Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1123/16.0T8EVR.E1
Relator: MÁRIO COELHO
Descritores: PARTE INTEGRANTE
COMUNHÃO CONJUGAL
Data do Acordão: 05/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. Os electrodomésticos de cozinha não podem ser considerados parte integrante do prédio urbano onde se encontram, quer porque não existe qualquer exigência legal da sua presença naquele compartimento, quer porque a sua ligação material ao imóvel é precária, sendo facilmente destacáveis e substituíveis.
2. Após o divórcio, cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes não podem reivindicar a propriedade de bens que fazem parte do património comum, até à sua efectiva partilha.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo Central Cível de Évora, (…) demandou a sua ex-mulher (…), com quem foi casado segundo o regime da comunhão de adquiridos, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de € 6.918,48 e, após julgamento, foi proferida sentença julgando a acção parcialmente procedente, condenando a Ré a pagar a quantia de € 500,00 a título de danos não patrimoniais, e a título de danos patrimoniais aquilo que se vier a liquidar em sede de liquidação de sentença, tudo acrescido de juros à taxa legal vencidos desde a data da citação e até integral pagamento.

Inconformada, a Ré recorre e coloca nas suas conclusões as seguintes questões:
1. Os electrodomésticos existentes na casa de morada de família não foram partilhados no inventário que correu entre as partes.
2. Tais electrodomésticos não podem ser considerados parte integrante da fracção, até porque não se encontravam encastrados.
3. O A. vendeu a fracção a terceiros e não demonstrou ter adquirido novos electrodomésticos.
4. Os meros aborrecimentos não constituem dano não patrimonial.
5. O tribunal a quo não poderia ter dado como provados os factos elencados nos pontos 6, 7, 9 e 10, por deles não ter sido feita prova.
6. O A. deveria ter peticionado a restituição in natura, e apenas a título subsidiário é que poderia ter pedido a quantia em dinheiro.

Na resposta sustenta-se a decisão recorrida.
Corridos os vistos, cumpre-nos decidir.

Da impugnação da matéria de facto
Garantindo o sistema processual civil um duplo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, como previsto no art. 640.º do Código de Processo Civil, continua a vigorar o princípio da livre apreciação da prova por parte do juiz – art. 607.º, n.º 5, do mesmo diploma, ao dispor que “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.”
A reapreciação da prova passa pela averiguação do modo de formação dessa “prudente convicção”, devendo aferir-se da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova[1].
Por outro lado, o art. 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil permite à Relação alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Trata-se de uma evolução em relação ao art. 712.º da anterior lei processual civil, consagrando uma efectiva autonomia decisória dos Tribunais da Relação na reapreciação da matéria de facto, competindo-lhes formar a sua própria convicção, podendo, ainda, renovar os meios de prova e mesmo produzir novos meios de prova, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada em primeira instância.
Entrando na análise da impugnação de facto, a Recorrente impugna a decisão recorrida quanto aos pontos 6, 7, 9 e 10.
No ponto 6, a tribunal recorrido considerou que os electrodomésticos que se encontravam na fracção aquando da sua aquisição – máquinas de lavar roupa e loiça, frigorífico, forno, exaustor, placa de fogão e móvel no qual estava colocado o frigorífico – eram essenciais à utilização do prédio. A dúvida coloca-se quanto à essencialidade de tais electrodomésticos na utilização que era feita do imóvel, que levou o tribunal recorrido a considerar que os mesmos eram parte integrante da fracção.
Deixando de lado – por ora, pois será tratada mais adiante – a questão da natureza jurídica de tais bens, em termos de matéria de facto importa apurar se foi realizada prova da essencialidade dos mesmos na utilização do imóvel.
Da descrição predial junta aos autos resulta que o imóvel é destinado a habitação de tipologia T0, com 54,42m2 de área coberta, a que acrescem dois espaços de estacionamento, um coberto e o outro descoberto – logo, pode-se concluir que a fracção era destinada a utilização por apenas duas pessoas, como foi aquele que as partes efectivamente lhe deram.
Face ao desenvolvimento actual da sociedade, pode considerar-se que os referidos bens são normalmente utilizados na economia doméstica – embora com algumas dúvidas quanto à máquina de lavar loiça, que algumas famílias dispensam quando a quantidade de loiça a lavar é menor, nomeadamente em famílias com apenas dois elementos, como era o caso – dada a sua função facilitadora das actividades domésticas, como a conservação e confecção dos alimentos e a limpeza da roupa e da loiça.
No entanto, a circunstância de tais bens serem utilizados na economia doméstica da fracção, não permite concluir que aqueles específicos electrodomésticos fossem os indispensáveis à utilização do imóvel – trata-se de bens que sofrem o desgaste normal decorrente do seu uso e que são facilmente destacáveis e substituíveis, pelo que não se pode afirmar que os existentes à data de aquisição da fracção fossem os essenciais à sua utilização.
Ponderando ainda não estar demonstrado que tais equipamentos fossem exigidos na licença de utilização emitida pela Câmara Municipal, de acordo com o projecto aprovado, esta parte da impugnação será parcialmente atendida, declarando-se provado, tão só, que os electrodomésticos identificados no ponto 4 eram utilizados na economia doméstica da fracção.
Passando à análise do ponto 7 – a Ré sabia que os bens em causa não lhe pertenciam e que causava prejuízos ao A. – a resposta envolve uma conclusão jurídica acerca da propriedade dos bens (parte-se do pressuposto da propriedade ser do A.). Embora se possa argumentar que está em causa, apenas, o conhecimento pela Ré de uma determinada realidade, também se notará que a prova realizada não permite concluir que a mesma soubesse, reconhecesse ou aceitasse que os electrodomésticos não lhe pertenciam – a Ré negou firmemente tal realidade, antes argumentou no sentido de ter estabelecido com o A. um acordo verbal no sentido de poder levar esses bens, tal como este levou outros, e certo é que as testemunhas ouvidas não dispunham de qualquer conhecimento directo acerca desta matéria.
Note-se ainda que as declarações de parte do A., afirmando que os electrodomésticos integravam a fracção e que por isso lhe foram transmitidos com a adjudicação do imóvel no processo de inventário, para além de envolverem uma conclusão jurídica – a definição de coisa integrante do imóvel – também não são suportadas por qualquer outro elemento de prova.
Ora, as declarações de parte constituem, apenas, mero princípio de prova, não se mostrando bastantes para estabelecer, por si só, qualquer juízo de certeza final, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto desde que em conjugação com outros meios de prova[2].
Teixeira de Sousa[3] esclarece que “o princípio (ou começo) da prova é o menor grau de prova: ele vale apenas como factor corroborante da prova de um facto. Isto é, o princípio da prova não é suficiente para estabelecer, por si só, qualquer prova, mas pode coadjuvar, em conjugação com outros elementos, a prova de um facto.”
Neste caso, a ausência de corroboração das declarações de parte do A. por outros meios de prova isentos não permite estabelecer o conhecimento pela Ré dos electrodomésticos não lhe pertencerem, pelo que esta parte da impugnação será atendida, eliminando-se a resposta ao ponto 7.
Nos pontos 9 e 10, foi declarado provado que a conduta da Ré descrita nos pontos 4 a 7 impediu o A. de arrendar o imóvel de imediato pela quantia mensal de € 400,00, o que lhe causou aborrecimentos. No entanto, para além do impedimento no arrendamento constituir fonte de mero dano patrimonial, o tribunal recorrido funda a sua convicção, apenas, nas declarações de parte do A., não corroborada por outros meios de prova – notando-se que a testemunha (…), amigo do A. e que tratava dos seus assuntos em Évora depois dele se ter transferido para o Porto, reflectiu no seu depoimento insegurança quanto às reais intenções do A. acerca do destino a dar à casa.
Ponderando, ainda, que o próprio A. admitiu que a sua primeira opção de recuperação do investimento era vender o imóvel – a partir de 23m20s do seu depoimento – e que só passaria para o arrendamento se não lograsse a venda no espaço de seis meses, e que teve a sorte de o vender nesse prazo, não se pode considerar provado o impedimento ao arrendamento, pois a celebração desse tipo de contrato não fazia parte da primeira opção do A., motivo pelo qual também se procederá à eliminação destes pontos da matéria de facto.
Em resumo, julga-se parcialmente procedente a impugnação da matéria de facto, nos termos que seguem:
a) o ponto 6 dos factos provados passará a ter a seguinte redacção: “Os electrodomésticos identificados no ponto 4 eram utilizados na economia doméstica da fracção”;
b) os pontos 7, 9 e 10 dos factos considerados provados na decisão recorrida são eliminados.

A matéria de facto fica assim estabelecida:
1- Na pendência do casamento contraído entre ambos, o A. e a Ré adquiriram o prédio urbano sito em Évora, na Rua do (…), n.º (…), freguesia da Horta das Figueiras, inscrito na respectiva matriz sob o art. (…), e descrito na Conservatória do Registo Predial de Évora, com o n.º (…).
2- No qual instalaram a casa de morada de família, cuja utilização ficou atribuída à Ré após decretamento do divórcio por mútuo consentimento em 14 de Julho de 2010.
3- Por decisão transitada em julgado, datada de 15 de Outubro de 2014, a propriedade sobre o prédio descrito em 1) foi adjudicada ao ora A..
4- A Ré retirou do imóvel os seguintes bens:
- máquina de lavar loiça;
- máquina de lavar e secar roupa;
- frigorífico combinado;
- forno;
- exaustor;
- esquentador ventilado;
- placa de fogão de indução;
- móvel de cozinha no qual se encontravam colocados o frigorífico e o micro-ondas.
5- Que se encontravam no imóvel aquando a sua aquisição, com excepção do esquentador.
6- Os electrodomésticos identificados no ponto 4 eram utilizados na economia doméstica da fracção.
7- (eliminado).
8- Desde 2013, a Ré não procedeu ao pagamento das quotizações de condomínio, no valor global de € 450,95.
9- (eliminado).
10- (eliminado).

Aplicando o Direito.
Da natureza jurídica dos electrodomésticos de cozinha
A decisão recorrida considerou que os electrodomésticos descritos no ponto 4 dos factos provados – com excepção do esquentador – e o móvel de cozinha, por se encontrarem no imóvel aquando a sua adquisição e serem essenciais à completa utilização do mesmo, embora pudessem ser autonomizáveis, todavia aumentavam a utilidade do prédio e lá se encontravam integrados de forma permanente, sendo por isso parte integrante do mesmo, perdendo assim a qualidade de bem móvel, nos termos do art. 204.º, n.º 3, do Código Civil.
Luís A. Carvalho Fernandes[4] ensinava que «as partes integrantes são coisas móveis que, embora ligadas materialmente ao prédio, com caracter de permanência, dele podem ser destacadas sem que a coisa imóvel deixe de subsistir ou se deva considerar imperfeita ou incompleta. Assim, um pára-raios é parte integrante da casa; uma casa sem pára-raios continua a ser casa, apenas com menores condições de segurança. O mesmo se diga da instalação eléctrica ou outros cómodos semelhantes: continua a haver casa, ainda que menos confortável.»
Em nota a este comentário – nota 68 – o mesmo autor advertia que convinha não esquecer que, por razões de ordem administrativa ou de sanidade pública, há partes integrantes que não podem deixar de existir hoje nos prédios urbanos, facto a levar em conta na qualificação da coisa como parte integrante.
Na jurisprudência, a discussão acerca da natureza jurídica dos elevadores colocados em prédios urbanos culminou no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 31.01.1996, publicado no DR, II Série, de 07.06.1996, considerando que tais equipamentos se tornavam parte integrante dos prédios urbanos após a sua instalação, pelo que se tornava ineficaz a cláusula de reserva de propriedade convencionada no respectivo contrato de fornecimento e instalação.
Para o efeito, ponderou-se não apenas a imposição legal da existência de elevador em edifícios com determinada altura – exceder 11,5m no último piso destinado a habitação – imposta pelo art. 50.º do Regime Geral das Edificações Urbanas (RGEU), mas ainda a circunstância da existência de tal equipamento em prédios com determinada altura ser vital à sua segurança e habitabilidade, sendo a ligação do elevador ao prédio urbano “finalisticamente, de carácter fixo e permanente, desde as suas máquinas aos cabos, às roldanas, às cabinas”.
No que respeita aos equipamentos dos compartimentos da habitação, se o RGEU exige na instalação sanitária a presença de “lavatório, banheira, uma bacia de retrete e um bidé”, as exigências relativas à cozinha são algo parcas: nos arts. 84.º e 109.º daquele diploma exige-se, apenas, a instalação de um lava-loiça, uma saída de esgoto, e dispositivos eficientes para evacuação de fumos e gases e eliminação dos maus cheiros.
Não se vislumbra, pois, uma exigência legal de presença na cozinha dos electrodomésticos identificados, e nos autos não foi alegado, sequer, que o projecto aprovado e a licença de utilização emitida pela autoridade administrativa competente – em princípio, a câmara municipal – exigiam a presença de tais equipamentos na cozinha.
Se é certo que os equipamentos identificados no ponto 4 – com excepção do esquentador – se encontravam no imóvel aquando da sua aquisição, tal não é relevante para a sua qualificação como parte integrante do imóvel, pois o requisito essencial é o fixado no art. 204.º, n.º 3, do Código Civil: a ligação material ao prédio, com carácter de permanência.
Ora, no que respeita aos electrodomésticos identificados nos autos, a ligação material ao prédio urbano é precária – através de ligações às redes de electricidade, de água, de esgotos ou de gás, mas facilmente destacáveis e substituíveis, através de operações de reduzida complexidade, ao contrário do que sucede com os elevadores, em que a ligação material ao prédio urbano é efectivamente complexa e apresenta carácter fixo e permanente.
A circunstância de inexistir qualquer exigência legal da presença na cozinha dos electrodomésticos referidos nos autos, aliada à sua ligação precária ao imóvel e à circunstância de serem facilmente destacáveis e substituíveis por outros, impede a conclusão estabelecida na decisão recorrida – tais equipamentos não podem ser considerados parte integrante do imóvel e a circunstância de ali se encontrarem aquando da sua aquisição apenas indicia uma actividade de promoção comercial por parte do vendedor do imóvel, valorizando a propriedade e incrementando o valor de venda pretendido.
Não sendo possível concluir que os equipamentos de cozinha supra identificados eram parte integrante do imóvel, também não pode ser estabelecida a conclusão que motivou a condenação contida na decisão recorrida: de tais equipamentos terem sido transmitidos ao A., pelo simples facto do imóvel lhe ter sido adjudicado na partilha subsequente ao divórcio.
O que se detecta é que, não tendo sido partilhados quaisquer bens móveis – com ressalva de uma viatura automóvel – e verificando-se a omissão de alguns deles, as partes deverão proceder à partilha adicional, nos termos do art. 75.º do Regime Jurídico do Processo de Inventário, ou do art. 1395.º do anterior Código de Processo Civil, caso esse diploma seja ainda o aplicável.
Ponderando ainda que, cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes ou os seus herdeiros recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património – art. 1689.º, n.º 1, do Código Civil – o A. não pode afirmar a sua propriedade em relação aos electrodomésticos identificados nos autos, até à sua efectiva partilha, o que sempre motivaria o insucesso da causa.
Com efeito, após o divórcio os cônjuges têm direito apenas a uma quota ideal do património do casal, o qual só com a partilha se concretiza em bens determinados.[5]
Quanto aos danos não patrimoniais, para além da falta de prova do respectivo requisito, o que os autos revelam é a lamentável degradação das relações interpessoais entre as partes, de resto bem patente nos depoimentos que prestaram em audiência.
Mas essa é outra questão, que as partes deverão saber resolver.

Decisão.
Destarte, concede-se provimento ao recurso, revoga-se a decisão recorrida e julga-se a acção totalmente improcedente.
Custas pelo A..
Évora, 10 de Maio de 2018
Mário Branco Coelho (relator)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões

[1] Cfr. os Acórdãos da Relação de Guimarães de 04.02.2016 (Proc. 283/08.8TBCHV-A.G1), e do Supremo Tribunal de Justiça de 31.05.2016 (Proc. 1572/12.2TBABT.E1.S1), disponíveis em www.dgsi.pt.
[2] Vide o Acórdão desta Relação de Évora de 06.10.2016 (Proc. 1457/15.0T8STB.E1), no mesmo local.
[3] In As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lex – Edições Jurídicas, 1995, pág. 203.
[4] In Teoria Geral do Direito Civil, 1983, ed. da AAFDL, Lisboa, vol. II, pág. 135.
[5] Neste sentido, vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.11.2008, proferido no Proc. 08A2620, igualmente publicado em www.dgsi.pt.