedimento por não ser do interesse da empresa continuar com o contrato de trabalho, o que inculca a ideia de estar em causa uma extinção do posto de trabalho.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo do Trabalho de Setúbal, M. apresentou o formulário a que se refere o art. 387.º n.º 2 do Código do Trabalho, declarando a sua oposição ao despedimento promovido pelas empregadoras, que identificou como Farmácia Valido Ribeiro Unipessoal, Lda. e R.
Acompanhando esse formulário encontra-se um documento com o seguinte texto:
“FARMACIA VALIDO RIBEIRO, LDA
(…)
B. AZEITÃO, 5 DE JANEIRO 2022
EXMA. SRA
(…)
ASSUNTO: RESCISÃO CONTRATO TRABALHO
Exma. Sra.,
Vimos pela presente informar não ser de nosso interesse continuar com o contrato de trabalho existente entre nós a partir de 5 (Cinco) do corrente mês de Janeiro.
Assim, damos por terminado o mesmo, do qual serão processadas as contas devidas assim como a respectiva indemnização por despedimento.
Sendo o que nos cumpre somos, com consideração.
DE V.EX.A
ATENCIOSAMENTE”
Está assinado pela 2.ª Requerida, junto a carimbo da 1.ª.

Foi proferido despacho de indeferimento liminar por erro na forma do processo, argumentando-se, no essencial, não estar em causa uma decisão inequívoca de despedimento, pois “a eventual situação exarada na comunicação da Entidade Empregadora junta pelo Trabalhadora, porventura, não se enquadra na previsão do artº 98º C, nº 1, do Código do Processo de Trabalho, apesar de constar no 2. § da comunicação.”

É deste despacho que a Requerente recorre, concluindo:
A. No dia 31.01.2021 a Recorrente apresentou o formulário legal a que se refere o art. 98.º-C, n.º 1, do Código de Processo de Trabalho, juntando decisão de despedimento (missiva entregue pela gerente da 1.º Recorrida e 2.ª Recorrida) em que, sob o assunto “rescisão contrato trabalho”, se refere o seguinte: “vimos pela presente informar não ser de nosso interesse continuar com o contrato de trabalho existente entre nos a partir de 5 (Cinco) do corrente mês de Janeiro. Assim, damos por terminado o mesmo, do qual serão processadas as contas devidas assim como a respectiva indeminização por despedimento”.
O formulário foi objecto de indeferimento liminar considerando-se na Sentença recorrida que a Recorrente (…)
B. Foi decidido existir “erro na forma do processo”, abonando-se o Tribunal a quo em doutrina do acórdão da Relação de Coimbra de 29.03.2012, cuja citação foi aditada pelo mesmo Tribunal nas referências a “despedimento colectivo….(rescisão contrato trabalho)”, sendo o mesmo acórdão relativo a uma situação de despedimento promovido por administrador de insolvência (caducidade de contrato de trabalho).
C. A Recorrente celebrou contrato de trabalho com a 2.ª Recorrida a 13.10.2005, prestando indistintamente trabalho para esta e para a 1.ª Recorrida, sendo esta última que actualmente processa o seu pagamento salarial.
D. A A. não faltou injustificadamente ao trabalho nem tal foi – remotamente – invocado pelas Recorridas no âmbito da comunicação que lhe foi dirigida.
E. Contrariamente ao pretendido pelo Tribunal a quo, o processo especial de acção de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento não postula a existência de um procedimento disciplinar.
F. Se assim fosse, ad absurdum, uma decisão de despedimento não precedida de procedimento disciplinar – como a dos autos – tipificada como nula pelo art. 381.º, alínea c), do Código do Trabalho, não seria objecto da referida forma processual,
G. Ao mesmo tempo que uma decisão de despedimento disciplinar inválida por, por exemplo, faltar a comunicação da intenção de despedimento junta à nota de culpa, seria objecto do mesmo processo (…).
H. Contrariamente ao – salvo o devido respeito, surrealisticamente – pretendido pelo Tribunal a quo, inexiste qualquer situação de abandono de posto de trabalho nos presentes autos.
I. Não existe carta registada com aviso de recepção (nem carta registada, sequer), nem, também, a invocação pelo Empregador de factos constitutivos do abandono ou da presunção do mesmo.
J. Aludindo o Empregador a um despedimento por si promovido no qual pretende indemnizar a Recorrente, é absurdo aliás, atento o disposto no art. 403.º, n.º 5, do Código do Trabalho, que tal situação possa sequer ser hipotetizada.
K. Embora tendo caído em desuso, sendo apenas empregue, por exemplo, no art. 702.º do Código Civil, a palavra “rescisão”, assunto da missiva recebida pela trabalhadora significa, como ensina ROMANO MARTINEZ, “uma resolução do contrato”,
L. Sendo que a resolução do contrato de trabalho individualmente comunicada pelo empregador ao trabalhador tem apenas um sinónimo: “despedimento” (!).
M. Sendo a declaração, enquanto acto jurídico, interpretada nos termos do disposto no art. 236.º do Código Civil, é inequívoco existir uma comunicação de despedimento nos autos, sendo essa a lição, nomeadamente, do ac. da Relação de Lisboa de 04 de Maio de 2016 (Relator: CELINA NÓBREGA), do ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 27.02.2008 (Relator: PINTO HESPANHOL) e de FURTADO MARTINS.
N. A jurisprudência tem elencado situações em absoluto análogas às dos autos como actos de despedimento, objecto de tramitação através do processo especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento; basta compulsar o ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 12.06.2019 (RELATOR: DURO CARDOSO), o ac. do Tribunal da Relação de Évora de 23.11.2010 (RELATOR: CHAMBEL MOURISCO), o ac. do Tribunal da Relação do Porto de 05.01.2015 (RELATOR: EDUARDO PETERSEN SILVA), ac. do Tribunal da Relação do Porto de 09.02.2015 (RELATOR: PAULA LEAL DE CARVALHO) ou ac. do Tribunal da Relação do Porto de 22.10.2012 (RELATOR: EDUARDO PETERSEN SILVA).
O. É essa também a lição no CEJ, de VIRIATO REIS e DIOGO RAVARRA, bem como de JOSÉ EUSÉBIO DE ALMEIDA, sendo o caso dos autos afinal simples: trata-se de um despedimento individual não precedido de procedimento disciplinar.
P. Ao contrário do sustentado pelo Tribunal a quo, encontra-se vedado à A., perante tal fenómeno, o recurso ao processo comum - cfr. o ac. do Tribunal da Relação do Porto de 23.11.2020 (RELATOR: NELSON FERNANDES); seria nesse caso que se verificaria o erro na forma de processo erroneamente identificado em juízo.
Q. Foram violados pela Sentença judicialmente proferida os arts. 98.º-C, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, os art. 381.º, alínea c), 387.º, n.º 2, 403.º, n.º 1, 2, 3 e 5, do Código do Trabalho, o art. 193.º, n.º 1, do Código de Processo Civil; e os arts. 224.º, n.º 1, e 236.º do Código Civil.

O recurso foi admitido na primeira instância mas, recebidos os autos nesta Relação de Évora, o relator determinou a sua baixa, para se proceder à citação das Requeridas, tanto para os termos do recurso como para os da causa.
Citadas as Requeridas, juntaram procuração mas não responderam ao recurso.
Regressaram assim os autos a esta Relação, para decisão do recurso.

Dispensados os vistos, cumpre-nos decidir.
A matéria de facto a ponderar é a supra descrita.

APLICANDO O DIREITO
Do despedimento e da forma do processo
Fundamentalmente, está em causa no recurso a identificação da comunicação escrita recebida pela trabalhadora como uma decisão de despedimento individual, seja por facto imputável ao trabalhador, seja por extinção do posto de trabalho, seja por inadaptação, enquadrável no art. 98.º-C n.º 1 do Código de Processo do Trabalho.
Vem sendo afirmado que esta acção especial aplica-se à decisão de despedimento individual, comunicada por escrito, inequivocamente assumida pelo empregador[1], não podendo a mesma ser fundamento do litígio.[2]
Embora a lei não exija que o documento contenha o termo “despedimento” ou algo semelhante, Pedro Furtado Martins escreve que se torna “indispensável que os termos constantes da comunicação escrita permitam identificar a vontade do empregador de promover unilateralmente a cessação do contrato de trabalho. Se o despedimento tiver sido antecedido do correspondente procedimento, essa declaração constará da decisão final (…). Não tendo sido observado o procedimento, admitimos que seja também suficiente uma declaração em que o empregador anuncie que põe fim ao contrato, por exemplo porque o posto de trabalho foi extinto ou porque considera que o trabalhador mostrou não ser capaz de executar as funções que lhe competiam ou porque incorreu em comportamentos que, no entender do empregador, constituem justa causa de despedimento. É óbvio que declarações deste tipo configuram despedimentos ilícitos, por não serem precedidos do respectivo procedimento, como expressamente comina o artigo 381.º, c). Mas, apesar da ilicitude, consubstanciam declarações extintivas que se consolidam se não forem impugnadas no prazo de 60 dias estabelecido no artigo 387.º, 2, produzindo a efectiva cessação da relação de trabalho.”[3]
O que importa, pois, é que a comunicação escrita permita identificar a intenção do empregador proceder unilateralmente à cessação do contrato de trabalho, por alguma das causas mencionadas no art. 98.º-C n.º 1 do Código de Processo do Trabalho, sendo absolutamente irrelevante se o despedimento foi precedido de algum procedimento.
A inexistência de procedimento é apenas relevante para a qualificação do despedimento como ilícito, nos termos do art. 381.º al. c) do Código do Trabalho, não é relevante para impedir a aplicação da forma de processo especial regulada nos arts. 98.º-B e segs. do Código de Processo do Trabalho.
No caso dos autos, não está (ainda) alegado que a comunicação escrita foi precedida de algum procedimento, mas o que ali se pode identificar é que a empregadora assume inequivocamente a vontade de despedir a trabalhadora, a quem se propõe o pagamento de uma indemnização por despedimento.
Sem prejuízo de oportuna – e melhor fundamentada em factos – qualificação da figura de despedimento unilateral utilizada pela empregadora, a declaração escrita menciona que a “rescisão” – palavra que, em contexto laboral, deve ser entendida como equivalente a “despedimento”, e tal é desde logo assumido no próprio texto do documento – é motivada por “não ser de nosso interesse continuar com o contrato de trabalho”, o que inculca a ideia de estar em causa um inequívoco despedimento, por motivos relacionados com a empresa.
Com efeito, entre as quatro formas de despedimento identificadas no art. 340.º do Código do Trabalho – despedimento por facto imputável ao trabalhador, despedimento colectivo, despedimento por extinção do posto de trabalho e despedimento por inadaptação – parece indubitável não estar em causa um despedimento colectivo (não são identificados outros trabalhadores despedidos) e que à trabalhadora não são imputados factos relativos ao seu desempenho laboral e ao seu comportamento com relevo disciplinar.
Embora se admita alguma dúvida interpretativa na análise da hermética expressão utilizada na comunicação de despedimento – “não ser do nosso interesse continuar com o contrato de trabalho” – diremos que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na real posição do declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele – art. 236.º n.º 1 do Código Civil.
Ora, se a declaração de despedimento não invoca factos relativos à trabalhadora nem identifica outros trabalhadores afectados pela mesma decisão, e apenas identifica o “interesse” do empregador como a razão do despedimento, por exclusão de partes deveremos ponderar que nos encontramos perante uma extinção do posto de trabalho por motivos relativos à empresa, e como tal enquadrável no art. 367.º n.º 1 do Código do Trabalho.
E se é certo que o documento não menciona exactamente quais são os motivos – de mercado, estruturais ou tecnológicos – que fundamentam o interesse da empregadora em fazer terminar o contrato de trabalho, tal omissão não redunda em desfavor da trabalhadora, antes origina outra causa de ilicitude do despedimento, esta fundada no art. 381.º al. b) do Código do Trabalho.
Acresce que o que verdadeiramente importa no despedimento por extinção do posto de trabalho, não é tanto o fundamento da decisão de despedir, mas antes a efectiva eliminação do posto de trabalho.
Mais uma vez recorrendo o ensino de Pedro Furtado Martins, na descrição dos fundamentos do despedimento colectivo e do despedimento por extinção do posto de trabalho, “o que verdadeiramente importa é a efectividade da eliminação dos postos de trabalho e não saber se as razões ou os motivos que estão por detrás da decisão do empregador de eliminar postos de trabalho são qualificáveis como «de mercado, estruturais ou tecnológicos». Aliás, (…) tudo indica que o objectivo fundamental destas referências é dar cobertura à racionalidade económica na fixação a cada momento dos postos de trabalho necessários à empresa. Nesta perspectiva, decisiva é a ligação causal entre os motivos invocados e os postos de trabalho extintos.”[4]
E visto que a comunicação escrita demonstra a existência de uma decisão de eliminação do posto de trabalho da trabalhadora em virtude de um interesse que apenas à empresa diz respeito, e não esquecendo que o estilo hermético utilizado na comunicação escrita não esconde que está em causa um inequívoco despedimento da trabalhadora, concluímos que os requisitos essenciais previstos no art. 98.º-C n.º 1 do Código de Processo do Trabalho estão preenchidos.
Para finalizar, citam-se os casos decididos nos Acórdãos da Relação do Porto de 05.01.2015 e de 09.02.2015[5], onde estavam em causa comunicações onde os trabalhadores eram informados que o contrato de trabalho terminava “por falta de trabalho”, assim ficando “dispensados”. Como se escreveu no último dos mencionados arestos, «tendo em conta os termos de tal declaração, que foi feita por escrito, afigura-se-nos inequívoco que a Ré nela assume a existência de um contrato de trabalho, bem como a sua intenção de proceder ao despedimento do A., na medida em que lhe transmite a sua intenção de o fazer “terminar” e, embora não expressamente invocada a extinção do posto de trabalho, resulta igualmente dos termos do mencionado escrito que o motivo nele indicado se reconduz à hipótese legal do artigo 98.º-C, n.º 1 do Código de Processo do Trabalho por se poder configurar como uma extinção do posto de trabalho.»
Não há, pois, qualquer erro na forma de processo e a causa deve prosseguir exactamente como a Recorrente a propôs.

DECISÃO
Destarte, concede-se provimento ao recurso, com revogação da decisão recorrida e prosseguimento dos regulares termos da causa.
Custas do recurso pela parte vencida a final.

Évora, 9 de Junho de 2022

Mário Branco Coelho (relator)
Emília Ramos Costa
Paula do Paço (vencida, com a seguinte declaração de voto)

«Voto de vencida:
Com todo o respeito pela posição que mereceu vencimento, entendemos que o conteúdo do documento apresentado como “declaração escrita de despedimento” e, em particular, a expressão utilizada «não ser do nosso interesse continuar com o contrato de trabalho existente entre nós» não sugere a ideia de estar em causa um despedimento por extinção do posto de trabalho.
Na nossa perspectiva, qualquer declaratário diligente e normal, colocado na posição do real declaratário ficaria sem saber a razão do declarado desinteresse pessoal do empregador pela manutenção do contrato de trabalho.
Ora, a acção especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento aplica-se apenas aos casos em que o trabalhador vem impugnar uma decisão de despedimento que lhe tenha sido comunicada por escrito e que seja fundada em despedimento disciplinar, inadaptação ou extinção do posto de trabalho. Em todos os demais casos de impugnação de despedimento que não se enquadrem nesta previsão, o meio processual próprio é o processo declarativo comum, regulado nos artigos 54.º e seguintes do Código de Processo do Trabalho.
Pelo exposto, teríamos confirmado a verificação de erro na forma de processo e, em consequência, julgado o recurso improcedente.
(Paula do Paço)»

__________________________________________________
[1] Albino Mendes Baptista, “A nova acção de impugnação do despedimento e a revisão do Código de Processo do Trabalho”, Coimbra Editora, Reimpressão, págs 73 e 74.
Na jurisprudência desta Relação de Évora, vide os Acórdãos de 20.03.2012 (Proc. 251/11.2TTEVR.E1), de 07.02.2013 (Proc. 288/12.4TTSTB.E1), de 20.06.2013 (Proc. 57/13.4TTFAR.E1), de 11.07.2013 (Proc. 294/12.9TTBJA.E1), de 12.09.2018 (Proc. 469/17.4T8TMR.E1), de 14.07.2020 (Proc. 661/20.4T8FAR.E1), todos publicados em www.dgsi.pt.
[2] José Eusébio Almeida, mencionado no e-book do CEJ sobre “A acção de impugnação da regularidade e licitude do despedimento”, pág. 36.
[3] In Cessação do Contrato de Trabalho, Principia, 4.ª ed., 2017, págs. 441/442.
[4] Loc. cit., pág. 285.
[5] Proferidos, respectivamente, nos Procs. 553/14.6TTBRG.P1 e 556/14.0TTBRG.P1, ambos publicados em www.dgsi.pt.