Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
232/20.5GEBNV.E1
Relator: LAURA GOULART MAURÍCIO
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
REGIME DE PROVA
OBRIGATORIEDADE
VÍTIMA
MENOR
Data do Acordão: 07/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. O arguido foi condenado, por sentença datada de 2nov2022, pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de crianças, nos termos do artigo 171.º, n.º 3, als. a), b) e c), do Código Penal, na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por três anos.
II. Resultou provado que a vítima nasceu em 17dez2007, pelo que, à data dos fatos (jun2020), era uma menor de 12 anos.
III. Dispõe o n.º 4 do artigo 53.º do Código Penal que o regime de prova é também sempre ordenado quando o agente seja condenado pela prática de crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, cuja vítima seja menor.
IV. Impunha-se, deste modo, a aplicação do disposto no artigo 53.º, n.º 4 do Código Penal, ou seja, do regime de prova assente num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio durante o tempo de duração da suspensão, dos serviços de reinserção social, tudo nos termos do disposto nos artigos 53.º, n.º 2 e 54.º do Código Penal e 494.º do Código de Processo Penal.
V. Ao não aplicar tal regime, a sentença recorrida violou o artigo 53.º, n.º 4 do Código Penal.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Local Criminal de Benavente - Juiz 2, no âmbito do Processo 232/20.5GEBNV foi o arguido AA, submetido a julgamento em Processo Comum (Tribunal Singular).
Após realização da audiência de discussão e julgamento, o Tribunal decidiu Tribunal julgar a acusação procedente, por provada e, em consequência:
a) condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de crianças, nos termos do artigo 171.º, n.º 3, alíneas a), b) e c), do Código Penal, na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por três anos.
b) Absolver o arguido AA pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, pelo qual também se encontrava acusado.
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Inconformado com a decisão, o Ministério Público interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:
a. O Tribunal a quo considerou a acusação procedente, por provada e, em consequência condenou o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de crianças, nos termos do artigo 171.º, n. 3 alíneas a), b) e c) do Código Penal na pena de dois anos de prisão suspensa na sua execução por três anos.
b. No caso dos autos, à data dos fatos (junho de 2020) vítima era uma menor de 13 anos, porquanto nasceu a 17.12.2007.
c. Impunha-se, deste modo, a aplicação do disposto no artigo 53.º, n.º 4 do Código Penal, ou seja, do regime de prova assente num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio durante o tempo de duração da suspensão, dos serviços de reinserção social, tudo nos termos do disposto nos artigos 53.º, n.º 2 e 54.º do Código Penal e 494.º do Código de Processo Penal.
d. Ao não aplicar tal regime, a douta Sentença violou o artigo 53.º, n.4 do Código Penal.
e. Termos em que sufragamos o entendimento que o presente recurso deverá ser julgado procedente e em consequência ser a sentença recorrida e substituída por, outra que sujeite a pena aplicada a regime de prova nos termos do disposto no artigo 53.º, n.º4 do Código Penal cuja aplicação é obrigatória.
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O recurso foi admitido e fixado o respetivo regime de subida e efeito.
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Notificado nos termos e para efeitos do disposto no art.413º, nº1, do CPP, o arguido não respondeu ao recurso interposto.
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No Tribunal da Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da procedência do recurso.
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Cumprido o disposto no art.417º, nº 2, do CPP, não foi apresentada resposta.
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Cumpre decidir
Fundamentação
Delimitação do objeto do recurso
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).
No caso sub judice a questão suscitada pelo recorrente e que, ora, cumpre apreciar, traduz-se em saber se a decisão recorrida deve ser revogada e “substituída por outra que sujeite a pena aplicada a regime de prova nos termos do disposto no artigo 53.º, n.º 4 do Código Penal cuja aplicação é obrigatória.”
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Da sentença recorrida -Factos
“II– Fundamentação
A) De Facto
1- Factos provados
Da prova produzida resultaram assentes os seguintes factos, com relevância para a boa decisão da causa:
1. BB nasceu em 17 de Dezembro de 2007 e é filha de CC e DD.
2. Na sequência da separação dos seus pais, e por decisão de 10.01.2019, BB ficou a residir com o pai na morada sita em (…).
3. Para além de BB e do seu pai, na morada supra residem ainda a actual companheira do pai, EE, e a filha daquela, FF, esta nascida em 08.08.2007.
4. Em data não concretamente apurada mas que se situa no mês de Junho de 2020, da parte da tarde, numa ocasião em que se encontrava já de férias escolares, BB saiu de casa para andar de bicicleta, o que fez sozinha.
5. Nessa ocasião, e quando BB passava na Estrada Militar, em Marinhais, diante do número 152, foi abordada pelo arguido, pessoa até então sua desconhecida, o qual também seguia de bicicleta, e que lhe disse “Bom dia”, tendo-lhe a menor respondido de igual modo, mas sem nunca parar.
6. Após BB passar diante do arguido sem parar, aquele disse-lhe “Pára, senão vou atrás de ti”, o que levou BB a parar a sua marcha.
7. Nessa sequência, o arguido aproximou-se de BB e perguntou-lhe, “Queres vir para a cama comigo? Tenho vibradores e cuecas novas para tu usares e não ires suja para casa. Mas tens de ficar de bico calado e não podes contar a ninguém porque a minha mulher não sabe, isto é só um divertimento. Pago o que quiseres para ires para a cama comigo.”
8. Após ouvir aquelas palavras, BB disse ao arguido que não, que não queria nada daquilo e que se tinha de ir embora, momento em que o mesmo colocou uma das mãos sobre a coxa esquerda da menor e, logo de seguida, sobre o ombro esquerdo, e lhe disse que se chamava “A” e que morava “numa casa verde com um avião no telhado”, perguntou o nome à menor e disse-lhe ainda que lhe ia dar o seu número de telemóvel e que ela podia levar outras meninas para irem para a cama com ele, pois já o tinha feito antes.
9. O arguido disse ainda a BB que sabia onde ela estudava, que ia muitas vezes a Benavente e que a iria ver lá, assim como lhe disse ainda “esta noite já não vou dormir, a pensar na menina bonita que és”, após o que se despediu da menor dizendo-lhe, “um beijinho meu pardalinho”.
10. No final da tarde, em data não concretamente apurada, o arguido dirigiu-se a casa da menor, o que fez de carro, tendo falado com o pai daquela, a quem disse que ia apanhar tomate junto da sua casa, pois tinha autorização do dono para tal.
11. BB estava em casa aquando dos factos acima descritos, e viu o arguido, o que lhe causou muito medo, pelo que se escondeu.
12. No início do mês de Agosto de 2020, o que se situa no dia 03, cerca das 17.30h, a menor BB regressava a casa vinda do supermercado “Intermarché” de Marinhais, o que fazia de bicicleta e conjuntamente com a filha da sua madrasta, FF, também esta de bicicleta.
13. Quando BB e FF seguiam na Estrada Nacional n.º 367, nas proximidades do n.º 592 daquela artéria, surgiu o arguido no local, o que fez ao volante do seu veículo automóvel, da marca “Peugeot”, com a matrícula XX-XX-XX, de cor cinzenta, e ao passar ao lado de FF perguntou-lhe “onde vais?”, ao que a mesma respondeu que ia para casa, tendo o arguido dito que não era com ela que queria falar.
14. Nessa sequência, o arguido parou a sua viatura automóvel na via pública dirigiu-se à menor BB, o que fez chamando pelo seu nome, sendo que aquela, apercebendo-se que se tratava do arguido, nunca parou.
15. Nesse momento o arguido disse para BB, “tenho um trabalho para ti”, ao que a menor respondeu que não queria e que se continuasse com aquele comportamento ia chamar a GNR.
16. Após ouvir as palavras da menor, o arguido ainda lhe respondeu que ela havia de parar, mas de seguida ausentou-se do local, sem que nada mais tivesse ocorrido.
17. O arguido ao actuar do modo supra descrito, agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de formular sobre a menor, BB, proposta de cariz sexual e bem assim, com o propósito concretizado de formular sobre a menor, BB, proposta de cariz sexual e bem assim, com o propósito de se encontrar pessoalmente com aquela e, desse modo, com ela praticar actos de cariz sexual, o que apenas não conseguiu por motivos alheios à sua vontade.
18. Ao praticar os factos acima descritos, o arguido bem sabia que a sua conduta incomodava e perturbava a menor, como incomodou e perturbou, assim como que atingia a liberdade na vertente da auto-determinação sexual, de BB, o que o arguido quis e conseguiu fazer.
19. O arguido agiu sempre com o propósito de satisfazer os seus instintos libidinosos, estando ciente de que a sua conduta causava um mau estar físico e psicológico à menor, tal como perturbava o livre desenvolvimento da sexualidade da menor, como efectivamente causou e perturbou.
20. Assim como sabia que BB se tratava de menor e, com menos de 14 anos de idade, o que não o inibiu de praticar os factos conforme os praticou.
21. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, sendo capaz de as orientar de acordo com esse conhecimento.
22. Desconhecem-se anteriores condenações penais ao arguido, constando do seu certificado de registo criminal que as não tem.
23. O arguido vive com a esposa em casa própria.
24. Declara receber 600,00€ de reforma, auferindo a esposa a mesma quantia.
25. Declara ainda fazer biscates na agricultura, sendo pago por eles o que as pessoas lhe quiserem dar.
26. Tem um filho maior de idade.
27. Não sabe ler nem escrever.
2- Factos não provados
Não resultaram provados os seguintes factos, consignando-se que não foram tomados em conta afirmações conclusivas, de direito, ou irrelevantes para a boa decisão da causa:
A. Os factos referidos em 10 passaram-se no mesmo dia em que se passaram os factos referidos em 4 a 9.
B. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 14 o arguido accionou os quatro piscas, saiu da viatura e, em passo de corrida dirigiu-se à menor BB.”
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Apreciando
O arguido foi condenado, por sentença datada de 2 de novembro de 2022, pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de crianças, nos termos do artigo 171.º, n.º 3, alíneas a), b) e c), do Código Penal, na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por três anos.
E neste particular da suspensão da execução da pena mostra-se plasmado na sentença recorrida: ” – Da suspensão da execução da pena de prisão
Dispõe o artigo 50.º, n.º 1 do C.P. que “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”
Daqui deriva que são somente necessidades de prevenção especial de socialização, limitadas pelas de prevenção geral na modalidade de defesa do ordenamento jurídico, que neste momento devem ser equacionadas.
Dito doutra forma, assente está que a suspensão da execução da pena de prisão é uma medida de natureza e finalidade reeducativa, a ser aplicada nos casos em que, do conjunto dos factos e suas circunstâncias, e face à personalidade demonstrada pelo arguido, se ajuíza da suficiência da simples censura do facto e da ameaça da pena, tendo em vista a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
No caso vertente, temos em conta a gravidade dos factos, as consequências que têm na vida da vítima, mas igualmente que o arguido é pessoa de provecta idade, inserido social e familiarmente, pelo que se considera que a ameaça de prisão será suficiente para o dissuadir da prática de novos factos, nomeadamente aplicando-lhe uma suspensão de execução da pena pelo período de três anos – artigo 50.º, n.º 5, do C.P..
V - Decisão:
Nos termos expostos, decide o Tribunal julgar a acusação procedente, por provada e, em consequência:
a)condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de abuso sexual de crianças, nos termos do artigo 171.º, n.º 3, alíneas a), b) e c), do C.P., na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por três anos.”
Ora, resultou provado que BB nasceu em 17 de Dezembro de 2007, pelo que, à data dos fatos (junho de 2020), a vítima era uma menor de 12 anos.
E, sob a epígrafe “Suspensão com regime de prova” dispõe o artigo 53.º do Código Penal:
“1 - O tribunal pode determinar que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, se o considerar conveniente e adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade.
2 - O regime de prova assenta num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio, durante o tempo de duração da suspensão, dos serviços de reinserção social.
3 - O regime de prova é ordenado sempre que o condenado não tiver ainda completado, ao tempo do crime, 21 anos de idade.
4 - O regime de prova é também sempre ordenado quando o agente seja condenado pela prática de crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, cuja vítima seja menor.”
Tem assim inteira razão o recorrente Ministério Público quando afirma que “ c. Impunha-se, deste modo, a aplicação do disposto no artigo 53.º, n.º 4 do Código Penal, ou seja, do regime de prova assente num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio durante o tempo de duração da suspensão, dos serviços de reinserção social, tudo nos termos do disposto nos artigos 53.º, n.º 2 e 54.º do Código Penal e 494.º do Código de Processo Penal.
d. Ao não aplicar tal regime, a douta Sentença violou o artigo 53.º, n.4 do Código Penal.”
Termos em que, pelos fundamentos supra expostos, se concede provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida e decidindo-se a sua substituição por outra que determine que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido seja acompanhada de regime de prova nos termos do disposto no artigo 53.º, n.º4 do Código Penal cuja aplicação é obrigatória.
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Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
- julgar procedente o recurso e revogar a sentença recorrida, decidindo-se a sua substituição por outra que determine que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido seja acompanhada de regime de prova nos termos do disposto no artigo 53.º, n.º 4 do Código Penal cuja aplicação é obrigatória.
- Sem custas.
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Elaborado e revisto pela signatária
Évora, 12 de julho de 2023
Laura Goulart Maurício
Edgar Valente
Nuno Garcia