Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
93/14.3GBRMZ.E1
Relator: MARTINS SIMÃO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
Data do Acordão: 05/16/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I - A ratio do crime de violência doméstica não está na protecção da comunidade familiar ou conjugal, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana. O âmbito punitivo deste crime abarca os comportamentos que, de forma reiterada ou não, lesam a referida dignidade.

II - Se é certo que no passado se considerou que o bem jurídico protegido era apenas a integridade física, constituindo a violência doméstica uma forma agravada do crime de ofensas corporais simples, no presente, uma interpretação como a acabada de expor é inaceitável, por manifestamente limitativa e redutora. A ratio que lhe subjaz vai muito mais longe que os maus tratos físicos, abrangendo também os maus tratos psíquicos, como as ameaças, as humilhações, as provocações, as curtas privações da liberdade de movimentos e as ofensas sexuais, ou seja, as condutas que integram o tipo objectivo do crime previsto no art. 152.º do C.Penal podem ser de várias espécies: maus tratos físicos (ofensas corporais simples) e maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, ameaças, injúrias), e podem ser susceptíveis de, singularmente consideradas constituírem, em si mesmas, outros crimes a saber, ofensa à integridade física simples, ameaça, injúria, difamação.

III - Preenche, pois, o crime do art. 152.º do C.Penal a prática de qualquer acto de violência que afecte a saúde, física e psíquica ou emocional do cônjuge vítima, diminuindo ou afectando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida naquela realidade conjugal.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em Conferência, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I- Relatório
Nos presentes autos de processo comum singular, com o número acima mencionado da Instância Local de Reguengos de Monsaraz – S. Comp.Gen. J1, da Comarca de Évora, a acusação foi julgada improcedente por não provada e, por consequência decidiu-se absolver o arguido N. da prática de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo art.º 152.º, n.ºs 1, e nº 2) do Cód. Penal

Inconformado o Ministério Público recorreu, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões:

“1. O Ministério Público acusou o arguido N da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo disposto no artigo 152.º, n.º 1, a) e n.º 2, do Código Penal (em concurso aparente com os crimes de ofensa à integridade física qualificada, de ameaça e de injúria, previstos e punidos, respectivamente, pelo disposto nos artigos 143.º, n.º 1 e 145.º, n.º 1, a) e n.º 2, conjugado com o artigo 132.º, n.º 2, b), e nos artigos 153.º e 181.º, todos daquele Código).

2. Do texto da motivação de facto da sentença recorrida não nos é possível descortinar com clareza as razões que levaram à decisão de falta de prova dos factos julgados como não provados, em particular o elemento subjectivo, necessariamente decorrente da factualidade julgada provada, atendendo às regras da lógica, da experiência comum e do normal acontecer.

3. Assim, ao concluir pela não verificação dos factos considerados não provados, em particular pela inexistência do tipo subjectivo do crime em causa, sem explicitar as concretas razões da falta de prova, o tribunal recorrido incumpriu o dever de fundamentação, violando o disposto nos artigos 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal e 152.º, n.º 1, a) e n.º 2 do Código Penal, de acordo com o previsto no artigo 379.º, n.º 1, a) do Código de Processo Penal.

4. Ao julgar provado que o arguido empurrou a ofendida, projectando-a contra a cama, e proferiu as expressões citadas nos pontos 4 a 6 e 9 da factualidade julgada provada e, na mesma decisão, considerar não provado que o mesmo arguido quisesse atingir o corpo ou a integridade física daquela, quisesse ofender a sua honra e consideração e quisesse provocar-lhe temor e intranquilidade, limitando a sua liberdade de autodeterminação, a sentença recorrida incorreu no vício de erro notório na apreciação da prova, nos termos previstos no artigo 410.º, nºs. 1 e 2, c) do Código de Processo Penal.

5. Com efeito, ao desferir empurrão no corpo da ofendida – com a força e a intensidade necessárias para a projectar para a cama ali existente – e ao proferir expressões como “puta”, “vaca”, “vacarrona”, “marrã”, “acabo contigo” e “eu dou cabo da minha vida mas acabo com vocês primeiro juro”, resulta de modo claro e evidente, atendendo às regras da lógica, da experiência comum e do normal acontecer, que o arguido quis atingir o corpo e a integridade física da ofendida, quis ofender a sua honra e provocar-lhe temor, procurando limitar a sua liberdade de autodeterminação.

6. Assim, em face da factualidade (objectiva) considerada provada, impõem as regras da experiência comum e do normal acontecer que se considere provado o elemento subjectivo do crime em causa.

7. Pelo exposto, ao ter decidido do modo acima explicitado, a sentença recorrida violou de modo claro e evidente as regras da lógica e da experiência comum (violando, consequentemente, o disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal) e incorreu em vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, nºs. 1 e 2, c), do Código de Processo Penal, devendo, por isso, ser revogada aquela decisão e ser substituída por outra que julgue também provado o elemento subjectivo do tipo de crime de violência doméstica, ou seja, que o arguido N previu e quis proferir as expressões constantes dos autos, e desferir empurrões em P. e, com estes actos, atingir o corpo, a saúde e o bem-estar físico da mesma, bem como humilhar, ofender a honra e consideração da mesma e atingir o seu bem-estar psíquico, provocar-lhe medo, terror e intranquilidade, e limitar a sua liberdade de autodeterminação, o que conseguiu e que bem sabia que era casado com P. e que a casa onde os factos ocorreram era a casa onde ambos habitavam, e que, ao praticar tais factos naquele local, lhe causava ainda maior temor e intranquilidade, resultado este que previu e com o qual se conformou.

8. O tribunal recorrido considerou credível o depoimento da ofendida, porque natural, espontâneo, descomprometido e sem manifestos de ânsia persecutória.

9. A ofendida prestou depoimento na sessão da audiência de discussão e julgamento de 25.11.2016, documentada em acta e gravado no sistema áudio media citius entre as 10h55m16s e as 11h28m48s, e explicou que a partir de 2011 o comportamento do arguido “começou a ser mais grave”, devido ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas, sendo certo que tais declarações não são abaladas por nenhum outro elemento probatório considerado pelo tribunal recorrido.

10. Deste modo, ao ter julgado como não provada aquela factualidade, a sentença recorrida padece de erro de julgamento devendo ser alterada e ser dado como provado que a partir do ano de 2011 e até ao termo da vivência em comum, o arguido consumiu bebidas alcoólicas de forma excessiva e com regularidade diária, tornando-se agressivo.

11. Do mesmo depoimento, considerado como coerente, natural e espontâneo, pelo tribunal recorrido, resulta que em momento anterior ao empurrão considerado provado, o arguido dirigiu-se à ofendida e desferiu-lhe uma chapada na face, por esta lhe ter respondido, levantando a voz, e, noutra ocasião, desferiu um empurrão no peito e uma chapada numa das faces, tendo ficado com as faces vermelhas em ambas as situações (cfr. gravação da inquirição da ofendida, de 25.11.2016, das 10h55m16s às 11h28m48s).

12. A credibilidade e a seriedade deste depoimento não são afastadas por nenhum outro elemento probatório.

13. Razão pela qual, ao julgar aquela factualidade como não verificada, a sentença recorrida padece de erro de julgamento e deve, em conformidade, ser alterada e ser substituída por outra que julgue provado que em datas não concretamente apuradas, mas anteriores a Maio de 2013, no decurso de discussões entre o casal, o arguido desferiu chapada numa das faces de P, por esta lhe ter respondido em tom de voz alto, e, noutra ocasião, desferiu-lhe empurrão no peito e chapada numa das faces; e que como consequência directa e necessária da actuação do arguido, P. sofreu rubor facial.

14. No que diz respeito aos factos julgados como não provados, indicados nos pontos H a J, respeitantes ao tipo subjectivo do crime em causa, atendendo à factualidade demonstrada nos autos, ao seu contexto e, bem assim, às declarações do arguido e da ofendida, valorados pelo tribunal recorrido, devem os mesmos ser julgados provados, uma vez que a prova do elemento subjectivo é sempre indirecta e deve ser extraída dos demais factos indiciados e das regras de experiência comum – os quais impunham, de modo claro e evidente, decisão contrária à proferida.

15. Assim, ao decidir de modo diverso, julgando não provado o elemento subjectivo descrito na acusação, a sentença recorrida violou as regras da experiência comum, padecendo de erro de julgamento, pelo que deve ser alterada e ser substituída por outra que julgue provado o elemento subjectivo já acima descrito (cfr. ponto 7).

16. Pelo exposto, ao julgar como não provados os factos descritos nos pontos A, D, F e H a J, o tribunal recorrido violou o disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal e no artigo 152.º, n.º 1, a) e n.º 2, do Código Penal, pelo que a decisão sobre a matéria de facto deve ser alterada nos termos acima exarados.

17. O tribunal recorrido julgou provado que o arguido proferiu à ofendida expressões “ofensivas da honra da pessoa a quem se dirigem” (assim as classifica), ao longo da vivência comum e com regularidade, pelo que, atendendo ao contexto (sempre no interior da residência comum), à regularidade e reiteração com que foram proferidas, à natureza das expressões (“puta”, “vaca”, “vacarrona”, “marrã”, entre outras) e à qualidade do agente e da vítima, verifica-se ilicitude agravada de tal factualidade ofensiva da honra, sendo a mesma enquadrável na prática de crime de violência doméstica, quando conjugada com a demais factualidade.

18. As demais expressões de cariz ameaçador serão sempre consideradas pelo homem médio, e de acordo com as regras da experiência comum e da normalidade, como idóneas a limitar a liberdade de actuação e de autodeterminação da ofendida – tanto assim é que a ofendida referiu expressamente ter esperado que o arguido saísse de casa para ir trabalhar para que abandonasse a residência comum em segurança, por ter medo do que o mesmo lhe pudesse fazer.

19. Assim, também tais actuações são passíveis de integrar a prática de um crime de violência doméstica, conjugadas com a demais factualidade.

20. Quanto às agressões físicas, a circunstância de inexistirem lesões ou sequelas de tais condutas não poderá significar que as mesmas não são penalmente relevantes e puníveis. Na verdade, a diminuída relevância e a pouca gravidade das suas consequências não afasta a dignidade penal, antes deverá ser tida em conta na medida concreta da pena.

21. Ademais, o tribunal recorrido julgou provado que o arguido desferiu empurrão à ofendida projectando-a sobre a cama, porque a mesma “retirara dinheiro da escrivaninha do quarto”, motivo que não é socialmente adequado, que não desculpa nem exclui a ilicitude desta actuação – pelo contrário, agrava-a, sendo acto ofensivo da integridade física da cônjuge, movido por razões monetárias e de modo impulsivo.

22. Deste modo, em face de tudo o que se deixa exposto, não restam dúvidas de que o arguido agiu sempre movido pela relação amorosa mantida com a ofendida, que lhe desferiu, por duas vezes, chapadas na face e empurrões – ofensas físicas estas penalmente relevantes –, que ofendeu a sua honra e consideração com grande regularidade e ao longo da vivência comum e que a ameaçou, em particular nos quatro meses que se seguiram à separação, causando-lhe temor e inquietação.

23. Razões pelas quais não restam dúvidas quanto ao preenchimento dos tipos objectivo e subjectivo de ilícito do crime de violência doméstica, nas várias vertentes analíticas que se encontram em causa (ofensas à integridade física, ameaça e injúria) e à sua consequente punibilidade.

24. Ao decidir de forma contrária, o tribunal a quo violou as regras da lógica e da experiência comum, bem como as normas previstas no artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa e no artigo 152.º, n.º 1, a) e n.º 2 do Código Penal.

25. Pelo que deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que condene o arguido pela prática de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo disposto no artigo 152.º, n.º 1, a) e n.º 2 do Código Penal.

26. Por tudo exposto, deve ser dado provimento ao recurso e em consequência:

i. Ser declarada nula a decisão sobre a matéria de facto julgada não provada, por falta de fundamentação, de acordo com o previsto nos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, a), ambos do Código de Processo Penal;

ii. Ser revogada a sentença recorrida, por padecer de vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, nºs. 1 e 2, c), do Código de Processo Penal, e, consequentemente, ser substituída por outra que julgue também provado o elemento subjectivo do tipo de crime de violência doméstica;

iii. Ser alterada a decisão sobre a matéria de facto, por ter a sentença recorrida incorrido em erro de julgamento, valorando-se as declarações da ofendida, consideradas pelo tribunal recorrido como credíveis, também na parte em que descreve o consumo excessivo de bebidas alcoólicas por parte do arguido, as restantes agressões físicas e as demais expressões de natureza ameaçadora;

iv. Ser revogada a sentença recorrida e ser substituída por outra que condene o arguido pela prática de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo disposto no artigo 152.º, n.º 1, a) e n.º 2 do Código Penal, por se verificarem preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos deste tipo de crime.

Termos em que, e nos melhores de Direito, dando provimento ao recurso apresentado, Vossas Excelências farão a costumada JUSTIÇA”.

Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer concordante com a posição do Magistrado da 1ª instância.

Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
1.1.1 Factos provados
Da discussão da causa e com interesse para a decisão, resultaram provados os seguintes factos:

1. O arguido viveu com P. entre 2 de fevereiro de 2005 e novembro de 2011 e maio de 2012 até maio de 2014, como se de marido e mulher se tratassem, tendo fixado residência em Reguengos de Monsaraz, no Lugar dos Mendes.

2. Em 9 de agosto de 2008, o arguido e P. contraíram casamento entre si, tendo-se divorciado em 5 de novembro de 2014.

3. Deste relacionamento nasceu PC, em 9 de outubro de 2009.

4. Ao longo da vivência em comum, no interior da residência comum do casal, acima referida, o arguido dirigia-se a P, com frequência, apelidando-a de “marrã”, “maluca”, “vaca”, “vacarrona”, “cadela patola”, “puta”, “gorda”.

5. Em data não concretamente apurada, mas na constância da vida em comum, no interior da residência comum do casal, o arguido disse a P., na presença da filha de ambos, PC, “Tenho ali uma, acho que tenho que a limpar para um dia servir”, referindo a uma arma de caça que possuía em virtude de ser caçador.

6. Em data não concretamente apurada, o arguido dirigiu-se a P. e disse-lhe “enforco-te aí numa oliveira, só estás cá a fazer o pão caro, maluca, deficiente, és como um cão patola, puta, vaca”.

7. Entre 1 e 5 de maio de 2014, no interior da residência comum, e porque P. retirara dinheiro da escrivaninha do quarto, o arguido empurrou-a, projetando-a contra a cama.

8- No dia 5 de maio de 2014, pelas 09h30m, P. abandonou a residência comum, com a filha, pondo termo à relação com o arguido.

9- Entre 26 de maio e 1 de setembro de 2014, o arguido enviou, do seu telemóvel, com o n.º 966 279---, para o telemóvel de P, com o n.º 969 204 ---, mensagens escritas com o seguinte teor:

a) No dia 26 de maio, pelas 23h00m: “Nessa leva tens os dias contados”;

b) No dia 3 de junho, pelas 23h06m: “Não atendas que a vida é curta”;

c) No dia 5 de junho, pelas 19h24m: “Quando saíres à rua, tem cuidado que anda aí uma vaca brava com a cabeça igual à tua”;

d) No dia 5 de junho, pelas 23h34m: “Vai ter com o amante que vais à minha frente e não só”;

e) No dia 5 de junho, pelas 23h34m: “Sonha comigo porque a tua felicidade está a chegar ao fim”;

f) No dia 8 de junho, pelas 14h27: “A puta anda muito ocupada”.

g) No dia 8 de junho, pelas 14h27m: “Ficas mais preta com carvão”;

h) No dia 19 de junho, pelas 23h10m: “Eu dou cabo da minha vida mas acabo com vocês primeiro juro”;

i) No dia 2 de julho, pelas 00h25m: “Vais perder o sono vaca”;

j) No dia 2 de julho, pelas 13h29m: “Ontem tavas com o amante para não dar um beijo a minha filha”;

k) No dia 3 de julho, pelas 22h07m: “A puta não deve estar com a filha não me digas algo hoje que vais ver”;

l) No dia 4 de julho, pelas 21h25m: “Dasme cabo da cabeça mas acabo com o putedo”;

m) No dia 5 de julho, pelas 14h38m: “Voltaste a desligar tens a vida curta e não brinques comigo”;

n)Pelas 22h29m: “Andam a por a menina contra mim é de quem não tem vergonha e não tou esquecido e não durmo”;

o) Pelas 20h54m: “Acabo contigo”;

p) No dia 31 de agosto, pelas 23h32m: “Estás aí grande cancro para não me ligares”;

q) No dia 31 de agosto, pelas 23h50m: “Não digas tantas mentiras estás na noitada”;

r) No dia 1 de setembro, pelas 08h12m: “Como foi a noitada”;

s) No dia 1 de setembro de 2014, pelas 17h06m: “É preciso não teres vergonha na puta da cara”;

t) No dia 1 de setembro, pelas 17h23m: “Ainda vais ter ao manicómio doente”;

u) No dia 1 de setembro, pelas 17h30m: “Eu quero falar contigo não sejas doida não te fiz mal nenhum”.

10) No dia 11 de julho de 2014, o arguido telefonou para o telemóvel de P. e disse-lhe “Então foste-me fazer uma notificação?”.

Provou-se ainda que:
1.O arguido não tem antecedentes criminais.

2. Quanto às condições pessoais e económicas do arguido, provou-se que este:

a. Encontra-se desempregado há cerca de seis meses, não auferindo qualquer subsídio; realiza biscates esporadicamente, não sabendo quantificar quanto recebe pelos mesmos;

b. Beneficia do auxílio dos pais, junto de quem faz as refeições;

c. É divorciado, vivendo sozinho, em casa própria, pela qual paga, junto de instituição bancária, o valor mensal de cerca de € 100,00;

d. Tem uma filha, menor de idade, à qual paga uma pensão alimentar no valor mensal de € 140,00;

e. Tem o 6.º ano.

1.1.2 Matéria de facto não provada
Com relevância para a decisão da causa, ficou por provar:

A. A partir de setembro de 2007 e até ao termo da vivência em comum, o arguido consumiu bebidas alcoólicas de forma excessiva e com regularidade diária, tornando-se agressivo (artigo 4.º da acusação).

B.(…) com regularidade diária (…) e dizendo-lhe “és como aquelas cadelas patolas, não tem tamanho e patas ao lado”, “puta, queres dinheiro, vais para as rotundas, como as outras”, “toina gorda” e “calas-te já” (artigo 5.º da acusação).

C. “(…) no Inverno de 2010 (…)” (artigo 6.º da acusação).

D. No dia 23 de janeiro de 2013, no interior da residência comum, o arguido dirigiu-se a P. e empurrou-a, colocando-lhe as mãos no peito, e, ato contínuo, desferiu-lhe uma bofetada na face (artigo 7.º da acusação).

E. “(…) mas seguramente entre 1 de maio e 1 de setembro de 2013 (…)” (artigo 8.º da acusação).

F. No dia 4 de maio de 2014, durante a noite e no interior da residência comum, porque P. queria abandonar a residência comum, o arguido dirigiu-se-lhe e disse “és uma maluca, uma deficiente, deves ter algum amante para ir embora” e, ato contínuo, levantou o braço direito, cerrou o punho e disse “Tas a ver? Ficas em coma ao pé da porta” (artigo 10.º da acusação).

G. “(…) Tas fodida comigo, cabra, bacarrona (…)” (artigo 13.º da acusação).

H. O arguido N. previu e quis proferir as expressões constantes dos autos, e desferir empurrões em P. e, com estes atos, atingir o corpo, a saúde e o bem-estar físico da mesma, bem como humilhar, ofender a honra e consideração da mesma e atingir o seu bem-estar psíquico, provocar-lhe medo, terror e intranquilidade, e limitar a sua liberdade de autodeterminação, o que conseguiu (artigo 14.º da acusação).

I. Bem sabia o arguido que era casado com P. e que a casa onde os factos ocorreram era a casa onde ambos habitavam, e que, ao praticar tais factos naquele local, lhe causava ainda maior temor e intranquilidade, resultado este que previu e com o qual se conformou (artigo 15.º da acusação).

J. Mais sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, tendo a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação (artigo 16.º da acusação).

1.1.3 Motivação

A convicção do Tribunal, quanto à factualidade considerada provada, radicou na análise ponderada da prova produzida em julgamento, nomeadamente na apreciação crítica das declarações do arguido e dos depoimentos das testemunhas, bem como da prova documental.

Assim, quanto ao descrito nos n.os 1 a 3, atentou-se no teor das certidões de fls. 144 a 147, bem como nas declarações do arguido e no depoimento da ofendida, P.

Em especial, e como é habitual em crimes desta natureza, consubstanciados por factos essencialmente presenciados apenas pelas duas pessoas que integram a relação, o Tribunal atentou nas declarações do arguido e no depoimento da ofendida.

Assim, o Tribunal considerou o depoimento da testemunha, e ofendida, P, que narrou de forma natural e espontânea a sua perspetiva sobre a relação que manteve com o arguido. Esta testemunha apresentou-se de forma descomprometida, sem manifestar ânsia persecutória relativamente ao arguido, desvalorizando as condutas que descreveu, sem as exacerbar. Assumiu a vivência conflituosa com o arguido, procurando associar os momentos de tensão ao consumo, por parte deste, de bebidas alcoólicas, e admitindo as discussões, incluindo referir-se ao arguido como “bêbedo” e “besta”.

Das declarações da ofendida, destaca-se também a desconsideração das consequências da conduta do arguido, nomeadamente quanto à referência à arma de caça, tendo sido perentória ao afirmar que não creu que o arguido fosse efetivamente utilizá-la contra si, bem como à ausência de consequências (como dor ou marcas físicas) do descrito no n.º 7.

Relativamente aos contactos físicos do arguido com a ofendida, pese embora esta tenha referido expressamente ter sido agredida pelo arguido por duas vezes, certo é que apenas foi capaz de descrever com detalhe o referido episódio descrito no n.º 7, tendo as demais referências as ofensas físicas sido vagas e imprecisas.

O Tribunal atentou, também, nas declarações do arguido, prestadas de forma também espontânea e natural. O arguido assumiu, igualmente, a natureza conflituosa da relação mantida com a ofendida, confirmando alguns factos descritos na acusação (nomeadamente, o descrito no n.º 7), as discussões mantidas com a ofendida e a forma como se lhe dirigia. Procurou desvalorizar as suas condutas, contextualizá-las numa dinâmica relacional de conflito e de perturbações psicológicas da ofendida. Se é certo que o foco das declarações do arguido foi a sua própria desresponsabilização, através da menorização das condutas em causa, não deixou o Tribunal de considerar, contudo, que as declarações foram prestadas de forma credível e transparente.

Concatenando o depoimento da ofendida com as declarações do arguido, o Tribunal deu assim como provado o acima descrito nos n.os 4 a 8 e no n.º 10, e considerou não provado o descrito nos pontos B. a G., nomeadamente quanto às concretas circunstâncias de tempo e àquelas concretas expressões proferidas. O descrito em A., matéria conclusiva, não poderia resultar demonstrado. O vertido nos pontos H. a J., de índole subjetiva, não se demonstrou, em face da prova produzida e analisada em audiência de discussão e julgamento.

Os depoimentos das testemunhas EG, mãe do arguido, e JP, sobrinha do arguido, não foram considerados credíveis, tendo estas testemunhas prestado declarações de forma pouco isenta, centradas essencialmente na desculpabilização do arguido. A testemunha MF, militar da Guarda Nacional Republicana que investigou os factos que deram origem a estes autos, não tendo presenciado diretamente os factos em causa, não aportou novidades aos autos.

O vertido no n.º 9 resultou demonstrado em face do teor dos autos de fls. 57 a 59, 109 e 110.

A ausência de antecedentes criminais (n.º 11) resultou da análise do certificado de registo criminal de fls. 272.

As condições socioeconómicas do arguido (n.º 12) resultaram demonstradas tendo em conta as declarações por este prestadas e que se mostraram, nos termos expostos, merecedoras de credibilidade.

III- Apreciação do recurso
O objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação, artºs 403º, nº 1 e 412ºnº 1 do CPP.

As conclusões do recurso destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões da discordância dos recorrentes em relação à decisão recorrida, a nível de facto e de direito, por isso, elas devem conter um resumo claro e preciso das razões do pedido (cfr. neste sentido, o Ac. STJ de 19-6-96, in BMJ 458, 98).

Perante as conclusões do recurso as questões a decidir são as seguintes:

1ª- Se a decisão recorrida padece do vício da falta de fundamentação e do erro notório na apreciação da prova ao dar como não provados os factos relativos ao elemento subjectivo constantes das alíneas H) a J) da matéria não provada, tendo em conta os factos nºs 7, 4 a 6 e 9 da matéria provada.

2ª- Da impugnação da matéria de facto;

3ª- Se os factos provados integram o crime de violência doméstica agravado p. e p. no art. 152º, nº 1 al. a) nº 2 do C. Penal.

III-1ª- Se a decisão recorrida padece do vício da falta de fundamentação e do erro notório na apreciação da prova ao dar como não provados os factos relativos ao elemento subjectivo do crime constantes das alíneas H) a J) da matéria não provada, tendo em conta os factos nºs 7, 4 a 6 e 9 da matéria provada.

O Ministério Público alega que, ao ter-se considerado como provado que o arguido empurrou a ofendida projectando-a contra a cama, que proferiu as expressões constantes dos factos nºs 4 a 6 e 9 e na mesma decisão considerar como não provado que quisesse, atingir o corpo ou a integridade física daquela, ofender a sua honra e consideração e provocar-lhe temor e intranquilidade, limitando a sua liberdade de determinação, a sentença incorreu no erro notório na apreciação da prova, nos termos no art. 410, nºs 1 e 2 al. c) do CPPenal e não explicitou devidamente as razões porque assim decidiu.

Cumpre decidir.

No que respeita ao dolo, como escreve o Professor Manuel Cavaleiro de Ferreira em "Direito Penal Português” - Parte Geral I - Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa, se a intenção é vontade e esta é acto psíquico, acto interior são, contudo, grandes as dificuldades para dar praticabilidade a conceitos que designam actos internos, de carácter psicológico e espiritual. Por isso, se recorre a regras da experiência, que as leis utilizam quando elas podem dar aos conceitos maior precisão.

O dolo, dada a sua natureza subjectiva, é insusceptível de apreensão directa, só podendo captar-se a sua existência através de factos materiais, entre os quais o preenchimento dos elementos integrantes da infracção, e por meio das presunções materiais ligadas ao princípio da normalidade ou das regras gerais da experiência.

Neste sentido, confere o Acórdão do S.T.J., de 01.04.93 in BMJ n.º 426, pág. 154 do qual consta: "Dado que o dolo pertence à vida interior e afectiva de cada um e, é portanto, de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo possa concluir-se, entre os quais surge, com a maior representação, o preenchimento dos elementos materiais integrantes da infracção. Pode, de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções materiais ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral de experiência. "

Portanto, a prova do dolo é na maioria dos casos indirecta, salvo quando o arguido confesse os factos, e deve ser extraída dos factos objectivos, desde que não existam outros factos que os afastem, excluam ou justifiquem, e das regras da experiência comum.

Assim, a intenção dolosa do agente, retira-se dos elementos objectivos apurados respeitantes aos actos praticados, em conjugação com as regras da experiência comum e de normalidade.

No caso em apreço, se se provou que o arguido desferiu um empurrão no corpo da ofendida, com a intensidade e força necessária para a projectar sobre a cama ali existente, se ao longo da vivência em comum, no interior da residência do casal a apelidava, com frequência, de “marrã”, “maluca”, “vaca”, “vacarrona”, “cadela patola”, “puta”, “gorda” e se e lhe dirigiu expressões tais como: “enforco-te aí numa oliveira”, “acabo contigo”, “eu dou cabo da minha vida mas acabo com vocês primeiro”, “tenho ali uma, acho que tenho que a limpar para um dia servir” referindo-se a uma arma de caça em virtude de ser caçador, então, não existindo outros factos provados, que os afastem ou justifiquem, de acordo com as regras da experiência e do normal acontecer, respectivamente sabia e queria, ao desferir tal empurrão, atingir a integridade física da ofendida, ofender a sua honra e consideração e em relação às últimas expressões provocar-lhe medo ou inquietação e prejudicar a sua liberdade de determinação.

Quanto às expressões relativas às ameaças importa realçar que consta da decisão recorrida que “ficou patente que estas não provocaram temor ou constrangimento em P que, aliás, se referiu a essas expressões ditas pelo arguido como tendo sido da “boca para fora”.

Ora, da audição da ofendida resulta que ela apenas em relação à expressão “tenho ali uma, acho que tenho que a limpar para um dia servir” referiu que foi proferida pelo arguido “da boca para fora”, mas, mesmo em relação a esta ao ser questionada, disse que teve receio.

Assim, mesmo que se considere, que as expressões em causa não provocaram temor ou constrangimento na ofendida, o que não concebemos, tais expressões, nomeadamente “enforco-te numa oliveira” e “acabo contigo” são adequadas a provocar medo ou inquietação na ofendida, de acordo com as regras da lógica e da experiência comum, e que foram utilizadas pelo arguido com esse propósito, pelo que também, em relação a estas se verifica o elemento subjectivo da infracção.

Cremos, assim, que do texto da decisão recorrida, isto é, dos factos objectivos dados como provados em conjugação com as regras da experiência comum e da normalidade, resulta por demais evidente a conclusão contrária àquele a que o tribunal chegou, em relação ao elemento subjectivo da infracção, e em consequência se consideram como provados os factos constantes das alíneas H) a J), que por isso, passam a constar da matéria provada.

III-2ª- Da impugnação da matéria de facto.
O Ministério Público alega que foram incorrectamente julgados os factos constantes das alíneas A., D. F. H. a J.

O recorrente quando impugna a matéria de facto deve especificar, nos termos do art. 412º nº 3 do CPPenal: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) as provas concretas que impõem decisão diversa da recorrida; c) as provas que devem ser renovadas, o que foi observado.

Quanto às provas concretas que impõem decisão diversa da recorrida não basta que tais provas permitam decisão diversa é necessário que a imponham. Na verdade, a lei refere-se a provas que “impõem” e não as que “permitiriam” decisão diversa. Como de forma clara se afirma no Acórdão da Relação de Guimarães, proferido no processo nº 245/06, consultável em www.dgsi.pt “É que afigura-se indubitável que há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção

As provas impõem decisão diversa da recorrida quando o tribunal decide contra a prova produzida (v. g. quando se dá como provado determinado facto com fundamento no depoimento de determinada testemunha, e ouvido tal depoimento se constata que a dita testemunha não se pronunciou sobre tal facto, ou, pronunciando-se disse coisa diversa da afirmada na decisão recorrida) ou quando o tribunal valora a prova produzida contra as regras da experiência, que no dizer de Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal II, 30, “se traduzem em definições ou juízos hipotéticos, de conteúdo genérico, independentes do caso concreto sub judice, assentes na experiência comum, e por isso, independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade”.

Analisemos, então, as provas indicadas pelo recorrente que, em seu entender impõem decisão diversa da recorrida em relação aos factos impugnados.

O facto constante da alínea A) da matéria não provada, tem o seguinte teor: «A partir de setembro de 2007 e até ao termo da vivência em comum, o arguido consumiu bebidas alcoólicas de forma excessiva e com regularidade diária, tornando-se agressivo».

Fundamenta a sua pretensão alegando que, do depoimento da ofendida que foi natural, espontâneo, descomprometido e sem ânsia persecutória se deve considerar tal facto como provado.

Quanto a este facto a ofendida referiu ao minuto 3:53 “ a princípio a relação era boa. Depois começou a haver altos e baixos. Em 2011, começaram a ser mais graves, a nível de ofensas. Ele bebia? Sim. Diariamente? Dependia. O consumo era normal ou excessivo? Umas vezes mais, outras vezes menos. Às vezes ao fim de semana ficava em casa. Bebia diariamente, não excessivamente todos os dias, mas bebia de modo a ofender. Ele tornava-se agressivo? apenas por duas vezes (físicas) à mão aberta, eram mais ofensas psicológicas, ofendia com nomes, tudo e mais alguma coisa” minuto 5:56.

É a própria ofendida que refere que, o arguido não bebia, de forma excessiva, todos os dias, mas que bebia de modo a ofender, o que não nos permite concluir que o arguido bebia com regularidade diária de forma excessiva.

Se o depoimento da ofendida foi natural e espontâneo, o do arguido também possui estas características, como consta da decisão recorrida e quanto a este facto referiu, que consumia bebidas, como qualquer pessoa normal, mas não de forma excessiva (minuto 1:24 a 2:24).

Assim, perante estes depoimentos não nos merece reparo o não ter sido considerado provado o facto constante da alínea A).

O Ministério Público alega ainda que, resulta do depoimento da ofendida que, em momento anterior ao empurrão considerado provado, o arguido dirigiu-se à ofendida e desferiu-lhe uma chapada na face, por esta lhe ter respondido, levantando a voz, e, noutra ocasião, desferiu um empurrão no peito e uma chapada numa das faces, tendo ficado com as faces vermelhas em ambas as situações (gravação da inquirição da ofendida das 10h55m16s às 11h2848s.).

Quanto à agressão, que a ofendida refere como tendo sido uma chapada, por lhe ter respondido, levantando a voz, tal facto nem sequer consta da acusação.

Relativamente à agressão em que a ofendida referiu, que ele a empurrou no peito e lhe deu uma chapada, tal referência foi vaga, imprecisa, não circunstanciada no tempo, e nem sequer foram e nem foram concretizados os motivos porque tal aconteceu por isso, não nos merece reparo o facto de não ter sido considerada provada tal agressão.

Por fim, alega o recorrente que, se deve considerar como provado o facto F, já que a ofendida assegurou por mais que uma vez que o arguido lhe disse “ficas ali em coma ao pé da porta” e que nessa noite em que pretendia sair de casa, o mesmo disse-lhe também “cala-te já! Senão…” e, acto contínuo, “cerrou o punho e levantou-o no ar na sua direcção e disse ficas em coma ao pé da porta”.

Da audição da prova, nomeadamente das declarações da ofendida, não resulta que na noite de 4 de Maio de 2014 tenha havido qualquer manifestação da ofendida no sentido de pretender a abandonar a residência e que em consequência o arguido a tenha apelidado de maluca, deficiente, que devia ter algum amante para ir embora e que o arguido tenha levantado o braço, cerrado o punho e lhe tinha tenha dito ficas em coma ao pé da porta.

Por outro lado, o arguido também negou a ocorrência deste facto (minuto 8:23 a 8:34)

Assim sendo, não está provado que na noite de 4 de Maio de 2014 tenham ocorrido os factos em causa.

Quanto aos factos H) a J) já nos pronunciámos sobre os mesmos na questão anterior.

3ª- Se os factos provados integram o crime de violência doméstica agravado p. e p. no art. 152º, nº 1 al. a) nº 2 do C. Penal.

Dispõe o art. 152º, nº 1, al. a) e 2) do C. Penal, que: “Quem, de modo reiterado ou não, inflingir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;

b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem gente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;

c) A progenitor de descendente comum em 1º grau; ou

d) a pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;

é punido com pena de prisão de uma cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2. No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença do menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.”

A função deste artigo é prevenir as frequentes e, por vezes tão subtis e camufladas formas de violência no âmbito da família. Neste sentido, a necessidade prática da criminalização das espécies de comportamentos descritos no art. 152º nº 1, resultou da consciencialização ético-social dos tempos recentes sobre a gravidade individual e social destes comportamentos.

Este tipo de crime está integrado no Título I, dedicado aos “crimes contra as pessoas” e, dentro deste, no Capítulo III, epigrafado de “Crimes contra a integridade física”.

Desta análise sistemática, pode-se concluir que a ratio do tipo não está na protecção da comunidade familiar ou conjugal, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana. O âmbito punitivo deste crime abarca os comportamentos que, de forma reiterada ou não, lesam a referida dignidade. Se é certo que no passado se considerou que o bem jurídico protegido era apenas a integridade física, constituindo a violência doméstica uma forma agravada do crime de ofensas corporais simples, no presente, uma interpretação como a acabada de expor é inaceitável, por manifestamente limitativa e redutora. A ratio deste artigo que estamos a analisar vai muito mais longe que os maus tratos físicos, abrangendo também os maus tratos psíquicos, como as ameaças, as humilhações, as provocações, as curtas privações da liberdade de movimentos e as ofensas sexuais, ou melhor, as condutas que integram o tipo objectivo do crime previsto no art. 152º do C.Penal podem ser de várias espécies: maus tratos físicos (ofensas corporais simples) e maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, ameaças, injúrias), e podem ser susceptíveis de, singularmente consideradas constituírem, em si mesmas, outros crimes a saber, ofensa à integridade física simples, ameaça, injúria, difamação.

Mas estas condutas, enquanto integradoras do crime previsto no art. 152º do C.Penal não são individualmente consideradas, enquanto integradoras de um tipo de crime para serem atomisticamente perseguidas criminalmente, são, antes, valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento revelador de um crime de maus tratos sobre o cônjuge.

Assim, o bem jurídico protegido por este tipo legal de crime é a saúde, esta entendida enquanto saúde física, psíquica e mental e, por conseguinte, podendo ser afectada por uma diversidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal desenvolvimento de uma pessoa, afectem a dignidade pessoal e individual do cônjuge ou de pessoa com quem tenha mantido relação análoga à dos cônjuges.

Preenche, pois, o crime do art. 152º do C.Penal a prática de qualquer acto de violência que afecte a saúde, física e psíquica ou emocional do cônjuge vítima, diminuindo ou afectando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida naquela realidade conjugal.

Este tem sido o sentido da jurisprudência dos tribunais, considerando que o crime pode realizar-se através de uma pluralidade de actos, ou através de um acto único, que atinja a saúde física psíquica ou moral do cônjuge e afecte a sua dignidade pessoal, Na verdade, não são só os actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos, mas também, os actos isolados ou reiterados, que apreciados à luz da vida em comum possam de modo relevante colocar em risco a saúde do cônjuge, tornando-o vítima de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro daquele espaço de intimidade.

A lei actualmente não exige, para a verificação do crime previsto no art. 152º, que a conduta típica assuma um carácter de reiteração, mas, na maior parte das vezes, o crime tenderá a concretizar-se numa actuação minimamente repetida, pois, dessa reiteração resultará esse «algo mais» de vulneração da dignidade pessoal do agente passivo, que permite traçar a linha de separação entre o crime de violência doméstica e os tipos de crimes centrados na protecção jurídica de um único bem jurídico pessoal.

No caso em apreço, o arguido viveu com a ofendida entre 2 de Fevereiro de 2005 e Novembro de 2011 e Maio de 2012 até Maio de 2014.

Em 9 de Agosto de 2008 contraíram casamento entre si e divorciaram-se em 5 de Novembro de 2014, pelo que se verifica a existência da relação exigida por lei entre o agente e o sujeito passivo dos comportamentos ilícitos.

Provou-se ainda que, ao longo da vivência em comum, no interior da residência do casal, o arguido dirigia-se a P, com frequência, apelidando-a de “marrã”, “maluca”, “vaca”, “vacarrona”, “cadela patola”, “puta” gorda”.

Em data não concretamente apurada, na constância da vida em comum e na presença da filha menor de ambos disse a P, “tenho ali uma, acho que tenho que a limpar para um dia servir”, referindo a uma arma de caça que possuía em virtude de ser caçador.

Em data não concretamente apurada, o arguido disse para a ofendida “enforco-te numa oliveira, só estás cá a fazer o pão caro, maluca deficiente, és como um cão patola, puta, vaca”.

Entre 1 e 5 de Maio de 2014, porque a ofendida retirou dinheiro da escrivaninha do quarto empurrou-a, projectando-a contra a cama.

P abandonou, em 5 de Maio de 2014, a residência comum com a filha e de 26 de Maio até 1 de Setembro de 2014, o arguido enviou-lhe as mensagens, cujo teor consta do facto provado nº 9 da matéria provada, em que as mais graves são: “Nessa leva tens os dias contados”, “eu dou cabo da minha vida mas acabo com vocês primeiro”, “acabo contigo”

Estamos, assim, perante uma caso de “micro violência continuada”, que como refere Nuno Brandão em “A tutela especial reforçada da violência doméstica, Revista julgar nº 12, Set-Dez de 2010”, se caracteriza pela “opressão…exercida e assegurada normalmente através de repetidos actos de violência psíquica que apesar de baixa intensidade quando considerados avulsamente são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de comportamento no âmbito da relação”.

Considerada no seu conjunto a conduta descrita integra um atentado à dignidade pessoal da ofendida no quadro da relação que os ligava, pelo que estão preenchidos os elementos objectivos do tipo previsto no nº 1 alínea a) do art. 152º do C.Penal, verificando-se ainda a agravação qualificativa prevista no nº 2, uma vez que se provou que os factos ocorreram parcialmente no interior da residência do casal e na presença da filha menor.

Esta circunstância agravativa justifica-se pelo facto de ser no contexto do domicílio que se multiplicam as agressões a coberto de uma certa sensação de impunidade dada pelo espaço fechado e pela ausência de testemunhas.

Quanto ao elemento subjectivo exige-se o dolo directo em qualquer das suas modalidades, art. 14º do C. Penal:

O arguido N previu e quis proferir as expressões constantes dos autos, e desferir um empurrão em P e, com estes atos, atingir o corpo, a saúde e o bem-estar físico da mesma, bem como humilhar, ofender a honra e consideração da mesma e atingir o seu bem-estar psíquico, provocar-lhe medo, terror e intranquilidade, e limitar a sua liberdade de autodeterminação, o que conseguiu e que, ao praticar tais factos na casa onde ambos habitavam, lhe causava ainda maior temor e intranquilidade, resultado este que previu e com o qual se conformou.

Mais sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, tendo a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.

Os factos descritos integram o crime de violência doméstica em p. e p. no art. 152º, nº 1 als. a) e 2 do C.Penal, praticado pelo arguido.

III- 3ª- Da medida da pena
O arguido incorreu no crime de violência doméstica previsto e punível no art. 152º, nº 1, al. b) e nº 2 do C.Penal a que corresponde pena de prisão 2 a 5 anos de prisão.

A aplicação das penas e das medidas de segurança visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (arts. 40º nº 1 e 2 do C. Penal).

Por sua vez, o art. 71º do mesmo diploma estabelece que a determinação da medida da pena, dentro dos limites fixados na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo ainda o tribunal, na determinação daquela atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, designadamente as referidas nas várias alíneas do seu nº 2.

Destes preceitos infere-se que, a função primordial de uma pena, sem embargo de outros aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos que incidam sobre os bens jurídicos penalmente protegidos.

O seu limite máximo fixar-se-á, em homenagem à salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham.

O limite mínimo da pena é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa protecção dos bens jurídicos.

Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente.

Importa, pois, de acordo com os critérios referidos determinar a medida da pena.

- as exigências de prevenção geral neste tipo de crimes são acentuadas, ume vez que este tipo de crime ocorre com frequência e gera, em regra, consequências muito nefastas para as suas vítimas;

- as exigências de prevenção especial são pouco elevadas, dado que não consta qualquer condenação do certificado do registo criminal do arguido e relação de vivência em comum entre este e a ofendida já terminou, há cerca de três anos.

- o grau de ilicitude dos factos é significativo, dado que o crime se consumou essencialmente através de injúrias e ameaças, factos que deram origem à separação do casal e que se prolongou no tempo, durante a vivência em comum e nos quatro meses após a separação, em que a ofendida se sentiu vexada na sua dignidade.

-quanto à culpa a sua conduta é-lhe assacada a título de dolo na forma directa, art. 14º nº 1 do C.Penal.

-o arguido admitiu parte dos factos, o que de algum modo atenua a sua responsabilidade.

- encontra-se desempregado, há cerca de seis meses, não auferindo qualquer subsídio, realiza biscates esporadicamente. Vive sozinho em casa própria e é ajudado pelos pais.

Perante este quadro, consideramos como justa e adequada a pena de 2 anos e 3 meses de prisão.

Atenta a pena concretamente aplicada não é possível a sua substituição por pena de multa ou outra pena não privativa (sem prejuízo da possibilidade de suspensão da execução da pena de prisão aplicada) trabalho a favor da comunidade.

Vejamos, agora, se é possível a suspensão da pena.

Quanto à suspensão da pena dispõe o nº 1 do art. 50º do C.Penal, na redacção da Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro: “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, á sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam adequada e suficiente as finalidades da punição.”

A pena aplicada ao arguido não é superior a cinco anos de prisão, logo está verificado o requisito formal da suspensão da execução da pena.

Pressuposto material da aplicação da suspensão de execução da pena de prisão é um prognóstico favorável pelo tribunal relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a ameaça da pena seja adequada a realizar as finalidades da punição (Ac. do STJ de 11/05/1995, in proc. nº 4777/3ª).

A suspensão da execução da pena “deverá ter na sua base uma prognose social favorável ao réu, a esperança de que o réu sentirá a sua condenação como uma advertência de que não cometerá no futuro nenhum crime” (Ac. do STJ proc. 1092/01 – 5ª secção).

“O tribunal deverá correr um risco prudente, uma vez que esperança não é seguramente certeza, mas se tem dúvidas sobre a capacidade do réu para compreender a oportunidade que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa” (Leal - Henriques e Simas Santos, Código penal em anotação ao art. 50º).

As penas de prisão aplicadas em medida não superior a 5 anos devem ser, em princípio suspensas na sua execução, salvo se o juízo de prognose sobre o comportamento futuro do agente se apresentar desfavorável, ou a suspensão for impedida por prementes exigências de prevenção geral.

O arguido é delinquente primário, admitiu parte dos factos, está desempregado, mas quando tem possibilidades realiza biscates esporadicamente.

Tendo em conta a personalidade do arguido, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime, tudo leva a crer que a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, pelo que se verificam os pressupostos formais e materiais para que a pena seja suspensa na sua execução.

IV- Decisão
Termos em que acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso, e em consequência os factos H) a J) passam a constar da matéria provada, respectivamente com os nºs 11 a 14, revoga-se a decisão recorrida e condena-se o arguido pela prática do crime previsto e punível no art. 152º nº 1 al. a) e nº 2 do C. Penal na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão, que se se suspende por igual período.

Sem custas.

Évora, 16 de Maio de 2017

(Texto elaborado e revisto pelo relator)

JOSÉ MARIA MARTINS SIMÃO

MARIA ONÉLIA NEVES MADALENO