Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
436/12.4TATVR.E1
Relator: ANA BARATA DE BRITO
Descritores: DESOBEDIÊNCIA
CIRCULAÇÃO AUTOMÓVEL
REPARAÇÃO AUTOMÓVEL
Data do Acordão: 02/03/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Legislação Nacional: 348° Nº 2 DO CÓDIGO PENAL
Sumário: 1. O crime de desobediência do artigo 348° nº 2 do Código Penal pressupõe um desrespeito a uma ordem comunicada por autoridade, a qual traduz a imposição de um comportamento que tem de ser expresso, claro e compreendido pelo destinatário concreto, não relevando a intenção que terá eventualmente norteado o funcionário no momento em que emitiu a ordem. 3. “Utilizar”, quando referido a veículos, adquire na linguagem social, para a pessoa média, o sentido de “circular” ou “fazer-se transportar” nele.
4. Não comete o crime de desobediência o agente que procede a reparações num veículo, após ter sido advertido de que não o podia “utilizar”; proceder a reparação não consubstancia, concretamente, um faltar à obediência devida à ordem de proibir utilizar um veículo automóvel.
Decisão Texto Integral:

Processo nº 436/12.4TATVR.E1

Acordam na Secção Criminal:
1. No Processo nº 436/12.4TATVR do Tribunal Judicial de Tavira foi proferida sentença em que se decidiu condenar AMFSAP como autor de um crime de desobediência do artigo 348°, nº 1/ b) do Código Penal, na pena de 70 dias de multa à taxa diária de € 20, o que perfaz o total de € 1.400,00.
Inconformado com o decidido, recorreu o arguido, concluindo:
“77. Os concretos pontos de facto, que o recorrente considera incorrectamente julgado (art 412.º n.º 3 al. a) CPP) são os constantes do ponto 5 da matéria de facto provada e da alínea b), dos factos não provados, que são os seguintes:
“5) Agiu de forma livre, voluntária e consciente, ciente de que a sua conduta era proibida e punida por lei.” - este provado e deveria ser julgado não provado.
“b) O arguido tenha agido na convicção de que ao mandar reparar ao veículo mencionado em 1) não estaria a violar a ordem de não utilização do mesmo que lhe havia sido dirigida.” Este julgado não provado e deveria ter sido julgado provado.
78. Aquele facto considerado provado, ou seja, a consciência de que a sua conduta era proibida por lei, face à ordem recebida, por escrito, foi incorrectamente julgado pelo tribunal a quo, assim como o foi o facto não provado constante da línea b), porquanto os meios de prova produzidos impõem a resposta negativa àquele e positiva a este, isto é, que o arguido não agiu com a consciência de que estava a desobedecer à ordem recebida ao mandar reparar o velocímetro do veículo e antes agiu na convicção de que ao mandar reparar o veículo não estaria a violar a ordem de não utilização do mesmo que lhe havia sido dirigida no auto de apreensão.
79. Os meios de prova que impõe resposta negativa são os seguintes: certidão de fls 2 a 32, especialmente o auto de apreensão de fls 5, o testemunho do guarda JC e também o testemunho de LB, que serviram de fundamento à decisão sobre essa matéria de facto, sendo que o depoimento de LC , que cumpriu ordens do arguido se nos afigura irrelevante.
80. Na certidão de fls 2 a 33, da qual, aliás, a motivação da douta sentença apenas destaca o auto de apreensão de fls 5, e 6, este, muito claramente, proíbe ao arguido apenas a utilização do veículo. Na verdade,
81. O auto de apreensão de fls 5 e 6, onde se contém a ordem, escrita, dada ao arguido é, bem sublinhada a negrito nesse auto, que se reproduz, do seguinte teor: “Fica intimado de que a sua “utilização” o fará incorrer num crime de “desobediência” e a “alienação” num crime de “furto.”
82. Face a esta ordem escrita – para não utilizar o veículo, não poderia o arguido ter a consciência de que a reparação do veículo lhe era proibida e o fazia incorrer no crime de desobediência, pelo que, este meio de prova, por si só, impunha que se julgasse não provado o ponto 5) dos factos provados e provado o da alínea b) dos factos não provados.
83. Se a ordem tivesse sido verbal, ela teria necessariamente de ser complementada por prova testemunhal em audiência de julgamento, onde haveria que demonstrar que a ordem havia sido dada e o seu teor, caso o arguido a impugnasse, mas perante uma ordem escrita, assinada pelo agente de autoridade e pelo arguido, no auto de apreensão de fls. 5 e 6, ela não carece de ser provada, uma vez que o arguido aceitou ter assinado o documento que a contem. Note-se, porém, que
84. Quanto a este ponto, no final da sua 3ª página, a fls. 142, a douta sentença refere-se a uma conversa, referindo que o arguido alude a “tal conversa”, entendendo-se que se quer referir à conversa com o agente da autoridade aquando da lavra do auto de apreensão, conversa essa a que a sentença se volta a referir como no final da sua 4ª pag., a fls 143.
85. Escreve-se a fls 142, na douta sentença recorrida: “E apesar de aludir a tal conversa sempre de uma forma esquiva, dizendo não se recordar concretamente dos seus termos, não deixa de admitir de que foi avisado de que não podia utilizar o veículo apreendido – conforme resulta claramente do auto de apreensão a fls 5, auto que certamente o arguido leu e entendeu.” – o sublinhado é nosso.
86. Realça-se que a douta sentença parece querer dizer que para além da proibição que ficou consignada, por escrito, no auto de apreensão – a de utilização do veículo – terá havido uma conversa com o agente da autoridade que assinou o auto com o arguido, conversa na qual se falou em algo mais, mas o certo é que a própria sentença reconduz o aviso recebido pelo arguido à não utilização, e apenas a isso, ou seja, ao consignado por escrito no auto, pelo que não se pode valorar a conversa face ao que ficou escrito.
87. Na ordem entregue ao arguido, assinada pelo guarda JC e pelo arguido, não se escreveu a proibição de reparação. Só se escreveu a de utilização. A ordem por escrito foi de não utilização. Não foi de não reparação.
88. Realça-se que o contrário se refere no relatório final do processo 347/10.8TATVR, a fls 23 dos presentes autos, na dita certidão de fls 2 a 33, onde se lê, no 2º parágrafo: “Na data da apreensão foi notificado o representante da empresa (fls 200 e 201) que o veículo se encontrava apreendido e intimado que a utilização ou reparação do veículo o faria incorrer no crime de desobediência, …” – o sublinhado é nosso.
89. Note-se que, como se vê de fls 5 e 6 as folhas 200 e 201 desta passagem que se transcreveu são exactamente o auto de apreensão de fls 5 e 6, como se vê dessas folhas onde constam, riscadas, as folhas 200 e 201, do qual apenas consta a ordem para não utilização, mas não a de não reparação, ao contrário do que ali consignou.
90. E note-se mais que quem subscreve esse relatório donde consta essa passagem é a testemunha JFC , exactamente aquele em que a douta sentença se baseia para concluir que a ordem escrita de não utilização incluía a verbal de não reparação, quando alude à conversa entre o arguido e esta testemunha aquando da assinatura do dito auto de fls 5 e 6. Porém,
91. Quando, para a além desta passagem do relatório final, contraditória com o decidido quanto aos dois pontos da matéria de facto em causa, analisamos o depoimento do JFC verificamos que esse depoimento impõe uma decisão diversa da que se impugna e em conformidade com alteração que se pede. Por outro lado,
92. A referência à proibição de reparação do velocímetro nunca foi feita directa e claramente pelo guarda Joel como se vê das seguintes passagens do seu depoimento ao minuto 5:47 e sgts do seu depoimento de 30/4/2014, a instâncias do Meritíssimo Juiz: ”Lembra-se de ter dito que ele não podia reparar?”JC : “ Certamente não devo ter falado nisso porque o que ali estava em causa é a reparação do velocímetro não se verificar…”
93. Ao minuto 7:50 e segts do mesmo dia: Instância do advogado do arguido: “Disse-lhe, para além do que está escrito se utilizasse incorria no crime de desobediência, disse-lhe que se reparasse cometeria, a reparação o faria incorrer em crime de desobediência?” Resposta da testemunha TC : “ a cominação da desobediência foi efetivada no momento da assinatura …”
94. Também no seu depoimento de 12-04-2014, nos seguintes passos, a mesma testemunha JC evidencia a mesma imprecisão, falta de clareza de qualquer outra ordem (verbal que não escrita) para além da ordem escrita de não utilização, como se pode ver nos seguintes passos do seu depoimento desse dia: Ao minuto 6:52 e segts, a instâncias do Mmº Juiz: “O senhor disse, o senhor não pode utilizar ou lembra-se mesmo e senhor não pode alterar nada neste veículo ou bastou-se com não pode utilizar?” Resposta da testemunha Joel: “ Eu ainda não poderia revelar em concreto o que se estava a passar em relação ao velocímetro, porque ainda estava Ana questão de estudo do processo, e então uma das diligências que quis realizar para assegurara o meio de prova foi a apreensão do veículo.” E ao minuto 7:42, a instâncias do advogado do arguido: “Não revelou efectivamente o que é, porque é que o veículo estava a ser apreendido, qual o objeto da investigação? Resposta de JC : “ Não me recordo se realmente em concreto falei em relação ao velocímetro e eu poderia dizer que sim, mas não vou dizer.”
95. Estes passos do depoimento do guarda também impõem, por si só, para a além do teor da ordem escrita, decisão de não provado do ponto 5) dos factos provados e de provado do facto da alínea b) dos não provados.
96. Acresce que a própria sentença (a fls 143) vem revelar que não se tendo provado que o veículo tivesse circulado, isto é, que o arguido tivesse desrespeitado a ordem de não utilizar o veículo, no sentido comum, de não circulação, importaria enquadrar o seu comportamento numa outra ordem, para além do sentido literal da ordem escrita constante do auto de fls 5 e 6 , para que pudesse haver desobediência, pois doutro modo não se entenderia porque é que haveria necessidade de uma alteração não substancial de factos, se, para fundamentar a condenação, já houvesse factos bastantes. Seria um ato inútil. Na verdade,
97. Após a realização da audiência de julgamento, quando estava a anunciada a leitura da sentença, no dia 18 de Março de 2014, como se vê da respectiva acta, a fls 121, o meritíssimo juiz proferiu o seguinte despacho:
“Produzida a prova na audiência de discussão e julgamento, resultam indiciados outros factos que não constavam da acusação, os quais se reconduzem ao seguinte (elementos sublinhados em seguida): -Aquando da referida apreensão, o arguido foi nomeado fiel depositário do mencionado veículo, a quem foi entregue, tendo sido expressa e pessoalmente advertido que não o podia utilizar nem alterar, enquanto se encontrasse apreendido e à sua guarda, e intimado de que a sua utilização ou alteração o faria incorrer no crime de desobediência. - Posteriormente à apreensão, o arguido, pese embora a advertência expressa de que não podia alterar ou utilizar o veículo apreendido, procedeu à reparação do velocímetro do mesmo, em data não concretamente apurada mas situada entre o dia 3 de Novembro de 2010 e o dia 3 de Dezembro de 2010. - Não obstante saber que aquele veículo tinha sido apreendido e que assim se mantinha e, bem assim, que o mesmo lhe foi entregue na qualidade de fiel depositário, com a obrigação de não o utilizar ou alterar, o arguido usou e alterou, da forma descrita, o veículo. Traduzindo estes novos factos uma alteração não substancial dos factos face àqueles que vinham inicialmente imputados ao arguido, notifique-se o mesmo através do seu defensor, nos termos e para os efeitos previstos no art.358º, nº1 do CPP.”
98. E referindo-se a este despacho, a douta sentença, atendendo à prova produzida, exara o seguinte, a fls 143 a 144:
“ É certo que levou-se a cabo uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, referindo-se que o arguido havia sido advertido que não poderia “alterar” o veículo, sob pena da prática de um crime.
A alteração levada a cabo estribou-se na circunstância do militar da GNR inquirido ter mencionado que comunicou verbalmente a proibição da mencionada alteração, em acréscimo àquilo que constava já do auto de apreensão – que se reconduziria a um formulário base.
Porém, se tal comunicação, aquando da primeira inquirição do militar da GNR, parecia ter sido claramente feita, com a utilização e verbalização do vocabulário “alterar” na conversa dirigida ao arguido, já na segunda inquirição levada a cabo viu o Tribunal que a memória concreta do militar da GNR não se pode ter como suficientemente segura para que possa atestar a comunicação do que quer que seja apara além do vertido no auto de apreensão a fls.5.
Sabemos, porque tal auto foi entregue ao mesmo, que o arguido teve conhecimento do vertido a fls.5 dos autos. Mas, no mais, não podemos ter como certa qualquer outra proibição comunicada ou cominação realizada, atenta a forma confusa como o militar da GNR aludiu à conversa tida com o arguido.
Assim, os factos aditados pela alteração não substancial dos factos acabam por ser não provados.”
99. Daqui resulta, com clareza, que não foi dado pelo guarda JC , ordem verbal para não alterar o velocímetro.
100. Retornando ao ponto crucial deste caso, que é o de saber se a actividade de locomoção, ou de circulação do veiculo é ou não, no caso concreto destes autos, a única que se pode reconduzir à utilização ou se a utilização proibida vai para além dessa circulação, como entende a douta sentença, face à ordem concreta recebida pelo arguido e às circunstancias em que a mesma lhe foi transmitida, veja-se o que a testemunha JC , que foi quem transmitiu a ordem ao arguido disse no seu depoimento, prestado no dia 12 de Março de 2014, nos passos atrás referidos – v. gravação áudio, com início no minuto 11:51:34 e fim às 12:00:39, seguintes passagens: minutos 6:52, 7:42, 8:05.
101. Daqui se vê e se encontra a explicação para que o auto de apreensão, de fls 5 e 6, contendo a ordem de não utilização não contenha a ordem de não reparação.
102. Além disso o guarda Joel refere também que se tratava de um modelo, de uma choca.
103. Mas o modelo, a choca, altera-se e adapta-se a cada situação para que a ordem fique clara e inequívoca e o cidadão não fique na dúvida.
104. A mesma testemunha refere mais, nas passagens supra, que não podia dizer que o problema estava no velocímetro, que estava em curso uma investigação sobre o velocímetro e, por isso, não transmitiu tal ao arguido.
105. Acresce que não foi feita qualquer cominação verbal correspondente à não reparação, nem, aliás, a douta sentença refere que tenha sido, como, aliás, o guarda JCesclareceu que efectivamente não foi, como se pode ouvir ao minuto 5:47 e sgts do seu depoimento de 30/4/2014, a instâncias do Meritíssimo Juiz: ”Lembra-se de ter dito que ele não podia reparar?”JC : “ Certamente não devo ter falado nisso porque o que ali estava em causa é a reparação do velocímetro não se verificar…”Ao minuto 7:50 e segts do mesmo dia: Instância do advogado do arguido: “Disse-lhe, para além do que está escrito se utilizasse incorria no crime de desobediência, disse-lhe que se reparasse cometeria, a reparação o faria incorrer em crime de desobediência?”Resposta da testemunha TC : “ a cominação da desobediência foi efectivada no momento da assinatura …”
106. Também no seu depoimento de 12-04-2014, nos seguintes passos, a mesma testemunha JCevidencia a mesma imprecisão, falta de clareza de qualquer outra ordem (verbal que não escrita) para além da ordem escrita de não utilização, como se pode ver nos seguintes passos do seu depoimento desse dia: Ao minuto 6:52 e segts, a instâncias do Mmº Juiz: “O senhor disse, o senhor não pode utilizar ou lembra-se mesmo e senhor não pode alterar nada neste veículo ou bastou-se com não pode utilizar?” Resposta da testemunha Joel: “ Eu ainda não poderia revelar em concreto o que se estava a passar em relação ao velocímetro, porque ainda estava Ana questão de estudo do processo, e então uma das diligências que quis realizar para assegurara o meio de prova foi a apreensão do veículo.”E ao minuto 7:42, a instâncias do advogado do arguido: “Não revelou efetivamente o que é, porque é que o veículo estava a ser apreendido, qual o objeto da investigação? Resposta de JC : “ Não me recordo se realmente em concreto falei em relação ao velocímetro e eu poderia dizer que sim, mas não vou dizer.”
107. O depoimento de LB em nada releva, a nosso ver para a decisão da matéria de facto, pois ele se limitou a cumprir a ordem de revisão, na qual se incluiu a ligação do cabo do velocímetro (que foi no que consistiu a reparação) e a reparar uma correia e o sino.
108.Perante tamanha imprecisão, falta de clareza em relação à não reparação do velocímetro, como poderia o arguido ficar consciente de que a ordem escrita de não utilização era para não circular com o veículo e também para não o reparar?
109. As exigências de precisão e clareza da lei penal, sobretudo perante uma norma em aberto, não se compadecem com a incriminação do arguido que respeitou a proibição de não circular com o veículo, que indubitavelmente, estava contida na proibição de não utilização.
110. Daqui resulta que ao mandar reparar o velocímetro, o arguido não podia ter consciência de que estava a praticar um ato proibido e a incorrer num crime de desobediência, ao contrário do julgado provado no ponto 5) e que, pelo contrário,
111. Ao mandar fazer a revisão do veículo, durante a qual foi reparado o sino, uma correia e ligado o cabo do velocímetro, o arguido agiu na convicção de que não estaria a violar a ordem de não utilização do mesmo que lhe havia sido dirigida.
112. Ao julgar provado o ponto 5 dos factos provados e não provado a alínea b) dos factos não provados a, aliás, douta sentença julgou incorrectamente essa matéria de facto face à prova produzida, nomeadamente os meios concretos de prova que ficaram apontados.
Quanto à matéria de direito:
113. Alterada a matéria de facto, dessa alteração resulta a falta de qualquer intenção criminosa do arguido, do dolo e, portanto, resulta a sua absolvição.
114. Quando assim se não entenda, figurando, por hipótese, que não fossem alterados os dois pontos da matéria de facto como se pede, mesmo nessa hipótese a, aliás, douta sentença deverá ser revogada, porquanto:
115. Desde logo, porque não houve comunicação regular da ordem de não reparação, por cuja desobediência o arguido foi condenado, pois não consta do auto de apreensão, não lhe foi dada por escrito e foi nesse auto que foi feita a cominação da desobediência e não foi feita qualquer outra cominação verbal para além da escrita, nem a douta sentença refere que tenha sido, como o guarda JC esclareceu que efectivamente não foi.
116. O arguido foi condenado porque procedeu à reparação do velocímetro do veículo que se mantinha apreendido e não porque o tivesse utilizado na sua função de circular na via pública.
117. Utilizar o veículo é servir-se dele para transitar na via pública, o que não sucedeu, nem o arguido foi condenado por tal.
118. Recebeu uma ordem escrita para que não utilizasse o veículo, significando utilizar circular com ele, e não para que não o reparasse, que não foi consignada no auto de fls 5 e 6.
119. Como escreve Francisco Borges, na sua dissertação de mestrado “ O crime de Desobediência à luz da Constituição”, Almedina, 2011, p.60, “ Comunicação regular da ordem, “Exige ainda o art.348.º, n.º1, que a ordem seja “regularmente comunicada”. Recorrendo novamente à teoria do direito administrativo, se no elemento anteriormente explanado estava em causa a validade da ordem, neste momento é exigida a sua eficácia. Só com a comunicação regular pode o acto começar a produzir efeitos, pois só a partir desse momento é garantida ao agente do crime a possibilidade real de tomada de consciência da ilicitude do seu comportamento, dependente do conhecimento dos elementos do facto típico.”
120. Nada impedia que a ordem tivesse sido clara, no sentido de que não podia utilizar, ou seja, circular com ele na via pública e, além disso, não podia reparar o velocímetro ou não fazer qualquer reparação no veículo.
121. Tanto mais que sendo o arguido fiel depositário do veículo competia-lhe administrá-lo com diligência e zelo de um bom pai de família, de acordo com o disposto no então em vigor art.843º do CPCivil 95/96.
122. No mesmo sentido da regularidade da ordem, pode ler-se no Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo III, Coimbra Editora, 2001, em anotação (§18) ao art. 348º, p.356/7: “A comunicação – que o artigo exige que seja regular – há-de começar por constituir autêntica comunicação. Isto é: não basta que o meio de fazer chegar a ordem ao conhecimento do seu destinatário se mostre (de acordo com a lei) formalmente irrepreensível; torna-se necessário que aquele se tenha inteirado, de facto, do seu conteúdo.”.
123. Assim sendo, perante a ordem escrita constante do auto de apreensão, de não utilizar o veículo, por muita conversa que tenha havido entre o agente da autoridade e o arguido, não se lhe pode exigir que tenha entendido que a ordem não era só para não utilizar, mas também para não alterar ou não reparar.
124. Com efeito, o que lhe foi notificado e que consta do auto de apreensão, assinado pelo agente de autoridade e pelo arguido é que não podia utilizar ou alienar o veículo apreendido.
125. O que deve fazer fé em juízo, neste caso, é o auto de apreensão, donde consta a ordem em causa e esse auto encontra-se devidamente assinado por ambos, pelo arguido e pelo agente da autoridade, e foi o que o arguido entendeu como o que lhe tinha sido transmitido.
126. Aliás, e de acordo com o velho brocardo latino, quod non est in actiis non est in mundo, o que não se acha no processo e conforme a disciplina processual, não existe.
127. Nesse auto, o arguido recebeu duas ordens, às quais passou a dever obediência, criminalmente garantida, e não apenas uma: a de não utilizar e a de não alienar o veículo que lhe foi confiado como fiel depositário e não recebeu uma terceira ordem de não alterar ou de não reparar esse veículo.
128. Mesmo que o agente da autoridade viesse dizer agora e sem explicar satisfatoriamente porque a omitiu no auto (não bastando dizer que a culpada foi a choca ou o modelo), que quis englobar na ordem a não alteração ou a não reparação, não pode ser relevante para efeitos criminais, ou de integração do crime, face ao teor do documento escrito de fls 5 e 6 (auto de apreensão do veículo, de 2/11/2010) cujas duas ordens serão as únicas que poderão relevar para efeitos criminais.
129. É que mesmo que se considerasse que a ordem de não reparação lhe tivesse sido transmitida, e já vimos que não, o certo é que o arguido recebeu um documento onde a mesma ordem não consta, pelo que não lhe era exigível que ficasse a dever obediência a uma ordem para um comportamento diferente daquele que foi consignado na notificação que lhe foi efetuada constante do auto de apreensão.
130. Tendo recebido uma notificação escrita com uma ordem, ou, aliás, duas, a ordem relevante para efeitos criminais não pode ir além do que ficou escrito, pois a ordem foi escrita, não foi verbal e na ordem escrita não pode meter-se o que não está escrito, sob pena de violação da própria CRP, nomeadamente, do disposto no seu art. 29º, nº1.
131. Só se a ordem tivesse sido verbal se poderia discutir ou clarificar qual tinha sido essa ordem, porque verba volant, scripta manent (“As palavras voam, os escritos permanecem. Provérbio de grande actualidade que aconselha prudência em compromissos e na assinatura de contratos bilaterais” – in Breviário Latim Português, de Virgílio Queirós e outra, Quid Juris, 2005, ao que nós acrescentaríamos: e muito mais nas ordens com relevância criminal).
132. Na verdade, e de acordo com a ratio do dispositivo do art. 348º do CPenal, se a autoridade quiser ser respeitada numa ordem sua, se quiser ter direito, criminalmente protegido, a esse respeito, à obediência, que o dito art. 348º visa garantir, tem que dar a ordem com clareza e sem equívocos, não pode dar ao mesmo tempo uma ordem por escrito e outra verbalmente e querer ser respeitada igualmente nas duas, quando, aliás, até são diferentes, pois não utilizar não é o mesmo que não reparar e o cidadão não pode ficar refém de ordens equívocas, não pode ficar com dúvidas e resolvê-las por si pois isso representaria a maior insegurança jurídica que não se pode admitir num Estado de Direito, de que o Tribunal é o primeiro garante.
133. De todo o exposto se conclui que, ainda que se tenha considerado indiciada uma ordem de não reparação, não se deverá considerar admissível tal alteração ou complementação da ordem escrita de não utilização, ou seja, que tivesse havido ordem diversa daquela que foi dada por escrito e que consta do auto de apreensão do veículo, pois não se pode considerar, com relevância penal, que lhe foi dada uma ordem que não consta do documento que assinou, porque quod non est in actiis non est in mundo.
134. Repete-se que reparar também não é utilizar. Utilizar é tornar útil, usar uma coisa para a função própria, utilizar um veículo é usá-lo na sua função própria, que é andar com ele.
135. E o conceito que é transmitido ao destinatário de uma ordem tem que ser o conceito comum, a lei criminal e as ordens que a integram têm que ser claras, e as únicas ordens legítimas que foram dadas ao arguido foram as de não utilizar e não alienar o veículo, não a de não alterar e muito menos a de não repará-lo.
136. A ordem, sob cominação de desobediência, que o arguido recebeu da autoridade, prevista no art. 348, 1, b), do CPenal, foi a de não utilizar, nem alienar o veículo. Não foi a de não reparar. Foi a consignada no auto de apreensão.
137. Ao condenar o arguido a, aliás, douta sentença recorrida, fez incorrecta interpretação e aplicação do dispositivo art. 348º do Código Penal.”
O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência e concluindo:
“1. A decisão recorrida não merece reparos; 2. A matéria de facto foi correctamente julgada; 3. E, nessa medida, praticou o recorrente, um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348°, n. o 1, alínea b), do Código Penal.”
Neste Tribunal, a Sra. Procuradora-geral Adjunta acompanhou a posição do Ministério Público em 1ª instância.
Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.

2. Na sentença consideraram-se os seguintes factos provados:
“I) No dia 3 de Novembro de 2010, a GNR de Albufeira procedeu à apreensão do comboio turístico de matrícula 18-54-SB, pertença de PR, Actividades Turísticas, Lda., à ordem dos autos de inquérito n." 347/10.8TATVR, a correr termos neste Tribunal da comarca de Tavira.
2) Aquando da referida apreensão, o arguido foi nomeado fiel depositário do mencionado veículo, a quem foi entregue, tendo sido expressa e pessoalmente advertido que não o podia utilizar, enquanto se encontrasse apreendido e à sua guarda, e intimado de que a sua utilização o faria incorrer no crime de desobediência.
3) Posteriormente à apreensão, o arguido, pese embora a advertência expressa de que não podia utilizar o veículo apreendido, procedeu à reparação do velocímetro do mesmo, em data não concretamente apurada mas situada entre o dia 3 de Novembro de 2010 e o dia 3 de Dezembro de 2010.
4) Não obstante saber que aquele veículo tinha sido apreendido e que assim se mantinha e, bem assim, que o mesmo lhe foi entregue na qualidade de fiel depositário, com a obrigação de o não utilizar, o arguido usou, da forma descrita, o veículo.
5) Agiu de forma livre, voluntária e consciente, ciente de que a sua conduta era proibida e punida por lei.
6) O arguido não tem antecedentes criminais.
7) O arguido é empresário, sendo Director Geral de empreendimentos sitos em PR e PER, auferindo cerca de € 5.000,00 líquidos mensais.
8) Cerca de € 3.000,00 dessa quantia mensal são canalizados para pagamento de encargos financeiros assumidos no âmbito da sua actividade profissional.
9) Reside com companheira em casa própria, pela qual paga € 800,00 mensais ao banco para amortização do empréstimo.
10) A sua companheira é professora auferindo cerca de € 1.700,00 mensais.
II) Tem três filhas, sendo que apenas a mais nova depende ainda economicamente do mesmo.
12) É licenciado em Psicologia.
Foi consignado como factos não provados.
a)(…)

Na sentença, motivou-se assim a matéria de facto:
“(…).”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (AFJ de 19.10.95), as questões a apreciar são a impugnação da matéria de facto e o erro de subsunção.
Da impugnação da matéria de facto e do erro de subsunção:
Em princípio e por regra, a questão do “erro de facto” precede a do “erro de direito”. O erro de subsunção assentará num incorrecto enquadramento jurídico de factos, o que pressupõe a estabilização prévia do quadro factual a subsumir juridicamente.
Assim, à semelhança do que sucede com a elaboração da sentença, a decisão do recurso dela interposto deve tratar a questão de facto com precedência sobre a questão de direito.
No caso presente, no entanto, as conclusões do recorrente evidenciam que o erro de facto resultará, não de uma estrita ponderação, menos eficiente, das provas produzidas em audiência, mas, sobretudo, de um juízo de facto contaminado também por uma determinada interpretação/compreensão da norma típica aplicável.
Assim, a precedência-regra do tratamento da questão de facto em relação à questão de direito não dispensará agora em recurso, um tratamento conjunto das duas questões, que aqui se entrecruzam num “insolúvel círculo lógico” (utilizando a expressão de Castanheira Neves).
Independentemente da maior ou menor completude da concreta descrição dos factos relativos a um dolo “de desobediência”, na sentença – a isto voltaremos -, o recorrente procede ao cumprimento das especificações exigidas pelo art. 412º, nº 3 do Código de Processo Penal indicando como pontos de facto o descrito em 5 da matéria de facto provada e a alínea b) dos factos não provados, que são os seguintes:
- “5) (O arguido) agiu de forma livre, voluntária e consciente, ciente de que a sua conduta era proibida e punida por lei.”
- “b) O arguido tenha agido na convicção de que ao mandar reparar ao veículo mencionado em 1) não estaria a violar a ordem de não utilização do mesmo que lhe havia sido dirigida.”
As concretas provas especificadas foram o auto de apreensão de fls 5, o testemunho do guarda JC e o testemunho de LB.
Discorre, então, o recorrente que o auto de apreensão de fls 5, e 6, contém a ordem escrita dada ao arguido, sublinhada a negrito nesse auto, que é do seguinte teor: “Fica intimado de que a sua “utilização” o fará incorrer num crime de “desobediência” e a “alienação” num crime de “furto.”. E que, face a esta ordem escrita – de não utilizar o veículo –, não poderia o arguido ter a consciência de que uma reparação do veículo lhe era proibida e que o fazia incorrer no crime de desobediência, pelo que, este meio de prova, por si só, imporia que se julgasse não provado o ponto 5) dos factos provados e provado o da alínea b) dos factos não provados. Acrescenta que se a ordem tivesse sido verbal, ela teria necessariamente de ser comprovada em julgamento por prova testemunhal, demonstrativa de que tal ordem havia sido dada e do seu real teor, caso o arguido a impugnasse.
O recurso da matéria de facto circunscreve-se, pois, aos factos do tipo subjectivo de crime e aos factos da (falta de) consciência da ilicitude.
Os factos que interessam ao tipo objectivo, na ausência de vício do art. 410º do Código de Processo Penal, são de considerar estabilizados.
Assim, ficou provado que “o arguido foi expressa e pessoalmente advertido de que não podia utilizar” o veículo. E, sempre de acordo com a sentença, nada mais se demonstrou quanto ao teor da ordem efectivamente comunicada. No reverso, resultou como não provado que “o arguido tenha ainda sido expressa e pessoalmente advertido que não podia alterar”o veículo.
O tribunal justificou depois a convicção de “provado” em relação a determinados factos – os de que o arguido teria actuado de forma deliberada, livre e consciente e sabendo que o seu comportamento era proibido e punido por lei – ou seja, considerou como provados os factos do tipo subjectivo e da consciência da ilicitude, retirando-os dos factos provados relativos ao tipo objectivo. Mas fê-lo à luz de critérios de exigência típica que não se sufragam.
Note-se, a título de parênteses, que nos factos provados não se menciona que o arguido tenha actuado querendo e sabendo que faltava ao respeito à ordem a que devia obediência, pelo que sempre seria discutível a suficiência da descrição factual do dolo, adoptada na acusação e seguida na sentença.
Da sentença resulta que, na interpretação (semântica) do tribunal, o vocábulo “utilizar”, quando referido a um veículo, abrangeria também o sentido de “proceder a reparações” (no veículo).
Diz-se no exame crítico da prova: “É certo que quando se fala em utilizar um veículo, o que vem em primeiro lugar à mente é uma utilização para locomoção, para circular com o mesmo, o que não foi o caso na situação em apreço. Mas tal tipo de "actividade" não é a única que se reconduz à mencionada utilização. Assim, a reparação dum velocímetro incluído no veículo, com inerentes alterações do mesmo, sendo um acto decorrente da sua fruição, e que não era essencial para a manutenção do mesmo, não deixa de ser uma utilização. Impõe um contacto físico com os seus elementos, um uso do mesmo. Pelo que ao ser advertido por escrito (vide fls.5) de que não podia utilizar o veículo aqui em causa, poderia e deveria o arguido compreender, como acreditamos que compreendeu efectivamente, como o faria qualquer outro cidadão na sua posição, que tal incluiria uma proibição de reparação de um velocímetro defeituoso.”
Os enunciados fácticos referentes ao dolo e à consciência da ilicitude surgem na sentença como “provados”, na decorrência de um juízo conclusivo retirado de determinada interpretação de sentido dos factos do tipo objectivo que, adiantamos, alarga o sentido semântico do vocábulo “utilização” de um modo não consentido pela norma incriminadora (mesmo que o seja pela língua portuguesa).


Os recorrentes centraram a impugnação n(a prova d)os factos relativos à consciência da ilicitude, mas também contestaram (em parte) os factos relativos ao dolo - o saber e o querer os factos do tipo objectivo - que, como se sabe, não se confundem com os que respeitam à consciência da ilicitude (embora a falta desta exclua o dolo).
Os factos que integram o dolo, os actos interiores ou internos, por respeitarem à vida psíquica raramente se provam directamente. Na ausência de confissão, em que o agente reconhece ter sabido e querido os factos do tipo objectivo, a prova do dolo costuma fazer-se por ilações, a partir de indícios, através de deduções retiráveis de um comportamento exterior e visível do agente. O julgador decidirá sobre a factualidade apreciando se o agente agiu internamente da forma como o terá revelado externamente. Reportando-se aos factos do tipo objectivo, como conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo, é natural e normal que os factos integrantes do dolo possam resultar daqueles.
Contudo, não sucede assim no caso presente. O exame crítico da prova não justifica adequadamente os resultados de facto a que aqui (no que respeita ao ponto de facto impugnado) se chegou na sentença.
Na verdade, dos factos “objectivos” que o tribunal deu como provados e explicou na motivação, não se retiram os factos do tipo subjectivo. Eles não são dedutíveis daqueles, como sua consequência lógica.
Desde logo, porque se deve considerar que os próprios factos “objectivos” provados são insuficientes ao preenchimento do tipo objectivo do crime de desobediência.
Na verdade, o artigo 348° do Código Penal, na modalidade que agora interessa (do nº 2), pune quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, que faça a correspondente cominação.
O tipo objectivo pressupõe um desrespeito à ordem comunicada, ou seja, uma conduta violadora ou não acatadora de uma concreta ordem emanada da autoridade.
Trata-se, no caso, não de uma norma de conduta penalmente relevante resultante de lei geral e abstracta anterior à data da prática do facto (como sucede nos casos do nº 1 do art. 348º), mas em que “a norma de conduta resulta de um acto de vontade da autoridade ou do funcionário, contemporâneo da actuação do agente(C. Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Org. Figueiredo Dias, III, p.351).
O tipo prevê assim (no nº 2 do art. 348º que é o que interessa no caso presente) uma modalidade de crime que leva alguns autores a questionar a sua constitucionalidade, por desrespeitar o princípio da legalidade, na medida em que conteria “como elemento típico uma decisão a ser tomada em cada caso concreto por um agente da administração” (C. Líbano Monteiro, loc. cit.).
Independentemente das dúvidas de constitucionalidade que se possam suscitar, o concreto teor da ordem e a sua comunicação, aquilo que é concretamente comunicado, releva sobremaneira no processo de ponderação prática sobre a tipicidade de uma conduta de determinado infractor.
E sendo a constitucionalidade da norma já de si duvidosa, se queremos assegurá-la, deve haver um especial cuidado na determinação da tipicidade por referência a uma específica ordem da autoridade.
A ordem “consubstancia uma norma de conduta concreta dirigida a alguém” (C. Líbano Monteiro, loc. cit.) e traduz a imposição de um comportamento que tem, por isso, que ser claro, perceptível para a pessoa-média, e percebido e compreendido pelo seu destinatário concreto.
Resultou provado que “o arguido foi expressa e pessoalmente advertido de que não podia utilizar” o veículo. Nada mais se demonstrou quanto ao teor da ordem realmente comunicada.
No reverso, resultou como não provado que “o arguido tenha ainda sido expressa e pessoalmente advertido que não o podia alterar”.
Por seu turno, como conduta pretensamente (e objectivamente) desrespeitadora provara-se apenas que o arguido procedeu à reparação do velocímetro do veículo.
“Utilizar” significa em linguagem comum usar, fazer uso de, aproveitar-se, tirar vantagem, empregar para ou em determinado fim (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa).
A procura do sentido semântico obriga ainda à avaliação do vocábulo, não isoladamente, mas integrado no enunciado linguístico ou na frase em que se insere.
Utilizar uma caneta, utilizar uma arma ou utilizar uma bicicleta não terá, seguramente, o mesmo significado.
Um veículo (tratando-se aqui de um comboio turístico) é um meio de transporte que se destina a circular na via pública. “Utilizar”, quando referido a veículos, significa assim, em sentido corrente ou comum, circular com ele, fazer-se transportar nele. É este o sentido que o termo adquire na linguagem social, no quotidiano, para a pessoa média.
Acresce que em contexto (de direito) penal, mais precisamente de norma incriminadora, se deve adensar a preocupação com uma atribuição de sentido mais preciso e, no caso, restritivo. A expressão em causa assume concretos contornos de tipicidade. Ela interpenetra o elemento (objectivo) do crime, nos moldes que referimos.
Por tudo se terá de concluir que, no presente caso, soçobra o elemento subjectivo do crime, soçobra a consciência da ilicitude, porque soçobra também, e antecipadamente, o próprio elemento objectivo do tipo. Pois proceder a reparação não consubstancia um faltar à obediência devida à ordem de proibir utilizar.
Acresce que nunca relevaria a eventual intenção (interna) que terá norteado o funcionário ou a autoridade no momento em que emitiu a ordem. Releva, sim, a ordem objectiva e efectivamente emitida e comunicada.
Do depoimento da testemunha (comunicante da ordem), transpareceu em audiência que o objectivo pretendido com a apreensão do veículo seria afinal o de obstar a que o arguido efectuasse as alterações no veículo. Transpareceu também que essa comunicação não lhe chegou a ser transmitida nesses termos (ou seja, do modo próprio) para lhe ocultar que estaria a decorrer uma investigação a eventuais viciações do veículo em causa. É a própria autoridade a reconhecer que a norma de conduta concreta que se pretendia impor com a ordem não integrou, afinal, a ordem efectivamente emitida. A ordem “proibição de efectuar alterações no veículo” não foi objecto de comunicação.
Em face do exposto, os factos constantes do ponto 5. da matéria de facto provada devem passar a integrar os factos não provados, substituindo aqui os que se encontravam descritos na alínea b), os quais são, por sua vez, eliminados da sentença.
Da alteração da matéria de facto agora operada, bem como de tudo o que se expôs, decorrerá a revogação da sentença condenatória, que passa a absolutória.

4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
Julgar procedente o recurso, alterar a matéria de facto da sentença nos moldes expostos, revogar a decisão condenatória, ficando o arguido absolvido.
Sem custas.
Évora, 03.02.2015
(Ana Maria Barata de Brito)
(Maria Leonor Vasconcelos Esteves)