Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
327/07.0GCMMN.E1
Relator: MARTINHO CARDOSO
Descritores: DECISÃO INSTRUTÓRIA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
DEVERES CONJUGAIS
CONSENTIMENTO DO LESADO
Data do Acordão: 02/14/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: 1. O bem jurídico protegido no crime de violência doméstica é complexo. Neste crime protege-se a saúde física e mental do cônjuge e a dignidade da pessoa humana, em contexto de coabitação conjugal ou análoga e, actualmente, mesmo após cessar essa coabitação

2. A obrigação de socorro e auxílio mútuo, se referida a um cônjuge que sofra de distúrbios mentais, de cuja existência, aliás, o outro cônjuge já tinha conhecimento antes de casar, pode dar e dá geralmente origem a situações embaraçosas e até de algum risco para a integridade física do outro cônjuge. Porém, enquanto não se divorciar ou se não o fizer, deve suportar e tentar debelar esse problema, não a título de vítima de violência doméstica, mas como decorrência do dever do mutuum adjutorium.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

Nos presentes autos, acima identificados, do Tribunal de Instrução Criminal de Évora, o assistente RL não se conformou com o despacho de não pronúncia da arguida CN e do mesmo interpôs o presente recurso, que motivou concluindo:

1. Reporta-se a presente motivação a recurso interposto pelo ora Recorrente da decisão instrutória proferida pelo Juiz de Instrução de Évora que, após encerrada a Instrução requerida pelo Assistente, decidiu pelo arquivamento dos autos.

2. O despacho recorrido desrespeita regras e princípios fundamentais que informam a Lei Penal e Processual Penal e a própria Constituição da República, como o Princípio da Legalidade, do Estado de Direito Democrático e Social, Princípio da Igualdade e a vinculação do Tribunal recorrido à objectividade na valoração e apreciação de meios probatórios no âmbito do Principio da Livre Apreciação da Prova.

3. Dos actos praticados em sede Instrução e de Inquérito resulta prova que leva a concluir pela existência de uma probabilidade razoável de à arguida ser aplicada uma pena ou medida de segurança, devendo ter proferido despacho de pronúncia.

4. Entendeu o Exm.° Sr. Procurador do Ministério Público, no despacho de arquivamento por este proferido, que os factos denunciados eram passíveis de integrar o crime de violência doméstica, previsto no art. 152° do Código Penal, tendo apenas decidido pelo arquivamento com base no entendimento que a culpa daquela se encontrava excluída.

5. Não poderia o tribunal Recorrido decidir pela não pronúncia da Arguida uma vez que dos autos não resulta qualquer elemento probatório que sustente a tese de que seria antes a Arguida e não o Assistente, vítima de violência doméstica.

6. No processo penal, o princípio da livre apreciação da prova, previsto no art.127° do Código de Processo Penal, determinando que sempre que a lei não disponha de modo diverso, a prova é apreciada segundo regras de experiência e da livre convicção do julgador, sem contudo, se possa fazer uma avaliação arbitrária da prova, subjectiva, emocional e por isso imotivável, como acontece in casu.

7. O tipo de ilícito criminal em apreço ocorre no seio familiar, sem que dele se dê conhecimento a terceiros, e no caso dos autos, atendendo que o Assistente é homem, também face ao desvalor moral com que tais factos são recebidos no meio social onde se insere, pelo que, acima de tudo, devem ser valoradas as declarações da vítima.

8. O assistente prestou as suas declarações de forma espontânea, clara e correcta, descrevendo os episódios de violência, física e psíquica, de que foi alvo durante o período em que viveu com a Assistente.

9. Não dispõe o Tribunal de qualquer relatório médico-legal, nomeadamente psicológico, para aferir da sintomatologia do Assistente, nem ela se presume.

10. Nenhuma prova foi produzida nos autos que o possa levar a concluir que a Assistente foi vítima de maus tratos, sendo certo que esta remeteu-se ao silêncio, facto que não a pode prejudicar, mas também não a poderá beneficiar

11. Os factos indicados pelo Assistente no seu requerimento de abertura de Instrução e descritos por aqueles em sede de Inquérito e Instrução, foram corroborados por testemunhas, como seja a DC, EM e JL.

12. DC presenciou agressões físicas e verbais ao Assistente, perpetradas pela Arguida, nomeadamente no dia em que ambos se encontravam nas instalações da empresa do primeiro.

13. O pai do Assistente viu e assistiu a diversos factos, nomeadamente a Arguida a desferir pontapé na zona genital do Assistente e a injuriá-lo, como resulta das declarações por aquele prestados,

14. De uma leitura atenta dos autos resulta, à evidência, indícios que contrariam a tese do Tribunal Recorrido e que importam, em consequência, a alteração da decisão recorrida.

15. A Arguida, com a sua actuação, pretendeu não só ofender a integridade física do Assistente por diversas vezes, o que logrou conseguir, maltratá-lo psicologicamente, com recurso a ameaças de morte e suicídio ou injuriando-o perante familiares e conhecidos, sendo certo que agiu livre e conscientemente, bem sabendo que as suas acções eram censuráveis, e não obstante, não se isentou de as praticar.

16. O Assistente não beneficia em nada com os presentes autos, sendo o processo de alteração (e não regulação) das responsabilidades parentais muito posterior aos presentes autos, e as declarações daquele prestadas no âmbito do inquérito, em tudo coincidentes com as resultaram da Instrução.

17. Deveria o Tribunal Recorrido ter decidido no sentido de pronunciar a Arguida pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152° do CP, impondo-se a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que decida pela sua pronúncia.

18. A decisão recorrida violou, entre outros, o art. 152° do Código Penal e os arts. 127°, 286° e 308° do Código de Processo Penal.

Nestes termos e nos melhores de direito que VV. Exas doutamente suprirão deve o presente recurso ter provimento, e em consequência ser a decisão Instrutória ora recorrida revogada e substituída por outra que pronuncie a Arguida pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152° do CP.

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A Digna Procuradora Adjunta respondeu ao recurso no sentido de que o mesmo não merece provimento, pois que e em conclusão:

1ª -Nenhum elemento dos autos, para além dos depoimentos do assistente e do seu pai, permite indiciar a existência de lesões no recorrente, de humilhação, degradação psicológica, diminuição de auto-estima, afectação da dignidade, alteração emocional ou especial vulnerabilidade, próprios do crime de violência doméstica.

2ª -Ao contrário, o exame psicológico da arguida demonstra a existência de um quadro depressivo, corroborado pelos relatos de descontrolo emocional prestados pelas testemunhas, que se enquadra no perfil, não de um agressor, como pretende o assistente, mas de uma vítima.

3ª - Quanto ao depoimento do pai do assistente, único que corrobora a versão deste, importa ainda ter em conta que, na sua maioria, configura um depoimento indirecto que, como tal, não pode ser valorado – artº 129º do Código de Processo Penal.

4ª -Assim, a Mma. JI, na decisão recorrida, fez uma correcta avaliação da prova produzida nos autos, porquanto deles não resultam elementos que permitam indiciar a prática, pela arguida, do crime de violência doméstica, p. e p. no artº 152º do Código Penal.

5ª - Pelo contrário, deles resultam alguns indícios de que a arguida poderá, ela sim, ter sido vítima de violência doméstica, consubstanciando os actos relatados pelo assistente momentos de descontrolo emocional próprios das vítimas destes ilícitos.

6ª - A Mma. JI fez uma correcta interpretação e aplicação do disposto nos arts. 152º do Código Penal, 127º, 186º e 308º do Código de Processo Penal.

Pelo exposto, deve o presente recurso ser indeferido e, consequentemente, deve manter-se a decisão proferida, (…)

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Nesta Relação o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer também no sentido da improcedência do recurso.

Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II
De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado.

Assim, a única questão em causa no presente recurso é a da existência ou não de indícios suficientes que justifiquem levar a arguida a julgamento pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art.º 152. °, do Código Penal.

Nos termos do n.° 1 do art.° 286.° do Código de Processo Penal, "a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento".

E, nos termos do n.° 1 do art.° 308.° do mesmo diploma legal "se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia ".

Na expressão do art.º 283.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, «consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança».

A este respeito, escreveu em 1974 o Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, 1.º, pág. 133, a respeito do Código de Processo Penal anterior, mas ainda com total utilidade para a compreensão do actual, que «os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, em face dela, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição» E adianta: «tem pois razão Castanheira Neves quando ensina que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução (…) não mobiliza os mesmos elementos probatórios que estarão ao dispor do juiz na fase do julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação.»

Também Germano Marques da Silva, em «Curso de Processo Penal», vol. II, 3.ª edição, Verbo, 2.002, pág. 103-104, diz que por indiciação suficiente se deve entender «a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em razão dos meios de prova já existentes, uma pena ou medida de segurança». Trata-se da «probabilidade, fundada em elementos de prova que, conjugados, convençam da possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicável uma pena ou medida de segurança criminal ... »

E Luís Osório que «devem considerar-se indícios suficientes aqueles que fazem nascer em quem os aprecia a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado» – «Comentário ao Código de Processo Penal Português», vol. IV, pág. 441.

Também a jurisprudência vem entendendo que aquela possibilidade razoável de condenação é uma possibilidade mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido, isto é, os indícios são suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.

(A tal respeito, cfr.: acórdão da Relação de Coimbra de 10-4-85, Colectânea de Jurisprudência, 1985, II-81; acórdão da Relação de Coimbra de 31-3-93, Colectânea de Jurisprudência, 1993, II-66; acórdão da Relação do Porto de 12-2-97, Colectânea de Jurisprudência, 1997, I-263; acórdão da Relação do Porto de 13-11-74, sumariados no Boletim do Ministério da Justiça n.º 241, pág. 347; acórdão da Relação de Lisboa de 17-2-99, Colectânea de Jurisprudência, 1999, I-145).

Ora em face da prova a tal respeito recolhida no processo, a resposta àquela questão só poderá ser negativa.

Pelo seguinte:

Segundo o próprio assistente, os factos remontam a 2005-2007, tendo o primeiro deles ocorrido entre Maio e Setembro de 2005 e o último em Dezembro de 2007.

O crime pelo qual o assistente pretende ver pronunciada a arguida é o de violência doméstica, p. e p., à data dos factos pelo art.º 152.º do Código Penal, na versão conferida pela Lei n.º 5/2006, de 5-2, cujo n.º 2 prescrevia então:

2 - A mesma pena [1 a 5 anos de prisão] é aplicável a quem infligir ao cônjuge, ou a quem com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges, maus tratos físicos ou psíquicos.

Actualmente, ao caso dos autos, aplica-se o art.º 152.º, n.º 1 al.ª a), que estabelece:

1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
(…)

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

No caso, estão em jogo apenas factos conducentes à integração do conceito de maus tratos físicos ou psíquicos.

E estes maus tratos físicos ou psíquicos terão sido os seguintes, na óptica do assistente:

1.º
Em Maio/Setembro de 2005, a arguida fechou-se num quarto e desatou a gritar.

2.º
Em finais de 2005, a arguida atirou-lhe com uma embalagem de comida enlatada.

3.º
No início de 2006, a arguida apareceu na sala de jantar com uma faca na mão, ajoelhou-se e disse que se ia matar, fazendo menção de cortar os pulsos e que quando o assistente se aproximou dela para a demover, ela apontou-lhe a faca e disse-lhe «tem cuidado, não te aproximes mais».

4.º
Em Maio de 2006, a arguida deu-lhe, numa ocasião, socos e pontapés e chamou-lhe «palhaço, estúpido, inútil e parvo».

5.º
Outra vez, a arguida empurrou o assistente e chamou-lhe «fuinha e parvalhão» e deu-lhe um pontapé nos genitais.

6.º
Ocasião em que a arguida também quis atirar-se de um carro em andamento, dizendo que queria pôr termo à sua vida, à das filhas e à do assistente.

Compulsada a prova recolhida nos autos:

O denunciante, JL pai do assistente, descreve a fls. 4 o episódio 6.º como tendo-o presenciado e os episódio 2.º e 3.º como lhe tendo sido contados.

Mais referiu na altura o denunciante que a arguida tinha «dupla personalidade e depressões do foro psiquiátrico graves», chorava «bastante por largos períodos do dia ou da noite», e que perante tais «desequilíbrios» tinham sido «encetadas diversas diligências, nomeadamente médicas, com vista à sua recuperação, contudo a mesma ultimamente não cumpre o que vinha estabelecido pela sua médica psiquiátrica». Mais afirmava o denunciante que ele e o assistente «não pretendem que a denunciada venha a ser punida criminalmente, pretendem sim, que à mesma sejam aplicadas medidas de recuperação, nomeadamente internamento hospitalar compulsivo, por forma a que esta recupere do seu estado de saúde mental e físico».

O denunciante, JL, pai do assistente, de novo ouvido a fls. 30-32, descreve o episódio 1.º, 5.º e 6.º como tendo-os presenciado. Refere o episódio 1.º como tendo ocorrido quando o assistente e a arguida regressaram da lua-de-mel em Punta Cana.

Mais referiu na altura o denunciante que «a denunciada por diversas ocasiões apresentou desequilíbrios mentais», revelando «grande esterismo e impondo bastante agressividade»; refere o episódio 1.º como devendo-se a «perturbação mental» da arguida e que nessa altura ela dizia «eu mato-me aqui neste momento» e «que a mesma já demonstrava ser possuidora de algumas perturbações do foro psíquico». Menciona que aquando dos episódios 5.º e 6.º, a arguida andava sujeita a «tratamentos». E terminou assim o seu depoimento:

Declarou a testemunha que encontrando-se ligado ao ramo das terapias naturais para a avaliação natural à qualidade de vida e bem-estar, pretende deixar como sugestão para bem das próprias filhas e da denunciada um tratamento adequado às perturbações do foro psicológico a que a mesma se encontra sujeita e se for consultada por junta médica da especialidade neuro-psicológica ou psiquiatria e se estas entidades tiverem disponíveis, e desde que a própria queira ser ajudada, poderá, na perspectiva da ora testemunha, vir a ser uma pessoa com comportamentos estáveis, o que iria beneficiar as suas próprias filhas atendendo que uma mãe é sempre a Mãe.

O assistente foi ouvido a fls. 33-35 e começou por referir que… um mês antes de terem casado, a arguida «em acto imprevisível atirou-lhe em cima um guarda-jóias em vidro, não o tendo atingido em virtude de ter conseguido desviar-se a tempo».

Nessa audição, o assistente descreveu assim os episódios 5.º e 6.º:

Em vinte e dois de Dezembro de 2007, encontrando-se ambos na residência dos pais da vitima, a na altura a adormecer a filha de ambos, (16H00), surpreendentemente a denunciada manifestou a intenção de querer ir embora atendendo a que momentos antes tinha visto no interior da residência dos pais da vítima, um móvel que queria ter sido ela a adquiri-lo, nessa conformidade a denunciada dirigiu-se à viatura da vítima de onde retirou a sua mala, sendo que nesse percurso e quando a vítima caminhava no seu encalço tentado demove-la de sair de casa, esta desferiu-lhe um empurrão tendo a vítima embatido no gradeamento da churrasqueira. Percorridos mais alguns metros desferiu-lhe um pontapé na zona genital, continuando a perseguir a denunciada, a vítima veio a intercepta-la já no exterior da quinta.

A vítima vendo que a denunciada caminhava descontroladamente, voltou a traz, muniu-se do seu veículo e conduzindo alguns metros veio a conseguir convence-la a entrar na viatura.

No percurso compreendido entre a habitação dos pais da vítima e a residência do casal, a denunciada tentou por diversas ocasiões sair do veículo em andamento, só a muito custo tendo a vítima conseguido imobilizar a viatura na faixa de rodagem e acalmar a denunciada, convencendo-a a permanecer no interior do veículo.

Apesar destes esforços a denunciada acabou, poucos instantes depois por abandonar o veículo, seguindo a pé por parte incerta.

E, para além de descrever as seis ocorrências, informou ainda do seguinte: que em Outubro de 2004, mal regressaram da lua-de-mel, a arguida fez uma cena idêntica ao episódio 1.º e na altura ameaçou de que iria suicidar-se. Em Setembro de 2005, na sequência de se ter demitido de funcionária bancária, a arguida telefonou-lhe e disse-lhe: vem depressa para casa senão acabo com a minha vida, tenho aqui muitos comprimidos «deixando a vítima seriamente preocupada e perturbada deslocando-se rapidamente para casa com vista a evitar a concretização do anunciado».

Mais contou nessa inquirição o assistente que:

No dia vinte e quatro de Dezembro de 2007, a denunciada acedeu a ser consultada no Hospital Curry Cabral, unidade de urgência psiquiátrica, esta ao chegar efectuou a ficha de inscrição, passou imediatamente á sala de espera comum, foi chamada para a sala específica de psiquiatria de seguida foi chamada pela médica psiquiatra, a qual lhe solicitou apenas que ali aguardasse uns instantes enquanto terminava a consulta anterior. Passados cerca de dez minutos a denunciada inesperadamente e em atitude completamente contraditória ao seu comportamento anterior (deslocou-se ao hospital por vontade própria), referiu o seguinte para a vítima:"O que é que estou aqui a fazer, não estou aqui a fazer nada vou-me embora", nesse acto abandonou o interior do referido Hospital e colocou-se em fuga, originado que os auxiliares dos serviço de psiquiatria, os enfermeiros psiquiatras, o segurança do hospital e o Polícia de serviço, fossem no seu encalço, tentando ainda encontrá-la no perímetro hospitalar.

A testemunha DC, empregada dos pais e do assistente, ouvida a fls. 37-38, declarou, referindo-se ao episódio 4.º, que só viu a arguida manietada por um pulso pelo assistente e a querer dar pontapés neste. Sobre este episódio do Hospital Curry Cabral, contou:

No dia vinte e quatro de Dezembro de 2007, deslocou-se juntamente com a vítima [o assistente] e denunciada [a arguida] ao Hospital Curry Cabral, com vista a que a denunciada fosse consultada por médico psiquiatra, refere a testemunha que a denunciada quando se encontrava já no interior do consultório da médica, repentinamente e sem que ninguém o fizesse prever, abandonou as instalações, proporcionando que médicos, funcionários e segurança a procurassem por todo o espaço do Hospital.

Declarou a testemunha que no regresso do referido Hospital e quando se encontravam na residência da ora testemunha, a denunciada desferiu um pontapé nas pernas da vítima.

A testemunha PM, ouvida a fls. 39-41, não presenciou nenhum dos episódios.

A testemunha EM, colega de trabalho da testemunha DC, nada viu do episódio 4.º.

A arguida nunca quis prestar declarações.

Em sede de instrução, procedeu-se a perícia médico-legal de psiquiatria à arguida, na qual se concluiu que, a data dos factos, a arguida terá sofrido de quadro ansioso-depressivo de natureza reactiva a situação de conflito conjugal, tendo sido tratada em consulta da especialidade de psiquiatria nos anos de 2005, 2006 e 2007.

Sobre a história clínica da arguida, escreveu-se nessa perícia fls. 154 vs.):

A examinada refere que foi vítima durante todo o segundo casamento, de violência física e psicológica. Refere que por diversas vezes, o marido a empurrou e lhe deitou as mãos ao pescoço, em contexto de discussões e dos conflitos permanentes que existiram desde o início da relação.

A este propósito diz: "Ainda não tive tempo para o acusar, também tenho medo de apresentar queixa. Para já, só pretendo defender-me. Eu vivia noutra terra, longe da minha família. Para ele, eu estava sempre doente."

Refere que na altura não dormia, sentia-se ansiosa e desamparada, reactivamente aos conflitos conjugais. Conta que devido à situação psicológica, perdeu muito peso, tendo chegado a pesar 40kg.

Foi referenciada para consulta de psiquiatria pelo médico de família do Centro de Saúde de Vendas Novas. Foi pela primeira vez à psiquiatra em 2005, Dr. DPS, em Setúbal. Esta médica trabalhava no Hospital de São Bernardo, em Setúbal. Medicou-a com antidepressivos e ansiolíticos. A examinada era acompanhada pelo marido à consulta de psiquiatria, à qual ia mensalmente.

Diz que o marido tentou interná-la, por várias vezes, em psiquiatria, tendo chegado a levá-la a um Hospital de Lisboa para a internar mas que nenhum médico psiquiatra que a observou, lhe encontrou razões para internamento.

De Outubro de 2007 a Janeiro de 2008, esteve de baixa clínica por depressão.

Em Janeiro de 2008, parou com a medicação, porque se sentia sonolenta e entendia que essa sonolência a impedia de cuidar adequadamente dos filhos.

Não voltou a recorrer à consulta de psiquiatria ou a fazer tratamento psiquiátrico.

A examinada esclarece que nunca esteve internada, nunca quis terminar com a sua vida e nunca cortou os pulsos como diz ter sido alegado contra ela.

Ora bem.

O que ressalta destes depoimentos e desta referência à versão que a arguida tem dos acontecimentos é que, a manterem-se em julgamento, o mais certo é nele ocorrer uma absolvição. Para esta Relação, se a prova em julgamento fosse esta, absolveríamos a arguida.

E porquê?

Até à entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, de 4-9 (que manteve a incriminação e a moldura penal respectiva), o crime de maus tratos pressupunha, em regra, uma reiteração de condutas.

Porém, face à nova redacção dada pela citada Lei n.º 59/2007, o referido crime pode ser cometido mesmo que não haja reiteração de condutas.

O artigo 152.º do CP responde à necessidade que se fazia sentir de punir penalmente os casos mais chocantes de maus tratos na violência doméstica.

O bem jurídico protegido no crime de violência doméstica é complexo. Neste crime protege-se a saúde física e mental do cônjuge e a dignidade da pessoa humana, em contexto de coabitação conjugal ou análoga e, actualmente, mesmo após cessar essa coabitação.

O crime de violência doméstica é um crime específico impróprio, cuja ilicitude é agravada em virtude da relação familiar, parental ou de dependência entre o agente e a vítima. O tipo objectivo inclui as condutas de violência física, psicológica verbal e sexual posto que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal.

Como diz o Professor Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal”, edição de 2008, pág. 405, “O novo elenco legal de maus tratos é exemplificativo, concretizando o conceito legal de maus tratos, mas não o esgotando. A Lei n.º 59/2007 apenas visou esclarecer que as “privações de liberdade”e as”ofensas sexuais” se incluem entre os maus tratos e os maus tratos não tem de ser reiterados, podendo tratar-se de um acto isolado

Acrescenta o mesmo autor:

Os “maus tratos físicos” correspondem ao crime de ofensa à integridade física simples e os “maus tratos psíquicos” aos crimes de ameaça simples ou agravada, coacção simples, difamação e injúrias, simples ou qualificadas… O emprego de formas mais graves de ofensas corporais dolosas ou coacção é punível pelas respectivas incriminações, por força da regra da subsidiariedade.

Este crime está, pois, em concurso aparente (consumindo estes) com os crimes de ofensas à integridade física simples, coacção, ameaças, difamação ou de injúrias (autor e ob. citados, p. 336). O que terá como consequência que esses mesmo actos deixam de poder ser considerados como ilícitos criminais autónomos, sob pena de violação do princípio "non bis in idem".

Ora os episódios que se passaram entre o assistente e a arguida, sendo embora violentos, desagradáveis e constrangedores, não têm a ver com a violência doméstica prevista no mencionado art.º 152.º

Por isso mesmo que quando o pai da assistente apresentou queixa, o que ele queria era que a nora fosse internada: não pretendem que a denunciada venha a ser punida criminalmente, pretendem sim, que à mesma sejam aplicadas medidas de recuperação, nomeadamente internamento hospitalar compulsivo, por forma a que esta recupere do seu estado de saúde mental e físico.

Também o próprio arguido, quando foi ouvido a fls. 35, o que queria não era propriamente perseguir criminalmente a arguida, mas antes propiciar que o presente procedimento criminal possa conduzir a um tratamento efectivo da denunciada.

Isto é, o assistente (e, antes dele, o seu pai, que foi quem apresentou queixa) sempre se movimentou orientado por uma aspiração de internamento, se necessário compulsivo, da arguida, no âmbito das leis de saúde mental, mas que não foi assim apercebida pelo OPC que recebeu a queixa, nem teve eco no tribunal, independentemente de ser legalmente viável ou não.

Foi com essa percepção que o M.º P.º sensatamente arquivou o inquérito.

Só após o despacho de arquivamento proferido pelo M.º P.º é que se deu um qualquer clic que levou o assistente a litigar pela pretensão de criminalização das condutas psicologicamente desvairadas do cônjuge ao requerer a instrução para contrariar o arquivamento dos autos.

Perpassa nitidamente pelos autos a ideia de que a cônjuge mulher padecia de distúrbios mentais. Esses distúrbios mentais vieram a ser identificados na perícia médico-legal como podendo ter sido um quadro ansioso-depressivo de natureza reactiva.

Aliás, que tais distúrbios já se tinham manifestado ao assistente na fase anterior ao casamento: um mês antes de terem casado, a arguida em acto imprevisível atirou-lhe em cima um guarda jóias em vidro, não o tendo atingido em virtude de ter conseguido desviar-se a tempo. E depois de casados, voltou a fazer-lhe o mesmo: foi o episódio 2.º

Ora o art.º 1672.º, do Código Civil, sob a epígrafe de «deveres dos cônjuges», estabelece que:

Os cônjuges estão reciprocamente vinculados pelos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência.

Sendo que o art.º 1674.º, referente ao dever de cooperação, define este como:

O dever de cooperação importa para os cônjuges a obrigação de socorro e auxílio mútuos e a de assumirem em conjunto as responsabilidades inerentes à vida da família que fundaram.

…obrigação de socorro e auxílio mútuos… – que os canonistas sintética e expressivamente designaram por mutuum adjutorium e a que se refere uma das promessas do sim proferido na cerimónia religiosa de casamento católico: (…) e estás disposto a amá-la e a auxiliá-la na saúde e na doença, (…)?

Esta obrigação de socorro e auxílio, se referida a um cônjuge que sofra de distúrbios mentais, de cuja existência aliás já sabia padecer antes de casar (em acto imprevisível atirou-lhe em cima um guarda jóias em vidro, não o tendo atingido em virtude de ter conseguido desviar-se a tempo), pode dar e dá geralmente origem a situações embaraçosas e até de algum risco para a integridade física, que o outro, enquanto não se divorciar ou se não o fizer, deve suportar e tentar debelar não a título de vítima de violência doméstica, mas como decorrência do mutuum adjutorium.

Ou seja, quaisquer incómodos que o quadro ansioso-depressivo de natureza reactiva da arguida causassem ao assistente não consubstanciavam uma situação de violência doméstica mas antes a obrigação do marido em suportar (enquanto o casamento não se dissolver, designadamente por divórcio) as consequências da doença mental de sua esposa, procurando propiciar-lhe tratamento, como aliás fez durante os cerca de dois anos que o casamento durou.

Se o marido não deixa dormir a esposa, lesando-a de forma assinalável no seu bem-estar físico e psíquico, por, recusando submeter-se a uma operação às vias respiratórias, passar as noites a ressonar, a esposa não vai apresentar queixa por violência doméstica ou por ofensa à integridade física simples.

Se a esposa se alevanta a meio da noite a correr atrás do marido com um cutelo aos gritos de «ah, malandro, quem és tu e o que fazes na minha cama», isso não será violência doméstica se for uma manifestação da doença até aí não detectada de Alzheimer.

Toda a violência doméstica prevista no art.º 152.º do Código Penal é motivo para divórcio, mas nem todos os motivos de divórcio são a violência doméstica prevista no art.º 152.º

O caso dos autos é disso exemplo.

Trata-se de situações em que o facto não é criminalmente punível por, desde logo, a sua ilicitude ser excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade: art.º 31.º, n.º 1, do Código Penal.

O enquadramento doutrinal destas situações é feito quer com base no consentimento do ofendido quer na adequação social (segundo ela, não implicam responsabilidade criminal as condutas que, produzindo embora resultados típicos, se inscrevem no horizonte da ordenação ético-social normal da comunidade, num dado momento histórico) não excluindo que na assunção do risco que esta importa se verifiquem hipóteses de autêntico consentimento: Costa Andrade, «O Consentimento do Ofendido no Novo Código Penal, in «Para Uma Nova Justiça Penal», 122.

Assim, não é de pronunciar a arguida.

III
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção Criminal em negar provimento ao recurso, mantendo na íntegra a decisão recorrida.

Custas pelo assistente, fixando-se a taxa de justiça, fixando-se a taxa de justiça, atendendo ao trabalho e complexidade de tratamento das questões suscitadas, em quatro UCs (art. 87.º, n.º 1 al.ª b) e 3, do Código das Custas Judiciais).
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Évora, 14-2-2012

(elaborado e revisto pelo relator, que escreve com a ortografia antiga)

JOÃO MARTINHO DE SOUSA CARDOSO
ANA BARATA BRITO