Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
5760/18.0T8STB.E1
Relator: TOMÉ RAMIÃO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
ALTERAÇÃO ANORMAL DAS CIRCUNSTÂNCIAS
PRESSUPOSTOS
VENDA DE COISA FUTURA
ÓNUS DA PROVA
DEVER DE PRESTAR
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 09/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1. O exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância só se justifica se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa.
2. De acordo com o regime prescrito no art.º 437.º/1 do C. Civil, a sua aplicação depende da verificação dos seguintes requisitos cumulativos: a) uma alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar ( a denominada “base do negócio”); b) o carácter anormal dessa alteração; c) que essa alteração provoque uma lesão para uma das partes; d) que essa lesão seja de tal ordem que se apresente como contrária à boa fé e exigência do cumprimento das obrigações assumidas; e) não se encontre coberta pelos riscos próprios do contrato.
2. Na venda de bens futuros, o vendedor fica obrigado a exercer as diligências necessárias para que o comprador adquira os bens vendidos, segundo o que for estipulado ou resultar das circunstâncias do contrato – art.º 880.º/1 do C. Civil.
3. Competia à Ré, enquanto devedora, alegar e demonstrar os pressupostos de aplicação do art.º 437.º/1 do C. Civil, assim como que a prestação se haja tornado impossível, por causa não lhe imputável (art.ºs 790.º/1 e 793.º/1, do C. Civil).
4. E competia-lhe, também, provar que a falta de cumprimento da obrigação ou o seu cumprimento defeituoso (no caso, incumprimento parcial) não procede de culpa sua (art.º 799.º/1 do C. Civil).
5. Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, e verificado o respetivo nexo de causalidade entre o dano e o facto danoso – art.º 562.º e 563.º do C. Civil.
6. Apenas se deverão qualificar como danos ressarcíveis aqueles que, segundo um critério objetivo, e inexistindo circunstâncias anómalas ou excecionais, são consequência direta e necessária daquele indicado evento lesivo. (sumário do relator)
Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora

I. Relatório.
1. A Autora M…, S.P.A., sociedade de Direito Italiano, com o n.º fiscal IT-… com sede em S.S. Flaminia, Km. …-Spoleto (Perugia), Itália, instaurou a presente ação declarativa comum contra a SOCIEDADE AGRÍCOLA DO VALE …. S.A., com sede em Lagar do …, …, Santiago do Cacém, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de € 153.946,54, acrescidos de juros de mora à taxa comercial contabilizados desde da data da citação até efetivo e integral pagamento.
Alegou, em síntese, que no exercício das respetivas atividades comerciais celebrou com a Ré um contrato de compra e venda de azeite, no âmbito do qual esta se obrigou a fornecer-lhe azeite virgem extra, num total de 270 toneladas, que não cumpriu, entregando apenas 54 toneladas.
Em consequência desse incumprimento, a Autora, por forma a poder cumprir, por sua vez, as obrigações já assumidas, teve de adquirir azeite a outros produtores e, nessa altura, não teve outra solução que não fosse pagar um preço de comercialização superior ao inicialmente contratado com a Ré, o que lhe causou os prejuízos que identificou e que pretende ver ressarcidos.
Citada, a Ré contestou, defendendo-se por exceção e impugnação, contrapondo que, na campanha de 2014/2015, a produção de azeite sofreu um decréscimo de mais de 50% em relação ao ano anterior, devido às alterações climatéricas que se fizeram sentir, pelo que a venda de 216 toneladas à Autora implicaria que incumprisse completamente com todos os seus clientes. Disso deu conhecimento à Autora e propôs entregar metade da quantidade, o que ela não aceitou.
Mais alegou que o contrato deve considerar-se resolvido nos termos do art.º 437.º do C. Civil e que ocorreu impossibilidade de cumprimento da prestação por causa que não lhe é imputável.
Terminou pedindo a improcedência da ação.
Foi proferido despacho saneador, fixado o objeto do litígio e definido os temas da prova, após que foi realizado o julgamento e prolatada a competente sentença, que julgou improcedente a ação e absolveu a Ré do pedido.
Inconformada com esta sentença veio a Autora interpor o presente recurso, encerrando as suas alegações com complexas e extensas conclusões, ao arrepio da exigência de síntese mencionada no art.º 639. º/1 do C. P. Civil, pelo que não se reproduzem, mas que se sintetizam nas seguintes:
i) Matéria de facto
1. Face à prova produzida nos autos, o tribunal “a quo” deveria ter considerado como provados os seguintes factos, requerendo-se assim o respetivo aditamento à matéria de facto provada:
A atividade de produção e comercialização de azeite encontra-se por natureza sujeita a diversas circunstâncias, incluindo a possibilidade de alterações climatéricas e a ocorrência de pragas e doenças, as quais podem ter influência nas colheitas”.
2. A acrescer, face à prova produzida nos autos, o tribunal “a quo” deveria ter também considerado como provados os seguintes factos, requerendo-se assim o respetivo aditamento à matéria de facto provada:
A Ré, com base numa estimativa efetuada por si, vendia em sede de pré-campanha, aproximadamente metade da produção de azeite que estimava produzir.
A outra metade era vendida na própria campanha”.
3. Mais, face à prova produzida nos autos, o tribunal “a quo” deveria ter também considerado como provados os seguintes factos, requerendo-se assim o respetivo aditamento à matéria de facto provada:
“A Ré tinha à sua disposição para entrega azeite da mesma qualidade e em quantidade bastante superior àquela que foi acordada vender à Autora.”
4. O tribunal “a quo” deveria ter também considerado como provados os seguintes factos, requerendo-se assim o respetivo aditamento à matéria de facto provada:
Não se conhecem casos de outros fornecedores de azeite, enfrentando as mesmas circunstâncias referentes ao período da colheita em causa, terem requerido alterações aos contratos ou deixado de entregar as quantidades acordadas”.
5. Deverá ser eliminado o seguinte ponto que atualmente consta da matéria provada:
20 - Devido a alterações climatéricas a produção de azeite na Europa, com especial incidência em Portugal, Espanha e Itália, na campanha 2014/2015 sofreu alterações tendo decrescido em relação às campanhas anteriores”.
6. Sem prejuízo do supra exposto, caso o tribunal “a quo” opte apenas por uma retificação do ponto em causa (em vez da eliminação aqui requerida), o que aqui apenas se conjetura de forma hipotética e por estrito dever de patrocínio, a redação do referido artigo deverá então ser alterada nos seguintes termos:
20- A produção de azeite na Europa, com especial incidência em Portugal e Espanha, na campanha 2014/2015 sofreu alterações tendo decrescido em relação à campanha anterior de 2013/2014, a qual tinha apresentado o valor mais alto dos últimos 50 anos.
7. A acrescer, simultaneamente, deve ser acrescentando o seguinte ponto à matéria
de facto:
“Relativamente à produção média das últimas cinco campanhas, a quebra de produção foi apenas de 13%.”
ii) Matéria de Direito
8. Nos pontos 1 a 19 o tribunal “a quo” considerou como provados os factos que preenchem os pressupostos da responsabilidade contratual ou obrigacional (Art. 798.º do Código Civil), designadamente: i) O facto objetivamente ilícito consistente na inexecução da obrigação de entrega acordada; ii) A culpa do agente na produção do facto, a qual aliás se presume nos termos do Art. 799.º do CC; iii) A existência de danos para o credor; iv) O nexo de causalidade entre o facto e os danos.
9. Contudo, o tribunal “a quo” decidiu aplicar o instituto da “Alteração Anormal das Circunstâncias” (Art. 437.º do CC) considerando não ser exigível à Recorrida o cumprimento da obrigação em causa, e absolvendo-a do pedido, sem que estivessem reunidos os respetivos pressupostos de aplicação.
10. O instituto da Alteração Anormal das Circunstâncias tem um cariz excecional, sendo a última saída para a afirmação da justiça, quando a boa-fé imperiosamente o exija.
11. Na esteira da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, para que a lei confira o direito potestativo de resolver ou de modificar equitativamente um contrato, invocando alteração anormal das circunstâncias é necessário que se prove: (i) que as circunstâncias objetivas em que ambas fundaram a decisão de contratar (ii) se alteraram anormalmente após a realização do contrato, (iii) que essa alteração, objetiva e anormal, não está coberta pelos riscos próprios do contrato, e que (iv), a exigência do cumprimento dessa prestação contrarie gravemente o princípio da boa fé.
12. É sobre o interessado, in casu, sobre a Recorrida, que recai o ónus da prova dos pressupostos, o que não aconteceu.
13. No presente caso, a alegada “alteração” está coberta pela álea de riscos do próprio contrato e não é “anormal”.
14. Com efeito, ficou demonstrado no processo que o ramo da produção de azeitonas e de azeite está por natureza sujeito a uma série de circunstâncias que podem ter influência na atividade dos operadores. Tais circunstâncias incluem condições e alterações climáticas adversas, designadamente, mudanças de temperatura, alterações de níveis de pluviosidade, bem como, a possibilidade de ocorrência de pragas e doenças nas culturas.
14. A Recorrida, enquanto sociedade comercial com experiência e conhecimento especializado relativamente a todas as circunstâncias e condicionantes que por natureza estão subjacentes ao ramo do negócio em que opera, não pode invocar o desconhecimento da possibilidade de tais circunstâncias afetarem a sua produção.
15. A Recorrida, tendo perfeita noção da esfera de risco inerente ao seu negócio, aceitou-o, e a acrescer, com base numa estimativa feita por si, que acabou por se revelar errada, tomou a opção de incorrer em compromissos contratuais que ainda não tinha a certeza se era capaz de cumprir.
16. Perante a conformação expressa e clara da Recorrida relativamente ao risco inerente ao seu próprio negócio, quaisquer “alterações climáticas”, pragas ou doenças que se tenham verificado nas culturas da Recorrida, fazendo parte desse mesmo risco, não podem constituir justificação para o não cumprimento ou para uma modificação do contrato, nos termos e para efeitos do art. 437.º do CC.
17. Por outro lado, a aplicação do Art. 437.º do CC pressupõe a ocorrência de uma
alteração anormal nas circunstâncias objetivas em que as partes fundaram a decisão de contratar, sendo irrelevantes as circunstâncias subjetivas de cada uma das partes.
18. In casu, ficou demonstrado que não foi a alegada alteração de circunstâncias causada pelas mudanças climáticas, pragas ou doenças que impossibilitou a Recorrida de cumprir o contrato celebrado com a Recorrente.
19. Com efeito, ficou claramente demonstrado que a Recorrida tinha efetivamente à sua disposição azeite do tipo que se comprometeu contratualmente a entregar à Recorrente, inclusivamente numa quantidade muitíssimo superior à que foi acordada.
20. Na verdade, foi uma opção comercial tomada pela própria recorrida, com vista a gerir relações com terceiros e a obstar às suas próprias perdas/danos/prejuízos com
outros clientes, que fez com que aquela voluntariamente não cumprisse o contrato celebrado com a Recorrente.
21. As obrigações alegadamente assumidas pela Recorrida perante outros clientes não são oponíveis à Recorrente, nem podem servir de causa justificativa para o não cumprimento das obrigações assumidas para com esta.
22. Caso tais circunstâncias, de natureza subjetiva, relevassem para o contrato celebrado entre a Recorrente a Recorrida, então as partes teriam optado por inserir uma cláusula contratual que refletisse esse mesmo condicionalismo. Contudo, tal não sucedeu.
23. Na verdade, estas são circunstâncias subjetivas respeitantes à pessoa da Recorrida e não circunstâncias objetivas. Nessa medida, não podem servir de fundamento à aplicação do instituto previsto no Art.º 437.º do CC.
24. Por outro lado, foi a conduta da própria recorrida que contribuiu para a ocorrência da presente situação, designadamente, ao optar por incorrer em compromissos contratuais, com base numa mera estimativa, que acabou por se revelar errada e sem ainda ter a certeza se teria capacidade para os honrar.
25. Ora, os factos que fundamentam uma pretensa alteração anormal das circunstâncias enquanto instituto, para além de terem de se reportar às circunstâncias objetivas em que as partes fundaram a sua decisão de contratar, não podem decorrer de atos ou omissões imputáveis à parte que se considera lesada, devendo escapar à sua capacidade de influência.
26. Face ao exposto, e perante o quadro factual em causa, é notório que exigência de cumprimento das obrigações por parte da Recorrida para com a Recorrente, de modo algum afeta gravemente os princípios da boa-fé, falecendo também este requisito de aplicação do art.º 437.º do CC.
27. Na verdade, o incumprimento da Recorrida, bem como quaisquer hipotéticos constrangimentos ou prejuízos sofridos pela mesma, advêm, não de uma alteração anormal das circunstâncias, mas sim da sua própria incapacidade de gerir a sua produção, os seus compromissos contratuais e o risco naturalmente inerente ao seu negócio.
28. Razão pela qual não existe qualquer razão que justifique o incumprimento perpetrado, nem tão pouco que justifique a aplicação do instituto da Alteração Anormal das Circunstâncias previsto no art.º 437.º do CC para efeitos de modificação do contrato celebrado.
Termina pedindo a revogação da sentença e a condenação da Recorrida no pagamento da quantia inicialmente peticionada de € 153.946,54 (cento e cinquenta e três mil, novecentos e quarenta e seis euros e cinquenta e quatro cêntimos) acrescidos de juros de mora à taxa comercial, vencidos e vincendos, contabilizados desde a data da citação da presente ação judicial até efetivo e integral pagamento.
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A Ré contra-alegou, defendendo a bondade da sentença recorrida e pugnando pela improcedência do recurso.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente e com efeito devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. Âmbito do Recurso.
Perante o teor das conclusões formuladas pela recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso - arts. 608.º, nº2, 609º, 620º, 635º, nº3, 639.º/1, todos do C. P. Civil, constata-se que as questões essenciais a decidir são as seguintes:
a) Se deve ser alterada a matéria de facto.
b) Se o contrato celebrado entre as partes pode ser modificado por alteração das circunstâncias, nos termos do art.º 437.º do C. Civil.
c) Se ocorreu incumprimento contratual pela Ré e respetivas consequências jurídicas.
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III. Fundamentação fáctico-jurídica.
1. Matéria de facto.
A matéria de facto dada como provada é a seguinte:
1 - A Autora é uma sociedade comercial, com sede em Itália, que tem como atividade a produção e venda de azeite.
2 - A Ré é uma sociedade comercial, com sede em Portugal, que tem por objeto a exploração agrícola de prédios próprios ou alheios, produção, transformação e comercialização de azeite, bem como quaisquer outras atividades com estas relacionadas ou conexas.
3 - No âmbito das respetivas atividades comerciais, a Autora celebrou com a Ré um acordo nos termos do qual esta se obrigou a vender-lhe 270 toneladas de azeite-extra “Arbequino” da campanha de 2014/2015, que seria fornecido em 10 cisternas de 27.000kgs cada.
4 – Nos termos desse acordo a Autora comprometeu-se a efetuar o pagamento nos seguintes termos:
- € 2.800,00 por tonelada para um primeiro fornecimento de 54 toneladas de azeite produzido em Portugal (2 cisternas de 27 toneladas) com entrega acordada para o mês de outubro de 2014;
- € 2.600,00 por tonelada para um segundo fornecimento de 216 toneladas de azeite produzido em Espanha e/ou em Portugal (8 cisternas de 27 toneladas) com entrega acordada para o mês de novembro de 2014.
5 – (Eliminado porque repete a factualidade no ponto n.º7).
6 – A celebração do negócio referido foi promovido pela sociedade M… S.L.. por conta e em nome da Autora.
7 - O acordo entre as partes ficou contemplado no documento junto aos como como documento nº.1 com a petição inicial, o qual se dá por integralmente reproduzido.
8 - Em execução do referido acordo a Ré procedeu, no mês de outubro, à entrega à Autora de 54 toneladas de azeite.
9 - Em 14 de Novembro de 2014, a Ré enviou a Autora a carta cuja cópia se mostra junta de fls.14/114, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, na qual informou que face à ocorrência de alterações meteorológicas e, em consequência de pragas que assolaram a cultura da azeitona sofreu um decréscimo da produção de cerca de 50% da colheita de azeite esperada e, assim, comunicava que “ a nossa empresa coloca à sua disposição metade da quantidade que nos propôs comprar na altura, a qual poderá retirar do nosso lagar nas próximas semanas” .
10 - A Autora respondeu a esta missiva, por carta de 17 de novembro de 2014 através da sociedade de advogados “S…”, cuja cópia se mostra junta de fls.116v, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, na qual consta, além do mais, que “Apenas hoje é que o mediador profissional M…l S.L. informou-nos que estão dispostos a fornecer-nos metade da quantidade contratualmente concordada, ou seja, 108 toneladas. Uma vez que a empresa M… pretende obter o cumprimento integral do contrato de fornecimento (…) ficamos à espera de instruções em relação à entrega imediata da primeira metade, bem como garantias relativas à entrega da outra metade (…) até ao corrente mês de novembro”.
11 - Em 27 de Novembro de 2014, a Ré enviou à Autora a missiva cuja cópia se mostra junta a fls. 118 a 119, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, na qual comunicava a disponibilidade de fornecer apenas metade da quantidade de azeite que fora acordada entre as partes.
12 - No mês de novembro a Ré não procedeu à entrega de 216 toneladas de azeite.
13 - Perante esta situação a Autora recorreu a outros operadores do sector do azeite com vista a que manifestassem disponibilidade de venda de azeite extra virgem, idêntico em qualidade e quantidade.
14 - O processo foi efetuado através de um intermediário profissional - a sociedade C… s.n.c. com sede em Larciano (Itália) e o correspondente espanhol O… em Córdoba (Espanha).
15 - Após receber as várias ofertas, a O… redigiu a confirmação da encomenda n.° 104 / 2015 de 12.1.2015, da qual resulta que o leilão privado de fornecimento foi concedido a favor da sociedade D…, Málaga (Espanha).
16 -O fornecimento foi de 218 toneladas, ao preço unitário de compra foi de € 3.300,00 por tonelada o que acabou por determinar custos acrescidos de € 700,00 por tonelada (ou seja: € 3.300,00 - € 2.600,00).
17 - Em 25 de Fevereiro de 2015 a Autora procedeu ao pagamento de um valor total de € 690.000,00 a favor da D…, S.C.A. por conta do azeite adquirido.
18 -A Autora suportou um custo acrescido no valor de € 151.200,00
19 - A Autora suportou as seguintes despesas aos intermediários C… s.n.c. e O…, no valor de € 1.441,77 e € 1.304,77, respetivamente.
20- Devido a alterações climatéricas a produção de azeite na Europa, com especial incidência em Portugal, Espanha e Itália, na campanha 2014/2015 sofreu alterações tendo decrescido em relação às campanhas anteriores.
21 - No Outono de 2014 as temperaturas foram superiores à média, tendo sido o outubro mais quente desde 1931, o que potenciou o desenvolvimento de doenças criptogâmicas e o ataque de pragas.
22 - Na cultura do olival, variedade arbequino, que predomina nos olivais da Ré, registou-se, pela primeira vez, a doença da gafa.
23 - Tal praga ocorreu em fase de maturação do fruto que acabou por provocar a queda de praticamente a totalidade dos frutos atacados.
24 – A ré teve uma quebra de produção de cerca de 50% em relação aos anos anteriores.
25 - Em face das produções de azeite anteriores e segundo as previsões dos engenheiros agrónomos, a Ré antevia um acréscimo de produção para a campanha de 2014/2015.
26 - A campanha 2014/2015 caracterizou-se pela existência de condições meteorológicas e fitossanitárias desfavoráveis à produção de azeitona, o que determinou a diminuição significativa da produção.
27- Estas condições determinaram também uma diminuição da qualidade do azeite, ou seja, uma alteração da sua acidez.
28- Segundo dados oficiais na União Europeia e do International Olive Council, a produção total de azeite em Portugal foi de 91,6 mil toneladas na campanha 2013/2014 e apenas de 61 mil toneladas na campanha 2014/2015.
29 - Segundo os mesmos dados, em Espanha a produção de azeite foi de 1.782 mil toneladas na campanha 2013/2014 e de 842,2 mil toneladas na campanha 2014/2015.
30 - Também em Itália a produção de azeite foi de 464 mil toneladas na campanha 2013/2014 e de 222 mil toneladas na campanha 2014/2015.
31- No que diz respeito ao grupo empresarial O…, S.L., grupo de sociedade da qual a Ré fazia parte nos anos 2013 e 2014, e que tem como objeto a exploração de olivais e produção de azeite, no exercício em 2013 verificaram-se lucros de €453.357,00 e no exercício de 2014 prejuízos de €6.694.408,00.
32- Da certificação legal das contas da Ré referente ao ano de 2014, junta a fls. 67v a86, que aqui se dá por reproduzida, verifica-se que, na sequencia da quebra de produção, a Ré teve um resultado liquido negativo de €1.096.253.
33 - A Autora atuando no mercado do azeite sabia da quebra de produção.
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2. Reapreciação da matéria de facto.
2.1. A recorrente pretende que se considere provado, com consequente aditamento à factualidade assente, que “A atividade de produção e comercialização de azeite encontra-se por natureza sujeita a diversas circunstâncias, incluindo a possibilidade de alterações climatéricas e a ocorrência de pragas e doenças, as quais podem ter influência nas colheitas”.
Esta factologia, em seu entender, está demonstrada pelos depoimentos das testemunhas R…, J…, M…, as quais explicaram de uma forma clara, coerente e detalhada qual o tipo de circunstâncias a que a atividade em causa está por natureza sujeita.
Está em causa nos presentes autos, e consequente objeto do recurso, saber se a Ré incumpriu culposamente o contrato celebrado com a Autora e respetivas consequências jurídicas ou se ocorreu alteração superveniente das circunstâncias que justifiquem a modificação desse contrato.
Por isso, é totalmente inútil realizar o julgamento para dar como provada a referida “factologia”, ou seja, saber se “a atividade de produção e comercialização de azeite encontra-se por natureza sujeita a diversas circunstâncias, incluindo a possibilidade de alterações climatéricas e a ocorrência de pragas e doenças, as quais podem ter influência nas colheitas”, sendo que no processo não é lícito realizar atos inúteis (art.º 130º, do CPC).
Aplicando o referido princípio à pretendida reapreciação da matéria de facto, deve entender-se que o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância só se justifica se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa, o que não é manifestamente o caso.
Os poderes de controlo da Relação no tocante à decisão da matéria de facto da 1ª instância não devem ser atuados se os factos cujo julgamento é impugnado não forem relevantes para nenhum dos enquadramentos jurídicos possíveis do objeto do recurso» [1]..
Assim também se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão de 17/05/2017, afirmando: “O princípio da limitação dos atos, consagrado, no artigo 130.º do CPC, para os atos processuais em geral, proíbe, enquanto manifestação do princípio da economia processual, a prática de atos no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – que não se revelem úteis para alcançar o seu termo. Nada impede que tal princípio seja igualmente observado no âmbito do conhecimento da impugnação da matéria de facto se a análise da situação concreta evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual cuja relevância se projete na decisão de mérito a proferir” [2].
É precisamente o que acontece no caso dos autos, em que é totalmente irrelevante para a decisão do objeto do presente recurso.
Acresce que tal factologia é um facto notório, do conhecimento geral, pelo que não carece de alegação e prova – art.º 412.º do C. P. Civil. O que é reconhecido pela recorrente, ao afirmar: “Aliás, a circunstância de a produção de azeite, enquanto atividade agrícola, estar necessariamente sujeita a este tipo de fatores, é até do domínio da lógica, da experiência e do senso comum inerente a qualquer observador razoável”.
Improcede, pois, a pretendida alteração à matéria de facto.
2.2. Considera a recorrente ser de aditar à matéria de facto, com base no depoimento de Parte da Recorrida prestado pelo seu representante J…, que “A Ré, com base numa estimativa efetuada por si, vendia em sede de pré-campanha, aproximadamente metade da produção de azeite que estimava produzir. A outra metade era vendida na própria campanha”, e bem assim que “A Ré tinha à sua disposição para entrega azeite da mesma qualidade e em quantidade bastante superior àquela que foi acordada vender à Autora.”
Esta factologia, pelas razões mencionadas no ponto anterior, é igualmente irrelevante para a decisão do objeto do presente recurso.
Acresce que de acordo com o disposto no artº 5.º /1 do C. P. Civil, em obediência ao princípio do dispositivo, cabe às partes alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.
Aos factos essenciais, como ensina Teixeira de Sousa, “Estudos Sobre o Novo Código de Processo Civil”, 1997, 2.ª edição, pág. 72, “são necessários à identificação da situação jurídica invocada pela parte e, por isso, relevam, desde logo, na viabilidade da ação ou da exceção: se os factos alegados pela parte não forem suficientes para se perceber qual a situação que ela faz valer em juízo (qual o crédito, por exemplo), existe um vício que afeta a viabilidade da ação ou da exceção”.
O juiz só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo dos factos instrumentais que resultem da discussão da causa, os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar, e os factos notórios, nos termos do n.º 2 do citado art.º 5.º.
Por isso que na petição inicial o autor tenha de “expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação” – alínea d), do n.º1, do art.º 552.º do C. P. Civil.
Ora, no caso concreto, tanto a Autora como a Ré não alegaram essa factologia.
Improcede a pretendida alteração.
2.3. Pretende, ainda, a recorrente, o aditamento da seguinte factualidade:
“Não se conhecem casos de outros fornecedores de azeite, enfrentando as mesmas circunstâncias referentes ao período da colheita em causa, terem requerido alterações aos contratos ou deixado de entregar as quantidades acordadas”.
Assim como pretende a eliminação do ponto n.º 20 dos factos assentes que refere:
Devido a alterações climatéricas a produção de azeite na Europa, com especial incidência em Portugal, Espanha e Itália, na campanha 2014/2015 sofreu alterações tendo decrescido em relação às campanhas anteriores”.
E, em consequência, deverá ser acrescentado o seguinte facto: “Relativamente à produção média das últimas cinco campanhas, a quebra de produção foi apenas de 13%.”
Ora, esta pretensão terá igualmente de improceder, pela manifesta inutilidade para a boa decisão da causa e do objeto do recurso, como se deixou dito no ponto anterior.
Aliás, a própria recorrente reconhece a inutilidade dessa factualidade, ao afirmar, no ponto 10 das suas alegações que” A título preliminar, refira-se que a matéria de facto que foi considerada como provada na sentença proferida pelo tribunal “a quo” é suficiente para justificar uma decisão diferente daquela que foi proferida do ponto de vista da aplicação do Direito”.
Mantém-se, pois, intocada a matéria de facto, salvo quanto à eliminação da sua repetição.
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3. O Direito.
3.1 Da resolução/modificação do contrato por alteração das circunstâncias.
A impugnação judicial assentou, desde logo, na ausência dos pressupostos da modificação do contrato por alteração das circunstâncias.
Com efeito, a sentença recorrida absolveu a Ré do pedido com fundamento no art.º 437.º do C. Civil, considerando que a Ré “ficou impossibilitada de satisfazer as obrigações assumidas, e a exigência do seu cumprimento integral, por banda a Autora, ora recorrente, afeta os princípios da boa-fé, sendo que as alterações não estão cobertas pelos riscos próprios do contrato”.
Na sua fundamentação pode ler-se:
“(…) Da factualidade acima dada como provada resulta que, no caso em apreço, as partes celebraram um contrato de compra e venda cujo objeto consista na entrega pela Ré à Autora de 270 toneladas de azeite extra virgem.
Está igualmente assente que a Ré não cumpriu totalmente a obrigação a que se encontrava adstrita, na medida em que só entregou parte do azeite extra virgem, no entanto, esta contrapõe que se viu impedida de entregar à Autora as 270 toneladas de azeite extra virgem, apenas e só, porque houve alteração das circunstâncias, existentes à data dessa celebração.
Nos termos do artº 437º, nº 1 do Cód. Civil, “se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afete gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.”
O art.437º do Cód. Civil exige que a alteração das circunstâncias não seja o previsível desenvolvimento da situação conhecida à data do contrato; e que essa alteração torne o cumprimento da obrigação ofensiva dos princípios da boa fé.
Tendo em conta a factualidade apurada entendemos que a Ré tinha fundadas para crer que a sua produção permitia o cumprimento da obrigação. Contudo, essa expectativa não se concretizou.
Como se mostra provado as más condições de condições meteorológicas, com temperaturas superiores à média, tendo sido o Outubro mais quente desde 1931, potenciou o desenvolvimento de doenças criptogâmicas e o ataque de pragas, nomeadamente em variedade que até aí nunca havia sido atingido pela doença da gafa, o que implicou praticamente a destruição da totalidade dos frutos atacados, já que a doença ocorreu numa fase de maturação do fruto que não permitiu o seu tratamento e acabou por provocar uma diminuição de cerca de 50% da produção da Autora em relação aos anos anteriores.
Nestas circunstâncias a Ré ficou impossibilitada de satisfazer as obrigações assumidas e exigir o cumprimento integral do contrato, nos precisos termos em que foi celebrado, por parte da Ré parece-nos afetar os princípios da boa-fé e não está coberta pelos riscos próprios do contrato.
Posto isto, entendo que estão verificados os requisitos previstos no artº. 437º. do Cód. Civil”.
Vejamos, pois, se a razão está do lado da Recorrente.
Reza assim o art.º 437.º do C. Civil:
“1 - Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou a modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afete gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.
2 - Requerida a resolução, a parte contrária pode opor-se ao pedido, declarando aceitar a modificação do contrato nos termos do número anterior.
Conforme ensina o Professor Luís de Menezes Leitão [3] “A alteração das circunstâncias corresponde a uma situação em que se verifica a contradição entre dois princípios jurídicos: o princípio da autonomia privada, que exige o pontual cumprimento dos contratos livremente celebrados, e o princípio da boa fé, nos termos do qual não será lícito a uma das partes exigir da outra o cumprimento das suas obrigações sempre que uma alteração do estado de coisas posterior à celebração do contrato tenha levado a um desequilíbrio das prestações gravemente lesivo para essa parte.”
De acordo com o referido preceito legal, a sua aplicação depende da verificação dos seguintes requisitos cumulativos:
a) uma alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar (a denominada “base do negócio”);
b) o carácter anormal dessa alteração;
c) que essa alteração provoque uma lesão para uma das partes e que essa lesão seja de tal ordem que se apresente como contrária à boa fé e exigência do cumprimento das obrigações assumidas;
d) e que não se encontre coberta pelos riscos próprios do contrato.
No que respeita ao primeiro requisito, refere Luís de Menezes Leitão [4], que “apenas são relevantes as alterações de circunstâncias efetivamente existentes à data da celebração do contrato, e que tenham sido causais em relação à sua celebração pelas partes ( a denominada “base do negócio objetiva”). Não releva, assim, para efeitos desta norma, os casos de falsa representação das partes quanto às circunstâncias presentes ou futuras, que apenas colocam um problema de erro, nem circunstâncias que, apesar de efetivamente existentes, não se apresentem como causais em relação à celebração do contrato”.
Trata-se, como realça Inocêncio Galvão Telles [5], das “circunstâncias que determinaram as partes, de tal modo que, se fossem outras, não teriam contratado, ou tê-lo-iam feito, ou pretendido fazer, em termos diferentes”. E adianta (pág. 345) que “A base do negócio na alteração das circunstâncias é bilateral: respeita simultaneamente aos dois contraentes. A lei (art.º 437.º/1) fala, acentuadamente, das circunstâncias em que as partes (plural) fundaram a decisão de contratar”.
Por outro lado, é necessária a “anormalidade” dessa alteração, ou seja, que fosse de todo imprevisível para as partes a sua verificação.
Como sublinha Mota Pinto [6], “A alteração das circunstâncias deve, pois, ser uma alteração anormal e com consequências tais que a exigência do cumprimento inalterado implicaria, cumulativamente, uma ofensa aos princípios da boa fé e a imposição de uma situação que não corresponderia aos riscos próprios do contrato”.
A alteração das circunstâncias tem de ser, pois, “anormal”, que segundo o Prof.º Pedro Pais de Vasconcelos [7], “Não se deve confundir a anormalidade com a imprevisibilidade. Há ocorrências que podem ser mais ou menos previsíveis sem que deixem de ser anormais. Se tudo o que é normal é previsível, já o contrário nem sempre é verdadeiro: o anormal pode ser imprevisto e mesmo imprevisível, mas também pode ser previsto e previsível”.
Assim também se entendeu no Acórdão do STJ [8], afirmando : “Não exige a lei que se trate de acontecimento imprevisível, mas considera necessário que a alteração das coisas fosse imprevisível: há imprevisibilidade quando apenas iniciado o acontecimento não seja previsível o desenvolvimento futuro”.
Também Rodrigues Bastos [9] se refere à necessidade da alteração das circunstâncias ser “anormal”, “o que quer dizer que se não configure como o previsível desenvolvimento de uma situação que se conheça à data em que o contrato foi celebrado”.
Essa orientação tem sido seguida pela jurisprudência, citando-se, a título de exemplo o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra [10], referindo: “Ao falar na alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar, a lei quer manifestamente aludir às modificações contra as quais, pelo seu carácter imprevisto, as partes não possam e não devam acautelar-se”.
Nas palavras do STJ [11] “ Em termos simplificados, e como todos sabemos, para que a lei portuguesa confira o direito potestativo de resolver ou de modificar equitativamente um contrato, do qual resulta para a parte a necessidade de realizar uma ou mais prestações no futuro, invocando alteração anormal das circunstâncias (nº 1 do artigo 437º do Código Civil), é necessário que se prove (1) que as circunstâncias objetivas em que ambas fundaram a decisão de contratar (2) se alteraram anormalmente após a realização do contrato, (3) que essa alteração, objetiva e anormal, não está coberta pelos riscos próprios do contrato e que (4), a exigência do cumprimento dessa prestação (ou dessas prestações) contrarie gravemente o princípio da boa fé.

Na falta de prova de qualquer dos requisitos, a pretensão improcede, por caber ao interessado o ónus da respetiva prova (nº 1 do artigo 342º do Código Civil)”.

Ora, está provado que no âmbito das respetivas atividades comerciais, a Autora celebrou com a Ré um acordo, nos termos do qual esta se obrigou a vender-lhe 270 toneladas de azeite-extra “Arbequino” da campanha de 2014/2015, que seria fornecido em 10 cisternas de 27.000kgs cada.
E, nos termos desse acordo, a Autora comprometeu-se a efetuar o pagamento nos seguintes termos: € 2.800,00 por tonelada para um primeiro fornecimento de 54 toneladas de azeite produzido em Portugal (2 cisternas de 27 toneladas) com entrega acordada para o mês de outubro de 2014; € 2.600,00 por tonelada para um segundo fornecimento de 216 toneladas de azeite produzido em Espanha e/ou em Portugal (8 cisternas de 27 toneladas) com entrega acordada para o mês de novembro de 2014.
Como é consabido, o contrato de compra e venda é «o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço» (Artigo 874.º do Código Civil). Há na compra e venda a transmissão correspetiva de duas prestações: por um lado, o direito de propriedade ou outro direito; por outro lado, o preço.
Assim, perante os termos do negócio celebrado, estamos perante a figura do contrato de compra e venda, o qual, nos termos do artigo 879.º do Código Civil, tem como efeitos essenciais: a) A transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito; b) A obrigação de entregar a coisa; c) A obrigação de pagar o preço.
Porém, não podemos ignorar que a quantidade de azeite que a Ré se obrigou a vender à Autora ainda não estava na sua disponibilidade, já que se referia ao azeite que a Ré iria produzir nessa campanha de 2014/2015, ocorrendo o primeiro fornecimento em outubro de 2014 (54 toneladas) e o restante em novembro de 2014 (216 toneladas).
Assim sendo, estamos perante um contrato de compra e venda de bens futuros, porque o azeite, na data da celebração do contrato, não estava em poder da Ré (arts. 203.º e 211.º do C. Civil).
E de acordo com o regime previsto no art.º 880.º do C. Civil, na venda de bens futuros, o vendedor fica obrigado a exercer as diligências necessárias para que o comprador adquira os bens vendidos, segundo o que for estipulado ou resultar das circunstâncias do contrato.
E a transferência do direito de propriedade sobre esses bens só ocorre nessa altura, ou seja, quando os bens forem adquiridos pelo alienante ou determinada com conhecimento de ambas as partes – art.º 408.º/2 do C. Civil.
Ora, a Ré entregou à autora, em outubro de 2014, 54 toneladas do azeite que produziu, na qualidade acordada, e em novembro desse ano interpelou a Autora de que apenas poderia entregar-lhe mais 108 toneladas, ou seja, metade da quantidade acordada entregar nessa data (216), o mesmo é dizer que a Ré apenas se prontificou a entregar 162 toneladas das 270 que se havia obrigado.
E justificou essa redução porque, segundo lhe comunicou, devida à ocorrência de alterações meteorológicas e, em consequência, de pragas que assolaram a cultura da azeitona, sofreu um decréscimo da produção de cerca de 50% da colheita de azeite esperada.
E está provado que devido a alterações climatéricas a produção de azeite na Europa, com especial incidência em Portugal, Espanha e Itália, na campanha 2014/2015 sofreu alterações tendo decrescido em relação às campanhas anteriores. No Outono de 2014 as temperaturas foram superiores à média, tendo sido o outubro mais quente desde 1931, o que potenciou o desenvolvimento de doenças criptogâmicas e o ataque de pragas. Na cultura do olival, variedade arbequino, que predomina nos olivais da Ré, registou-se, pela primeira vez, a doença da gafa.
E mais se provou que tal praga ocorreu em fase de maturação do fruto que acabou por provocar a queda de praticamente a totalidade dos frutos atacados e que a ré teve uma quebra de produção de cerca de 50% em relação aos anos anteriores.
Ora, é manifesto que a quebra de produção de 50% de azeitona é, só por si, insuficiente para fazer aplicar o regime prescrito no art.º 437.º do C. P. Civil.
Desde logo, porque essa quebra de produção não pode, sem mais, configurar “uma alteração anormal das circunstâncias”.
Pois como refere, e bem, a recorrente, a atividade de produção de azeitonas e de azeite está, por natureza, sujeita a uma série de circunstâncias que incluem necessariamente condições e alterações climáticas adversas, designadamente, mudanças de temperatura, alterações de níveis de pluviosidade, bem como, a possibilidade de ocorrência de pragas e doenças nas culturas.
Daí não ser de todo imprevisível para ambas as partes que essas circunstâncias pudessem vir a ocorrer após a celebração do contrato.
Depois, porque não se trata, em rigor, de alteração “anormal” de circunstâncias que estiveram na base do negócio para ambas as partes, sendo que apenas são relevantes as alterações de circunstâncias efetivamente existentes à data da celebração do contrato e que tenham sido causais em relação à sua celebração pelas partes (a base do negócio objetiva).
E a verdade é que se ignoram, porque não foram alegadas e demonstradas, quais foram as circunstâncias objetivas em que as partes fundaram a sua decisão de contratar, sendo que a alteração “anormal” e superveniente das circunstâncias pressupõe existência dessas circunstâncias concretas e objetivas. Só se pode alterar uma determinada realidade existente. O que é que se alterou?
E é irrelevante, para esse efeito, a existência de falsa representação das partes quanto às circunstâncias presentes ou futuras, por não se constituírem como causais em relação à celebração do contrato, como é o caso presente com a venda de bens futuros na pressuposição de que a produção de azeite nesse ano fosse idêntica, superior ou ligeiramente inferior aos anos anteriores.
Citando Mota Pinto, ob. Cit. Pág. 607, “Contratar é, desde logo, planificar, antecipar o futuro e, mesmo de certo modo, “trocar” o presente pelo futuro, ou vice-versa, assumir uma desvantagem presente em troca de uma vantagem futura. A tutela das expetativas e a proteção da confiança exigem que se assegure o cumprimento do que tiver sido previamente acordado.”
Depois, e não menos importante, a Ré não alegou, e não podia demonstrar, ter sido fortemente lesada em consequência dessa alteração anormal das circunstâncias, ou seja, que essa alteração lhe causou uma lesão de tal ordem que seria contrária à boa fé a exigência do cumprimento das obrigações que assumiu.
Na verdade, não se sabe quantas toneladas de azeite a Ré produziu nesse ano, nomeadamente se foi inferior à quantidade que se obrigou a vender, assim como qual a razão porque só se prontificou a vender 162 toneladas em vez das 270 que se obrigou.
Portanto, ignora-se, face aos factos provados, se a Ré teve um prejuízo, se o contrato se revelou gravoso e em que medida e se seria gravemente atentatório do princípio da boa fé exigir o cumprimento da obrigação contraída, isto é, a entrega das 270 toneladas de azeite.
Como sublinha Pedro Pais de Vasconcelos, ob. Cit. Pág. 750, “Quer dizer que é necessário que a alteração das circunstâncias tenha provocado uma perturbação da justiça contratual, uma injustiça, tão grave que nenhuma pessoa de bem, de boa fé, persistiria na exigência do cumprimento, de um modo rígido e sem consideração da injustiça envolvida”.
Resumindo, porque a Ré não demonstrou, como lhe competia, os pressupostos mencionados no art.º 437.º do C. Civil, a razão está do lado da recorrente, pelo que a sentença recorrida não pode ser mantida.
3.2. Do incumprimento contratual e suas consequências.
Como se deixou dito, nos termos do art.º 880.º do C. Civil, na venda de bens futuros, o vendedor fica obrigado a exercer as diligências necessárias para que o comprador adquira os bens vendidos.
Na verdade, se a venda se referir a bens futuros (art.º 408.º, n.º 2, do C. Civil), a transmissão da propriedade da coisa continue a ter como causa o próprio contrato de compra e venda, mas os efeitos podem ficar dependentes de um facto futuro, como a aquisição da coisa pelo alienante (Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil, Anotado”, II, pág. 168).
Flui, pois, deste regime, que em caso de alienação de bens futuros, a transferência do direito de propriedade para o adquirente dá-se por mero efeito do próprio contrato, mas a transferência para o adquirente não ocorre imediatamente, como sucede quanto aos bens presentes, antes só ocorre quando a coisa for adquirida pelo alienante ou for determinada com o conhecimento de ambas as partes - arts. 408.º, n.º 2, 879.º, al. a), e 939.º do C. Civil.
Ora, a Ré não alegou, nem demonstrou, que tomou as diligências adequadas para entregar a totalidade do azeite vendido à Autora.
E também não alegou, nem demonstrou, que se haja tornado impossível, por causa não lhe imputável (art.ºs 790.º/1 e 793.º/1, do C. Civil), a obrigação de entregar/vender à Autora a restante quantidade de azeite, ou seja, as 108 toneladas, pois que das 216 toneladas que ficou obrigada a entregar em novembro de 2014 só se prontificou a entregar metade, que a Autora recusou.
E competia à Ré, enquanto devedora, provar que a falta de cumprimento da obrigação ou o seu cumprimento defeituoso (no caso, incumprimento parcial) não procede de culpa sua (art.º 799.º/1 do C. Civil).
Na realidade, não se pode concluir, à míngua de outros factos relevantes (nomeadamente, qual a concreta produção de azeite pela Ré nessa altura, que obrigações tinha assumido com outros clientes e respetivas quantidades fornecidas), como se fez na sentença recorrida, que a diminuição de cerca de 50% da produção de azeite da Autora em relação aos anos anteriores impossibilitou-a de satisfazer as obrigações assumidas para com a Autora e a impossibilidade desta exigir o cumprimento integral do contrato.
Por isso, é responsável pelo prejuízo que causou ao credor, no caso, a Autora (art.ºs 798.º e 801.º do C. Civil).
Porque foi a Recorrente que não quis receber 108 toneladas de azeite fornecidas pela Ré, esta não pode ser responsabilizada pelos prejuízos decorrentes da não entrega das 216 toneladas, mas apenas de metade, isto é, 108 toneladas.
E provado ficou que a Autora, perante o incumprimento da Ré, recorreu a outros operadores do sector do azeite com vista à aquisição da quantidade e qualidade de azeite não fornecido, o que acarretou o pagamento de € 3.300,00 por tonelada, o que acabou por determinar custos acrescidos de € 700,00 por tonelada (€ 3.300,00 - € 2.600,00).
Assim, a Autora teve um prejuízo correspondente de €75.600,00 (108 toneladas x €700,00).
Relativamente às quantias de € 1.441,77 e € 1.304,77, que a Autora suportou em despesas com intermediários Cappelli s.n.c. e Origenia, não são indemnizáveis, por não resultar provado o nexo de causalidade adequado entre o incumprimento e essas despesas.
Como é consabido, quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, e verificado o respetivo nexo de causalidade entre o dano e o facto danoso – art.º 562.º e 563.º do C. Civil.
Assim, são pressupostos de que depende o direito de indemnização, entre outros - o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Seguindo os ensinamentos de Almeida Costa [12], em matéria de responsabilidade civil predomina, sem dúvida, a doutrina da causalidade adequada, que tem recebido várias formulações, considerando-se causa adequada de um prejuízo a condição que, em abstrato, se mostra adequada a produzi-lo, sendo “necessário, portanto, não só que o facto tenha sido, em concreto, condição “sine qua non” do dano, mas também que constitua, em abstrato, segundo o curso normal das coisas, causa adequada à sua produção. E acrescenta, a pág. 766, que “a doutrina da causalidade adequada não pressupõe a exclusividade da condição, no sentido de que esta haja só por si determinado o dano. Podem ter colaborado na sua produção outros factos concomitantes ou posteriores”.
Também o Acórdão do S. T. J., de 20/01/2010, Proc. n.º 670/04.0TCGMR, disponível em www.dgsi.pt, seguiu essa teoria, referindo que “o nosso ordenamento jurídico consagra a doutrina da causalidade adequada, na sua formulação negativa: «o facto só deixará de ser causa adequada do dano, desde que se mostre, por sua natureza, de todo inadequado e o haja produzido apenas em consequência de circunstâncias anómalas ou excecionais» (ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 9ª edição, pg. 708). Para além disso, a doutrina em causa não pressupõe a exclusividade da condição, no sentido de que esta tenha só por si determinado o dano; podem ter colaborado na sua produção outros factos concomitantes ou posteriores, como se reconheceu, ainda recentemente, no Acórdão deste Supremo Tribunal de 31.03.2009, de que foi Relator, o Exmº Conselheiro Serra Batista e Adjuntos o aqui Relator e o Adjunto neste autos, Exmº Conselheiro Santos Bernardino (Proc. n.º 08B2421,disponível em www.dgsi.pt)” ( [13]).
Decorrentemente, apenas se deverão qualificar como danos ressarcíveis aqueles que, segundo um critério objetivo, e inexistindo circunstâncias anómalas ou excecionais, são consequência direta e necessária daquele indicado evento lesivo.
Ora, no caso dos autos, não se provando o nexo de causalidade adequada entre o incumprimento da Ré e outros danos invocados pela Autora, nomeadamente as despesas que suportou com outros mediadores com vista à aquisição do azeite não entregue pela Ré, inexiste fundamento legal para condenar aquela no ressarcimento dessas despesas.
Procede, pois, parcialmente, o recurso.
Vencidos parcialmente no recurso, suportarão a apelante e apelada, na proporção de metade, as custas respetivas – art.º 527.º/1 e 2 do C. P. C.

IV Decisão.

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência, revogam a sentença recorrida e, julgando a ação parcialmente procedente, condenam a Ré a pagar à Autora a quantia de €75.600,00 (setenta e cinco mil e seiscentos euros), acrescida de juros de mora à taxa comercial contabilizados desde da data da citação até efetivo e integral pagamento, absolvendo-a do restante peticionado.
Custas da apelação e na 1.ª instância pela Autora e Ré na proporção de ½ cada.

Évora, 2020/09/24

Este Acórdão vai assinado digitalmente no Citius, pelos Juízes Desembargadores:
Tomé Ramião (Relator)
Francisco Xavier (1.º Adjunto)
Maria João Sousa e Faro (2.º Adjunto)
_________________________________________________
[1] ) Cf. Acórdão do TRL de 10-02-2011, proferido no processo n.º 334/10.6TVLSB-C.L1-2, disponível em www.dgsi.pt.
[2] ) Proferido no processo n.º 4111/13.4TBBRG.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[3] ) In “Direito das Obrigações”, Almedina, Vol. II, 2011, 8.ª Edição, pág. 133
[4] ) Obra citada, pág. 139/140
[5] ) In “Manual dos Contratos em Geral”, Coimbra Editora, 4.º Edição, pág. 343/344
[6] ) In “ Teoria Geral do Direito Civil”, 4.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 609
[7] ) In “Teoria Geral do Direito Civil”, Almedina, 2005, 3.ª Edição, pág. 748
[8] ) de10/1/2013, proc. n.º 187/10.4TVLSB.L2.S1, disponível em www.dgsi.pt,

[9] ) In “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 1971, pág. 129/130.
[10] ) De 05.11.2013 ( José Avelino Gonçalves), Proc.º 1167/10.5TBACB-E.C1, disponível em www.dgsi.pt.
[11] ) Acórdão de 06.08.2017, Proc. 2118/10.2TVLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[12] )In “ Direito das Obrigações”, 12.ª Edição, pág. 763.
[13] ) No mesmo sentido, os Acs. do S. T. J. de 20/10/2005 e 22/06/2006.