Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1630/17.7T8STB.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: CASO JULGADO
PEDIDO
CAUSA DE PEDIR
LIMITES DO CASO JULGADO
Data do Acordão: 11/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
Para a determinação do “pedido” da ação, designadamente para efeitos de aferição da identidade de pedidos entre duas ações, não é relevante a qualificação jurídica que a parte dá à sua pretensão, mas sim o efeito jurídico- prático que a parte pretende obter com a ação.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
BB interpôs recurso do despacho proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo Central Cível de Setúbal, Juiz 1, o qual julgou procedente a exceção de caso julgado invocada pela Autora CC, Lda. relativamente ao pedido reconvencional deduzido pelo ora recorrente.

A decisão sob recurso, proferida em sede de audiência prévia, tem o seguinte teor:
«[…] Pela reconvinda foi invocada excepção de caso julgado relativamente ao pedido reconvencional.
Cumpre apreciar, o reconvinte alega, em suma, que que quem não cumpre definitivamente o contratado é a A. que injustificadamente não conclui o projeto de urbanização e não apresenta documentos das despesas alegadamente em divida, assistindo ao reconvinte direito a pedir a resolução. Concluindo que deve ser declarada a resolução do contrato de participação e a A. condenada a restituir ao R. € 142.386,78.
A reconvinda alega que o R. já deduziu pedido idêntico na acção com o n.º 1868/15.1T8STB que correu termo na Instância Central Civel de Setubal – J1, tendo sido declarada a improcedência da acção por decisão devidamente transitada em julgado. Existindo identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, o que o reconvinte contesta, porquanto alega que a causa de pedir é diversa.
*
A excepção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil (razões de economia processual), o que implica uma não decisão sobre a nova acção, pressupondo a tríplice identidade de sujeitos, objecto e pedido (Acórdão da Relação de Coimbra, de 28-09-2010, de que foi Relator, o Exmo. Desembargador, Jorge Arcanjo [Proc. n.º 392/09.6 TBCVL.S1, in www.dgsi.pt).
O efeito preclusivo do caso julgado determina a inadmissibilidade de qualquer ulterior indagação sobre a relação material controvertida definida em anterior decisão definitiva.
Ora, in casu estamos perante a existência de excepção de caso julgado porquanto há identidade de sujeitos e de pedido e, bem assim, de causa de pedir, visto que o reconvinte funda a sua pretensão no incumprimento pela A. do contratado – Art.º 580.º e 581.º CPC.
Declara-se, assim, procedente a excepção de caso julgado nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 576.º e 577.º al. i) CPC.
Custas pela instância reconvencional a cargo do reconvinte.»

I.2.
Na presente ação movida pela CC, Lda. contra BB, aquela pediu ao tribunal que:
1) Reconheça o incumprimento definitivo do Réu, por culpa exclusiva deste, no denominado “Contrato de Participação de Desenvolvimento Urbano”;
2) Reconheça que a Autora perdeu o interesse na manutenção do “Contrato de Participação de Desenvolvimento Urbano” celebrado com o Réu;
3) Declare resolvido o “Contrato de Participação de Desenvolvimento Urbano” celebrado entre a Autora e o Réu, em 7 de maio de 2001.
4) Declare a Autora desvinculada das obrigações assumidas no “Contrato de Participação de Desenvolvimento Urbano”, entre outras, de alienar a favor do Réu, ou a quem este indicar, o lote …-A, sito em Almoinha, inscrito na matriz sob o artigo …, freguesia de Sesimbra (castelo) ou qualquer outro imóvel.
5) Declare perdidas a favor da Autora todas as quantias liquidadas pelo Réu a título de comparticipações devidas pela operação urbanística.
Para sustentar os pedidos, a Autora alegou que: a) em 7 de maio de 2001 celebrou com o Réu um contrato apelidado de “Contrato de Participação de Desenvolvimento Urbano”, mediante o qual a Autora se obrigou a proceder ao loteamento de um prédio rústico, composto de terreno para construção urbana, com a área aproximada de 6.120 m2, sito em Almoinha, freguesia do Castelo, concelho de Sesimbra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob a ficha n.º … da mesma freguesia; b) pelo mesmo contrato prometeu ceder ao Réu comparticipações no desenvolvimento urbano e este prometeu comparticipar financeiramente em todos os custos, encargos e despesas inerentes à operação urbanística, na proporção de 14/31 avos, num período de 48 horas após a Autora apresentar os documentos comprovativos de despesas; c) nos termos do contrato celebrado e pela comparticipação do Réu no negócio, a Autora cedia-lhe a totalidade do lote 1 e metade do lote 3; d) o Réu não regulariza as comparticipações financeiras nos termos contratualmente estipulados e interpôs diversas ações em tribunal com o propósito de justificar a falta de cumprimento de tal obrigação; e) em 15-11.2011, a Autora procedeu à venda do lote 1 a favor da firma DD, SA por indicação expressa do Réu; f) entre a Autora e o Réu ficou acordado que o lote a ceder ao segundo em substituição da metade do lote 3 seria o lote 3-A; g) em 10-03-2014, por carta registada com aviso de receção, a Autora interpelou o Réu para regularizar a sua quota-parte no remanescente dos encargos financeiros e celebrar a escritura de compra e venda; h) o réu nada disse e a escritura pública de compra e venda do lote …-A não se realizou apenas porque o Réu se recusou a assumir a sua quota-parte nas responsabilidades da operação urbanística; i) a autora perdeu o interesse na manutenção do contrato; j) a Autora notificou o Réu para, no prazo de 8 dias, cessar a mora, liquidando as comparticipações me dívida.
O recorrente António Morais contestou a ação, por impugnação, negando estar em mora, e deduziu pedido reconvencional, pedindo que o tribunal declare a resolução do contrato celebrado entre Reconvinte e Reconvinda denominado “Contrato de Participação de Desenvolvimento Urbano” e condene a Reconvinda a restituir-lhe o montante de 142.386,78€, acrescido de juros de mora, contados desde a notificação da contestação e até integral pagamento.
Para fundamentar o seu pedido reconvencional, o Réu alegou que: a) perdeu o interesse na manutenção do negócio, pela razão que passados mais de 16 anos, a Autora ainda não concluiu o loteamento, escusando-se num incumprimento do Réu que não se verifica; b) por conta do negócio que celebrou com a Autora, o Réu já lhe entregou 427.160, 36€ e a Autora ainda não transferiu para o Réu a metade do lote 3 (5 fogos), ou seja, dos 14 fogos a que contratualmente tem direito, só recebeu 9, pelo que, tendo a Autora resolvido o contrato, tem ele direito a que esta lhe devolva «grosso modo» o equivalente a 1/3 do que lhe prestou, sob pena de enriquecimento sem causa.
A Autora apresentou réplica, invocando a exceção de caso julgado, sustentando que: a) na ação n.º 1868/15.1T8STB, ainda não transitada em julgado, o Réu peticionou “Deve a presente ação ser julgada procedente por provada e, por via dela, deve ser judicialmente reconhecida a resolução do contrato identificado em 1 e aqui declarada pelo A. Mais deve a R. ser condenada a restituir ao A., por via da resolução contratual por este operada, a quantia de 142.386,78€ acrescida de juros de mora contados da data da citação e até integral pagamento, bem como nas custas do processo”; b) quanto aos sujeitos, a existência de identidade entre os sujeitos das duas ações é manifesta, o pedido também é idêntico uma vez que é peticionada a condenação da Autora em montante pecuniário idêntico ao pedido formulado na primeira ação e também existe identidade das causas de pedir pois tal como na ação anterior o pedido formulado se fundamentava em factos tendentes a demonstrar o incumprimento da Autora e na presente ação os factos alegados são em tudo coincidentes com os que fundamentaram aquele pedido, limitando-se o Réu a alegar que a sua pretensão tem por fundameno o instituto do enriquecimento sem causa.
O Réu respondeu à exceção de caso julgado, argumentando que não existe identidade de causas de pedir entre as duas ações: o que o Réu pede é que lhe seja devolvido aquilo que pagou à autora já que esta resolveu o contrato, resolução que o Réu aceita, não tendo a Autora direito a qualquer indemnização derivada da resolução contratual.
Encontra-se junta aos autos certidão, com nota de trânsito em julgado, do acórdão do Tribunal da Relação de Évora proferido nos autos n.º 1868/15.1T8STB, o qual julgou totalmente improcedente a ação.

I.3.
O recorrente formulou alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«1 – O artigo 580.º do Cód. Proc. Civ. define o conceito de caso julgado quando se verifica a repetição de uma causa depois de a primeira ter transitado em julgado.
2 – E o artigo 581.º n.º 1 estabelece os requisitos de caso julgado quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos ao pedido e à causa de pedir.
3 – Por sua vez o número 4 do mesmo artigo diz-nos que há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede dos mesmos factos jurídicos.
4 – No caso dos autos, a pretensão deduzida pelo aqui reconvinte no processo n.º 1868/15.1T8STB emergia do alegado incumprimento contratual por parte da aqui A.
5 – Na presente ação, a pretensão deduzida pelo aqui recorrente no seu pedido reconvencional, emerge do facto de a aqui A. ter resolvido o contrato que vinculava as partes.
6 – Assim, os factos de onde emergem os direitos invocados pelo aqui recorrente nas duas ações são completamente diversos.
7 – Ora, não se verificando a identidade dos factos por onde emergem as pretensões do aqui recorrente naquela ação e nesta, não estamos perante uma identidade de causas de pedir.
8 – Não se verificando identidade quanto às causas de pedir nas duas ações, não se verifica a exceção de caso julgado, atento o disposto nos artigos 580.º e 581.º do Cód. Proc. Civ.
9 – Assim, o douto Despacho recorrido fez uma deficiente interpretação quer da Lei, quer dos factos alegados pelas partes.
10 – Pelo que, deverá ser revogado e substituído por outro, que declare improcedente a exceção de caso julgado invocada pela A. e, ordene o prosseguimento da lide para apreciação do pedido reconvencional.»

I.4
A CC, Lda. apresentou resposta ao recurso, sustentando a improcedência do mesmo. Nas suas alegações formulou as seguintes conclusões:
«A) Nos termos do artigo 619º, nº 1 do C.P.C., transitada em julgado a sentença que decidiu do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º, todos do C.P.C.
B) O caso julgado visa garantir, fundamentalmente, o valor da segurança jurídica, fundando-se a proteção a essa segurança jurídica, relativamente a atos jurisdicionais, no princípio do Estado de Direito, pelo que se trata de um valor constitucionalmente protegido, destinando-se a evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objeto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior.
C) E, por essa via, evitar uma nova decisão inútil (razões de economia processual), o que implica uma não decisão sobre a nova ação, pressupondo a tríplice identidade de sujeitos, objeto e pedido (Acórdão da Relação de Coimbra, de 28-09- 2010, de que foi Relator, o Exmo. Desembargador, Jorge Arcanjo [Proc. n.º 392/09.6 TBCVL.S1, in www.dgsi.pt).
D) Nos presentes autos existe identidade de sujeitos, do pedido e da causa de pedir.
E) E, sempre se dirá que a identidade de causas de pedir que releva para verificação da exceção do caso julgado afere-se pelo facto jurídico de que emergem as pretensões deduzidas.
F) Sendo certo que, tal identidade de pedidos pressupõe que em ambas as ações se pretende obter o reconhecimento do mesmo direito subjetivo, independentemente da sua expressão quantitativa e da forma de processo utilizada, não sendo de exigir, porém, uma rigorosa identidade formal entre os pedidos.
G) Nos presentes autos, o recorrente pretende ver reconhecido o mesmo direito que já lhe foi negado por sentença proferida noutra ação, identificando-se esse direito não só através do seu conteúdo e objeto, mas também através da sua causa ou fonte.
H) Numa e noutra ação os danos invocados são fundamentalmente os mesmos.
I) Tal como na ação anterior em que o pedido formulado se fundamentava em factos tendentes a demonstrar o incumprimento da recorrida, na presente ação, os factos alegados são em tudo coincidentes com os que fundamentaram aquele pedido, limitando-se o recorrente a alegar que a sua pretensão tem por fundamento o instituto do enriquecimento sem causa.
J) A inconsistência dos factos alegados e integrantes da causa de pedir, para a consubstanciarem, considerada na primeira ação, do incumprimento definitivo do apelidado contrato de participação de desenvolvimento urbano celebrado entre as partes, por força da autoridade do caso julgado dessa decisão fica impedido ora recorrente de, com base nesses mesmos factos, fazer valer a pretensão que deduziu naquela ação, nos presentes autos.
K) O caso julgado abrange todas as possíveis qualificações jurídicas do objeto apreciado, impedindo que um efeito jurídico pretendido ou obtido com fundamento numa qualificação jurídica possa ser requerida com base numa outra qualificação dos mesmos factos, dado que o que releva é a identidade de causa de pedir, ou seja os factos concretos com relevância jurídica, e não a identidade das qualificações jurídicas que esse fundamento comporte – art.ºs 497º, nº 1 e 498º nº 4, do C. P. Civil.
L) Assim, considera-se verificada a exceptio rei judicatae motivo pelo qual bem esteve o Tribunal a quo ao julgar procedente a exceção do caso julgado relativamente ao pedido reconvencional e, em consequência, extinguir a instância reconvencional.»

I.5
O recurso foi admitido pelo tribunal recorrido.
Corridos os vistos nos termos do artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC), cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, nº 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (art. 608.º, n.º 2 e art. 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (cf. artigos 608.º, n.º 2, e 663.º, n.º 2, do CPC).

II.2.
II.2.1
A questão que cumpre apreciar é a procedência ou improcedência da exceção de caso julgado material no confronto entre o objeto da instância reconvencional da presente ação e o objeto da ação que correu termos sob o n.º 1868/15.1T8STB.
II.2.2
Na ação n.º 1868/15.1T8STB, o autor (ora recorrente) pedia ao Tribunal que lhe reconhecesse o direito a resolver o “contrato de participação de desenvolvimento urbano” celebrado com a Ré (aqui, Autora /reconvinda) e, por via da resolução, que fosse a ré condenada a devolver-lhe a quantia de 142.386,78€, acrescida de juros de mora contados desde a citação e até integral pagamento. Ali, o recorrente alegou que nos termos do contrato celebrado entre ambas as partes, a ré prometera ceder-lhe comparticipação no desenvolvimento urbano relativo ao projeto imobiliário para 3 lotes de construção sitos em Almoinha, freguesia do Castelo, concelho de Sesimbra, e que ele prometeu comparticipar financeiramente em todos os custos, encargos e despesas inerentes àquele projeto, na proporção de 14/31 e que pela sua comparticipação no negócio a ré lhe cedia a totalidade do lote 1 (9 fogos) e metade do lote 3 (5 fogos); pelo mesmo contrato ele obrigou-se a fazer as comparticipações financeiras supra mencionadas no prazo de 48 horas após a apresentação de documentos comprovativos das despesas; o desenvolvimento do projeto urbanístico ficou a cargo da ré; entre 13 de maio de 2001 e 17 de janeiro de 2006, o réu, em cumprimento das suas obrigações contratuais, entregou à ré 427.160,36€; a ré construiu um conjunto de infraestruturas urbanas as quais ficaram praticamente concluídas no ano de 2016 mas desde então não mostrou qualquer interesse em concluir o projeto de urbanização nem prestou contas sobre as despesas ali realizadas; em novembro de 2011, a ré transmitiu o lote 1 para um terceiro indicado pelo autor, cumprindo desta forma parte do contrato; a ré, sem o conhecimento e consentimento do autor, procedeu a alterações no projeto inicial, concretamente procedeu à divisão do lote 3 (5 fogos) em dois novos lotes (lotes 3A e 3B), o que se traduz numa alteração significativa das circunstâncias do contrato a justificar, só por si, o direito à resolução do mesmo; o autor perdeu todo o interesse no negócio contratado em virtude do imobilismo da ré que não dá sinais de retomar os trabalhos de urbanização parados há mais de 6 anos, o que também lhe confere o direito de resolver o contrato.
Na instância reconvencional da presente ação, o réu/reconvinte pede ao Tribunal que declare a resolução do (mesmo) contrato, isto é, do “contrato de participação de desenvolvimento urbano” e que condene a Reconvinda a restituir-lhe 142.386,78€ acrescido de juros de mora contados da data da notificação do presente e até integral pagamento. Nesta instância, o recorrente alega que perdeu o interesse na manutenção do negócio «pela simples razão de que a autora passados mais de dezasseis anos ainda nem sequer concluiu o loteamento». Mais alega que a reconvinda não concluiu o projeto urbanístico «porque os sócios dela se têm locupletado com os dinheiros e não acabam a obra» e não porque o réu se recuse a pagar a sua parte nas despesas e que «quem definitivamente não cumpre o contrato é a A.», a qual «injustificadamente não conclui o projeto, escusando-se num incumprimento do R., que na realidade não se verifica, já que não lhe são apresentados documentos das despesas alegadamente em dívida.». E concluiu o réu/reconvinte que quem tem direito a pedir a resolução do contrato é ele próprio «Pois, se obtivesse merecimento a pretensão da A., ficaria esta não só com o terreno, mas também com o dinheiro do R. o que, no mínimo, consubstanciaria um enriquecimento sem causa.». E ponderando que a autora/reconvinda já transferiu para uma entidade por ele indicada o lote 1, faltando transmitir-lhe a metade do lote 3 — o qual neste momento se denomina lote 3-A — entende o réu/reconvinte ter direito a que aquela «lhe devolva grosso modo o equivalente a 1/3 do que lhe prestou, pois dos 14 fogos a que contratualmente tem direito, só recebeu 9 e 1/3 de 427.160,36€ são 142.386,78 €.»
II.2.3
A exceção de caso julgado constitui uma exceção dilatória, geradora da absolvição da instância (arts. 577.º, al. i) e 576.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Face à lei processual vigente a exceção de caso julgado pressupõe a «repetição de uma causa», a qual ocorre quando se propõe um ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, a qual já foi decidida por sentença que já não admite recurso ordinário (arts. 580.º e 581.º, ambos do Código de Processo Civil). É, por conseguinte, através da tríplice identidade a que se refere o art. 581.º, n.º 1, do Código de Processo Civil – de sujeitos, do pedido e da causa de pedir – que se define a extensão do caso julgado, identidade essa que deve ser conexionada com a regra expressa no art. 580.º, n.º 2, do CPC. Ou seja, o critério orientador e primeiro para se aferir da existência da exceção de caso julgado passa por averiguar se se pode repetir ou contradizer uma decisão anterior (neste sentido, vd. Ac. STJ de 06.06.2000 in BMJ n.º 498.º, pp. 173 e ss.).
De acordo com o disposto no art. 581.º, n.ºs 2, 3 e 4, do Código de Processo Civil, há identidade de:
a) Sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, ou seja, quando surgem na mesma posição jurídica em ambos os processos;
b) Pedido quando numa e noutra se pretende obter o mesmo efeito jurídico; e
c) Causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico.
Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. I, Almedina, Coimbra, 1981, pp. 201e ss. ensinava que: «Por pedido, tanto se pode entender as providências concedidas pelo juiz, através das quais é atuada determinada forma de tutela jurídica (condenação, declaração, etc.), ou seja, a providência que se pretende obter com a ação; como os meios através dos quais se obtém a satisfação do interesse à tutela, ou seja, a consequência jurídica material que se pede ao tribunal para ser reconhecida. O primeiro, é o objeto imediato; o segundo é objeto mediato. […] Para determinar o petitum concorrem ambos os aspetos, embora o objeto imediato contribua em menor escala que o objeto mediato. […] Embora a lei o não diga, parece que deve adotar-se aqui uma orientação semelhante àquela que em direito privado vigora para a determinação do exato conteúdo dos contratos: basta que as partes tenham conhecimento do efeito prático, embora careçam da representação do efeito jurídico. Por outras palavras, o que interessará não é o efeito jurídico que as partes formulem, mas sim o efeito prático que pretendem alcançar; o objeto mediato deve entender-se como o efeito prático que o autor pretende obter e não com a qualificação jurídica que dá à sua pretensão. Não interessará, portanto, à definição do objeto numa ação de indemnização que o autor qualifique a responsabilidade que pretende efetivar como contratual ou extracontratual. A qualificação jurídica pertence ao juiz, que o fará com plena liberdade, adotando ou rejeitando a qualificação fornecida pelas partes. […] Parece, portanto, poder concluir-se que não releva para nenhum efeito a qualificação jurídica apresentada pelas partes.[…] ».
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.09.2018[1] escreveu-se: o pedido não deve ser interpretado na simples expressão literal em que se mostra formulado no petitório, mas com o alcance substancial resultante da sua conjugação como os fundamentos da pretensão deduzida, em ordem a surpreender o modo específico de tutela jurídica visado. Por isso mesmo, compete ao tribunal proceder a essa interpretação semântica, na latitude cognitiva que lhe é conferida, em matéria de direito, pelo artigo 5.º, n.º 3, e nos limites estabelecidos no artigo 609.º, n.º 1, ambos do CPC, podendo assim obviar-se a erros de mera qualificação jurídica em que a parte tenha incorrido nessa sede.»
No que respeita à “causa de pedir”, o artigo 581.º, n.º 4, do CPC acolhe a doutrina da substanciação, segundo a qual a causa de pedir deve ser preenchida com os factos essenciais determinantes do efeito jurídico pretendido. Como refere Abrantes Geraldes, Temas da Reforma de Processo Civil, Vol. I, Almedina, 2.ª Edição, Coimbra, 1998, pp. 192-193 «No art.º 498.º [atual art.º 581.º, n.º 4, do CPC] o legislador fez uma opção clara entre dois sistemas possíveis: o da individualização ou o da substanciação da causa de pedir. Ao primeiro bastaria a indicação do pedido, devendo a sentença esgotar todas as possíveis causas de pedir da situação jurídica enunciada pelo autor, impedindo-se, após a sentença, a alegação de factos anteriores e que, porventura, não tivessem sido alegados ou apreciados. Já a opção pela teoria da substanciação implica para o autor a necessidade de articular os factos de onde deriva a sua pretensão, formando-se o objeto do processo e, por arrastamento, o caso julgado, apenas relativamente aos factos integradores da causa de pedir invocada. Foi esta a opção a que aderiu o legislador […].»
«A causa de pedir consubstancia-se numa factualidade alegada como fundamento do efeito prático-jurídico pretendido, factualidade esta que não deve ser destituída de qualquer valoração jurídica, mas sim relevante no quadro das soluções de direito plausíveis a que o tribunal deva atender ao abrigo do art.º 5.º, n.º 3, e nos limites do art.º 609.º, n.º 1, do CPC, independentemente da coloração jurídica dada pelo autor. […] tem-se entendido que, para delimitar determinada causa de pedir, não basta a mera identidade naturalística da factualidade alegada, havendo sempre que considerar a sua relevância em face do quadro normativo aplicável e em função da espécie de tutela jurídica pretendida.» — cfr. Ac. STJ de 18.09.2018, supra citado.
II.2.4
Tendo presente o exposto supra, vejamos se, in casu, se verifica uma repetição da causa.
É manifesto que existe identidade de sujeitos entre a instância reconvencional da presente ação e a anterior ação que correu termos sob o n.º 1868/15.1T8STB: as partes são exatamente as mesmas, embora na primeira o ora recorrente figure como réu/reconvinte e na segunda surja como autor.
Comparando o pedido formulado na ação n.º 1868/15.1T8STB com o pedido apresentado na instância reconvencional da presente ação, constata-se que em ambas as instâncias o efeito jurídico-prático que o recorrente sempre pretendeu alcançar é a restituição, à respetiva esfera jurídica, de 1/3 do valor global que entregou à recorrida no âmbito e por força do “contrato de participação no desenvolvimento urbano” celebrado entre ambos.
Na ação n.º 1868/15.1T8STB, o autor (ora recorrente) fundou a sua pretensão de condenação da ré na devolução do valor pecuniário de 142.386,78€ acrescido dos respetivos juros, no pedido de reconhecimento do seu direito à resolução do contrato — quer por força de uma alteração significativa das circunstâncias contratuais (art. 437.º, n.º 1, do CC) quer por força de um incumprimento contratual definitivo da ré (art 801.º, n.º 2 do Código Civil aplicável ao incumprimento contratual definitivo).
Na instância reconvencional da presente ação, pese embora o reconvinte refira a dado passo o enriquecimento sem causa, alegando que permitir que a autora fique com o terreno e com o dinheiro que o réu lhe entregou «consubstanciaria um enriquecimento sem causa»[2] (cfr. art. 60.º), o meio de tutela ao abrigo do qual o reconvinte peticiona o pedido de condenação da reconvinda a restituir-lhe o montante de 142.386,78 € é um (suposto) direito próprio de resolução do contrato fundado no (suposto) incumprimento contratual definitivo da reconvinda (cfr. arts. 55.º, 51.º e 58.º da contestação). Aliás, no final da sua contestação o réu/reconvinte/recorrente pede que seja «declarada a resolução do contrato a que alude a p.i.» e não que seja declarada a resolução do contrato operada pela autora — cujo efeito prático-jurídico é inverso àquele que é pretendido pelo réu/reconvinte, na medida em que pressupõe um incumprimento contratual definitivo daquele.
Resulta, assim, do exposto, que existe identidade de pedidos entre a instância reconvencional da presente ação e a ação n.º 1868/15.1T8STB pois em ambas o efeito jurídico-prático pretendido pelo reconvinte é a restituição à respetiva esfera jurídica do valor de142.386,78 €, acrescido dos respetivos juros de mora, com fundamento num direito próprio de resolução do contrato.
Na ação n.º 1868/15.1T8STB, o recorrente invocou como fundamentos do direito de resolução do contrato celebrado com a recorrida:
a) O incumprimento contratual definitivo da segunda (dada a perda de interesse do recorrente na manutenção do negócio), traduzido na falta de conclusão do projeto de urbanização decorridos cerca de oito anos decorridos desde a celebração do contrato;
b) Na alteração «relevante» das circunstâncias contratuais, concretamente, a alteração do projeto urbanístico sem o conhecimento e consentimento do recorrente do qual resultou a divisão do lote 3 (5 fogos) em dois lotes (lote 3A e lote 3B), sendo que a metade do lote 3 deveria ser cedida ao autor por força do contrato celebrado com a ré.
Na instância reconvencional da presente ação, o recorrente invoca como fundamento do seu direito de resolução do contrato o incumprimento contratual definitivo da segunda (dada a perda de interesse do recorrente na manutenção do negócio) consistente na falta de conclusão do loteamento decorridos mais de 16 anos sobre a celebração do contrato.
Ou seja, na instância reconvencional o recorrente invoca factos integradores do seu direito à resolução do contrato por incumprimento contratual definitivo da recorrida que já tinham sido por si invocado na ação n.º 1868/15.1T8STB (na qual foi proferida decisão final que absolveu a recorrida do pedido).
A menção ao enriquecimento sem causa surge em termos hipotéticos — «se obtivesse merecimento a pretensão da autora ficaria esta não só com o terreno mas também com o dinheiro do réu—, não alegando o réu/reconvinte factos integrantes de um enriquecimento injusto da autora/reconvinda e de um consequente empobrecimento dele Réu/reconvinte), os quais, como referido supra, não se concretizaram sequer.
Em suma e concluindo, a instância reconvencional da presente ação é uma repetição da ação n.º 1868/15.1T8STB, pelo que bem andou o tribunal a quo ao julgar procedente a exceção de caso julgado.

III. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar improcedente o recurso.
Custas pelo recorrente.
Notifique.

Évora, 8 de novembro de 2018,
Cristina Dá Mesquita
Silva Rato
Mata Ribeiro
__________________________________________________
[1] Publicado em www.dgsi.pt.
[2] Na verdade, o recorrente na sua contestação refere-se ao “enriquecimento sem causa” em termos hipotéticos, isto é, como algo que se verificaria caso a pretensão da autora/reconvinda vier a ter procedência.