Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1490/15.2T9FAR.E1
Relator: LAURA MAURÍCIO
Descritores: SENTENÇA PENAL
CONTESTAÇÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
NULIDADE
Data do Acordão: 03/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ANULADA A SENTENCA
Sumário:
I - O tribunal deve pronunciar-se sobre os factos alegados na contestação com interesse para a decisão, não lhe sendo lícito, porque resultaram provados os factos da acusação, omitir pronuncia sobre os factos da contestação, seja com que argumento for.

II - Com efeito, os factos alegados na contestação devem ser levados em conta na enumeração dos factos provados ou não provados, pois que, naturalmente, foram entendidos pelo apresentante como factos relevantes para a sua defesa e para a decisão da causa, pelo que tal omissão conduz à nulidade da sentença.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório

No Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Criminal de Faro - Juiz 2, no âmbito do Processo nº1490/15.2T9FAR, foram os arguidos "I. S.A. “ e AA submetidos a julgamento em Processo Comum, com intervenção de Tribunal Singular.

Após realização da audiência de discussão e julgamento, por sentença de 9 de julho de 2018, o Tribunal decidiu:

a) Condenar a arguida AA, pela prática, como autora material, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelos arts. 107°, n° 1 e 2, por referência ao art.105°, nºs, 4 e 7 do RGIT, aprovado pela Lei n° 15/2001, de 05 de Junho, na pena 180 (cento e oitenta) dias de multa à taxa diária de €8,00 (oito euros), O que perfaz a quantia de €1.440,00 (mil quatrocentos e quarenta euros);

b) Condenar a arguida "I...SA.", pela prática, como autora material, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelo art. 107º, nºl e 2, por referência ao art. 105º, nºs, 4 e 7 e 70, todos do RGIT, aprovado pela Lei n° 15/2001, de 5 de Junho na pena de 220 (duzentos e vinte) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), O que totaliza uma quantia de €1.100,00 (mil e cem euros).
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Inconformada com a decisão, a arguida AA interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

A - Por sentença proferida em 09.07.2018, decidiu a Mm. Juiz de 1ª instância " condenar a Arguida AA, pela prática, como autora material, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p.. pelos arts. 107º, nº 1 e 2, por referência ao art. 105°, n° 1 m 4 e 7 do RGIT, aprovado pelo Lei n° 15/2001, de 05 de Junho, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa à taxa diária de €8,00 (oito euros) o que perfaz a quantia de €1.440,00 (mil quatrocentos e quarento euros)".

B - Para alcançar tal decisão, fundamentou a Mm. Juiz o quo que: " Essencial para a formação da convicção do Tribunal foi a análise conjugado do teor dos documentos constantes dos autos, nomeadamente, o relatório preliminar elaborado pelo Instituto do Segurança Social (fls. 06 a 08), os mapas com a identificação das cotizações em falta (fls. 50 e 51 :99 ess), a certidão da Conservatória do Registo Comercial, referente à Sociedade arguida (f1s. 573 e ss), o extracto das remunerações pagas aos trabalhadores nos períodos referentes à falta de entrega das quotizações aqui em análise: o teor das notificações efectuadas às arguidas pora pagamentos das quantias em divida, nos termos e para os efeitos do disposto na al. B) do n. 4° do art. 105° do RGIT (fls. 37 e 38): o parecer do Instituto do Segurança Social, IP (cfr. Fls 40 e ss): o teor do CRC (fls. 572)."

C- Com base na sua convicção considerou o Tribunal o quo provados os seguintes factos:

- não entrega à segurança Social dos montantes das cotizações, que haviam sido efectivamente descontado das remunerações pagas e que perfazem o valor global de €26.921,41;

- a arguida AA foi notificada, quer pessoalmente, quer enquanto representante da sociedade, que teria o prazo de 30 dias para proceder ao pagamento das contribuições em divida;

- Não o fez, nem no referido prazo, nem até ao presente.

OMISSÃO DA SENTENÇA SOBRE FACTOS ALEGADOS NA DEFESA DA ARGUIDA E OMISSÃO DA ANÁLISE DE ELEMENTOS PROBATÓRIOS. NULIDADE

D - Resulta da sentença, em sede de Relatório, que a arguida apresentou contestação e mais nenhuma menção se faz a este articulado.

E- Encontram-se juntos aos Autos os seguintes documentos:

- Detalhe de divida da arguida Imotrópico à Segurança Social respeitantes ao período de tributação em causa nos Autos (documento 4 do requerimento de abertura de instrução);

- Oficio da Segurança Social (CDSSFARO), de 04.07.2018 onde menciona: " ... somos a informar que o executado tem penhora de conta bancária ativa. nesta data não existe nenhum valor penhorado pendente de imputação, em 2013-01-09 foi transferido e imputado à divida o valor de 266,46€.

Mais se informa que não temos informação do banco se existe valores cativos".

F-Em sede de contestação, a Arguida AA alegou e juntou prova de que foram efectuados pagamentos à Segurança Social no valor de €2.719, 16; de que foi estabelecido um plano prestacional; que as dificuldades de pagamento se prenderam com a crise do mercado imobiliário e construção e o declínio das empresas da família, existindo diversos processos de insolvência".

G- A sentença de que se recorre é totalmente omissa quanto aos factos invocados pela Arguida em sede de contestação.

H- A sentença é completamente omissa quanto ao resultado do pedido de informação à Segurança Social sobre a existência de penhoras de contas bancárias da sociedade Arguida e da imputação de valores dessas contas à divida.

I - A sentença é completamente omissa quanto à apreciação do detalhe de divida da Segurança Social e pagamentos nela mencionados.

Ora,
J- Mesmo que o Tribunal o quo viesse a considerar os factos alegados como não provados ou irrelevantes para a determinação da condenação (ou não) ou mesmo que o Tribunal o quo entendesse que os documentos não provam a alegação da arguida, sempre teria de se pronunciar sobre os factos e sobre os elementos probatórios, e não o fez.

K.- A alínea d) do n. 1 do art. 374º do C.P.P. e a o n. 2 do mesmo preceito impõem que a sentença indique sumariamente as conclusões contidas na contestação e que na fundamentação se enumerem os factos provados e não provados e sem elabore uma exposição completa dos motivos, de facto e de direito, que fundamenta o decisão, com indicação e exame critico das provas que serviram para formar a convição do tribunal.

L - Ora, como anteriormente se mencionou a decisão de que se recorre é omissa quanto a qualquer um desses elementos por referência aos factos alegados pela arguida em sede de contestação e os documentos que apresentou para prova dos mesmos.

M - A sentença devia ter, mesmo que sumariamente, reproduzido os argumentos de defesa da arguida, explicado porque os considerou ou não e qual a prova que sobre os mesmos incidiu, de molde o que os intervenientes processuais pudessem aferir das razões de sustentação da matéria dada ou não por provada e da própria formulação da convição do tribunal.

N.- Crê-se, mesmo, que o tribunal o quo não levou em linha de conta a alegação da arguida quanto à existência de pagamentos e aos respectivos documentos, porquanto, deu por provado que a arguida não pagou nada daquele valor, nem na data devida nem até ao presente, sem apreciar criticamente porque formou essa convição apesar dos elementos probatórios juntos aos autos: "10. Não o fez, nem no referido prazo, nem até ao presente" .

0.- Tem sido entendimento jurisprudencial em situações de falta de pronúncia sobre os factos alegados pelos arguidos e na falta de pronúncia sobre os documentos existentes nos autos que:

"IV. Em matéria de facto, a fundamentação remete, como refere o segmento final do nº 2 do art. 374.° do CPP (acrescentado pela Reforma do processo penal com a Lei 59/98, de 25-08), para a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal". (Ac. STJ de 08.01.2009 in comentários ao Código Processo Penal, art. 374° pgdl)

"VI. O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção" cf.. v.g.. Ac. do STJ de 30-01-2002, Proc. nº 3063/01 in comentários ao Código Processo Penal, art. 374° pgdl)

"10. Ac. TRL de 3-06-2009 : I. Apesar de o arguido ter apresentado duas contestações, uma relativa à acusação e outra ao pedido cível, nas quais não se limitou a negar a prática do crime que lhe era imputado, não foi feita na sentença, quer em sede de fundamentação da decisão de facto, quer na parte relativa ao direito, a mais leve ou ligeira alusão a essas contestações.

"Expressivamente Perfecto Ibafíez, estudo citado, pág. 172, escreve que a fundamentação exige a abertura de um espaço no qual se explique e justifique porquê a partir do material apresentado se chegou á conclusão que se expressa nos factos provados, o que requer um tratamento individualizado dos distintos elementos de prova que ilustre de maneira suficiente porque razão se lhe atribuiu um dado sentido e valor, positivo ou negativo ao qual se segue a síntese decisório (Ac. STJ de 08.01.2014) in comentários ao Código Processo Penal, art. 374° pgdl)"

" II - O exame crítico das provas tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo. III - Este ónus não é cumprido se o tribunal recorrido se limita a indicar ou a enumerar os meios de prova nos quais se apoiou para dar como provados os factos que deu." (Ac. TRC de 27.09.2017 in comentários ao Código Processo Penal, art. 374° pgdl)

"9. É nula a sentença que, ao proceder ao exame crítico das provas, o faz de modo a não permitir que os sujeitos processuais fiquem a conhecer os motivos porque não considerou na sua decisão as escutas telefónicas transcritas nos autos, não permitindo desse modo ao tribunal de recurso a possibilidade de sindicar o seu juízo sobre esse meio de prova" (Ac. TRP de 05.04.2006 in comentários ao Código Processo Penal, art. 374° pgdl).

P.- A omissão da sentença relativamente aos factos alegados na contestação e à prova apresentada, traduz, como sobejamente se demonstrou, uma nulidade por omissão das menções constantes no art. 374°, n. 2 e alínea d) do n. 1 do mesmo preceito legal, conforme comina o art. 379° do Código de Processo Penal.

Q - É fundamento de recurso, nos termos do art.410°, n. 2 aI. a) e n. 3 do C.P.P., a insuficiência da matéria de facto provado e a omissão nos termos do n. 1 e 2 do art. 374°, cominada com nulidade, nos termos do art.379°, todos do Código de Processo Penal.

TERMOS EM QUE, PROCEDENDO O PRESENTE RECURSO, DEVE CONSIDERAR-SE NULA A DECISÃO RECORRIDA SUBSTITUINDO-SE POR OUTRA QUE MELHOR APLIQUE O DIREITO.
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Por despacho de 9 de novembro de 2018, o recurso foi admitido e fixado o respetivo regime de subida e efeito.
*
O Ministério Público respondeu ao recurso interposto pugnando pela respetiva improcedência e formulando as seguintes conclusões:

1- Da motivação da decisão de facto da sentença fica-se claramente a saber porque é que a arguida foi condenada. A prova testemunhal e documental foram devidamente valoradas, bem como as declarações da arguida.

2- Do exame crítico das provas ficou-se claramente a saber porque é que se deram como provados os factos que levaram à condenação da arguida (sendo desnecessárias quaisquer outras considerações face à fundamentação constante da sentença).

3-A prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica (dentro desses pressupostos se deve portanto colocar o julgador ao apreciar livremente a prova).

4- A regra de que a convicção do julgador se deve fundar na livre apreciação da prova implica a possibilidade de dar como demonstrado certo facto certificado por uma única testemunha.

5-A prova produzida em audiência de julgamento é manifestamente suficiente para dar como provados os factos constantes da sentença, não se verificando qualquer erro notório na apreciação da prova.

6- É de referir que apenas existe erro notório na apreciação da prova quando para a generalidade das pessoas, seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo tribunal, nisto se concretizando a limitação ao princípio da livre apreciação da prova estipulado no artigo 127 do C.P.P.

7-De salientar também que quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum.

8-A imediação e a oralidade é que transmitem com precisão o modo e convicção como as pessoas depuseram, nomeadamente a coerência e sequência lógica com que o fizeram, o tom de voz utilizado, o tempo e a forma de resposta, os gestos e as hesitações, a postura e as reacções , o que não pode ser completamente transmitido para a gravação.

9-Ao decidir como decidiu, não se alcança que o tribunal tenha valorado contra a arguida qualquer estado de dúvida em que tenha ficado sobre a existência dos factos, do mesmo modo que também não se infere que o tribunal recorrido, que não teve dúvidas, devesse efetivamente ter ficado num estado de dúvida insuperável, a valorar nos termos do princípio in dúbio pro reo.

10- No caso em apreciação, após enumerar os factos provados e os não provados, o tribunal recorrido passou a expor a motivação da decisão de facto, elencando, por um lado, as provas que serviram para formar a respectiva convicção, quer as de natureza documental, quer testemunhal, revelando em que medida umas e outras contribuíram para a formação da sua convicção, bem como valorou as declarações da arguida.

11- Da fundamentação da sentença resulta, de forma clara e incontroversa, as razões pelas quais o tribunal decidiu no sentido de declarar provados os factos que como tal foram considerados, responsabilizando pelos mesmos a arguida.

12-Assim, face aos factos que foram provados não restam dúvidas de que a arguida cometeu o ilícito pelo qual foi condenada, não se verificando qualquer nulidade.

1 3- Nenhum reparo nos merece a sentença recorrida.

14- Nenhuma disposição legal foi violada.

15-Deve assim, manter-se a mesma fazendo-se assim JUSTIÇA.

No Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.

Cumprido o disposto no art.417º, nº2, do C.P.P., não houve resposta ao Parecer.

Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência.

Fundamentação
Delimitação do objeto do recurso

Nos termos do disposto no art.412º, nº1, do C.P.P., e conforme jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes das motivações apresentadas, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no art.410º, nº2, do C.P.P., mesmo que o recurso se encontre limitado a matéria de direito – cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, págs.74; Ac.STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, págs.96, e Ac. do STJ para fixação de jurisprudência de 19.10.1995, publicado no DR I-A Série de 28.12.1995.

São, pois, as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o Tribunal ad quem tem de apreciar.

No caso sub judice, as questões suscitadas pela arguida/recorrente são:

-nulidade da sentença por omissão de pronúncia;
- nulidade da sentença por falta de exame crítico da prova;
- insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.

É do seguinte teor a sentença recorrida no que concerne a factos provados, factos não provados e motivação (transcrição):

II - DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A. Dos FACTOS PROVADOS

Da discussão da causa, e com relevância para a decisão, resultaram provados os seguintes factos:

1. A arguida pessoa colectiva é uma sociedade comercial anónima que tem como objecto social a aquisição, venda, arrendamento, gestão, exploração de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, bem como administração de bens, móveis e imóveis, próprios ou alheios;

2. Desde a data da sua constituição e durante o período que abaixo releva, foi administradora única da sociedade a arguida AA, obrigando-se a empresa, perante terceiros, com a sua intervenção;

3. Era ela que efectuava os pagamentos a fornecedores e a entidades bancárias, que ordenava a facturação, que contratava empregados e que detinha poderes para processamento de salários e pagamentos à Administração Fiscal e à Segurança Social;

4. No período temporal que aqui releva, a empresa arguida encontrava-se inscrita como contribuinte na Segurança Social no Regime Geral dos Trabalhadores por Conta de Outrem e no Regime dos Membros dos Órgãos Estatutários;

5. A arguida AA, na qualidade de gerente de facto e de direito da sociedade e no interesse desta, procedeu ao desconto das cotizações para a Segurança Social:

6. No âmbito das remunerações dos trabalhadores por conta de outrem (Regime Contributivo Geral), nos meses de Janeiro a Março de 2011, Julho a Setembro de 2011, Janeiro de 2012, Abril de 2012 a Novembro de 2013, no montante total de €25.998,55 (vinte e cinco mil novecentos e noventa e oito euros e cinquenta e cinco cêntimos);

11. No âmbito das remunerações dos membros dos órgãos estatutários (Regime Contributivo dos Membros dos Órgãos Estatutários das Pessoas Colectivas e Equiparadas), nos meses de Janeiro a Março de 2011, Julho a Setembro de 2011, Janeiro de 2012 e Abril a Dezembro de 2012, no montante total de €922,86 (novecentos e vinte e dois euros e oitenta e seis cêntimos);

6. Contudo, não entregou à Segurança Social os montantes dessas cotizações, que havia efectivamente descontado das remunerações pagas e que perfazem o valor global de €26.921,41 (vinte e seis mil novecentos e vinte e um euros e quarenta e um cêntimos);

7. Não o fez nem até ao dia 15 do mês subsequente àquele a que respeitavam, nem nos 90 dias subsequentes ao termo desse prazo;

8. Em cada um dos períodos mensais, dentro do assinalado âmbito temporal, foram regulamente entregues as folhas de remuneração respectivas;

9. Em virtude disso, no dia 18 de Dezembro de 2015, a arguida AA foi notificada, quer pessoalmente, quer enquanto representante da sociedade, que teria o prazo de 30 dias para proceder ao pagamento das contribuições em dívida;

10. Não o fez, nem no referido prazo, nem até ao presente;

11. A arguida AA quis agir do modo descrito, fazendo-o em nome e no interesse da sociedade arguida e enquanto entidade patronal, sabendo que introduzia no acervo patrimonial da empresa as quantias deduzidas das remunerações pagas;

12. Sabia que tais contribuições pertenciam ao Instituto da Segurança Social e que, com isso, colocava em crise o regular funcionamento desse sistema;

13. Fê-lo, porém, com o intuito de manter a empresa em actividade, utilizando aqueles valores no pagamento das despesas correntes, designadamente no pagamento dos salários dos trabalhadores;

14. Actuou sempre da mesma forma, de todas as vezes que não efectuou a entrega mensal das contribuições à Segurança Social, e repetindo as descritas condutas enquanto foi conseguindo;

15. Agiu voluntária, livre e conscientemente, sabendo ser tal comportamento proibido e punido por lei;

Apurou-se, ainda, que:
16. As arguidas não têm antecedentes criminais averbados aos seus certificados de registo criminal;

17. A sociedade arguida foi declarada insolvente por sentença proferida em 30 de Julho de 2014;

18. A arguida AA é advogada, auferindo um salário mensal de cerca de €1.500,00;

19. Tem a seu cargo duas filhas com as idades de 18 e 19 anos e um neto com a idade de 06 meses;

20. Vive em casa arrendada, cuja renda ascende à quantia mensal de €950,00;………….

21. Despende a quantia mensal de €460,01 com o pagamento das propinas referentes à universidade de uma das filhas.
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B.DOS FACTOSNÃOPROVADOS
Com interesse para a decisão da causa não se provou que a arguida AA visse a sua actuação facilitada pela inércia dos serviços da Segurança Social.
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C. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
A convicção do tribunal no que respeita aos factos provados e não provados, estribou-se na análise crítica e ponderada do conjunto da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (art. 127º do C.P.Penal), como se passa a expor.

Essencial para a formação da convicção do Tribunal foi a análise conjugada do teor dos documentos constantes dos autos, nomeadamente, o relatório preliminar elaborado pelo Instituto da Segurança Social (fls. 06 a 08), os mapas com a identificação das cotizações em falta (fls. 50 e 51; 99 e ss.), a certidão da Conservatória do Registo Comercial, referente à Sociedade arguida (fls. 573 e ss.), O extracto das remunerações pagas aos trabalhadores nos períodos referentes à falta de entrega das quotizações aqui em análise; o teor das notificações efectuadas às arguidas para pagamento das quantias em dívida, nos termos e para os efeitos do disposto na al.b) do nº4 do art. 105° do RGIT (fls. 37 e 38); O parecer do Instituto da Segurança Social, IP (cfr. fls. 40 e ss.); O teor do CRC (fls. 572).

A arguida AA admitiu, de forma genérica e apresentando justificação para os seus actos, a prática dos factos constantes da acusação, confirmando que não entregou as cotizações devidas ao Instituto da Segurança Social, em virtude de a sociedade arguida se encontrar a ultrapassar por um período de graves dificuldades financeiras que culminaram com o encerramento da sua actividade. Para além disso, a arguida esclareceu as suas condições económicas e de vida, em termos que não nos suscitou quaisquer dúvidas até porque não contraditados por quaisquer elementos existentes nos autos.

Valorou-se também o depoimento da testemunha SC, técnica da Segurança Social de Faro, que confirmou a não entrega das cotizações em falta, bem como a dívida actual.

Também a testemunha JC, irmão da arguida AA, confirmou a versão apresentada por esta relativamente às dificuldades financeiras que assolaram a empresa.

Da conjugação do teor dos elementos documentos supra referidos concluímos que não foi pago ao Instituto da Segurança Social o valor das quotizações retidas nos salários dos trabalhadores e dos órgãos estatutários inseridos no Regime Geral, nos diferentes momentos e montantes supra indicados.

Em face dos elementos de prova constantes dos autos, dúvidas não restam de que a arguida AA não entregou as quotizações ao Instituto da Segurança Social, não obstante ter conhecimento de que os valores não lhe pertenciam e deveriam ser entregues a essa instituição. E sabia-o, não só em virtude das funções de gerência que ocupava, como é do conhecimento geral, ainda mais no meio empresarial, tendo as entidades patronais perfeito conhecimento das condutas que lhes são impostas, nomeadamente ao nível da entrega de impostos devidos.

Não se duvida que a arguida integrou no património da sociedade, ou até mesmo no próprio, os montantes das quotizações não entregues à Segurança Social, pois, ao não as reconduzir para esta instituição, como era devido, após a respectiva dedução nos salários dos seus trabalhadores e até gerentes, afectaram as quantias a outras finalidades, ainda que apenas contabilisticamente.

Atenta a natureza do imposto em causa, não se poderá dizer que a sociedade arguida não detinha a quantia monetária para entrega à Segurança Social. Essa quantia foi precisamente descontada dos salários dos trabalhadores e dos órgãos estatutários, ou se não foi deveria obrigatoriamente ter sido, pois faz parte integrante das remunerações daqueles, não pertencendo, em momento algum, à entidade patronal.

Assim, por tudo o exposto, se valorou o julgado nos termos supra expostos. “
Apreciando
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Alega a recorrente nas conclusões K, L e M:
“K.- A alínea d) do n. 1 do art. 374º do C.P.P. e a o n. 2 do mesmo preceito impõem que a sentença indique sumariamente as conclusões contidas na contestação e que na fundamentação se enumerem os factos provados e não provados e se elabore uma exposição completa dos motivos, de facto e de direito, que fundamenta o decisão, com indicação e exame critico das provas que serviram para formar a convição do tribunal.

L - Ora, como anteriormente se mencionou a decisão de que se recorre é omissa quanto a qualquer um desses elementos por referência aos factos alegados pela arguida em sede de contestação e os documentos que apresentou para prova dos mesmos.

M - A sentença devia ter, mesmo que sumariamente, reproduzido os argumentos de defesa da arguida, explicado porque os considerou ou não e qual a prova que sobre os mesmos incidiu, de molde o que os intervenientes processuais pudessem aferir das razões de sustentação da matéria dada ou não por provada e da própria formulação da convição do tribunal.”

Compulsados os autos, verifica-se que em 14 de maio de 2018 foi pela arguida AA apresentada contestação, expressa em dezoito artigos, como resulta de fls.558 a 564, admitida por despacho de 16 de maio de 2018, como resulta de fls.565.

Ora, dispõem os artigos 374º e 379º do CPP:

Artigo 374.º
“Requisitos da sentença
1 - A sentença começa por um relatório, que contém:
(…)
d) A indicação sumária das conclusões contidas na contestação, se tiver sido apresentada.

2 - Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
(…)“

Artigo 379.º
“Nulidade da sentença

1 - É nula a sentença:

a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;

c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, sendo lícito ao tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º”.

Do que se vem expondo, e atentando no disposto no artigo 368.º, n.º 2, do CPP, é inequívoco que o tribunal deve pronunciar-se sobre os factos alegados na contestação com interesse para a decisão, não sendo lícito ao tribunal, porque resultaram provados os factos da acusação, não se pronunciar sobre os factos da contestação, seja com que argumento for.

Com efeito, os factos alegados na contestação deveriam ter sido levados em conta na enumeração dos factos provados ou não provados, pois que, naturalmente, foram entendidos pelo apresentante como factos relevantes para a sua defesa e para a decisão da causa.

Mas, não obstante existir tal contestação, que é até referida no relatório da sentença, certo é que nenhum dos factos alegados consta no rol dos factos provados ou no rol dos factos não provados.

E esta elencagem o tribunal recorrido não fez, de todo em todo, olvidando que a estratégia da defesa tem de ser respeitada.

Como tal, ao não dar como provados, ou não provados, aqueles factos da contestação, o tribunal a quo não deu cumprimento ao art° 374°, n° 2, do C.P.P., abstendo-se de conhecer questões de que devia conhecer, omissão de pronúncia que é violadora também do art° 379º, nº1, als.a) e c) do C.P.P., o que demanda que a sentença sob recurso esteja ferida de nulidade.

“O tribunal, como resulta nomeadamente do disposto nos artigos 339.º, n.º 4, 368.º, n.º 2, e 374.º, n.º 2, do CPP, deve indagar e pronunciar-se sobre todos os factos que tenham sido alegados pela acusação, pela contestação ou que resultem da discussão da causa e se mostrem relevantes para a decisão. Ou seja, ainda que para a solução de direito que o tribunal tem como adequada para o caso, se afigure irrelevante a prova de determinado facto, o tribunal não pode deixar de se pronunciar sobre a sua verificação/ não verificação — o que pressupõe a sua indagação —, se tal facto se mostrar relevante num outro entendimento jurídico plausível.

É que em impugnação por via de recurso pode vir a ser considerado pelo tribunal ad quem que o facto sobre o qual o tribunal a quo especificadamente não se pronunciou por entender ser irrelevante, é afinal relevante para a decisão, o que determinará a necessidade de novo julgamento, ainda que parcial, com todas as maléficas consequências consabidas.

Sejamos claros: indagam-se os factos que são interessantes de acordo com o direito plausível aplicável ao caso; dão-se como provados ou não provados os factos conforme a prova produzida “ (cfr. Sérgio Poças, in REVISTA JULGAR, Da Sentença Penal – fundamentação de facto, 2007, pg 24 e sgs).

Não devem restar quaisquer dúvidas que o tribunal indagou e se pronunciou sobre todos os factos relevantes para a decisão, designadamente os alegados pela defesa.

A questão da exigência de enumeração dos factos provados e não provados não pode ser vista como uma mera formalidade formal, trata-se sim de uma garantia, designadamente para os sujeitos processuais, de que o tribunal, num processo equitativo, teve em atenção de igual modo, os factos, as provas e os argumentos da acusação e da defesa, e indagou e apreciou todos os factos.

E não tendo tal enumeração sido feita pelo tribunal recorrido, ficou limitado o direito da defesa da arguida, na medida em fica restringido o âmbito do recurso, porquanto tais factos não constam da matéria de facto (provada ou não provada), tornando-se naquela parte insindicáveis.

E estipula a lei que a sanção para este vício é a nulidade da sentença, atento o disposto no artigo 379º, n.º 1, alíneas a) e c) do CPP.

Assim, tendo a sentença incumprido o dever de enumerar, como provados ou não provados, os factos da contestação que se entendam como relevantes para a estratégia da defesa e para a boa decisão da causa, como lhe ordena o normativo do nº 2 do artº 374º do C.P.Penal, tal, face ao disposto nas alíneas a) e c) do nº1 do artº 379º do mesmo diploma legal, acarreta a sua nulidade e determina a prolação de nova sentença, expurgada do apontado vício.

A nulidade foi arguida pela arguida/recorrente em sede de recurso (artigo 379º, nº2, 1ª parte do CPP).

Assim, face a tudo o exposto, fica prejudicado o conhecimento das demais questões aduzidas no recurso.
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Decisão

Face a todo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- Anular a sentença recorrida, que deverá ser substituída por outra que, se necessário com recurso a repetição de prova, colmate as lacunas apontadas, decidindo em conformidade.

- Sem tributação.

Elaborado e revisto pela primeira signatária

Évora, 12 de março de 2019
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Laura Goulart Maurício

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Maria Filomena Soares