Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1029/16.2T8STR.E1
Relator: MÁRIO BRANCO COELHO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
FASE CONCILIATÓRIA
ACORDO
HOMOLOGAÇÃO
CASO JULGADO
DIREITOS INDISPONÍVEIS
FACTOR DE BONIFICAÇÃO 1
5
Data do Acordão: 09/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1. O despacho de homologação de acordo obtido na fase conciliatória do processo de acidente de trabalho não forma caso julgado, pois não decide o mérito da causa.
2. Deste modo, o juiz não está impedido de, posteriormente, verificar se foram violados direitos indisponíveis e irrenunciáveis.
3. O factor de bonificação de 1,5 a que se refere a Instrução Geral n.º 5 al. a), segunda parte, da TNI, está apenas dependente de dois critérios objectivos: idade igual ou superior a 50 anos e não ter o sinistrado beneficiado da aplicação desse factor.
4. Não depende de qualquer agravamento, recidiva, recaída ou melhoria da lesão, e deve ser aplicado independentemente de pedido de revisão.
5. Estando reunidos os requisitos do aludido factor de bonificação, a recusa injustificada da sua aplicação interfere no cálculo da pensão devida ao sinistrado e configura inadmissível violação de direitos irrenunciáveis. (sumário do relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo do Trabalho de Santarém, foi participado acidente de trabalho sofrido em 27.04.2015 pelo sinistrado J…, nascido em 01.08.1961.
No exame médico singular realizado na fase conciliatória, foi atribuída uma IPP de 0,21869, desde 11.05.2016. Porém, não foi aplicado o factor de bonificação de 1,5 a que se refere a Instrução Geral n.º 5 al. a) da TNI, em virtude do sinistrado ter idade superior a 50 anos, nem tal omissão foi justificada.
Na tentativa de conciliação, o sinistrado e a responsável … Companhia de Seguros, S.A., acordaram na caracterização do evento como acidente de trabalho, no nexo de causalidade entre o acidente e as lesões, na retribuição anual auferida e efectivamente transferida, e no resultado da perícia médica singular que atribuiu ao sinistrado uma IPP de 0,21869. Em consequência, a Seguradora aceitou pagar o capital de remição correspondente à pensão devida por aquele grau de incapacidade.
A conciliação foi homologada por despacho judicial e a Seguradora pagou ao sinistrado o referido capital de remição, bem como transportes e juros de mora.
Posteriormente, o sinistrado requereu exame de revisão, alegando o agravamento das lesões sofridas em consequência do acidente.
Realizada perícia médica – que aplicou o supra referido factor de bonificação e atribuiu uma IPP de 0,375 – a Seguradora requereu junta médica, na qual se entendeu não ter ocorrido agravamento das sequelas e se manteve a IPP em 0,21869, mais uma vez sem justificação para a não aplicação do referido factor de bonificação.
Foi proferido despacho judicial, notificando a responsável para se pronunciar acerca da aplicação do aludido factor e, face ao seu silêncio, decidiu-se julgar o incidente de revisão improcedente, mantendo a incapacidade atribuída anteriormente, sem prejuízo de rectificação a ser realizada nos autos principais quanto à aplicação do factor de bonificação decorrente da idade do sinistrado.
E nos autos principais foi proferido o seguinte despacho, agora em recurso:
«Compulsado o teor do acordo celebrado em sede de conciliação constante dos autos principais constata-se que o mesmo enferma de inexactidão decorrente de lapso manifesto, uma vez que, não obstante o sinistrado ter 55 anos à data da alta, não lhe foi aplicado o factor de bonificação de 1.5 decorrente do artigo 5.º das Instruções Gerais da TNI em consequência da idade do mesmo.
Há, ainda, a considerar que estamos perante direitos indisponíveis.
Notificadas as partes para se pronunciarem, nada disseram.
Assim, ao abrigo do disposto no artigo 613.º, n.º 2 e 614.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil, procede-se à rectificação do despacho supra e consequentemente, determina-se que à Incapacidade Permanente Parcial previamente fixada de 21,869% deve acrescer o factor de bonificação de 1.5 referido, totalizando, assim, uma Incapacidade Permanente Parcial de 32,804%.»

A Seguradora nas suas alegações conclui o seguinte:
1. O despacho recorrido viola os princípios da segurança e certeza jurídicas, bem como o do caso julgado.
2. O despacho recorrido afirma proceder à correcção de um lapso constante da tentativa de conciliação mas, na realidade, desencadeia oficiosamente uma instância de recurso sem que tal tenha sido impulsionado pelas partes.
3. O grau de IPP faz parte do conteúdo essencial de uma sentença que decida um processo de acidente de trabalho.
4. O despacho recorrido procede à alteração do conteúdo essencial dos termos da conciliação que veio a ser homologada por sentença nos autos principais de acidente de trabalho.
5. A sentença homologatória que fixou a incapacidade ao sinistrado é sempre recorrível, de acordo com o disposto no art.79º, b) do C.P.Trabalho.
6. O despacho recorrido foi proferido em violação do poder jurisdicional do juiz, que se esgota assim que proferida a sentença – art.613º do C.P.Civil, aplicável ao caso em apreço ex vi do art.1º,nº2, a) do C.P.Trabalho.
7. Ao juiz está vedado alterar o decidido, suprir as nulidades da sentença (a menos que a decisão não admita recurso), bem como proceder a qualquer correcção que importe modificação essencial – Ac. STJ de 25/06/2009, relator Oliveira Mendes, disponível em www.dgsi.pt.
Sem prejuízo:
8. O artigo 70º, n.º 1 da Lei 98/2009, de 4 de Setembro determina que, nos casos de aumento do grau da incapacidade, só podem ser considerados o agravamento, a recidiva ou a recaída da lesão ou doença que deu origem à reparação, ou seja, razões motivos de natureza clínica.
9. O erro de aplicação de direito de uma sentença, recorrível, que tenha transitado em julgado, não é um motivo clínico admissível para considerar a aplicação do factor 1.5.
10. O agravamento clínico das sequelas foi julgado improcedente.
11. O despacho recorrido viola o art.613º do C.P.Civil, aplicável ex vi do art.1º, nº2, a) do C.P.Trabalho, os princípios da certeza e segurança jurídicas, consagrados no art.2º da Constituição da República Portuguesa e o art.70º da Lei 98/2009, de 4 de Setembro.

A resposta sustenta a manutenção do decidido.
Dispensados os vistos, cumpre-nos decidir.
A matéria de facto a ponderar é a constante do relatório.

APLICANDO O DIREITO
Da excepção de caso julgado em relação a despacho homologatório de conciliação
No âmbito de processo emergente de acidente de trabalho, realizado o acordo na tentativa de conciliação, os autos são presentes para efeitos de homologação por despacho, nos termos do art. 114.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho.
De acordo com esta norma, o despacho verifica a conformidade da conciliação com os elementos fornecidos pelo processo e com as normas legais, regulamentares ou convencionais, acrescentando o art. 115.º que o acordo produz efeitos desde a data da sua realização e que, em caso de não homologação, continua a produzir efeitos até à homologação do que o vier substituir ou, na falta deste, até à decisão final.
Pode-se, pois, afirmar que o despacho de homologação de acordo obtido na fase conciliatória do processo de acidente de trabalho não forma caso julgado, já que não decide o mérito da causa, limitando-se a efectuar uma verificação meramente formal de conformidade da conciliação com os elementos fornecidos pelo processo e com as normas legais, regulamentares ou convencionais.
Como ensinava Alberto dos Reis[1], “a excepção de caso julgado pressupõe que, tendo uma causa sido decidida por sentença com trânsito em julgado, posteriormente se propõe a mesma causa. (…) É certo que sobre a transacção judicial há-de incidir sentença do tribunal, sem o que o acto das partes não produz efeito; mas a função dessa sentença não é decidir a controvérsia substancial, é unicamente fiscalizar a regularidade e validade do acordo. De maneira que a verdadeira fonte da solução do litígio é o acto de vontade das partes e não a sentença do juiz. Desde que o conflito em si não foi decidido por sentença, não tem cabimento a excepção de caso julgado” – o realce é nosso.
Concluindo-se que o aqui discutido despacho de homologação de acordo, ao não decidir do mérito da causa, não forma caso julgado, ao abrigo do art. 619.º n.º 1 do Código de Processo Civil, de igual modo se deve concluir que tal despacho não esgota o poder jurisdicional do juiz, não estando este impedido de apurar, posteriormente, se foram violados direitos indisponíveis e irrenunciáveis, protegidos pelo art. 78.º da Lei 98/2009, de 4 de Setembro (vulgo, LAT).
Daí que já se tenha decidido que tal despacho, por não proceder ao julgamento dos factos nem decidir o direito aplicável, não forma caso julgado que impeça o juiz de, posteriormente, condenar a responsável em juros.[2]
E também já se decidiu que “o factor de bonificação de 1,5 previsto na alínea a) da 5.ª Instrução Geral da TNI deve ser ponderado e aplicado desde que se mostrem verificados os requisitos legalmente previstos para o efeito, não estando a sua posterior atribuição em incidente de revisão dependente da circunstância de, no momento da fixação originária da desvalorização ao sinistrado, já o mesmo ter sido considerado e reconhecido.”[3]
O despacho recorrido entendeu sustentar-se nos poderes de rectificação de erros materiais, conferidos pelos arts. 613.º n.º 2 e 614.º n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil.
Citando de novo o insigne Alberto dos Reis, «o princípio da intangibilidade da decisão judicial (…) pressupõe que a sentença ou o despacho reproduz fielmente a vontade do juiz; se houve erro material na expressão dessa vontade, se, por qualquer circunstância, a vontade declarada na sentença ou despacho não corresponde à vontade real do juiz, a regra da intangibilidade não funciona. Não faz sentido que subsista vontade diversa da que o juiz teve em mente incorporar na sentença ou despacho.»[4]
No entanto, não precisava de fundar-se nesses poderes de rectificação. Inexistia qualquer decisão jurisdicional de mérito acerca da questão da aplicação do referido factor de bonificação, pelo que não carecia de rectificar uma decisão inexistente. Bastava verificar se haviam sido prejudicados direitos indisponíveis e irrenunciáveis, aplicar o direito pertinente e decidir a questão.
De todo o modo, concordamos que o factor de bonificação de 1,5 a que se refere a Instrução Geral n.º 5 al. a), segunda parte, da TNI é efectivamente aplicável ao caso dos autos.
Note-se que este factor está apenas dependente de dois critérios objectivos: idade igual ou superior a 50 anos e não ter o sinistrado beneficiado da aplicação desse factor. Não depende de qualquer agravamento, recidiva, recaída ou melhoria da lesão, e deve ser aplicado independentemente de pedido de revisão.[5]
No caso dos autos, tais requisitos mostram-se reunidos: o sinistrado tinha mais de 50 anos à data do acidente e os autos de exame médico realizados nos autos revelam que este não padecia de incapacidade anterior, pelo que não havia beneficiado de qualquer bonificação.
A recusa injustificada de aplicação do aludido factor interfere no cálculo da pensão devida ao sinistrado – que, nos termos do art. 48.º n.ºs 2 e 3 da LAT, é calculada de acordo com a perda ou redução da capacidade de trabalho ou de ganho resultante do acidente – e configura assim inadmissível violação de direitos irrenunciáveis.
Deve, pois, o despacho recorrido ser mantido.

DECISÃO
Destarte, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela Seguradora.

Évora, 26 de Setembro de 2019

Mário Branco Coelho (relator)
Paula do Paço
Emília Ramos Costa






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[1] In Comentário ao Código de Processo Civil, vol. III, pág. 499.
[2] Acórdão da Relação do Porto de 06.10.2014 (Proc. 90/12.3TTOAZ-A.P1), disponível em www.dgsi.pt.
[3] Acórdão da Relação de Lisboa de 30.05.2012 (Proc. 468/08.7TTTVD.L1-4), publicado no mesmo local.
[4] Código de Processo Civil Anotado, vol. V, reimpressão, 1984, pág. 130.
[5] Neste sentido, vide o Acórdão da Relação do Porto de 01.02.2016 (Proc. 975/08.1TTPNF.P1), também publicado em www.dgsi.pt.