Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1071/18.9T8TMR-A.E1
Relator: JOSÉ MANUEL BARATA
Descritores: ADVOGADO
QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL
Data do Acordão: 03/18/2020
Votação: DECISÃO SINGULAR
Texto Integral: S
Sumário: I.- O dever de cooperação para a descoberta da verdade a que alude o artigo 417.º do CPC, a todos obriga, incluindo as partes, sofrendo, contudo, as restrições enunciadas no n.º 4, onde se inclui o sigilo profissional dos advogados.
II.- Por isso, devem os advogados escusar-se a depor como testemunha relativamente aos factos abrangidos pelo sigilo, como estipula o artigo 92.° do Estatuto da Ordem dos Advogados e o artigo 497.º/3, do CPC.
III.- Deve ordenar-se o levantamento do sigilo profissional do Sr. Advogado quando, estando demonstrado que a prestação do depoimento não viola de forma insuportável direitos fundamentais da A. ou do Sr. Advogado, em contraposição ao direito fundamental que o R. tem de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva, como é garantido pelos artigos 18.º/2 e 20.º da CRP e quando é claramente preponderante o interesse na prossecução do interesse público da administração da justiça e da descoberta da verdade.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo 1071/18.9T8TMR-A.E1

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No Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo de Família e Menores – Juiz 2, corre termos ação declarativa para investigação de paternidade, proposta pela Autora (…) contra o Réu (…).
Em sede de contestação, o Réu arrolou como testemunha o advogado da Autora à data em que terão ocorrido certos factos, com os quais o Réu fundamenta a exceção de caducidade do direito de propositura da ação.
No iter processual e com data de 26-02-2020 foi proferido o seguinte despacho:
O depoimento que o Réu pretende do Dr. (…) versa sobre matéria que este, na qualidade de advogado, terá tomado conhecimento por revelação da sua então cliente, aqui autora, estando, por isso, abrangida por segredo profissional, nos termos consagrados no artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados.
A recusa afigura-se legítima, impondo-se, em face das posições assumidas, o suscitar, de harmonia com o disposto no artigo 135.º do CPP ex vi dos artigos 497.º, n.º 3, e 417.º, n.º 4, do CPC, da intervenção do tribunal superior para decidir de uma eventual quebra de segredo.
Como base factual para o operar da excepção de caducidade, procura-se saber em concreto se desde Setembro de 2014 a autora sabia que o réu era o seu pai. O réu terá tido reunião com o Sr. (…) em Outubro de 2014, altura em que lhe referiu que a autora lhe transmitiu que o pai era o aqui réu e solicitou diligências para indagar sobre o seu paradeiro.
O apurar destes dados apresenta-se essencial para a descoberta da verdade.
Foi emitido parecer pela Ordem dos Advogados no sentido da quebra do segredo profissional.
Deste modo, parecem reunidos os pressupostos que justificam a quebra do segredo profissional. Porém, o Venerando Tribunal da Relação de Évora melhor decidirá.
Pelo exposto, nos termos das disposições conjugadas do artigo 135.º do CPP ex vi dos artigos 497.º, n.º 3, e 417.º, n.º 4, do CPC, suscito o incidente de quebra de segredo profissional de advogado perante o Venerando Tribunal da Relação de Évora, para o que determino a extracção de certidão de fls. 1 a 14, 21 a 28, 29 a 31, 35 a 37, requerimento de 03-07-2019 (Dr. …), 40 e 41, do parecer da Ordem dos Advogados que antecede e deste despacho, a organização de apenso com o mesmo e a sua remessa àquele Venerando Tribunal.
Notifique.
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Atendendo a que “...a questão a decidir é simples...”, nos termos previstos no artigo 656.º do CPC, o mérito do pleito irá ser apreciado e julgado mediante decisão singular do relator a proferir de imediato.
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A factualidade a apreciar é a que consta supra.
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Conhecendo.
Está em causa nos autos a dimensão/proteção do segredo profissional da testemunha que a ele esteja adstrita.
Segundo Santos Cabral, in CPP Comentado, 2014, pág. 536, “O segredo profissional define-se como a proibição de revelar, factos, ou acontecimentos, de que se teve conhecimento ou que foram confiados em razão e no exercício de uma atividade profissional. Consubstancia-se o mesmo, em termos genéricos, na reserva que todo o indivíduo deve guardar dos factos conhecidos no desempenho das suas funções, ou como consequência do seu exercício, em relação a factos que lhe incumbe ocultar, quer porque o segredo lhe é pedido, quer porque ele é inerente à própria natureza do serviço ou à sua profissão.
O segredo profissional é, assim, o atributo correlativo indispensável de todas as profissões que assentam numa relação de confiança: «nem o médico, nem o advogado, nem o padre poderiam cumprir a sua missão se as confidências que lhes são feitas não fossem asseguradas por um segredo [...]».
O dever de cooperação para a descoberta da verdade a que alude o artº 417º do CPC, a todos obriga, incluindo as partes, sofrendo, contudo, as restrições enunciadas no nº 4 onde se inclui o sigilo profissional dos advogados.
Por isso, os advogados devem a escusar-se a depor como testemunha relativamente aos factos abrangidos pelo sigilo, como estipula o artº 92° do Estatuto da Ordem dos Advogados e o artº 497º/3 do CPC.
Logo que o incidente seja suscitado segue-se a aferição da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado, seguindo-se os trâmites do artº 135º do CPP, aplicável ex vi do artº 417º/4º do CPC.
No caso dos autos, o tribunal a quo averiguou e concluiu pela legitimidade da escusa (caso ocorresse ilegitimidade poderia ele próprio determinar a prestação do depoimento, por ausência de sigilo), mas concluiu também pela essencialidade do depoimento para a descoberta da verdade, pelo que, ao abrigo do disposto no artº 135º/4 do CPP, solicitou à Ordem dos Advogado a emissão de parecer.
Elaborado o parecer, a AO concluiu que deveria ser quebrado o segredo profissional do Sr. Advogado.
Equacionado assim o caso, o que importa agora saber é se, sendo a escusa legítima, por abranger factos protegidos pelo sigilo profissional, e se, ao mesmo tempo, a produção do depoimento sobre esses factos é essencial para a descoberta da verdade, a obtenção do depoimento deve ou não ser ordenada.
Sobre esta questão dispõe o nº 3 do artº 135º do CPP que o tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, (…) pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. (…).
A relação cliente advogado tem como elemento estrutural, para um bom desempenho da profissão, a confiança que o cliente deposita no advogado, de tal forma que os segredos que o cliente lhe entrega equivalem ao depósito em cofre de que só ele tem a chave.
Este segredo tem um caráter de ordem pública, porque se destina a proteger os interesses da comunidade (não meramente os do advogado ou do cliente), estando vedada a capacidade de fazer prova em juízo se os atos praticados pelo advogado violarem o segredo profissional (artº 92º/5 do EOA).
Em suma, o dever de sigilo tem como finalidade a proteção de direitos pessoais como o bom nome e reputação e a reserva da vida privada, bem como o interesse da proteção das relações de confiança entre o advogado e o seu cliente; e o dever de colaboração com a administração da justiça tem por finalidade a satisfação de um interesse público, que é o da realização da Justiça.
Contudo, até os cofres podem ser abertos e revelado o seu conteúdo por ordem judicial.
E também o pode ser o segredo profissional se assim for fundadamente concluído pela autoridade judiciária competente, desde que finamente ponderados os valores e interesses em causa, fazendo-se prevalecer o que tiver maior relevância/preponderância.
No caso dos autos, está demonstrado que o Sr. Advogado patrocinou a A. em certo momento, mas não a patrocina na presente ação; a parcela de factos objeto do segredo consubstanciam-se numa reunião que terá ocorrido em setembro/outubro de 2014 entre o Sr. Advogado e o R., por iniciativa daquele e no interesse da A.; os factos em averiguação para operar a exceção de caducidade, situam-se em saber, em concreto, se desde setembro/outubro de 2014 a A. sabia que o R. era o seu pai.
Alega-se que o R. terá feito uma reunião com o Dr. (…) em outubro de 2014, altura em que lhe referiu que a A. lhe transmitiu que o pai era o R. e solicitou diligências para indagar sobre o seu paradeiro; estes factos são considerados essenciais para a prova da procedência de exceção perentória da caducidade do direito de propositura da ação, o que equivale por dizer que está apenas em causa averiguar da existência de um direito na esfera jurídica da A..
O que nos leva a concluir que, atendendo à factualidade em concreto, o depoimento não é suscetível de violar a dignidade, direitos fundamentais e interesses do Sr. Advogado nem da A..; que a prestação do depoimento é essencial para se determinar se a A. integra o direito de ação que pretende fazer valer, ou seja, para a descoberta da verdade.
O que implica não estar demonstrado que a prestação do depoimento, acerca destes factos, viole de forma insuportável direitos fundamentais da A. ou do Sr. Advogado, em contraposição ao direito fundamental que o R. tem de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva, como é garantido pelos artigos 18º/2 e 20º da CRP, sendo claramente preponderante o interesse na prossecução do interesse público da administração da justiça e da descoberta da verdade.
Repare-se que a reunião ocorreu entre o Sr. Advogado e o R. por iniciativa da A. e, por outro lado, saber o que ali ocorreu é essencial para se saber se a ação deve prosseguir ou soçobrar com absolvição do pedido, não mais podendo ser proposta, a que acresce não estar demonstrado que existe uma outra forma de lograr obter o que pretende o R. por outros meios, o que equivale a dizer que a pretensão do depoimento é imprescindível à realização da Justiça.
Assim sendo, ao abrigo das disposições legais supra referidas, deve ordenar-se a quebra do sigilo profissional.

No mesmo sentido tem decidido a jurisprudência, Ac. TRC de 23-01-2020, José Manuel Flores, Procº 94/17.0T8AVV-A.G1:
I- O segredo profissional não é um segredo absoluto e inquebrável, mas a razão de ser da sua existência impõe que só em casos excepcionais o advogado o possa quebrar
II- O princípio da prevalência do interesse preponderante impõe ao tribunal superior a realização de uma atenta, prudente e aprofundada ponderação dos interesses em conflito, a fim de ajuizar qual deles deverá, in casu, prevalecer.
III- A imprescindibilidade do depoimento de testemunha sujeita a segredo profissional é elemento essencial à densificação do princípio da prevalência do interesse preponderante a actuar pelo tribunal com vista à decisão sobre a quebra do segredo, pelo que, a sua falta, importa que este se mantenha.

Ac. TRC de 05-04-2017, Inácio Monteiro, Procº 309/15.9JACBR-A.C1:
I - Por norma aquele que está sujeito ao dever de guardar segredo ou sigilo, obteve conhecimento de factos devido a uma especial relação de confiança com quem lhe presta a informação, justificando-se assim a não divulgação, sem consentimento ou causa justificativa.
II - O princípio da prevalência do interesse preponderante impõe ao tribunal superior a realização de uma atenta, prudente e aprofundada ponderação dos interesses em conflito, a fim de ajuizar qual deles deverá, in casu, prevalecer.
III - O interesse da investigação criminal é preponderante em relação ao interesse protegido pelo sigilo profissional, pelo que se justifica a sua quebra, mediante a prestação dos depoimentos pretendidos.
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Sumário:
(…)
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Decisão.
Em face do exposto, decide-se autorizar o levantamento do sigilo profissional da testemunha arrolada pelo R., Dr. (…), Advogado, acerca da reunião que manteve com o R. em setembro/outubro de 2014.
Sem custas.

Évora, 18-03-2020
José Manuel Barata