Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1944/17.6T8FAR.E1
Relator: CANELAS BRÁS
Descritores: FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 06/27/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. O abuso do direito constitui limite ao seu uso (artº 334º CC).
II. E excede os seus limites de uso a pretensão, por parte de um cidadão, de arguir a ineficácia de contrato de compra e venda em que outorgou mediante a confessada falsificação de uma procuração.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: RECURSO Nº. 1944/17.6T8FAR.E1 – APELAÇÕES (FARO)


Acordam os juízes nesta Relação:

I. Apelação do Interveniente Principal (alegação a fls. 265 a 281):

O Interveniente Principal (…), residente na Estrada da (…), Sítio da (…), Caixa Postal (…), em Luz de Tavira (admitido no douto despacho de 05 de Dezembro de 2017, a fls. 98 a 101), “na qualidade de vendedor e interveniente na cadeia de negócios que teve por objecto o imóvel em causa”, vem interpor recurso da douta sentença proferida em 30 de Julho de 2018 (ora a fls. 235 a 262) e que, entre o mais, julgou parcialmente procedente o pedido reconvencional e veio a declarar a ineficácia dos negócios jurídicos de compra e venda celebrados em 17 de Janeiro de 2003 e 28 de Março de 2017, bem como da penhora registada sobre o imóvel em causa, ao mesmo tempo que determinou o cancelamento dos registos correspondentes aos actos jurídicos declarados como ineficazes e o condenou, como litigante de má-fé, na multa de 5 (cinco) UCs e na indemnização de € 1.000,00 (mil euros), nos presentes autos de acção declarativa de condenação, com processo comum, que o Autor (…), residente na Rua (…), n.º 23-7.º, Esq., em Faro instaurou contra os Réus (…), residente na Av. (…), n.º 187, na Praia de Faro e (…), residente na Rua (…), n.º 2-5.º, B, em Faro, no Tribunal Judicial da comarca de Faro, a pedir o reconhecimento do seu direito de propriedade e a entrega do prédio urbano destinado a habitação sito na Rua (…), n.os 51 e 53, em Faro – com o fundamento que vem aduzido na sentença de que “porque o negócio que dá lugar à aquisição do direito de propriedade pelo Autor foi lavrado com base num registo falso, não haverá lugar à tutela daquele direito pois que tal proteção representaria, em primeira linha, uma expropriação não justificada do seu verdadeiro titular a herança indivisa e não partilhada de (…) e (…)”; e “tendo sido declarada a ineficácia do negócio jurídico celebrado por (…), porque desprovido de poderes de representação para tal, o imóvel em causa regressaria ao património comum do casal composto por (…) e (…)”, agora à sua herança indivisa; e que, por fim, “não se logrou provar a boa-fé por parte do Autor, que logrou o registo do direito de propriedade de um bem cujo valor patrimonial ascendia ao dobro do valor pago pela respectiva aquisição e que sabia encontrar-se ocupado por terceiros, situação que, por si só, evidencia a total falta de legitimidade para invocar qualquer abuso de direito” – intentando a sua revogação e apresentando alegações que culminam com a enunciação das seguintes Conclusões:

- Nos presentes autos de recurso, vem o recorrente impugnar a decisão proferida nos autos, na parte em que:
- Declarou a ineficácia do negócio jurídico de compra e venda celebrado pelo ora recorrente em 17 de Janeiro de 2003;
- Não considerou provada a boa-fé do ora recorrente no referido negócio;
- Determinou o cancelamento do registo correspondente a esse acto jurídico; e
- Determinou a condenação do ora recorrente como litigante de má-fé, em multa correspondente a 5 UC's e em indemnização no valor de € 1.000,00.
- Impugna-se a decisão proferida sobre o ponto 1) da matéria de facto considerando que a prova produzida por confissão do Réu (…) impunha a concretização da matéria aí dada como provada.
- Requer-se a rectificação do ponto 9) dos factos provados por se verificar manifesto lapso na redacção deste ponto.
- Considera o recorrente que a prova produzida nos autos impunha que tivesse sido dada como provada a sua boa-fé na celebração do negócio jurídico (aquisição) declarado ineficaz.
- Com efeito, os Réus haviam alegado a nulidade ou a ineficácia desse negócio jurídico, sendo que era de todo relevante apreciar a eventual subsunção da conduta do recorrente na previsão do artº 291º do Código Civil e artº 17º do Código de Registo Predial.
- Tratava-se de facto provado, que devia ter sido considerado pelo Tribunal no âmbito dos poderes de cognição que lhe são conferidos pelo artigo 5º do Código de Processo Civil.
- Tanto mais que sendo a nulidade de conhecimento oficioso, a mesma poderá vir a ser declarada em qualquer instância de recurso.
- Mais se impugna a decisão sobre a matéria de direito.
- Considera o recorrente que andou mal a Mma. Juiz a quo ao considerar ineficaz, com efeitos absolutos, o negócio de compra e venda celebrado entre ele e o R. (…).
10º - Com efeito, dispõe o artigo 268º, nº 1, do Código Civil que "o negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este (sublinhado nosso) se não for por ele ratificado".
11º - Tendo declarado a ineficácia do negócio, devia a Mma. Juiz a quo decidir e identificar a pessoa ou pessoas em relação à qual ou às quais o referido negócio era ineficaz.
12º - Isto porque a ineficácia não tem, nem pode ter o alcance da declaração de nulidade do negócio.
13º - Contrariamente à declaração de nulidade, que destrói todos os efeitos do negócio jurídico, erga omnes, retirando-o da ordem jurídica.
14º - A ineficácia é relativa.
15º - Os seus efeitos operam-se apenas na esfera jurídica daquele que é protegido pela norma.
16º - Por este motivo, também entende o recorrente que não podia ter sido determinado o cancelamento do registo desse negócio de compra e venda, sem primeiro ter sido retirado da ordem jurídica o referido negócio, v. g. através da declaração da sua nulidade.
17º - Mais impugna o recorrente a ilegitimidade dos Réus no pedido reconvencional.
18º - Com efeito, os Réus pediram que fosse declarada a ineficácia dos 2 negócios jurídicos de compra e venda celebrados tendo por objecto o imóvel identificado nos autos.
19º - Essa ineficácia só opera em relação aos pais dos Réus.
20º - Contudo, tendo estes falecido sem terem ratificado os negócios ou, em alternativa, sem terem pedido a respectiva invalidade, tais negócios convolaram-se.
21º - Os Réus, que assumiram essa qualidade no processo em nome próprio e não em representação da herança de seus pais são partes ilegítimas no pedido reconvencional, devendo tal ilegitimidade ter sido declarada pelo Tribunal por ser de conhecimento oficioso.
22º - Por último, impugna o recorrente a condenação como litigante de má-fé.
23º - Com efeito, a sua actuação processual não preenche nenhuma das previsões do artigo 542º do Código de Processo Civil.
24º - Estando o mesmo a ser condenado por uma actuação externa ao processo, fora da litigância processual e até anterior ao início dos presentes autos.
25º - Julgando como julgou, violou a Mma. Juiz a quo o disposto nos artigos 5º e 542º do Código de Processo Civil e artigo 268º do Código Civil.
Nestes termos, nos demais de direito aplicáveis e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências,
Deverá ser concedido provimento ao recurso ora interposto, revogando-se a douta decisão recorrida, substituindo-se por outra que julgue totalmente procedente a acção interposta pelo Autor.

Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.


II. Apelação do Autor (alegação a fls. 287 a 314):

E o Autor (…) vem também interpor recurso da mesma douta sentença, intentando a sua revogação e apresentando alegações que culminam com a enunciação das seguintes Conclusões:

- Nos presentes autos de recurso, vem o recorrente impugnar a decisão proferida nos autos, na parte em que:
- Julgou totalmente improcedente a acção;
- Declarou a ineficácia do negócio jurídico de compra e venda celebrado pelo ora recorrente em 28 de Março de 2017;
- Não considerou provada a boa-fé do interveniente (…);
- Determinou o cancelamento do registo correspondente a esse acto jurídico;
- Não considerou demonstrada a boa-fé do Autor;
- Não considerou demonstrado o abuso de direito por parte do Réu; e
- Determinou a condenação do ora recorrente como litigante de má-fé, em multa correspondente a 5 UC's e em indemnização no valor de € 1.000,00.
- Requer-se a rectificação do ponto 9) dos factos provados por se verificar manifesto lapso na redacção deste ponto.
Mais,
- Considera o recorrente que a prova produzida nos autos impunha que tivesse sido dada como provada a boa-fé do interveniente (…) na celebração do negócio jurídico declarado ineficaz (1ª aquisição).
- Com efeito, os Réus haviam alegado a nulidade ou a ineficácia desse negócio jurídico, sendo que era de todo relevante apreciar a eventual subsunção da conduta do interveniente na previsão do artigo 291º do Código Civil e artigo 17º do Código de Registo Predial.
- Tratava-se de facto provado, que devia ter sido considerado pelo Tribunal no âmbito dos poderes de cognição que lhe são conferidos pelo artigo 5º do Código de Processo Civil.
- Tanto mais que sendo a nulidade de conhecimento oficioso, a mesma poderá vir a ser declarada em qualquer instância de recurso.
- Impugna-se o ponto 13) dos factos dados como provados por se considerar que foi dado como provado um facto instrumental que resultou da instrução da causa quando podia e devia ter sido dado como provado o facto principal, alegado pelo Autor, que era inequívoco, ao contrário do facto instrumental e que resultou provado.
- Impugna-se o ponto 33) da matéria de facto por se considerar ter havido lapso manifesto na apreciação da prova documental, que impunha resposta diferente.
- Impugna-se o ponto 31) da matéria provada por se considerar que a prova gravada impunha resposta diferente.
10º - Impugna-se o ponto 34) da matéria provada por se considerar que a prova documental, testemunhal e de declarações de parte impunha resposta diferente.
11º - Impugna-se o ponto 36) da matéria provada por se considerar que a sua redacção é ambígua, havendo igualmente lapso na indicação da motivação de tal resposta.
12º - Entende-se que devia ter sido considerado provado o facto, caracterizador da boa-fé para efeitos do disposto no artigo 291º do CC, de o Autor desconhecer o vício do negócio ineficaz, ou seja, a existência de uma procuração falsa.
Mais se impugna a decisão sobre a matéria de direito.
13º - Considera o recorrente que andou mal a M.ª Juiz a quo ao considerar ineficaz, com efeitos absolutos, o negócio de compra e venda celebrado entre o interveniente (…) e o Réu (…).
14º - Com efeito, dispõe o artigo 268º, nº 1, do Código Civil que "o negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este (sublinhado nosso) se não for por ele ratificado".
15º - Tendo declarado a ineficácia do negócio, devia a Mma. Juiz a quo decidir e identificar a pessoa ou pessoas em relação à qual ou às quais o referido negócio era ineficaz.
16º - Isto porque a ineficácia não tem, nem pode ter o alcance da declaração de nulidade do negócio.
17º - Contrariamente à declaração de nulidade, que destrói todos os efeitos do negócio jurídico, erga omnes, retirando-o da ordem jurídica.
18º - A ineficácia é relativa.
19º - Os seus efeitos operam-se apenas na esfera jurídica daquele que é protegido pela norma.
20º - Por este motivo, também entende o recorrente que não podia ter sido determinado o cancelamento do registo desse negócio de compra e venda, sem primeiro ter sido retirado da ordem jurídica o referido negócio, v. g. através da declaração da sua nulidade.
21º - Considera o recorrente que igualmente andou mal a Mma. Juiz a quo ao considerar ineficaz, com efeitos absolutos, o negócio de compra e venda celebrado entre o Autor, ora recorrente, e o interveniente (…).
22º - Com efeito, esta venda não pode subsumir-se na previsão do art.º 268º do CC.
23º - Desde logo, porque nesta venda nem o vendedor nem o comprador actuaram em nome de outrem.
24º - Sendo certo que a sentença recorrida não qualifica a eventual irregularidade deste negócio (2ª venda).
25º - Para além disso, a declaração de ineficácia não opera erga omnes, não tem efeitos absolutos, mas apenas em relação àqueles a quem respeita.
26º - Não podia ser declarada a ineficácia da venda ao Autor nem ordenado o cancelamento do registo de aquisição a seu favor.
27º - Caso viesse a ser declarada a nulidade, o que não se concede, sempre os direitos do Autor teriam que ser salvaguardados.
28º - Ou pela consagração da boa-fé, mantendo-se o negócio.
29º - Ou pela restituição do que fora prestado, nos termos do artigo 289º do CC.
30º - Mais impugna o recorrente a ilegitimidade dos Réus no pedido reconvencional.
31º - Com efeito, os Réus pediram que fosse declarada a ineficácia dos 2 negócios jurídicos de compra e venda celebrados tendo por objecto o imóvel identificado nos autos.
32º - Essa ineficácia só opera em relação aos pais dos Réus.
33º - Contudo, tendo estes falecido sem terem ratificado os negócios ou, em alternativa, sem terem pedido a respectiva invalidade, tais negócios convolaram-se.
34º - Os Réus, que assumiram essa qualidade no processo em nome próprio e não em representação da herança de seus pais são partes ilegítimas no pedido reconvencional, devendo tal ilegitimidade ter sido declarada pelo Tribunal por ser de conhecimento oficioso.
35º - Entende o A. que devia ter sido considerado de terceiro de boa-­fé no negócio de aquisição do imóvel.
36º - Com efeito, nenhum dos factos aduzidos pela Mma. Juiz a quo para afastar a boa-fé do Autor é, no entender deste, revelador de má-fé.
37º - Pelo contrário, resultam do funcionamento do mercado e do comércio jurídico.
38º - Entende o Autor que houve abuso de direito por parte do Réu (…).
39º - E que esse abuso de direito devia ter sido declarado.
40º - Por último, impugna o recorrente a sua condenação como litigante de má-fé.
41º - Com efeito, a sua actuação processual não preenche nenhuma das previsões do artigo 542º do Código de Processo Civil.
42º - Julgando como julgou, violou a Mma. Juiz a quo o disposto nos artigos 5º e 542º do Código de Processo Civil e artigos 268º, 291º e 334º do Código Civil.
Nestes termos, nos demais de direito aplicáveis e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências,
Deverá ser concedido provimento ao recurso ora interposto, revogando-se a douta decisão recorrida, substituindo-se por outra que julgue totalmente procedente a acção interposta pelo Autor.

Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.
*

A) – Vêm dados por provados os seguintes factos:

1) Por volta do ano 2000, o Réu (…), que conhecia o (…) há vários anos e com quem tinha celebrado alguns negócios, devia-lhe algumas quantias.
2) Por forma a evitar que (…) exigisse judicialmente a dívida, o (…) acordou com ele a venda do imóvel em causa, com o propósito de adquiri-lo novamente.
3) Atendendo ao facto de os seus pais não saberem desse negócio, o (…) decidiu fabricar uma procuração para aquele fim.
4) Para esse efeito, o (…) forjou uma procuração através de uma outra, emitida pelo então 1.º Cartório Notarial de Faro, subscrita pela então ali funcionária (…), datando-a de 23 de Janeiro de 2002, apondo-lhe o local da elaboração como sendo o da residência dos seus pais.
5) E nela assinou, com a sua própria letra a punho, o nome de seus pais, tendo ainda aposto na mesma um carimbo, semelhante a uma moeda antiga.
6) No texto da procuração que constitui fls. 35 pode ler-se: “No dia vinte e três de Janeiro de 2002, numa casa da Rua (…), n.º 51, em Faro, perante mim, (…), 2ª Ajudante do 1º Cartório Notarial de Faro, compareceu: (...) e mulher (...) e por eles foi dito: Que constituem seu bastante procurador, (...) a quem conferem os poderes necessários para com livre e geral administração civil, reger e gerir todos os bens deles outorgantes. (...) Receber quaisquer importâncias em dinheiro, valores ou rendimentos, certos ou eventuais, vencidos ou vincendos, quer pertençam ou venham a pertencer aos outorgantes por qualquer via ou título, passando recibos ou dando quitações; depositar ou levantar capitais em bancos, assinando recibos ou cheques. Representá-los junto de quaisquer Repartições Públicas ou Administrativas, nomeadamente (...) comprar, vender, permutar, dividir ou hipotecar bens ou direitos móveis ou imóveis para, com os demais interessados ou co-herdeiros, proceder a quaisquer partilhas judiciais ou extra-judiciais, pagar ou receber tornas, dar ou aceitar quitações, podendo ainda (...) proceder a quaisquer atos de registo predial ou propriedade automóvel, provisórios ou definitivos, cancelamentos ou averbamentos, representá-los em juízo, usando para o efeito de todos os poderes forenses em direito permitidos, os quais deverá substabelecer em advogado ou solicitador sempre que deles tenha de usar”.
7) O (…) juntou a essa procuração falsificada uma folha de conferência de fotocópia, datada de 15 de Maio de 2002.
8) Conferência de fotocópia que veio a ser utilizada na celebração da escritura de compra e venda celebrada com o (…), em 17 de Janeiro de 2003, a qual se encontra arquivada no Cartório Notarial de Tavira, junta à respectiva escritura.
9) Assim, através da escritura de compra e venda datada de 17 de Janeiro de 2003, em que compareceram como outorgantes (…), na qualidade de procurador de (…) e mulher (…) e (…), o primeiro declarou vender ao segundo pelo preço de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), já recebido, o prédio urbano sito na Rua (…), n.os 51 e 53, freguesia da Sé, concelho de Faro, inscrito na respectiva matriz predial sob o art.º (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o n.º (…), com um valor patrimonial de € 140.010,00 (cento e quarenta mil e dez euros), pelo preço de € 70.000,00 (setenta mil euros).
10) Pela Ap. (…), de 22 de Janeiro de 2003, encontra-se registada a aquisição do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o n.º (…)/20030122 e inscrito na respectiva matriz predial sob o art.º (…) da União das Freguesias de Faro (Sé e São Pedro), concelho de Faro (ex-art.º … da extinta freguesia da Sé) a favor de (…), por compra a (…) e mulher (…).
11) O referido (…) pagou os impostos devidos a título de IMI sobre o imóvel em causa, desde 2003.
12) (…) emitiu um cheque, datado de 28 de Fevereiro de 2005, no valor de € 170.000,00 (cento e setenta mil euros) à ordem de (…).
13) Em 04 de Julho de 2005 foi participado o óbito de (…) às Finanças sendo declarados os seguintes bens: fração D, do prédio urbano com o artigo (…), da freguesia de São Pedro, concelho de Faro; prédio urbano com o artigo (…), da freguesia da Sé, concelho de Faro; e uma quota em sociedade.
14) Através de escritura de habilitação de herdeiros celebrada no dia 18 de Agosto de 2006, (…) declarou, na qualidade de cabeça-de-casal na herança deixada pelo seu marido (…), falecido em 06 de Março de 2005, que aquele deixara como seus herdeiros a declarante e seus filhos, (…) e (…).
15) Através de escritura de partilhas celebrada no dia 05 de Abril de 2007, os herdeiros de (…) procederam à partilha da verba única pertencente ao património do falecido, o qual se tratava do prédio urbano térreo, sito na Ilha do (…), concelho de Faro, inscrito na matriz sob o n.º (…), o qual foi adjudicado a (…), dando tornas à sua mãe e irmão.
16) Pela Ap. (…), de 02 de Fevereiro de 2010, encontra-se registada uma penhora sobre o prédio em causa, pela quantia exequenda de € 25.029,95 (vinte e cinco mil, vinte e nove euros e noventa e cinco cêntimos) referente à execução que correu termos no Tribunal Judicial de Tavira sob o n.º 364/05.9TBTVR e exequente (…), execução que já se mostra extinta.
17) Em Setembro de 2011 o (…), que nunca tinha tido a posse do imóvel, intentou contra a mãe do Réu (…), (…), uma acção executiva para entrega do prédio em discussão nestes autos, os quais correram termos no extinto 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, sob o proc. 2718/11.3TBFAR.
18) A referida (…) deduziu Oposição à execução, que correu termos no Apenso A do mesmo, invocando a falsidade da procuração que instruiu a escritura pública que era utilizada como título executivo e que o negócio formalizado por essa escritura, consequentemente, era ineficaz relativamente à executada e seu falecido marido.
19) Por decisão proferida no dia 20 de Novembro de 2012, no âmbito do processo que correu seus termos sob o n.º 2718/11.3TBFAR-A, referente a uns autos de oposição à execução intentados por (…) contra (…), foi proferida decisão a julgar a mesma totalmente procedente, por falsidade da escritura pública dada à execução, por ter sido outorgada com base numa procuração falsa, sendo extinta a execução.
20) Tal decisão foi notificada ao (…), através do seu mandatário.
21) (…) faleceu em 22 de Outubro de 2012.
22) Tal óbito não foi participado às Finanças.
23) No âmbito do processo comum singular que correu termos sob o n.º 2157/12.9TAFAR do Tribunal Judicial de Tavira, (…) deduziu pedido de indemnização civil contra (…), pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 172.660,00 (cento e setenta e dois mil e seiscentos e sessenta euros) a título de danos patrimoniais e € 34.000,00 (trinta e quatro mil euros) a título de juros e constitui-se assistente.
24) Aí fora deduzida acusação contra o (…), na sua qualidade de arguido, pelos crimes de falsificação de documento e burla qualificada.
25) Nesse processo foi proferida sentença datada de 15 de Julho de 2014, através da qual foi condenado o (…) pela prática do crime de falsificação de documento, p. e p. pelos artigos 255.º, alínea a), 256.º, n.os 1, alíneas d), e) e f) e 3, todos do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), num total de € 1.200,00 (mil e duzentos euros), sendo, porém, absolvido do pedido de indemnização cível que contra si foi deduzido por (…).
26) Inconformado com tal sentença, foi apresentado recurso pelo (…) para o Tribunal da Relação de Évora que decidiu manter a sentença proferida, por Acórdão transitado em julgado em 19 de Janeiro de 2017.
27) Através da escritura de compra e venda datada de 28 de Março de 2017, em que compareceram como outorgantes (…) e (…), o 1º declarou vender ao 2º o prédio urbano composto por 2 pisos, com quintal, destinado a habitação, sito na Rua (…), n.os 51 e 53, em Faro, União das Freguesias de Faro (Sé e São Pedro), concelho de Faro, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo … (ex-artigo … da extinta freguesia da Sé) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o n.º …/20030122, com valor patrimonial de 140.010,00 (cento e quarenta mil e dez euros), pelo preço de 70.000,00 (setenta mil euros).
28) Tal pagamento foi feito através de cheque datado de 28 de Março de 2017, passado à ordem de (…), debitado da conta bancária do Autor na Caixa Económica Montepio Geral e creditado na conta do seu beneficiário.
29) Da aludida escritura consta a menção de que sobre o imóvel incidia “uma penhora a favor de (…), nos termos da apresentação dois mil e vinte e dois, do dia dois de Fevereiro de dois mil e dez, cujo cancelamento declara, sob sua inteira responsabilidade, encontrar-se assegurado”, referindo-se ao primeiro outorgante, (…).
30) Pela apresentação 2094, de 29 de Março de 2017, mostra-se registada a aquisição do imóvel em causa a favor do Autor, por compra a (…).
31) O Autor não visitou o imóvel.
32) Através de escritura pública de habilitação de herdeiros celebrada no dia 18 de Julho de 2017, (…), na qualidade de cabeça- de-casal na herança deixada por sua mãe (…), declarou que aquela deixara como seus únicos herdeiros os seus dois filhos, a outorgante e (…).
33) Da relação de bens apresentada no Serviço de Finanças, por óbito da mãe dos Réus, não faz parte o imóvel em causa.
34) O imóvel em causa encontra-se ocupado pelos Réus, herdeiros de (…), conforme informação transmitida ao Autor pelo mandatário destes por carta datada de 19 de Maio de 2017.
35) Enquanto foi viva, a mãe do Réu (…) residiu no 1.º andar do prédio, residindo a Ré no rés-do-chão.
36) Impedindo o Autor de aceder ao mesmo.
37) De acordo com a respectiva caderneta predial, o imóvel em causa possui área total de 235 m.2 e o valor patrimonial actual de € 140.010,00 (cento e quarenta mil e dez euros), determinado no ano de 2015.
38) Não foi registado no Serviço de Finanças do concelho de Faro qualquer contrato de arrendamento, com referência ao imóvel em causa.
39) Sendo apresentadas as relações de inquilinos de fls. 2 e 3 dos autos, da certidão de fls. 18 e seguintes.
40) Antes da aquisição o Autor teve conhecimento da situação registral do imóvel e da sua situação na matriz predial.
41) O imóvel encontrava-se onerado com penhora que o (…) se comprometeu a cancelar, logo após a escritura.
42) O imposto municipal sobre imóveis estava em dia e não havia qualquer dívida que onerasse o imóvel.
43) O Autor nasceu em França, onde viveu uma grande parte da sua vida, tendo vindo para o Algarve há alguns anos.
44) Conheceu o (…) quando lhe adquiriu um apartamento na Praia de Faro.
45) Mais tarde, o (…) fez-lhe uma proposta de venda do imóvel.
46) O negócio interessou ao Autor, mas o preço proposto não.
47) O (…) baixou o preço e o negócio concretizou-se.

B) – E vêm dados por não provados os seguintes factos:

a) Que não tenha sido pago (pelo Autor) e recebido pelo (…), o preço a que alude a escritura pública de compra e venda referida nos factos provados e datada de 29 de Março de 2017;
b) Que o interveniente (…) sempre insistiu com o (…) para convencer a (…) a deixar o 1.º andar do imóvel livre para que ele pudesse tirar proveito do prédio;
c) Que o Autor verificou nas Finanças se havia algum arrendamento registado sobre o imóvel;
d) À data da aquisição o Autor desconhecia que o prédio estava ocupado pelos herdeiros da (…).
*

Vejamos, então, uma a uma, as questões que vêm suscitadas em ambos os recursos e que demandam apreciação e decisão da parte deste Tribunal ad quem – que são basicamente as mesmas nas duas Apelações (de resto, subscritas pela mesma ilustre advogada), que passam pela reapreciação da matéria de facto que foi julgada no Tribunal a quo, pela falta de legitimidade dos Réus para fazerem o pedido reconvencional e indo à problemática da boa-fé do Autor adquirente do imóvel, ao seu ressarcimento pela destruição do negócio e à condenação de ambos os recorrentes como litigantes de má-fé. É isso que, genericamente, está em causa, hic et nunc, como se extrai das conclusões alinhadas nos recursos apresentados, transcritas supra para uma melhor compreensão – nada obstando, por outra parte, a que se conheçam dos dois recursos em simultâneo, dada a similitude de questões que neles se deixam surpreender.
[Pois, como é sobejamente conhecido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (vide os artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código Processo Civil), naturalmente sem prejuízo das questões cujo conhecimento ex officio se imponha (vide o artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, desse Código).]

Mas sem que se deixe, desde já, de dizer, que a suscitada problemática da ilegitimidade dos Réus para deduzirem os pedidos reconvencionais não poderá, aqui, nesta sede de recurso, vir a ser ponderada, pois que tal seria colocar ainda em causa a própria admissibilidade dos pedidos reconvencionais formulados, a qual, recorde-se, já foi longamente apreciada pela 1.ª instância através do seu douto despacho de 24 de Maio de 2018 (a fls. 174 a 181 dos autos), entretanto já transitado em julgado, no qual se decidiu admitir a reconvenção nos precisos termos em que foi formulada, tendo-se apreciado previamente os seus requisitos de natureza processual e substantiva, onde se inclui naturalmente a legitimidade dos seus peticionantes, como do mesmo consta e para que agora ainda se remete (avaliar, nesta fase, a questão dessa legitimidade processual seria desrespeitar a decisão jurisdicional da 1.ª instância que já se pronunciou expressamente sobre ela – e que não foi, oportunamente, objecto de qualquer impugnação recursiva).
Pelo que, mal ou bem, a questão ficou decidida com trânsito em julgado.

Já em relação à problemática da reapreciação da matéria de facto, nessas suas diversas vertentes que constam das conclusões dos recursos (já transcritas supra), trata-se, afinal, ainda, de saber se o Tribunal a quo julgou bem ou mal a factualidade com que se viu confrontado na acção – que o mesmo é dizer se tal julgamento foi realizado de acordo ou ao arrepio das provas que oportunamente foram carreadas e produzidas nos autos. Naturalmente que com tais alterações fácticas se intenta ainda conseguir a absolvição do Autor e do Interveniente dos pedidos reconvencionais, bem assim como a condenação dos Réus nos pedidos formulados na acção. Porém, não iremos encetar tal caminho da reapreciação da matéria de facto, pela simples mas decisiva razão de que se trataria sempre de um acto inútil, e, assim, proibido por lei (“Não é lícito realizar no processo atos inúteis”, reza o art.º 130.º do Código de Processo Civil), porquanto se alcançam precisamente os mesmos objectivos sem necessidade de tocar na factualidade que vem julgada de provada e não provada na douta sentença objecto do recurso (a existência de um conjunto de factos confessados pelos Réus na contestação e que passaram para a matéria provada nessa douta sentença apresenta-se decisiva para o julgamento dos vários pedidos formulados na acção, na petição como em sede reconvencional, pelo que aquelas pretendidas alterações fácticas, mesmo a concretizarem-se, acabam por não ter qualquer relevância na solução do pleito e, como tal, não releva a sua apreciação em sede de recurso).

Com efeito, como é que os Réus (rectius o Réu …) confessam o que confessam na sua contestação e acabam a alcançar um pleno ganho de causa, ao conseguirem, a um tempo, a improcedência do pedido de reconhecimento do direito de propriedade do imóvel por parte do Autor e a sua respectiva entrega, e ainda a ineficácia dos negócios de compra e venda que lhe estão subjacentes por neles ter sido usada uma procuração confessadamente falsificada, justamente com fundamento na utilização desse documento falso?
Pois se foi o Réu (…) quem a falsificou, como é que vem agora a tirar plena vantagem disso, vendo regressar o prédio à sua esfera jurídica?
Eis o ponto.
Quid juris?

Veja-se a confissão dos Réus na douta contestação:
Art.º 6º – Sucede que o ora R. (…), que conhecia o supra referido (…) há vários anos, com quem tinha celebrado alguns negócios, devia-lhe algumas quantias, à volta do ano de 2002.
Art.º 8º – Em data indeterminada de 2002 (…), o (…) disse ao (…) que tinha uma procuração de seus pais (…) com poderes para lhe vender o prédio dos autos.
Art.º 9º – Assim e por forma a evitar que o (…) exigisse judicialmente a dívida, acordou com ele a venda do imóvel, com o propósito de vir um dia a adquiri-lo novamente, caso conseguisse liquidá-la de outro modo.
Art.º 10º – Em execução desse plano atendendo ao facto de seus pais não saberem desse negócio e não lhe terem, pois, outorgado qualquer procuração para venda, o ora Réu (…) decidiu falsificar as suas assinaturas e fabricar uma procuração credível para obter o objectivo referido supra.
Art.º 11º – Para esse efeito o (…), ora R., forjou uma procuração através duma outra, emitida pelo então 1.º Cartório Notarial de Faro, subscrita pela então ali funcionária (…), pelo processo de montagem.
Art.º 12º – O (…) datou essa procuração como de 23/01/2002, apôs-lhe como local da elaboração a residência dos seus pais e fez dela constar (…) que seus pais lhe conferiram poderes para, em nome deles e em sua representação, poder vender o imóvel em apreço nestes autos.
Art.º 13º – E nela assinou, com a sua própria letra a punho, o nome de seus pais, tendo ainda aposto na mesma um carimbo, semelhante a uma moeda antiga.
Art.º 14º – O (…) juntou a essa procuração falsificada uma folha de conferência de fotocópia, datada de 15/05/2002.
Art.º 15º – (Dá por reproduzida tal procuração, que constitui fls. 35): “No dia vinte e três de Janeiro de 2002, numa casa da Rua (…), n.º 51, em Faro, perante mim, (…), 2.ª Ajudante do 1.º Cartório Notarial de Faro, compareceu: (...) e mulher (...) e por eles foi dito: Que constituem seu bastante procurador, (...) a quem conferem os poderes necessários para com livre e geral administração civil, reger e gerir todos os bens deles outorgantes. (...) Receber quaisquer importâncias em dinheiro, valores ou rendimentos, certos ou eventuais, vencidos ou vincendos, quer pertençam ou venham a pertencer aos outorgantes por qualquer via ou título, passando recibos ou dando quitações; depositar ou levantar capitais em bancos, assinando recibos ou cheques. Representá-los junto de quaisquer Repartições Públicas ou Administrativas, nomeadamente (...) comprar, vender, permutar, dividir ou hipotecar bens ou direitos móveis ou imóveis para, com os demais interessados ou co-herdeiros, proceder a quaisquer partilhas judiciais ou extra-judiciais, pagar ou receber tornas, dar ou aceitar quitações, podendo ainda (...) proceder a quaisquer atos de registo predial ou propriedade automóvel, provisórios ou definitivos, cancelamentos ou averbamentos, representá-los em juízo, usando para o efeito de todos os poderes forenses em direito permitidos, os quais deverá substabelecer em advogado ou solicitador sempre que deles tenha de usar”.
Art.º 15º – (Continuação): cópia do documento que vem sendo referido e que serviu para a celebração da escritura de compra e venda celebrada com o (…) em 17/01/2003, a qual se encontra arquivada no Cartório Notarial de Tavira, junta à respectiva escritura.
Art.º 16º – Com a referida manobra conseguiu o ora R. (…) que ficasse a constar na aludida escritura que tinha poderes e legitimidade para vender o imóvel de seus pais.
Venda que consta do ponto 9) da factualidade da sentença:
9) Assim, através da escritura de compra e venda datada de 17/01/2003, em que compareceram como outorgantes (…), na qualidade de procurador de (…) e mulher (…) e (…), o primeiro declarou vender ao segundo pelo preço de € 50.000,00 já recebido, o prédio urbano sito na R. (…), n.os 51 e 53, freguesia da Sé, concelho de Faro, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o n.º (…), com um valor patrimonial de € 140.010,00, pelo preço de € 70.000,00.

Esta, portanto, a confissão dos Réus (mormente a do Réu …).
E a seguir, em reconvenção, vêm mesmo pedir a destruição dos efeitos do negócio que (assim, matreiramente, por um deles) fora realizado, nos seguintes termos, que correspondem a outros tantos pedidos reconvencionais formulados:
c) Ser admitida a reconvenção, decidindo que o imóvel em causa nos autos pertence aos ora RR, devendo ser o Autor e o Interveniente condenados a reconhecerem os Réus como tal, e ainda serem declarados ineficazes os dois actos de disposição celebrados (escrituras de compra e venda), bem como a penhora registada sobre tal bem, por ser ela igualmente ineficaz em relação aos donos do imóvel.
d) Deverá também decretar-se o cancelamento dos registos prediais.

E a verdade é que vieram a obter mesmo ganho de causa na 1ª instância.

Mas essa situação não se poderá manter – por iníqua – não se crendo que a douta sentença objecto de impugnação nos presentes recursos tenha decidido bem a questão que assim lhe estava colocada para decidir. E dizemo-lo, sempre, e naturalmente, ressalvando melhor opinião que a por nós, aqui, ora expendida.

Pois que, como o Autor sempre defendeu no processo e agora também o defende no recurso que apresenta da douta sentença, tal actuação dos Réus, com os contornos supra por eles confessados, estaria sempre ferida/inquinada de abuso de direito e assim não podendo ser permitida/tolerada pelo ordenamento jurídico, nos termos previstos no artigo 334.º do Código Civil – que prevê esta figura do abuso do direito justamente para evitar uma utilização imoral dos próprios mecanismos da lei, como nele se estatui ser “ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito” (assim se exige, para haver abuso do direito, que seja manifesto o excesso – só podendo, por isso, os Tribunais fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício dos direitos ou a sua conformidade às razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso; pois, simplisticamente falando, esta figura constitui uma válvula de escape do sistema para impedir que venham a prevalecer certas soluções injustas, ainda que escoradas na lei).

[O ilustre Professor Manuel de Andrade refere-se aos direitos exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça (‘Teoria Geral das Obrigações’, página 63), a “hipóteses em que a invocação e aplicação de um preceito da lei resultaria no caso concreto intoleravelmente ofensiva do nosso sentido ético-jurídico embora legalmente se aceitando como boa e valiosa para o comum dos casos a sua estatuição”. E o Professor Antunes Varela aduz in ‘Das Obrigações em Geral’, volume I, a páginas 436 a 438, que “há abuso de direito, segundo a concepção objectiva aceite no artigo 334.º, sempre que o titular o exerce com manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social desse direito. Não basta que o exercício do direito cause prejuízos a outrem. Naturalmente, a reclamação do crédito pelo credor abastado ao devedor em má situação económica será contrária aos interesses deste. O proprietário que constrói, no seu terreno, tirando as vistas ou a luz ao prédio vizinho, também pode prejudicar este. Mas em nenhum dos casos haverá em princípio, abuso de direito, visto a atribuição do direito deliberadamente traduzir a supremacia de certos interesses sobre outros interesses com eles conflituantes. Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar. Se, para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade, a consideração do fim económico ou social do direito apela de preferência para os juízos de valor positivamente consagrados na própria lei. Não pode em qualquer dos casos afirmar-se a exclusão dos factores subjectivos nem o afastamento da intenção com que o titular tenha agido, visto este poder interessar quer à boa fé ou aos bons costumes, quer ao próprio fim do direito”.]

Que é, frise-se, manifestamente, a situação trazida pelo caso sub judicio, cujo contexto factual traduz, quanto à conduta dos RR/reconvintes (que teriam, até, à partida, legitimamente interesse na defesa do seu direito e reaver o prédio vendido que, de resto, não tem deixado de estar na sua esfera jurídica, mas vêm, rectius o Réu …, pedir a destruição do negócio com base na utilização duma procuração por si confessadamente falsificada, de forma pormenorizada, querendo agora tirar benefícios disso e nem falando em devolver o preço que o comprador deu pelo imóvel), tal conduta traduz, dizíamos, a ofensa do nosso sentido ético-jurídico, do nosso justo sentir, de tal modo que o exercício do dito alegado direito de invocar tal vício excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do mesmo.
Por isso que não poderá, aqui, ainda, ratificar-se essa solução do pleito.

E nem se poderá dizer que há outros interesses prevalecentes a tutelar, designadamente os da co-Ré (…), que não participou na aludida falsificação da procuração ou, sequer, os direitos da herança indivisa titulada pelos dois Réus – os quais terão que acertar as suas contas entre si, maxime com recurso da mesma aos meios ao seu dispor para exigir responsabilidades ao Réu José Amaro, que dispôs daquela maneira do património dos pais de ambos. Por outra parte, se verifica ter ficado provado que nem aquele prédio foi declarado como constituindo acervo da herança dos pais dos Réus, nem naturalmente foi objecto de partilha entre estes, como consta dos factos dados por provados nos pontos 13), 14) e 15) da douta sentença (o que inculca a ideia de que a própria Ré … já não estava a contar com ele, vindo a ser-lhe entregue agora surpreendentemente por obra daquela mesma douta sentença recorrida).

Decorrente e consequentemente, caem todos os pedidos reconvencionais formulados, desde o de ineficácia dos negócios jurídicos ao de cancelamento de registos, bem assim como ambas as condenações por litigância de má-fé.
Inversamente e também como decorrência do que se vem de dizer, se têm agora que vir a julgar procedentes os pedidos formulados na acção, tanto o do reconhecimento do direito de propriedade do Autor sobre o imóvel, como o da entrega imediata do mesmo ao Autor, livre e devoluto (com excepção do pedido de pagamento de uma sanção pecuniária compulsória enquanto essa entrega não ocorrer, do qual se não fez a mínima prova dos seus respectivos pressupostos).

Razões pelas quais, neste enquadramento fáctico e jurídico, se terá, agora, que revogar da ordem jurídica a douta sentença da 1ª instância, ora objecto das impugnações, e procedendo, em tais termos, os presentes recursos de Apelação.


E, em conclusão, dir-se-á:

(…)
*

Decidindo.

Assim, face ao que se deixa exposto, acordam os juízes nesta Relação em conceder provimento às Apelações e revogar a douta sentença recorrida, agora julgando procedente a acção (com excepção do pedido de fixação duma sanção pecuniária compulsória) e improcedentes os pedidos reconvencionais, onde se incluem as condenações dos Apelantes como litigantes de má-fé.
Custas pelos Apelados nas duas instâncias.
Registe e notifique.
Évora, 27 de Junho de 2019
Mário João Canelas Brás
Jaime de Castro Pestana
Paulo de Brito Amaral