Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1710/18.1T9FAR.E1
Relator: ALBERTO BORGES
Descritores: ABERTURA DE INSTRUÇÃO
Data do Acordão: 02/18/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - Decidindo a rejeição da abertura da instrução – bem ou mal é questão que abaixo se decidirá – e não havendo lugar à mesma, com aquela decisão prejudicado ficou o conhecimento das invocadas nulidades do inquérito, por aquelas apenas poderem ser conhecidas pelo Juiz de instrução caso haja lugar à mesma.
- Não pode o assistente limitar-se a repetir em sede de abertura de instrução toda a história factual trazida à lide com a denúncia. É necessário que efetue uma verdadeira acusação, pois a mesma, existindo indícios suficientes, fixará o objeto da causa. E tal objeto não se coaduna com a natural falta de rigor formal e material da mera descrição de factos que consta, por exemplo, da denúncia.

- Porque, por força da conjugação do artigo 287 n.º 2 com o artigo 309 n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, a instrução requerida pelo assistente, em caso de despacho de arquivamento do inquérito proferido pelo Ministério Público – aquele que aqui importa ter em conta – não pode destinar-se à simples impugnação de tal despacho, sendo certo que tal exigência, formalismo e equiparação não se pode afirmar ou exigir ao requerimento formulado pelo arguido (cfr. artigo 287 n.º 2, in fine, a contrario sensu).

- Porque no requerimento para abertura de instrução o assistente tem de indicar os factos concretos que, ao contrário do Ministério Público, considera indiciados ou que pretende vir a fazer indiciar no decurso da investigação requerida. Ou seja, tem que deduzir materialmente uma acusação. O juiz, por seu turno, irá apurar se esses factos se indiciam ou não, proferindo ou não, em consonância, despacho de pronúncia.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Instrução Criminal de Portimão, Juiz 2, correu termos o Proc. n.º 1710/18.1T9FAR, no qual, na sequência da instrução requerida pela assistente (OF), foi decidido rejeitar o requerimento de abertura de instrução, por inadmissível (despacho de 14.10.2019).

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2. Recorreu a assistente de tal despacho – que rejeitou o requerimento de abertura da instrução - concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões:

1 – Os atos de inquérito não são apenas suscetíveis de reclamação hierárquica, terão sempre que ser sindicados, quanto à sua legalidade, pelo juiz de instrução, quando tal seja solicitado.

2 – O despacho recorrido não se pronunciou sobre questões que devia conhecer, em clara violação do disposto no art.º 379 n.º 1 al.ª c), em conjugação com o art.º 308 n.º 3 do CPP.

3 – Assim, enferma de nulidade, por omissão de pronúncia, o despacho judicial que decide rejeitar o requerimento de abertura der instrução e não conhece previamente de várias alegadas nulidades imputadas pela requerente ao desenrolar do inquérito e ao próprio despacho de arquivamento do Ministério Público, matéria essa exclusivamente jurisdicional, tendo de ser apreciada por juiz de direito e não pelo MP, nulidade essa que é patente na decisão em crise, que ignora a sua invocação.

4 – A decisão recorrida procede a uma errada aplicação do direito, dado que põe termo ao processo quando a lei determina que tenha lugar a fase instrutória, gerando os presentes autos uma nulidade insanável, de conhecimento oficioso, por omissão da fase de instrução num caso em que a lei determina a sua obrigatoriedade.

5 – A decisão de rejeição do requerimento de abertura de instrução não está na discricionariedade do tribunal, antes sendo admissível apenas nos casos expressamente previstos na lei.

6 – O n.º 2 do art.º 287 do CPP dispõe que o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à decisão de não acusação, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas al.ªs b) e c) do n.º 3 do art.º 283 do CPP, sendo todas as referidas normas legais violadas pelo despacho em crise.

7 – Por força desta remissão, o RAI deve ainda conter a narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo., se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, e deve ainda indicar as disposições legais aplicáveis.

8 – O RAI apresentado observou todos os requisitos e formalidades acima identificados, dado que a assistente fez saber quais as razões pelas quais não concordada com o despacho de arquivamento, descrevendo quais os concretos comportamentos dos denunciados suscetíveis de integrar a prática do crime de usurpação de funções.

9 – O tribunal recorrido, antecipando um juízo de prognose – que, nos termos da lei, apenas tem lugar no final da fase de instrução (art.º 308 do CPP) – optou por indeferir liminarmente o requerimento de abertura de instrução.

10 – A decisão recorrida procedeu a uma errada aplicação do direito, rejeitando o requerimento de abertura de instrução num caso em que a lei não permite tal rejeição.

11 – Dispõe o n.º 3 do art.º 287 do CPP - que o despacho em crise viola frontalmente – que o requerimento de abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.

12 – O tribunal a quo considerou que no conceito de inadmissibilidade legal de instrução se inclui a omissão dos elementos previstos nas al.ªs b) e c) do n.º 3 do art.º 283 do CPP - trata-se de uma interpretação errada da lei.

13 – Em primeiro lugar porque em parte alguma do n.º 2 do art.º 287 se refere que esses elementos são obrigatórios, sob pena de rejeição do requerimento, pelo contrário, a letra da lei tem uma tónica claramente indicativa e ordenadora.

14 – Em segundo lugar, porque resulta evidente que a lei quis ser específica, concreta e taxativa no que diz respeito aos fundamentos de rejeição do requerimento de abertura de instrução; e não faria sentido estipular no art.º 287 n.º 3 do CPP que o requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução, ou seja, em três casos específicos e taxativos, e depois interpretar o último desses casos de rejeição como abarcando toda e qualquer situação em que se entendesse que o requerimento de abertura de instrução não contém as menções previstas na lei, sobretudo quando do próprio texto da lei, e para o MP, que tem poderes de investigação que estão vedados ao assistente, se inclui a expressão “se possível” (art.º 283 n.º 2 al.ª c)).

15 – Pelo que, in casu, e ao arrepio da lei, o Mm.º JIC entendeu que o assistente, que não tem poderes de investigação, nem para obtenção de meios de prova essenciais, mormente documentos em posse de terceiros, teria um dever de circunstanciar o RAI, acima mesmo do que a lei exige ao titular do inquérito, que é o MP, MP que, no caso, decidiu não investigar, ao que parece, com beneplácito, ilegal, diga-se, do Mm.º JIC.

16 – Por último, resulta evidente que, ao incluir a inadmissibilidade legal nos três fundamentos taxativos de rejeição do requerimento de abertura de instrução, o artigo 287 n.º 3 do CPP se refere, exclusivamente, aos casos em que a instrução não ´é admissível, por não caber na forma de processo em causa ou ser requerida por quem não tem legitimidade para tal.

17 – Acresce que a doutrina e a jurisprudência são unânimes na interpretação restritiva que fazem deste fundamento legal de rejeição do RAI, precisamente de modo a evitar que o tribunal antecipe, para a fase de admissão a instrução, um juízo de prognose que apenas pode e deve existir no final da mesma.

18 – O tribunal recorrido, ao subsumir o caso vertente a uma hipótese de inadmissibilidade legal do RAI, justificativa da sua rejeição, fez uma incorreta e errada aplicação do direito

19 – Tal traduz uma antecipação ilegítima do juízo de prognose que se relega para o final da fase de instrução, durante a qual, além da análise da prova produzida e do eventual oferecimento de novos meios de prova, terá, obrigatoriamente, lugar o debate instrutório, e apenas no terminus da mesma ocorrerá a comprovação judicial da decisão tomada no final do inquérito.

20 – Por força da prolação da decisão recorrida encontram-se os autos feridos de nulidade insanável, prevista na al.ª d) do art.º 119 do CPP, a qual é de conhecimento oficioso e deverá ser declarada, com todos os efeitos legais, por omissão da fase de instrução num caso em que a lei determina a sua obrigatoriedade

22 – O tribunal a quo esqueceu, igualmente, ou pelo menos ignorou por completo, o contexto em que foi requerida a abertura da instrução, ainda que tal constasse do RAI; como aí referido, a assistente, desconhecendo os nomes completos dos denunciados, logrou proceder, não só à identificação e domicílio profissional dos mesmos, como também indicou exaustivamente os meios de prova documental que revestiam importância acrescida para a descoberta da verdade e que só o MP poderia, por ter poder para tal, fazer juntar aso autos, não competindo, de forma alguma, à assistente especular questões e soluções nem, tão pouco, colocar-se no papel do MP.

23 – Pese embora a diligência com que a assistente atuou, revelando sempre uma atitude colaboradora com o MP, este demonstrou, indubitavelmente, um desinteresse na causa e no apuramento da verdade, não cumprindo o dever funcional que se lhe impunha em prol da descoberta da verdade.

24 – Ademais, não se pode conceber que tudo o que a assistente vem, insistentemente, alegando, seja grosseiramente ignorado, não só pelo MP, como agora pelo Juiz de Instrução.

25 – Impondo-se, por tudo o exposto, a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que, por estarem preenchidos os requisitos legalmente previstos para o efeito, determine a abertura de instrução, nos termos requeridos pela assistente, com as legais consequências, pois que aquela decisão, como acima referido e demonstrado, viola, entre outras normas e princípios legais, o disposto nos art.ºs 283 n.º 3, 287 n.º 3 e 119 al.ª d), todos do CPP.

26 – Termos em que, julgando o recurso procedente e decidindo de acordo com as conclusões supra enunciadas, se respeitará o Direito.

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3. Respondeu o Ministério Público junto da 1.ª instância, concluindo a sua resposta nos seguintes termos:

1 – A instrução visa a comprovação judicial de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

2 – Sendo a instrução requerida pelo assistente – que é o que aqui interessa – a mesma apenas pode dizer respeito a factos relativamente aos quais o Ministério Público não tenha deduzido acusação e os mesmos sejam suscetíveis, como é óbvio, de acusação particular.

3 – O requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente deve conter, para além dos requisitos plasmados nos art.º 287 n.º 2 e 283 n.º 3 al.ªs b) e c) do CPP, a narração própria de uma acusação, mediante a descrição dos factos integradores de um crime e a indicação da correspondente disposição legal que o tipifica.

4 – Tal descrição factual deverá conter factos concretos, suscetíveis de integrar todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo criminal que o assistente considere preenchido.

5 – O requerimento acusatório formulado pelo assistente delimita o objeto do processo, com a correspondente vinculação temática do tribunal, garantindo a estrutura acusatória do processo e a defesa do arguido que, sabendo concretamente quais os factos e os crimes que lhe são imputados, pode exercer convenientemente o contraditório.

6 – No caso dos autos o assistente, ao contrário daquilo a que estava obrigado, não fez no requerimento de abertura de instrução a necessária inventariação factual equivalente a uma acusação pública, limitou-se a avançar as razões da sua discordância relativamente ao despacho final de arquivamento do inquérito, configurando-o como se de um recurso do despacho de arquivamento se tratasse, omitindo a descrição integral dos factos suscetíveis de preencher os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime que imputa ao(s) denunciado(s).

7 - Sendo o processo penal enformado pelo princípio do acusatório, do qual resulta a indisponibilidade do objeto e do conteúdo do processo, constitui pressuposto processual da instrução, para além do mais, que haja uma imputação subjetiva dos elementos objetivos ao(s) sujeito(s) da prática de qualquer facto que possa constituir crime.

8 – Ao rejeitar o requerimento de abertura de instrução com fundamento na sua inadmissibilidade legal, o Mm.º Juiz de Instrução Criminal não violou o disposto nos art.ºs 283 e 287 do CPP ou qualquer outra disposição legal.

9 – Não admitida a instrução não há que apreciar nulidades invocadas no requerimento de abertura de instrução.

10 – No entanto, e salvaguardando entendimento diverso, sempre se dirá que, pretendendo o assistente arguir uma nulidade eventualmente cometida pelo Ministério Público na fase de inquérito, deveria tê-lo feito perante o magistrado titular do mesmo ou suscitando a intervenção do respetivo superior hierárquico.

11 – Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, deve negar-se provimento ao recurso e confirmar-se inteiramente o despacho recorrido.

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4. O Ministério Público junto deste tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, manifestando a sua adesão aos fundamentos/argumentação constantes da resposta apresentada na 1.ª instância (parecer de 20.12.2019).

5. Cumprido o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP e colhidos os vistos legais, cumpre decidir – em conferência (art.º 419 n.º 3 al.ª b) do CPP) - tendo em atenção as questões colocadas pela recorrente (nas conclusões da motivação do recurso, sendo que são estas, as questões aí colocadas, que delimitam o âmbito do recurso) e que se resumem a saber:

1.ª – Se a decisão recorrida é nula, por omissão de pronúncia (379 n.º 1 al.ª c) do CPP, em conjugação com o art.º 308 n.º 3 do CPP);

2.ª - Se, não obstante as deficiências que apresenta o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, devia o mesmo ser admitido.

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5.1. – 1.ª questão: se a decisão recorrida é nula, por omissão de pronúncia (379 n.º 1 al.ª c) do CPP, em conjugação com o art.º 308 n.º 3 do CPP).

Alega a recorrente que a decisão recorrida é nula, porque não se pronunciou sobre uma questão que devia conhecer, concretamente, sobre as nulidades do inquérito suscitadas no requerimento de abertura de instrução.

Sem razão.

Em primeiro lugar não se percebe a que propósito vem invocado o art.º 308 n.º 3 do CPP, pois que as nulidades ou questões prévias ou incidentais a que esse preceito se reporta – cujo conhecimento precede o conhecimento das demais questões – são as que devem ser conhecidas no despacho de pronúncia ou não pronúncia, quando é certo que o despacho que rejeita o requerimento de abertura de instrução não se confunde com a decisão de pronúncia ou não pronúncia.

Depois, o conhecimento de eventuais nulidades do inquérito em sede de instrução pressupõe a abertura da mesma, pois que a competência do Juiz de instrução na fase de inquérito/durante o inquérito está circunscrita às situações previstas nos art.º 268 e 269 do CPP, onde não se inclui o conhecimento de eventuais nulidades do inquérito, este da competência do Ministério Público, enquanto titular do mesmo.

De facto, por um lado, o inquérito é da exclusiva titularidade do MP e só permite a intervenção pontual do juiz nos casos expressamente tipificados na lei, por outro, encerrado o inquérito e aberta a instrução, abre-se uma fase autónoma do processado, cuja direção radica doravante no juiz de instrução, que, com total autonomia ordena as diligências que tenha por necessárias ao fim dessa fase eventual: proferir decisão instrutória (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.04.2006, in www.dgsi.pt).

Ora, não havendo lugar a instrução/não tendo esta sido admitida – pressuposto da competência do Juiz de instrução para conhecer de eventuais nulidades do inquérito - prejudicado estava o conhecimento das invocadas nulidades do inquérito pelo Juiz de instrução, já que a sua competência para tal pressupõe a abertura da instrução, esta, sim, da sua competência.

Corrobora este entendimento o disposto no art.º 120 n.º 3 al.ª c) do CPP, quando aí se estabelece que as nulidades respeitantes ao inquérito, não tendo havido instrução, devem ser arguidas “até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito”.

Neste sentido (e a este propósito) pode ver-se ainda Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 2.ª edição, 308: “… a nulidade deve ser arguida até ao encerramento do debate instrutório, salvo se não houver instrução, caso em que a nulidade ocorrida na fase de inquérito deve ser arguida até cinco dias após a notificação do despacho que encerrou o inquérito…”.

Decidindo a rejeição da abertura da instrução – bem ou mal é questão que abaixo se decidirá – e não havendo lugar à mesma, com aquela decisão prejudicado ficou o conhecimento das invocadas nulidades do inquérito, por aquelas apenas poderem ser conhecidas pelo Juiz de instrução caso haja lugar à mesma.

Porém, ainda que assim não se entendesse, a invocada omissão de pronúncia nunca caberia na previsão do art.º 379 n.º 1 al.ª c) do CPP, enquanto norma especial, que apenas respeita às nulidades da sentença, pelo que tal omissão, a entender-se que existe, não estando prevista entre as nulidades enunciadas dos art.ºs 119 e 120 do CPP, integraria uma mera irregularidade processual – ex vi art.º 118 n.ºs 1 e 2 do CPP – irregularidade que, não tendo sido tempestivamente arguida, nos termos e no prazo previsto no art.º 123 n.º 1 do CPP, sempre se teria como sanada.

Improcede, por isso, a 1.ª questão supra enunciada.

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5.2. - 2.ª questão: se, não obstante as deficiências que apresenta o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, devia o mesmo ser admitido.

5.2.1. Findas as diligências de investigação tidas por pertinentes durante a fase de inquérito, na sequência da participação apresentada pela OF no DIAP de Portimão, Ministério Público proferiu o despacho de 18.06.2019, no qual decidiu, ordenar o arquivamento dos autos, nos termos do art.º 277 n.º 2 do CPP, por as provas carreadas para os autos – escreve-se – serem “manifestamente insuficientes para alicerçarem um juízo indiciário de culpa relativamente aos factos denunciados/participados…”.

5.2.2. Veio então a assistente – aqui recorrente – a requerer a abertura de instrução, invocando, em síntese:

– A insuficiência de inquérito para sustentar a decisão de arquivamento, o que constitui uma nulidade dependente de arguição (120 n.º 2 al.ª d) do CPP) e consubstancia uma omissão da prática de alguns atos legalmente obrigatórios ou na omissão de algumas diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade; entende a assistente que o MP omitiu objetivamente (porque na posse de todos os elementos que implicariam conduta diversa) atos de inquérito muito relevantes para a descoberta da verdade, como seria a ordem para que a ARS A juntasse a documentação referida pela testemunha MA ou, em alternativa, ou no caso (atentas as circunstância, bem provável) de ser negada a existência desses documentos, que fossem juntas as cópias na posse daquela testemunha.

– Que:

- da análise de toda a prova produzida “… resulta evidente que os Srs. Psicólogos da ETFT de P… aproveitando-se, eventualmente, de falta de regulamentação obrigatória naquela unidade de saúde, prescrevia metadona sem a necessária supervisão e validação médica, como pretendiam que os enfermeiros ao serviço naquela unidade seguissem indicações suas na prática dos atos próprios da sua profissão, em violação das suas próprias regras (dos enfermeiros) deontológicas”;

- “… indiciam suficientemente os autos que, todos eles, bem sabendo que tal lhes estava vedado, não só prescreveram doses de metadona para serem administradas em doentes ou por estes levantadas, como alteraram prescrições dessas mesmas doses, tentando forçar os enfermeiros que se recusavam a cumprir tais prescrições, nomeadamente a testemunha E, a levá-las a cabo, bem como tentaram influenciar e levar os enfermeiros do ETET P a realizar testes de urina e dispensa de metadona em moldes contrários à lei (nomeadamente no que respeita à qualidade das amostras) e, quando o não o conseguiram, chegaram mesmo a substituir-se a estes nesses exames ou nessa dispensa, assim violando a lei e preenchendo a conduta tipificada pelo artigo 358.º do Código Penal, na medida em que, bem sabendo que tais condutas lhes estava vedadas e violavam a lei, não hesitaram em adotá-las”;

- “… dos autos constam elementos indiciários suficientes para que seja proferida acusação, como, e mais grave, o MP omitiu diligências de inquérito essenciais para a descoberta da verdade.

…”.

5.2.3. Tal requerimento- de abertura de instrução – veio a ser indeferido, em síntese:

- Porque, de acordo com o disposto no artigo 287 n.º 2 do Código de Processo Penal, o requerimento de abertura de instrução deve conter «em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for o caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar», sendo aplicável a tal requerimento, quando formulado pelo assistente, «o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) (...)».

- Porque o requerimento de abertura de instrução do assistente está sujeito ao formalismo da acusação, isto é, equipara-se-lhe (vide acórdão da Relação de Lisboa de 12/05/1998, BMJ n.º 477, pág. 555, da Relação do Porto de 15/04/1998, BMJ n.º 476, pág. 487, da Relação de Lisboa de 2/12/1998, BMJ n.º 482, pág. 294, da Relação de Lisboa de 21/10/1999, CJ, XXII pág. 158, e da Relação de Lisboa de 9/02/2000, CJ, XXIII, 1.º, 153).

- Porque, por isso, não pode o assistente limitar-se a repetir em sede de abertura de instrução toda a história factual trazida à lide com a denúncia. É necessário que efetue uma verdadeira acusação, pois a mesma, existindo indícios suficientes, fixará o objeto da causa. E tal objeto não se coaduna com a natural falta de rigor formal e material da mera descrição de factos que consta, por exemplo, da denúncia.

- Porque, por força da conjugação do artigo 287 n.º 2 com o artigo 309 n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, a instrução requerida pelo assistente, em caso de despacho de arquivamento do inquérito proferido pelo Ministério Público – aquele que aqui importa ter em conta – não pode destinar-se à simples impugnação de tal despacho, sendo certo que tal exigência, formalismo e equiparação não se pode afirmar ou exigir ao requerimento formulado pelo arguido (cfr. artigo 287 n.º 2, in fine, a contrario sensu).

- Porque no requerimento para abertura de instrução o assistente tem de indicar os factos concretos que, ao contrário do Ministério Público, considera indiciados ou que pretende vir a fazer indiciar no decurso da investigação requerida. Ou seja, tem que deduzir materialmente uma acusação. O juiz, por seu turno, irá apurar se esses factos se indiciam ou não, proferindo ou não, em consonância, despacho de pronúncia (cfr., neste sentido, os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 05/05/1993, CJ, XVIII, 3.º, pág. 243, e do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/11/1993, CJ, XVIII, 5.º, pág. 61).

Isto significa, portanto, que o requerimento de abertura de instrução equivale, em tudo, à acusação, definindo e delimitando o objeto do processo a partir da sua apresentação; ele constitui, pois, substancialmente, uma acusação alternativa ao despacho de abstenção proferido pelo Ministério Público.

Seguindo-se tal raciocínio assegurar-se-á a estrutura acusatória que preside ao direito processual penal português, na medida em que «o juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos (...) que tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser objeto da acusação do Ministério Público» – Germano Marques da Silva, Do Processo Penal Preliminar, pág. 264.

O Tribunal Constitucional já se pronunciou s obre a questão da constitucionalidade da norma do artigo 283 n.º 3 alíneas b) e c) do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de ser exigível, sob pena de rejeição, que constem expressamente do requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente os elementos mencionados nessas alíneas, tendo declarado a sua não inconstitucionalidade (veja-se, entre outros, o acórdão n.º 358/04 desse Tribunal, publicado na II Série do DR n.º 150, de 28 de junho de 2004).

- Porque, analisando o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente OF, verifica-se que o mesmo avança as razões da sua discordância com o despacho final de arquivamento proferido pelo Ministério Público, contudo, parece olvidar a referida estrutura acusatória. Lidos todos os factos, o que se verifica é que a assistente veio trazer novamente todos os fundamentos que deram origem à denúncia, mas não individualizou e explanou quais os factos que se subsumem aos tipos criminais em causa e que devem ser sujeitos ao crivo judicial.

A assistente não faz referência material aprofundada à forma como se terão desenvolvido os factos denunciados, impondo ao juiz de instrução, dada a forma como alegou, a busca nos elementos constantes dos autos dos factos que poderão consubstanciar a prática dos imputados crimes. Isto é, estamos perante uma alegação genérica de factos, sendo que é ao Juiz de Instrução que compete “escolher” os factos que posteriormente serão sujeitos a debate. Tal situação, à luz dos preceitos citados, não é admissível.

Ao contrário daquilo a que estava obrigada, a assistente não fez no requerimento de abertura da instrução a necessária inventariação factual equivalente a uma acusação pública, porquanto, não enumerou de forma cabal, precisa, concreta e determinada os factos que pretende estarem indiciados, suscetíveis de integrarem a prática por um concreto indivíduo de um ilícito típico que permita a aplicação de uma pena. Ou seja, a assistente não elaborou um requerimento de abertura da instrução onde desse cumprimento às imposições legais supra referidas, nomeadamente no sentido de que se possa afirmar estarmos perante uma verdadeira acusação.

Leia-se, a este propósito, o que se escreveu no acórdão da Relação de Lisboa, de 20 de maio de 1997 (in CJ, XXII, 3.º pág. 143), «o requerimento de abertura de instrução, no caso de arquivamento do processo pelo Ministério Público, é que define e limita o respetivo objeto do processo, a partir da sua formulação, constituindo, substancialmente, uma acusação alternativa. Assim, e além do mais, deverá dele constar a descrição dos factos que fundamentam a eventual aplicação de uma pena ao arguido e a indicação das disposições legais incriminadoras». Mais adiante ainda se anota: «não é ao juiz que compete compulsar os autos para fazer a enumeração e descrição dos factos que poderão indiciar o cometimento pelo arguido de um crime, pois, então, estar-se-ia a transferir para aquele o exercício da ação penal contra todos os princípios constitucionais e legais em vigor».

O não acatamento pelo assistente desta exigência torna-se depois insuprível: «face à indiscutível ausência no requerimento de abertura de instrução do necessário conteúdo fáctico», o despacho de pronúncia que, porventura, viesse a ser proferido na sua sequência «seria nulo» ou, até, «juridicamente inexistente» (cfr. neste sentido, acórdão da Relação de Lisboa de 9 de fevereiro de 2000, in CJ, XXV, 1.º, pág. 153).

Com efeito, não contendo o requerimento de abertura da instrução o indispensável conteúdo fáctico e não respeitando o constante das várias alíneas do n.º 3 do artigo 283 do Código de Processo Penal, «não só se torna inexequível a instrução, ficando o juiz sem saber quais os factos que o assistente gostaria de ver julgados indiciados – e também o arguido, ficando inviabilizada a sua defesa –, como também, caso mesmo assim se prosseguisse a instrução, qualquer despacho de pronúncia que se proferisse na sua sequência sempre seria nulo nos termos do artigo 309.º do Código de Processo Penal», e, por isso, «inútil e proibido, tal como os atos eventualmente subsequentes» (cfr. acórdão da Relação de Lisboa, de 11 de outubro de 2001, in CJ, XXVI, 4.º, pág. 141).

Se o assistente requerer a abertura de instrução sem a indicação e enunciação do constante naquelas alíneas «a instrução será a todos os títulos inexequível» (cfr. Maia Gonçalves, op. cit., pág. 541, e Souto de Moura, “Inquérito e Instrução” in “Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal”, Ed. do CEJ, Almedina, Coimbra, 1991, pág. 120).

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5.2.4. Esta decisão, tal como se apresenta, e assim sintetizada, evidencia, de forma clara e exemplar, a sem razão da recorrente.

De facto, e correndo o risco de nos repetirmos:

1) O requerimento para abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais – di-lo expressamente no art.º 287 n.º 2 do CPP – todavia, quando requerida pelo assistente, o mesmo “não pode, em termos materiais e funcionais, deixar de revestir o conteúdo de uma acusação alternativa, onde constem os factos que se considera indiciados e que integrem o crime, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório” (Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, 41, e art.ºs 287 n.º 2 e 283 n.º 3 al.ªs b) e c) do CPP).

Do mesmo modo Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado e Comentado, 9.ª edição, 541: “Em tal caso, de instrução requerida pelo assistente, o seu requerimento deverá, a par dos requisitos do n.º 1, revestir os de uma acusação, que serão necessários para possibilitar a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório e elaboração da decisão instrutória”.

E o acórdão do TC n.º 358/2004, de 19.05.2004, in DR, 2.ª Série, de 28.06.04, onde se escreve: “A estrutura acusatória do processo penal português... impõe que o objeto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução... o seu objeto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa... o assistente tem de fazer constar do requerimento para a abertura de instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas no n.º 3 do artigo 283 do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre... de princípios fundamentais de processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória”.

Os elementos mencionados nas alíneas b) e c) do n.º 3 do art.º 283 do CPP são:

“b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada (em suma, os factos que integram os elementos constitutivos do crime ou crimes pelos quais se pretende a submissão do arguido a julgamento);

c) A indicação das disposições legais aplicáveis”.

E entre os “factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança” encontram-se – no caso concreto – por um lado, os factos objetivos que preenchem os elementos do tipo, maxime, os factos concretos cuja prática é imputada ao denunciado ou denunciados – e que devem ser devidamente identificados - por outro, os factos que consubstanciam o seu elemento subjetivo, ou seja, a imputação de tais factos ao agente, seja a título de dolo, seja a título de negligência, pois “só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência” (art.º 13 do CP), e os factos reveladores de que o arguido atuou com a consciência da ilicitude, pois o dolo, a negligência e a consciência da ilicitude são pressupostos da punição, pelo que a sua falta implica a conclusão de que não estão reunidos os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ao arguido.

Bem pode acontecer que o assistente, designadamente, nos casos em que o Ministério Público não investigou os factos ou os investigou em termos considerados deficientes, não disponha de elementos/factos para deduzir uma acusação alternativa, nesses casos, não dispondo de elementos para deduzir acusação/requerer a abertura de instrução, nos termos que se deixaram expostos, só lhe resta requerer a intervenção hierárquica, nos termos do art.º 278 n.º 1 do CPP, a fim de que as investigações prossigam, com vista a apurar os factos que integram o ilícito (ou ilícitos) denunciado(s) e identificar o(s) seu(s) agente(s), sendo certo que a instrução – enquanto fase processual que se destina à comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento – não visa nem se destina à realização de outro inquérito ou ao complemento do inquérito já efetuado, ampliando a investigação (sob pena do Juiz de Instrução se substituir ao Ministério Público, em violação da estrutura acusatória do processo penal), mas à comprovação judicial de algo que já exista, “e será a comprovação (ou não) indiciária do que já existe (e foi investigado…) o que se fará na instrução”.

Em suma, a abertura de instrução, nestas circunstâncias, só será admissível “contra a(s) pessoa(s) em relação à(s) qual(ais) a investigação tenha sido conduzida e cuja eventual responsabilidade criminal, em virtude dos factos investigados, haja sido ponderada no despacho de arquivamento, mesmo que a pessoa em causa não tenha sido formalmente constituída arguida” - Jorge Figueiredo Dias e Nuno Brandão, RPCC, ano 9, n.º 4, 643 a 668 - pois que, não tendo sido desenvolvidas em sede de inquérito diligências consideradas pertinentes, necessárias para apurar os factos que integram o(s) ilícito(s) criminal(ais) denunciado(s), a identificar o(s) agente(s) desses factos e a integrar os elementos subjetivos do tipo, ao assistente resta a reclamação hierárquica, ex vi art.º 278 do CPP, não a abertura de instrução, que visa comprovar algo que já existe.

No caso, o requerimento de abertura de instrução, para além de não identificar os denunciados - e deve dizer-se que não há lugar a instrução contra incertos/contra eventuais suspeitos não devidamente identificados (ver a este propósito Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 2.ª edição, 751, e a diversa jurisprudência aí identificada, a esse propósito, confirmada pelo acórdão do TC n.º 358/2004, a que acima já se fez referência) - não configura como uma verdadeira acusação, pois que, como bem se destacou na decisão recorrida, por um lado, não concretiza/individualiza os factos que, no seu entender, “se subsumem aos tipos criminais em causa e que devem ser sujeitos ao crivo judicial” (em suma, quem? quando? fez o quê?), por outro, não invoca os factos que consubstanciam o seu elemento subjetivo do tipo, ou seja, a imputação de tais factos ao agente, seja a título de dolo, seja a título de negligência, pois “só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência” (art.º 13 do CP).

E sendo assim, sem perder de vista que «o juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos (...) que tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser objeto da acusação do Ministério Público» (Germano Marques da Silva, Do Processo Penal Preliminar, pág. 264), a falta de tais elementos implica a conclusão de que não estão reunidos os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena aos denunciados (não identificados).

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2) Por outro lado, e contrariamente ao defendido pela recorrente, vem sendo decidido pelos nossos tribunais superiores, como nos dá conta o acórdão do STJ de 12.03.2009, in www.dgsi.pt, que “não faz sentido proceder-se a uma instrução visando levar o arguido a julgamento sabendo-se antecipadamente que a decisão instrutória não poderá ser proferida nesse sentido” (ac. do STJ de 22.10.2003 – Proc. 2608/03-3).

No mesmo sentido o acórdão do STJ de 12.03.2009, in www.dgsi.pt, acima citado: “… a instrução será inexequível e constituirá uma fase processual sem objeto… se, pela simples análise do requerimento para abertura de instrução, sem recurso a qualquer outro elemento externo, se deve concluir que os factos narrados pelo assistente jamais poderão levar à aplicação de uma pena, estaremos face a uma fase instrutória inútil, por redundar necessariamente num despacho de não pronúncia. No conceito de «inadmissibilidade de instrução» haverá, assim, que incluir, para além dos fundamentos específicos de inadmissão da instrução qua tale, os fundamentos genéricos de inadmissão de atos processuais em geral”.

E de 2.10.2019, Proc. 41/18.1TREVR.S1-3, de que foi relator o Exm.º Conselheiro Nuno Gonçalves, em cujo sumário se escreveu:

“…

II – Ao JIC compete, em caso de arquivamento do inquérito, comprovar se a decisão é fundada ou, não o sendo, a «acusação» deduzida pelo assistente colhe suficiente indiciação.

III - Ao JIC não cabe investigar livremente qualquer facto e qualquer crime. Tem, isso sim, tendo em conta a indicação constante do requerimento da abertura da instrução, autonomia para investigar os factos que constituem objeto do processo …

IV – A «acusação» vertida no requerimento de abertura da instrução está sujeita ao princípio da imutabilidade. O assistente não tem outra oportunidade para poder corrigi-la… podendo apresentar-se sucinta, tem de conter todos os elementos objetivos e subjetivos do crime imputado ao arguido.

V – Está estabelecido na jurisprudência deste STJ e do TC que o requerimento para a abertura de instrução apresentado pelo assistente em caso de arquivamento do inquérito tem necessariamente de incluir a narração dos factos e a imputação jurídico-penal… o incumprimento destes requisitos integra o instituto da inadmissibilidade legal da instrução, com a consequente rejeição cominada no art.º 287 n.º 3 do CPP. E que a norma citada interpretada com este sentido não enferma de inconstitucionalidade”.

E ainda Vinício Ribeiro, in “Código de Processo Penal – Notas e Comentários”, Coimbra Editora, 2011, pág. 794, apud ac. Relação de Évora de 13/07/2017, in www.dgsi: “o não descrever factos, ou descrever factos que não constituem crime, não pode deixar de conduzir […] à inadmissibilidade legal [da instrução] por falta de requisitos legais”.

Nestas circunstâncias não se pode dizer que a rejeição da instrução assenta num mero formalismo processual ou “numa antecipação ilegítima do juízo de prognose que se relega para o final da fase de instrução”, conforme alega a recorrente, do que se trata é de obstar à prática de uma fase processual inútil, que redundaria, necessariamente, numa decisão de não pronúncia, por falta de um pressuposto essencial: a narração de factos que integrem a prática de um ilícito penal, que fundamentem a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança.

E isto nada colide com o disposto no art.º 20 da CRP, pois que o acesso ao direito e aos tribunais não é incompatível com o estabelecimento de regras processuais que visem o exercício efetivo desse direito – no caso, e em última análise, submeter o arguido a julgamento – como seja o ónus do requerente da instrução fundamentar o pedido com a alegação dos factos que integram o ilícito ou ilícitos relativamente aos quais pretende que a mesma seja realizada, ónus que não limita de modo desproporcionado e arbitrário esse direito, antes visa garantir outros direitos fundamentais do direito processual penal, como sejam a estrutura acusatória do processo penal e o direito de defesa do arguido, que só poderá ser eficazmente exercido desde que a acusação/RAI contenha, de modo claro e objetivo, os factos que integram o ilícito ou ilícitos pelos quais se pretende que o arguido seja pronunciado.

3) Finalmente, cumpre referir que a faculdade do convite à assistente para corrigir as deficiências do RAI - questão que durante algum tempo mereceu tratamento divergente na jurisprudência - está hoje ultrapassada, face ao acórdão para fixação de jurisprudência do STJ de 12.05.2005, DR, I Série – A, de 4.11.2005, do qual não vemos razões para divergir, onde se decidiu que “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução apresentado nos termos do art.º 287 n.º 2 do Código de Processo Penal quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”, jurisprudência que temos como aplicável, pelas mesmas razões que da fundamentação desse acordam constam, a todos os elementos necessários ao preenchimento do tipo de crime pelo qual se pretende que o seu autor seja submetido a julgamento e, consequentemente, por ele responsabilizado.

Como nos fundamentos desse acórdão se escreveu, citando Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, 1994, 175, “sem acusação formal o juiz está impedido de pronunciar o arguido, por falta de uma condição de prosseguibilidade do processo, ligada à falta do seu objeto, e, mercê da estrutura acusatória em que repousa o processo penal, substituindo-se o juiz ao assistente no colmatar da falta de narração dos factos, enraizaria em si uma função deles indagatória, num certo pendor investigatório, que poderia ser acoimado de não isento, imparcial e objetivo, mais próprio de um tipo processual de feição inquisitória, já ultrapassado”.

Essa orientação – como nos dá conta o mencionado acórdão – vinha já sendo seguida pela maioria da jurisprudência, assim como pelo TC, como resulta do acórdão n.º 358/2004, de 19 de Maio de 2004, DR, 2.ª Série, de 28.06.2004 (acima mencionado), onde se escreve: “A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa... impõe que o objeto do processo seja fixado com rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura de instrução (...) o assistente tem de fazer constar do requerimento para a abertura de instrução todos os elementos mencionados nas al.ªs referidas no n.º 3 do art.º 283 do CPP. Tal exigência decorre... de princípios fundamentais de processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória”.

A não se entender assim violar-se-iam de modo desproporcionado as garantias de defesa do arguido e as regras dos art.ºs 18 e 32 n.ºs 1 e 5 da CRP, colocando, ao fim e ao cabo, nas mãos do juiz o estatuto de acusador, o que a lei não permite.

Improcede, por isso, o recurso.

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6. Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal deste tribunal em negar provimento ao recurso interposto pela assistente e, consequentemente, em manter a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quatro UC (art.º 515 n.º 1 al.ª b) do CPP e 8 n.º 5 e tabela III anexa do RCP).

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(Este texto foi por mim, relator, elaborado e integralmente revisto antes de assinado)

Évora, 18/02/2020

(Alberto João Borges)

(Maria Fernanda Pereira Palma)