Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
5/22.0T8LGA.E1
Relator: EMÍLIA RAMOS COSTA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
CONEXÃO
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – Findo o período de transição acordado entre a União Europeia e o Reino Unido, cujo termo ocorreu em 31-12-2020, deixou de se aplicar às relações entre estas duas entidades o Regulamento CE n.º 2015/848, do Parlamento e do Conselho de 20 de maio de 2015.
II – No processo de insolvência em que o devedor é de nacionalidade inglesa, país onde reside e não possui estabelecimento em Portugal a competência internacional dos tribunais portugueses afere-se nos termos do artigo 294.º, n.º 2, do CIRE.
III – Para que a competência internacional dos tribunais portugueses, nesse caso, se verifique é necessário que, cumulativamente, se encontrem preenchidos dois requisitos: (i) o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro; e (ii) entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.
IV – A competência afere-se em face da relação material controvertida apresentada na petição inicial.
V – Inexistindo em tal petição inicial qualquer alegação relativa à existência do primeiro requisito, os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para apreciar o processo de insolvência.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 5/22.0T8LGA.E1
2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[1]
I - Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Comércio de Lagoa – Juiz 2, foi intentada, em 11-01-2022, pela requerente “(…), S.A.”, ação especial para declaração da insolvência da requerida AA, cidadã estrageira, casada no regime ... de separação de bens, residente na Urbanização ..., ..., ..., ... ..., seguindo-se os ulteriores trâmites processuais.
Após divergências diligências, a requerida AA foi citada no ..., país onde reside.
Após tal citação, o tribunal a quo, em 11-05-2022, proferiu o seguinte despacho:
(…), S.A., NIPC (…), com sede em (…), Ed. A, Av. (…), 10, 3, 1495-192 Miraflores, veio requerer a insolvência de AA, alegadamente residente na Urbanização ..., ..., ..., ...
Tentada a citação da requerida, com referência à morada indicada pela requerente, foi obtida a informação de que a mesma não reside no referido local, existindo evidências de que o local não se encontra habitado, sendo que as buscas efetuadas das bases de dados disponíveis resulta que a requerida reside no ..., onde efetivamente foi citada.
Vejamos, pois, se este tribunal se pode considerar internacional competente.
A questão da competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer do pedido de declaração de um devedor, nomeadamente quando o devedor seja alegadamente residente no espaço europeu, afere-se, na presente data, com base na disciplina constante do Regulamento CE n.º 2015/848, do Parlamento e do Conselho de 20 de maio de 2015, o qual sucedeu ao Regulamento (CE) n.º 1346/2000, do Conselho.
De acordo com o n.º 3 do citado diploma, «1. Os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do devedor são competentes para abrir o processo de insolvência («processo principal de insolvência»). O centro dos interesses principais é o local em que o devedor exerce habitualmente a administração dos seus interesses de forma habitual e cognoscível por terceiros. (…) No caso de pessoa singular que exerça uma atividade comercial ou profissional independente, presume-se, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais é o local onde exerce a atividade principal. Esta presunção só é aplicável se o local de atividade principal da pessoa singular não tiver sido transferido para outro Estado-Membro nos três meses anteriores ao pedido de abertura do processo de insolvência. No caso de qualquer outra pessoa singular, presume-se, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais é o lugar de residência habitual. Esta presunção só é aplicável se a residência habitual não tiver sido transferida para outro Estado-Membro nos seis meses anteriores ao pedido de abertura do processo de insolvência. 2. No caso de o centro dos interesses principais do devedor se situar no território de um Estado-Membro, os órgãos jurisdicionais de outro Estado-Membro são competentes para abrir um processo de insolvência relativo ao referido devedor se este possuir um estabelecimento no território desse outro Estado-Membro. Os efeitos desse processo são limitados aos bens do devedor que se encontrem neste último território.
Ora, o centro dos principais interesses do devedor (nos termos do artigo 3.º, n.º 1, do citado Regulamento) no caso das pessoas singulares coincidirá com o seu domicilio, e, no caso das sociedades coincide com o local da sua sede estatutária.
Pelo que tendo sido requerida a declaração de insolvência de uma cidadã estrangeira, como é o caso, que não reside em Portugal, mas sim no ..., dificilmente a mesma tem qualquer conexão com a ordem jurídica e ou judiciárias portuguesas (nem mesmo a conexão da nacionalidade).
E o simples facto de o devedor ter bens em Portugal, quando o mesmo sendo pessoa singular cá não reside, não determina, atenta a disciplina supra transcrita, a competência internacional dos tribunais portugueses para instauração, em tribunal localizado em território nacional, de um processo de insolvência universal e principal.
Embora se admita a instauração de processos de insolvência secundários num pais que não coincida com aquele em que requerido tem o centro dos principais interesses, a verdade é que estão em causa verdadeiros processos de liquidação de estabelecimentos (e não quaisquer outros bens – pois de outra forma teria sido diversa a terminologia utilizada), sendo certo, que estes processos pressupõem, igualmente, que exista um processo principal e que o devedor tenha, como referido um estabelecimento (universalidade de direito) em pais diverso daquele em que foi instaurado o dito processo universal ou principal (artigo 3.º, n.º 2 e 3, do citado regulamento).
Acresce, que o artigo 3.º, n.º 4, do já citado Regulamento, consente ainda a titulo excepcional a abertura de processos especiais de insolvência, com carácter territorial, antes de ser aberto o processo principal, desde que estejam preenchidas as seguintes condições: «Não seja possível abrir um processo de insolvência ao abrigo do nº 1 em virtude das condições estabelecidas na lei do Estado-Membro em cujo território se situa o centro dos interesses principais do devedor; ou a abertura do processo territorial de insolvência seja requerida por: i) credor cujo crédito decorra da exploração, ou esteja relacionado com a exploração, de um estabelecimento situado no território do Estado-Membro em que é requerida a abertura do processo territorial; ii) autoridade pública que, nos termos da lei do Estado-Membro em cujo território o estabelecimento está situado, tenha o direito de requerer a abertura de um processo de insolvência.
Ora, sucede, que a situação da requerida, não se insere em quaisquer uma das referidas excepções.
Pois trata-se de uma cidadã alegadamente de nacionalidade ..., e com domicilio conhecido no ... [e cuja concreta situação pessoal o tribunal inclusivamente desconhece – tanto mais, que a requerente – que contratou com a requerida – se diz até impedida de obter a respectiva certidão do assento de nascimento] – sendo que a devedora em todo o caso, não reside, em Portugal e nenhum estabelecimento detém, igualmente, em território nacional.
Resulta, pois, do exposto, que o prosseguimento da presente ação especial constituirá uma violação das regras da competência internacional, como decorre do disposto nos artigos do Regulamento artigo 3.º, 1, n.º 2 e 3, do Regulamento supra referido.
Acresce que o único interesse da requerente é obter o pagamento preferencialmente célere do seu crédito na medida em que até principiou por instaurar acção executiva, sendo essa na verdade a acção ou meio processual que se revela adequado para promover, em território nacional, a respectiva tutela jurisdicional dos seus interesses, os quais não ficam assim desacautelados.
Assim, declaro a incompetência absoluta dos Tribunais Portugueses para a presente acção, nos termos dos artigos 96.º, alínea a), 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, alínea a), 576.º, n.º 2 e 577.º, n.º 1, alínea a), todos do Código de Processo Civil e, em consequência, absolvo a requerida da presente instância.
Custas a cargo da requerente, com redução a ¼, nos termos do artigo 302.º, n.º 1, do CIRE.
Registe e notifique.
Inconformada com o despacho proferido, veio a requerente “(…), SA” recorrer, terminando com as seguintes conclusões:
I- O ora Recorrente é titular de uma escritura de mútuo com hipoteca através da qual foi mutuado à Requerida o valor de € 258.800,00 para aquisição da fracção autónoma designada pela letra ..., correspondente ao ... do bloco ..., Tipo T2, destinada a habitação, fazendo parte desta fração um logradouro com a área de sessenta metros quadrados, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, denominado por lote ..., na Urbanização ..., ... e ..., sito em ..., freguesia ... (...), concelho ... e inscrito na matriz pelo artigo (...45) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o n.º (...).
II- Para garantia do bom e pontual cumprimento de todas e quaisquer obrigações ou responsabilidades e emergentes do referido contrato, foi constituída, sob o imóvel supra identificado, hipoteca – devidamente registada a favor do banco originário sob a Ap. ... de 2007/10/26 e devidamente averbada a transmissão do crédito a favor da Requerente sob a Ap. ..., de 2017/10/31.
III- O ora Recorrente é ainda titular de contrato de abertura de uma conta de depósito à ordem, à qual foi atribuída o contrato n.º (...), celebrado em 19/07/2007 entre o Banco Originário e a Requerida.
IV- Desde 09/02/2010 e 11/11/2010, respetivamente, que os mutuários, designadamente a Requerida, nada mais liquidaram por conta das responsabilidades em aberto.
V- A situação descrita determinou, nos termos legais e contratuais, o direito de considerar vencida toda a divida, reportada à data das últimas prestações pagas, e, consequentemente, exigir o pagamento imediato de todo o capital em dívida, à data daquelas últimas prestações pagas, bem como os juros vencidos nos termos contratuais e legalmente aplicáveis.
VI- Pelo que, o crédito global da Requerente ascendia (com referência às datas indicadas supra) à quantia de € 345.991,29 (trezentos e quarenta e cinco mil, novecentos e noventa e um euros e vinte e nove cêntimos), sem prejuízo dos juros vencidos e vincendos e respetivo imposto de selo devido até integral e efetivo pagamento.
VII- Do exposto, resulta que a requerida tem pelo menos um Credor em Portugal, a ora Recorrente, bem como tem pelo menos um ativo patrimonial, o imóvel supra identificado.
VIII- Acresce que, da análise da certidão permanente do referido imóvel resulta ainda que serão também Credores da Requerida a Fazenda Nacional e o Banco (…),Portugal, S.A..
IX- Ou seja, a Requerida tem Credores e ativo patrimonial em Portugal, pelo que tem conexão com a ordem jurídica portuguesa, aqui tendo contraído dívidas e adquirido bens sujeitos a registo, ainda que a mesma seja cidadã ....
X- Por sua vez, o Regulamento CE n.º 2015/848, do Parlamento e do Conselho de 20 de maio de 2015 tem o seu âmbito espacial de aplicação limitado aos casos em que o centro dos interesses principais do devedor está situado na Comunidade.
XI- Assim, considerando que a Requerida tem o domicílio no ..., presumindo-se ser aí o centro da sua vida e dos seus interesses, instaurando-se contra ela, em Portugal (Estado-Membro da UE), processo de insolvência, aplicar-se-á o Direito Internacional Privado e não o referido Regulamento.
XII- As normas de competência internacional definem a suscetibilidade de exercício da função jurisdicional pelos tribunais portugueses, tomados no seu conjunto, relativamente a situações jurídicas que apresentam elementos de conexão com uma ou mais ordens jurídicas estrangeiras.
XIII- Os artigos 62.º e 63.º definem as situações em que a competência internacional dos tribunais portugueses tem origem legal, sendo que essa competência poderá advir também, quer de regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais, quer no acordo das partes, através de pactos de jurisdição (cfr. artigo 94.º do CPC).
XIV- E por remissão para os elementos de conexão referidos no artigo 62.º do CPC (de origem legal), concluímos que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:
a) Quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa (critério da coincidência);
b) Quando tiver sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram (critério da causalidade);
c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real (critério da necessidade).
XV- Ainda que, em boa verdade, qualquer dos critérios pudesse ser invocado no caso em apreço para se determinar a competência internacional dos Tribunais portugueses, cremos que a situação sub judice se subsume na perfeição no critério da causalidade.
XVI- Com efeito, este determina a competência internacional dos tribunais portugueses sempre que tenha sido praticado em território nacional o facto ou algum dos factos integradores da causa de pedir.
XVII- Dispõe ainda o artigo 59.º do CPC que “sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º”.
XVIII- A Requerida tem domicílio e o centro da sua vida presumivelmente no ..., mas considerando que o direito de crédito da ora Recorrente emerge de contrato de mútuo com hipoteca outorgado por escritura pública celebrada em Portugal, ao abrigo do princípio da causalidade [artigo 62.º, alínea b), do CPC], conclui-se pela competência internacional dos Tribunais portugueses.
XIX- Dúvidas não restam que causa de pedir apresentada pela ora Recorrente na petição inicial consiste na invocação dos factos que constituem o seu crédito e nos factos que permitem concluir pela situação de insolvência da Requerida.
XX- E quanto aos factos que constituem o crédito invocado, é ponto assente de que se tratam de responsabilidades creditícias contraídas em Portugal, designadamente escritura pública de «compra e venda e mútuo com hipoteca» outorgada em Portugal.
XXI- E daqui concluiu-se que os factos que constituem o crédito da ora Recorrente, ou seja, parte dos factos integradores da causa de pedir foram praticados em território nacional, concretamente, em ....
XXII- No caso em apreço, pode dar-se como assente, que a Requerida tem domicílio no ..., pelo que está excluída a aplicação do Regulamento Comunitário supra identificado, sendo que o seu critério de delimitação é enunciado no seu Preâmbulo (Considerando n.° 25): o Regulamento aplica-se “exclusivamente aos processos relativos ao devedor cujo centro dos interesses principais está situado na União”.
XXIII- Assim, mal andou o Tribunal recorrido ao aplicar ao caso o referido Regulamento ao invés das normas de direito internacional privado constantes do CPC, concretamente acolhendo o caso ao critério da causalidade, e concluindo pela competência internacional dos Tribunais Portugueses, num raciocínio jurídico escorreito, legal e jurisprudencialmente justificado.
Nestes termos e nos demais de direito, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogado o douto despacho recorrido, declarando-se a competência internacional dos Tribunais portugueses para conhecer o pedido.
Só assim se decidindo, será cumprido o Direito e feita Justiça.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Após ter sido recebido o recurso neste tribunal nos seus exatos termos e dispensados os vistos por acordo, cumpre apreciar e decidir.
II – Objeto do Recurso
Nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (artigo 662.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Assim, no caso em apreço, a questão que importa decidir é:
1) Competência dos tribunais portugueses nos termos do artigo 62.º, alínea b), do Código de Processo Civil.
III – Matéria de Facto
Para além do que já consta do relatório que antecede, fixam-se ainda os seguintes factos:
- A requerida AA é cidadã estrangeira; e
- A requerida AA reside na morada ..., ..., no ..., local onde foi citada para a presente ação.
IV – Enquadramento jurídico
Conforme supra mencionámos, o que importa analisar no presente recurso é se (i) os tribunais portugueses são competentes nos termos do artigo 62.º, alínea b), do Código de Processo Civil.
1 – Competência dos tribunais portugueses nos termos do artigo 62.º, alínea b), do Código de Processo Civil
No entender da Apelante, não se aplica o Regulamento CE n.º 2015/848, do Parlamento e do Conselho de 20 de maio de 2015, conforme erradamente decidiu o tribunal a quo, à presente situação, visto a requerida residir no ..., sendo provavelmente cidadã ..., aplicando-se sim, o disposto no artigo 62.º do Código de Processo Civil, mostrando-se inteiramente preenchido o requisito constante na alínea b) desse artigo.
Apreciemos.
Nos termos do acordo sobre a saída do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica[2], publicado no Jornal Oficial da União Europeia, em 12-11-2019, o período de transição ou de execução inicia-se com a entrada em vigor do referido Acordo e termina em 31 de dezembro de 2020[3], sendo que, durante tal período de transição, continuar-se-á a aplicar o Regulamento CE n.º 2015/848, do Parlamento e do Conselho de 20 de maio de 2015 às matérias que não se mostrem expressamente excluídas[4]. Por sua vez, relativamente aos processos de insolvência e às ações a que se reporta o artigo 6.º, n.º 1, do referido Regulamento, continuar-se-á a aplicar tal Regulamento desde que o processo principal tenha sido instaurado antes do termo do período de transição[5] [6].
Ora, em face do exposto, tendo a presente ação de insolvência sido interposta em 11-01-2022 é evidente que não é de aplicar à presente situação o Regulamento CE n.º 2015/848, do Parlamento e do Conselho de 20 de maio de 2015, visto estarmos perante relações com o ..., país que já não faz parte da União Europeia, pelo que efetivamente o tribunal a quo errou na aplicação do direito à presente situação.
Não existindo qualquer outro acordo estabelecido sobre esta matéria[7], será de aplicar o disposto no artigo 294.º do CIRE.
Estipula, assim, o artigo 294.º do CIRE que:
1 - Se o devedor não tiver em Portugal a sua sede ou domicílio, nem o centro dos principais interesses, o processo de insolvência abrange apenas os seus bens situados em território português.
2 - Se o devedor não tiver estabelecimento em Portugal, a competência internacional dos tribunais portugueses depende da verificação dos requisitos impostos pela alínea c) do n.º 1 do artigo 62.º do Código de Processo Civil.
3 - Sempre que seja aplicável o Regulamento (UE) n.º 2015/848, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, o processo particular é designado por processo territorial de insolvência até que seja aberto um processo principal, caso em que passa a ser designado por processo secundário.

Deste modo, não tendo a devedora AA estabelecimento em Portugal, diferentemente daquilo que a Apelante alega, apenas é de aplicar à presente situação os requisitos constantes na alínea c) do artigo 62.º do Código de Processo Civil, já não os requisitos constantes nas alíneas a) ou b) do citado artigo, ou seja, os tribunais portugueses apenas terão competência internacional nesta matéria se a presente situação preencher o critério da necessidade previsto na referida alínea c).
Estatui a alínea c) do artigo 62.º do Código de Processo Civil que:
Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:
[…]
c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.

Para que os tribunais portugueses sejam internacionalmente competentes exige-se, então, cumulativamente, que (i) o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro; e (ii) entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.
Conforme bem se refere no acórdão do STJ, proferido em 31-03-2022[8]:
III. - Para aplicação do critério da necessidade, previsto na alínea c) do artigo 62.º do CPC exige-se a verificação de uma impossibilidade jurídica, por inexistência de tribunal competente para dirimir o litígio em face das regras de competência internacional das diversas ordens jurídicas ou uma impossibilidade prática, derivada de factos anómalos impeditivos do funcionamento da jurisdição competente, isto é, que o direito invocado pelo autor só possa tornar-se efetivo por meio de ação proposta em Portugal ou quando a propositura da ação no estrangeiro representaria para o autor dificuldade apreciável.

Na realidade, este critério possui uma natureza excecional e subsidiária, aplicando-se apenas em situações em que possa estar em causa uma objetiva denegação de justiça, por impossibilidade absoluta ou relativa de natureza jurídica ou prática[9] [10].
Na situação que nos ocupa, apesar de ser evidente, em face da relação material controvertida apresentada pela requerente “(…), S.A.” na petição inicial[11], que existe um elemento ponderoso de conexão pessoal com a ordem jurídica portuguesa (o mutuante ser uma instituição bancária com sede em Portugal) e um elemento ponderoso de conexão real com a ordem jurídica portuguesa (o imóvel penhorado situa-se em território nacional), inexiste qualquer menção ao requisito de impossibilidade absoluta ou relativa de natureza jurídica ou prática.
E, a ser assim, não se verificando alegado um dos requisitos impostos pela alínea c) do artigo 62.º do Código de Processo Civil, apenas nos resta concluir pela incompetência internacional dos tribunais portugueses no presente processo de insolvência.
Em conclusão, ainda que com fundamento jurídico diverso, é de manter a decisão proferida pelo tribunal da 1.ª instância que declarou a incompetência absoluta dos tribunais portugueses na presente ação, determinando a absolvição da requerida AA da instância, tudo nos termos do artigo 294.º, n.º 2, do CIRE e dos artigos 62.º, alínea c), 96.º, alínea a), 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, alínea a), 576.º, n.º 2 e 577.º, n.º 1, alínea a), todos do Código de Processo Civil.
Sumário elaborado pela relatora (artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
(…)
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, mantendo-se o despacho recorrido, ainda que com fundamento jurídico diverso.
Custas a cargo da Apelante, com redução a ¼ nos termos do artigo 302.º, n.º 1, segunda parte, do CIRE.
Notifique.
Évora, 13 de julho de 2022
Emília Ramos Costa (relatora)
Rui Machado e Moura
Eduarda Branquinho

__________________________________________________
[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.º Adjunto: Rui Machado e Moura; 2.ª Adjunta: Eduarda Branquinho.
[2] eur-lex.europa.eu.
[3] Artigo 126.º do Acordo de Saída.
[4] Artigo 127.º do Acordo de Saída.
[5] Artigo 67.º, n.º 3, alínea c), do Acordo de Saída.
[6] Veja-se o acórdão do TRL, proferido em 05-04-2022, no âmbito do processo n.º 28287/20.5T8LSB-A.L1-1, consultável em www.dgsi.pt.
[7] Uma vez que o Acordo de Comércio e Cooperação (ACC), efetuado entre a União Europeia e o Reino Unido e a Irlanda do Norte, celebrado em 24-12-2020, aplicado desde 01-01-2021, ainda que nessa altura a título provisório, não estabeleceu qualquer acordo específico sobre a competência jurisdicional nos processos de insolvência.
[8] No âmbito do processo n.º 1457/20.9T8STR.E1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[9] Vejam-se os acórdãos, do STJ proferido em 28-06-2018 no âmbito do processo n.º 30508/15.7T8LSB.L1.S1; e do TRP proferido em 04-05-2022 no âmbito do processo n.º 2126/20.5T8AVR.P1; consultáveis em www.dgsi.pt.
[10] Veja-se igualmente Código de Processo Civil Anotado, de José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Vol. 1.º, 4.ª edição, Almedina, 2018, pág. 157.
[11] Atente-se que a competência se afere em função da relação material controvertida apresentada na petição inicial: vejam-se, entre muitos, os acórdãos, do STJ proferido em 11-07-2017 no âmbito do processo n.º 531/15.8T8LRA.C1.S2; do TRL proferido em 13-01-2022 no âmbito do processo n.º 24974/19.9LSB.L1-8; e do TRE proferido em 24-02-2022 no âmbito do processo n.º 4157/20.8T8STB.E1; consultáveis em www.dgsi.pt.