Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
7061/16.9T8STB.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: USUCAPIÃO
CORPUS
ANIMUS POSSIDENDI
Data do Acordão: 06/27/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. A usucapião, que aproveita a todas as pessoas que possam adquirir, tem de ser judicialmente ou extrajudicialmente invocada para produzir os seus efeitos, e estes, após a sua invocação, retrotraem-se à data do início da posse, tudo se passando, como se o direito tivesse sido adquirido nesse momento.
2. Existem situações em que o promitente-vendedor logo abdica dos poderes juridicamente resultantes da sua qualidade de proprietário em favor do promitente-comprador que passa, a partir de então, a agir sobre a coisa como dono (corpus) e com a intenção de actuar como titular do direito (animus).
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo nº 7061/16.9T8STB.E1

Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – Juízo de Competência Cível de Setúbal – J1
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
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I – Relatório:
Na presente acção declarativa de condenação proposta por (…), (…) e (…) contra (…) e (…), a Ré interpôs recurso da sentença proferida nos autos.
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Os Autores pediram que os Réus fossem condenados a reconhecer que são donos e legítimos proprietários de uma parcela de terreno, com área de 84.600 m2, integrada no prédio misto situado em (…), também designado por passagem, inscrito na matriz predial da freguesia da Quinta do Anjo, a parte rústica sob o artigo (…) – Secção (…) e a parte urbana sob os artigos (…) e (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o nº (…) da freguesia de Quinta do Anjo, por a haverem adquirido por usucapião.
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Para tanto e em síntese, os Autores alegam que são os únicos herdeiros de (…), sendo os Réus os únicos herdeiros de (…) e de (…), os quais, na qualidade de promitente-comprador (o primeiro) e de promitentes-vendedores (os segundos) celebraram, em 09/04/1996, contrato promessa de compra e venda de uma parcela de terreno, com área de 84.600 m2, a desanexar do actual prédio misto situado em (…), também designado por passagem, inscrito na matriz predial da freguesia da Quinta do Anjo, a parte rústica sob o artigo (…) – Secção (…) e a parte urbana sob os artigos (…) e (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o nº (…) da freguesia de Quinta do Anjo, tendo aquele pago a totalidade do preço da prometida compra e venda a (…) e (…) em Março de 1980. Foi nesta data que estes por sua vez procederam à entrega àquele da referida parcela para que a utilizasse, cultivasse e na mesma fizesse as construções que entendesse, o que este fez a partir dessa data, de forma pública, pacífica e à vista de todos.
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Devidamente citada, a Ré (…) apresentou contestação, defendendo-se por excepção e por impugnação. Alega a Ré que no Juízo Central Cível corre, entre as mesmas partes, acção com processo ordinário sob o nº 3526/14.5TBSTB mediante a qual os aqui Réus pretendem que a propriedade da parcela em discussão nos autos lhes seja reconhecida, com reintegração da parcela em prédio pertencente aos Réus, a qual deverá ser considerada causa prejudicial, nos termos do artigo 272º do Código de Processo Civil.
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O Réu (…) constituiu mandatário, mas não apresentou contestação nem interveio de qualquer outra forma no processo.
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Por despacho foi declarada suspensa a instância, ao abrigo do disposto nos artigos 272º, nº 1 e 279º do Código de Processo Civil, por se considerar causa prejudicial dos presentes autos a decisão a proferir no processo nº 3256/14.5TBSTB, que corria termos na Instância Central Cível do Tribunal da Comarca de Setúbal.
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Foi admitida a intervenção de (…).
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Em sede de despacho saneador, o Tribunal «a quo» decidiu:
a) reconhecer o direito de propriedade dos Autores (…), (…) e (…) sobre uma parcela de terreno com área de 84.600 m2, integrada no prédio misto situado em (…), também designado por passagem, inscrito na matriz predial da freguesia da Quinta do Anjo, a parte rústica sob o artigo (…) – Secção (…) e a parte urbana sob os artigos (…) e (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o nº (…) da freguesia de Quinta do Anjo por a haverem adquirido por usucapião.
b) condenar os Réus (…) e (…) e a Interveniente (…) a reconhecerem o direito de propriedade dos Autores.
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A recorrente não se conformou com a referida decisão e as suas alegações continham as seguintes conclusões:
«1ª Os recorridos foram reconduzidos na contestação à posição de meros detentores da parcela em discussão.
2 ª A petição inicial é omissa relativamente ao requisito subjectivo ou intenção de exercer o direito de propriedade.
3 ª Devendo a acção improceder.
A douta sentença recorrida violou, entre outros, o disposto no art.º 1290º do Código Civil.
Termos em que, deve ser concedido provimento ao presente recurso com revogação da douta sentença recorrida e improcedência da acção. Como é de Justiça».
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Não foi apresentada resposta ao recurso.
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O recorrido apresentou resposta ao recurso, pugnando pela manutenção do decidido.
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Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre decidir.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento universal que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de erro de direito na apreciação do direito, quanto ao preenchimento dos elementos constitutivos da usucapião. *
III – Dos factos apurados:
3.1 – Matéria de facto provada:
Com relevância para a discussão e decisão da causa, encontram-se definitivamente assentes os seguintes factos:
1 – Correu termos na extinta Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial de Setúbal, sob o nº 100/2000, uma acção proposta por (…) contra (…), (…) e (…), em que se pedia o reconhecimento do incumprimento de contrato promessa que (…) e mulher haviam celebrado com o primeiro, e que teve por objecto uma parcela de terreno com 84.600 m2 do (actual) prédio misto situado em (…), inscrito na matriz predial da freguesia da Quinta do Anjo, a parte rústica sob o artigo (…) – Secção (…) e a parte urbana sob os artigos (…) e (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o nº (…) da freguesia de Quinta do Anjo, e a sua execução específica.
2 – A referida acção, por sentença já transitada em julgado, foi declarada improcedente, sendo os Réus absolvidos do pedido.
3 – Nesse processo foi dado como provado (ponto A) dos respectivos factos assentes) que (…), (…) e (…) eram os únicos e universais herdeiros de (…), falecido a 12 de Maio de 1998.
4 – Por apenso ao processo supra identificado foi deduzido o incidente de habilitação de herdeiros de (…), falecida a 9 de Outubro de 2006, tendo (…) e (…) sido declarados habilitados.
5 – Por apenso ao processo supra identificado foi deduzido o incidente de habilitação de herdeiros de (…), falecido a 9 de Setembro de 2008, tendo por sentença também transitada em julgado, (…), (…) e (…) sido declarados como seus sucessores.
6 – Correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal - Juízo Central Cível - Juiz 1, sob o nº 3526/14.5TBSTB, acção de processo comum na qual (…) e (…), com pedido de intervenção provocada de (…) e (…), demandaram (…) e mulher, pedindo (i) lhes fosse reconhecido o direito de propriedade sobre o prédio misto situado em (…), inscrito na matriz predial da freguesia da Quinta do Anjo, a parte rústica sob o artigo (…) – Secção (…) e a parte urbana sob os artigos (…) e (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o nº (…) da freguesia de Quinta do Anjo (ii) lhes fosse reconhecido o direito de propriedade sobre a parcela de terreno com cerca de oito hectares situada a nascente do prédio dos aí Autores e que os aí Réus englobaram na vedação do seu terreno (iii) o cancelamento de quaisquer registos que eventualmente tenham sido feitos a favor dos aí Réus (iv) fossem condenados os aí Réus a reconhecer o direito de propriedade dos aí Autores sobre o prédio e parcela de terreno, ordenando-se a restituição desta aos aí Autores e a condenação dos aí Réus na desocupação da parcela e demolição da vedação na parte que penetra no prédio dos aí Autores.
7 – Os então Réus contestaram a acção referida no ponto anterior, invocando o contrato promessa que celebraram com (…) e mulher em 9 de Abril de 1996, a ocupação da parcela de terreno com 84.600m2 objecto do mesmo desde 1980, a realização de obras, o direito de retenção decorrente da entrega do terreno que lhes foi feita por (…), o pagamento da totalidade do valor do contrato promessa e que (…) sempre lhes disse que o terreno era deles.
8 – Mais deduziram os aí Réus reconvenção, alegando, em suma, que construíram no terreno benfeitorias consistentes num muro, depósito de água, instalação eléctrica, canalização e furo de captação de água cujo valor pretendem ver pago pelos aí Autores.
9 – Por decisão devidamente transitada em julgado foi a acção julgada improcedente, sendo os aí Réus absolvidos do pedido, e ficando prejudicada – por esse efeito – a apreciação do pedido reconvencional.
10 – No âmbito desse processo, foi deduzido o incidente de habilitação de herdeiros do falecido (…), sendo, por sentença também transitada em julgado, (…), (…) e (…) declarados como seus sucessores.
11 – (…), (…) e (…) são os únicos herdeiros de (…).
12 – (…) e (…) são os únicos herdeiros de (…) e de (…).
13 – (…) contraiu matrimónio com (…) em 19 de Dezembro de 1971 no regime de comunhão de adquiridos. Por decisão transitada em 6 de Abril de 2004 foi declarada a separação de pessoas e bens do casal.
14 – (…) é casado no regime de comunhão geral de bens com (…).
15 – Existe no Lugar de (…), também designado por passagem, um prédio misto, inscrito na matriz da Freguesia da Quinta do Anjo, composto de artigo rústico: (…), Secção (…) com a área de 550.500 m2 e parte urbana: a) r/c, 1.º andar e anexo, a.c. 230 m2 – artigo (…); b) casa térrea para habitação e anexo, a.c.: 110m2 – artigo (…), descrito na CRP sob o nº (…)/210385.
16 – Pela apresentação (…) de 1999/12/22 encontra-se registada de forma definitiva no Registo Predial a aquisição do imóvel descrito no ponto anterior, sem determinação de parte ou de direito e via dissolução da comunhão conjugal e sucessão hereditária, a favor de (…), (…), (…) e (…).
17 – (…) e (…) adquiriram o direito sobre o prédio descrito no ponto 15 por serem os únicos representantes, herdeiros e sucessores dos falecidos (…) e (…), e a interveniente (…) por efeito do regime de bens do seu matrimónio com (…).
18 – Em 9 de Abril de 1996, (…) e (…) celebraram por escrito com o (…) o que se chamou de contrato promessa de compra e venda.
19 – Pelo referido documento (…) e (…) disseram prometer vender a (…) uma parcela de terreno com a área de 84.600 m2, do prédio referido no ponto 15.
20 – O preço acordado de compra e venda da referida parcela, foi de 3.500.000$00 (três milhões e quinhentos mil escudos).
21 – A título de pagamento, ali se disse que (…) entregou a (…) e (…), de que deram quitação, a importância referida no ponto anterior, tendo sido “pago de uma só vez em Março de 1980”.
22 – Estipulou-se ainda, pelo mesmo contrato, que a escritura definitiva deveria ser outorgada logo que os primeiros contratantes tivessem concluído o processo de desanexação.
23 – Estipulou-se ainda, pelo mesmo contrato, que a escritura definitiva deveria ser outorgada nunca depois de 31 de Dezembro de 1996.
24 – E que a marcação da escritura estava a cargo do falecido (…) e (…), devendo avisar o promitente-comprador com antecedência mínima de 15 dias.
25 – (…) entregou a área da parcela identificada no ponto 19 a (…) em 1980.
26 – Os Autores, por si e por ante possuidores, há cerca de 20 anos exploram a parcela de terreno descrita no ponto 19.
27 – Sem oposição de quem quer que seja.
28 – Os Réus há cerca de 20 anos que sabem que os Autores, por si e por ante possuidores, têm em seu poder a parcela em causa.
29 – Os Autores, por si e por ante possuidores, desde a entrega da parcela procederam ao amanho das terras, plantação de árvores de fruto.
30 – (…) e o falecido (...), na sequência da entrega da área de terreno descrita no ponto 19 fizeram várias construções na parcela de terreno.
31 – (…) e (…) procederam à vedação da parcela de terreno, com um muro à sua volta com cerca de 1,80 m a 2 m de altura, vedação dentro da qual foi incluído igualmente outro prédio que era já propriedade de (…) e da (…), situado a Nascente da parcela em causa.
32 – Instalaram um depósito de água e um furo para a captação de água.
33 – À vista dos falecidos (…) e (…), (…) e (…) procederam à vedação da parcela com muro, nalguns locais com cerca de 1,80m a 2m de altura, em 1982, sem oposição, nessa data e até pelo menos 8 de Agosto de 1997, do falecido (…), tendo utilizado, cultivado e usado a referida parcela pelo menos desde essa data como bem entenderam.
34 – Em Abril de 1996 existiam na parcela laranjeiras, limoeiros, uma horta, sobreiros, pinheiros, oliveiras, sendo a área maior a de laranjal.
35 – A desanexação da parcela identificada no ponto 19 nunca foi efectivada.
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3.2 – Factos não provados:
Não resultaram como não provados quaisquer factos com relevância para a discussão da causa.
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4 – Enquadramento jurídico:
Nas suas conclusões de recurso, as quais limitam os poderes de cognição do Tribunal, a recorrente afirma que os recorridos são meros detentores da parcela em discussão e que a petição inicial é omissa relativamente ao requisito subjectivo ou intenção de exercer o direito de propriedade.
É inquestionável que a matéria da petição inicial foi impugnada motivadamente e por negação no articulado de contestação. Porém, os factos aqui apurados tiveram por base a autoridade do caso julgado e o valor extraprocessual das provas[1] colhidas no âmbito da acção registada sob o nº 3256/14.5TBSTB, que correu termos na Instância Central Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal. Ao não ter sido impugnada a decisão de facto, a factualidade acima transcrita mostra-se consolidada e é com base nela que se vai apurar se existiu um erro de direito no preenchimento dos elementos constitutivos do instituto da aquisição originária por via da usucapião.
O direito real pode definir-se como a afectação jurídico-privada de uma coisa corpórea aos fins das pessoas individualmente consideradas, caracterizando-se, assim, a relação de natureza real por um direito de domínio ou de soberania (total ou parcial) sobre a coisa em que incida, por um poder que todos os outros têm de respeitar [2] [3] [4] [5] [6] [7] [8] [9] [10] [11] [12] [13] [14].
Dispõe o artigo 1287º do Código Civil que se entende por usucapião a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, que faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde à sua actuação.
A usucapião, que aproveita a todas as pessoas que possam adquirir, tem de ser judicialmente ou extrajudicialmente invocada para produzir os seus efeitos, e estes, após a sua invocação, retrotraem-se à data do início da posse, tudo se passando, como se o direito tivesse sido adquirido nesse momento
A parte recorrente contesta que estejam verificados os pressupostos conducentes à aquisição originária da propriedade (artigo 1316º do Código Civil) por via da usucapião e que se está perante um quadro de mera detenção.
A celebração deste contrato promessa e o pagamento da totalidade do preço acordado para a compra e venda dos imóveis não obsta ao acionamento do instituto da aquisição originária e essa asserção decisória é correctamente interpretada na sentença recorrida, que procura amparo em contributos doutrinais[15] e jurisprudenciais pertinentes à justa resolução do caso concreto.
No contrato-promessa de compra e venda de imóvel com tradição (válido ou nulo) presume-se que o promitente-vendedor exerce a posse correspondente ao direito de propriedade até à celebração do contrato definitivo, a não ser que se prove que a vontade das partes foi a de transferir, desde logo, para o promitente-comprador, a título definitivo, a posse da coisa correspondente ao direito de propriedade[16].
Existem assim situações em que o promitente-vendedor logo abdica dos poderes juridicamente resultantes da sua qualidade de proprietário em favor do promitente-comprador que passa, a partir de então, a agir sobre a coisa como dono (corpus) e com a intenção de actuar como titular do direito (animus), terá de se considerar que adquiriu uma verdadeira posse, que exerce portanto em nome próprio[17] [18].
A jurisprudência mais autorizada entende que, em determinadas hipóteses, a posse exercida pelo promitente-comprador que detém a coisa é uma posse boa para usucapião e susceptível, portanto, de levar à aquisição do direito de propriedade, por se mostrar em concreto revestida do mencionado elemento psicológico, isto é, da intenção de agir como dono da coisa[19] [20] [21] [22].
Além da já mencionada posição de Pires de Lima e Antunes Varela, na doutrina este entendimento pode ainda ser buscado nas lições de Vaz Serra[23], Menezes Cordeiro[24], Calvão da Silva[25], Ana Prata[26], Gravato Morais[27], Durval Ferreira[28] e, bem assim, Menezes Leitão[29], embora este noutro enfoque ao valorizar diferentemente a simples tradição da coisa.
E, nesta hipótese jurisdicional, em face da argumentação fáctica apresentada na sentença recorrida, existe fundamento para concluir que, por via do contexto apurado, ao pagarem integralmente o preço da venda e ao ocorrer a tradição da coisa, os anteriores possuidores encontravam-se num desses casos excepcionais, quando iniciaram a prática actos de domínio sobre a coisa do tipo daqueles que são usualmente desenvolvidos por um proprietário.
Não merece qualquer contestação a asserção contida na sentença recorrida, quando defende que é «incontroverso que os ora Autores exercem poder de facto sobre a parcela de terreno em questão (pois se os ora Réus até lhe moveram a acção de reivindicação com nº 3526/14.5TBSTB - Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal - Juízo Central Cível - Juiz 1…)».
De todo o conspecto factual e da envolvência histórica do discutido envolvimento real, resulta que a posse exercida pelos Autores quanto à parcela de terreno do prédio em causa se traduz numa actuação em nome próprio, com intenção de agir como proprietário da mesma (animus possidendi), por si e pelos ante possuidores.
Quanto à questão do animus, por se tratar de uma prova difícil [fazer a prova da posse em nome próprio, que não seja coincidente com a prova do direito aparente], tanto no nº 2 do artigo 1252º do Código Civil, como no precedente histórico do parágrafo 1 do artigo 481º do Código de 1867, o legislador estabeleceu uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa (corpus).
Na opinião de Pires de Lima e Antunes Varela «justifica-se esta presunção, dado que é difícil, se não impossível, fazer a prova da posse em nome próprio, que não seja coincidente com a prova do direito aparente; e este pode, inclusivamente, não existir. Cabe, portanto, àquele que se arroga a posse provar que o detentor não é possuidor»[30].
Em função das dissidências interpretativas existentes, o Supremo Tribunal de Justiça editou um Acórdão de uniformização de jurisprudência em 14/05/96[31], que firmou o entendimento que «podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa». Desde então, de modo pacífico, está marcadamente intuído que quem tem o poder de facto, ou o “corpus”, está dispensado de provar que possui com intenção de agir como titular do direito real correspondente. Esta linha de pensamento tem sido mantida por diversos arestos[32].
Na verdade, prescreve aquele dispositivo que, em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do disposto no nº 2 do artigo 1257º[33], conforme dispõe o nº 2 do artigo 1252º do Código Civil.
Ao resultar da factualidade apurada que os Autores exercem – por si ou pelos ante possuidores – a posse sobre a parcela de terreno sem qualquer tipo de oposição – tal como ressalta da simples leitura dos pontos 26 a 28 da matéria de facto dada como provada –, o julgador está vinculado a concluir que o referido exercício é público, pacífico, de boa-fé e dura por tempo suficiente para determinar a aquisição prescritiva.
Na realidade, na presente equação jurisdicional estão presentes os elementos constitutivos do corpus e do animus e os requisitos necessários ao preenchimento do fenómeno da usucapião mostram-se preenchidos. E, não obstante o argumentário técnico da impugnação jurídica, resulta que, à luz do que dispõem os artigos 1251º e seguintes do Código Civil, da intercepção entre a factualidade apurada com os elementos constitutivos da posse que estava decorrido o período de tempo consagrado na lei.
A questão da ilegalidade do fracionamento da propriedade não integra o recurso, mas ainda que aqui fosse objecto de tratamento mais apurado não teria a virtualidade de impedir a aquisição por via do instituto da usucapião[34] [35] [36] [37].
Em conclusão, a posse qualificada de objecto hábil por lapso temporal completo implica que se considere que estão assim preenchidos os elementos constitutivos da existência de corpus e de animus. E, deste modo, julga-se improcedente o presente recurso e confirmando-se a decisão recorrida.
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V – Sumário:
(…)

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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso apresentado, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas ao cargo da recorrente, atento o disposto no artigo 527º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138º, nº 5, do Código de Processo Civil).
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Évora, 27/06/2019
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Isabel Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões

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[1] Artigo 421.º (Valor extraprocessual das provas):
1 - Os depoimentos e perícias produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 355.º do Código Civil; se, porém, o regime de produção da prova do primeiro processo oferecer às partes garantias inferiores às do segundo, os depoimentos e perícias produzidos no primeiro só valem no segundo como princípio de prova.
2 - O disposto no número anterior não tem aplicação quando o primeiro processo tiver sido anulado, na parte relativa à produção da prova que se pretende invocar.
[2] Pires de Lima, Lições de Direito Civil (Direitos Reais), 4ª edição, por David Augusto Fernandes, Coimbra Editora, Coimbra, 1958.
[3] Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Reprint, Lex Edições Jurídicas, Lisboa, 1993.
[4] Henrique Mesquita, Direitos Reais, policopiado, Coimbra, 1967.
[5] Henrique Mesquita, Obrigações e Ónus reais, Almedina, Coimbra, 1967.
[6] Oliveira Ascensão, Direito Civil. Reais, 5ª edição, revista e ampliada, Coimbra Editora, Coimbra, 1993.
[7] Direito das Coisas segundo o Código Civil Português, 4 vols., Lisboa, 1975.
[8] Orlando de Carvalho, Direito Civil (Direito das Coisas), Coimbra, 1968-1969.
[9] Carlos Alberto da Mota Pinto, Direitos Reais, por Álvaro Moreira e Carlos Fraga, Almedina, Coimbra, 1971.
[10] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direitos Reais, almedina, Coimbra, 2009.
[11] Luís de Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 6ª edição, Quid Juris, 2009.
[12] Augusto da Penha Gonçalves, Curso de Direitos Reais, Universidade Lusíada, 1993.
[13] António Santos Justo, Direitos Reais, Coimbra Editora, Coimbra, 2007.
[14] José Alberto Vieira, Direitos Reais, Coimbra Editora, Coimbra, 2008.
[15] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume III, 2.ª edição revista e actualizada (com a colaboração de Henrique Mesquita), Coimbra Editora, 2011, páginas 6-7, defendem que «O contrato-promessa, com efeito, não é susceptível de, só por si, transmitir a posse ao promitente-comprador. Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário. (…) São concebíveis, todavia, situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse. Suponha-se, por exemplo, que havendo sido paga já a totalidade do preço ou que, não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo (a fim de, v.g., evitar o pagamento da sisa ou precludir o exercício de um direito de preferência), a coisa é entregue ao promitente-comprador como se sua fosse já e que, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade. Tais actos não são realizados em nome do promitente-vendedor, mas sim em nome próprio, com a intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real. O promitente-comprador actua, aqui, uti dominus, não havendo, por conseguinte, qualquer razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela da posse».
[16] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07/03/2017, in www.dgsi.pt.
[17] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11/10/2015, in www.dgsi.pt.
[18] No mesmo sentido pode ser lido o acórdão deste colectivo do Tribunal da Relação de Évora de 28/02/2019, publicado em www.dgsi.pt.
[19] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/09/2012, in www.dgsi.pt.
[20] Esta posição pode ainda ser perscrutada nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 09/09/08 e de 12/03/09, in www.dgsi.pt.
[21] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/10/2012, in www.dgsi.pt.
[22] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/03/2015, in www.dgsi.pt.
[23] Vaz Serra, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 109º-314 e ano 114º-20.
[24] Menezes Cordeiro, A Posse. Perspectivas Dogmáticas Actuais, 3ª ed., págs. 76 e 77.
[25] Calvão da Silva, Sinal e Contrato Promessa, 11ª edição, pág. 231, nota 55.
[26] Ana Prata, O Contrato-Promessa e o seu Regime Civil, págs. 832 e seguintes.
[27] Gravato de Morais, “Contrato Promessa em Geral – Contratos promessa em especial”, págs. 245 a 247.
[28] Durval Ferreira, Posse e Usucapião, 3ª ed., págs. 473 e seguintes
[29] Menezes Leitão, Direitos Reais, 4ª ed., pág. 123.
[30] Código Civil Anotado, vol. II, 2ª edição revista e actualizada (com a colaboração de Henrique Mesquita), Coimbra Editora, Coimbra 2011, pág. 8.
[31] Publicado no DR II série, de 24/06/96.
[32] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14/05/1996 e de 10/11/2005, do Tribunal da Relação de Lisboa de 05/12/2013 e do Tribunal da Relação de Coimbra de 25/02/2014 e 16/12/2015, todos in www.dgsi.pt e Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 09/01/97 e de 02/05/99, respectivamente, in CJ STJ, T5 – 37 e CJ STJ, T2 – 126.
[33] Presume-se que a posse continua em nome de quem a começou, nos termos do citado artigo.
[34] António Menezes Cordeiro, in A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais, 3ª Edição, Almedina, Coimbra, págs. 130 e 131, defende que «a usucapião é uma forma originária de aquisição de direitos. Assim, quando opere, cessam todos os encargos que antes oneravam a coisa desde que, naturalmente, a posse prescricional tivesse operado sem esses encargos. Desta natureza auto-suficiente da usucapião resultam consequências importantes (…) Admite-se a usucapião duma gleba, separada dum baldio, assim como se admite a usucapião de áreas inferiores às de cultura ou de parcelas que legalmente não seriam separáveis».
[35] Luís Carvalho Fernandes, in Lições de Direitos Reais, Quid Juris, Lisboa, 3ª Edição, pág. 230, também acentua que a aquisição por usucapião é, assim, efeito da posse reiterada de um direito real, não integrando qualquer negócio jurídico que possa ser passível de invalidade jurídica [nulidade ou anulabilidade], por se tratar de uma forma de adquirir de facto um direito real.
[36] A este respeito, aconselha-se a leitura do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/03/2004, que sublinha que mesmo que tivesse havido fraccionamento ilegal, nos termos do artigo 1376º, nº 1, do C.C., desde que esteja invocada a usucapião e se verifiquem os respectivos pressupostos, procede a aquisição do direito de propriedade com base na usucapião.
[37] Em sentido convergente a esta linha jurisprudencial podem ser encontrados os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 09711/2010 e de 12/05/2009 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 15 de Outubro de 2015, disponíveis em www.dgsi.pt.