Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
67/1999.E1
Relator: MÁRIO SERRANO
Descritores: PROCURAÇÃO IRREVOGÁVEL
EFICÁCIA POST MORTEM
CONTRATO DE MANDATO
Data do Acordão: 11/18/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I - «Mandato e procuração não coincidem conceptualmente: o mandato é um contrato, a procuração é um acto unilateral; o primeiro impõe a obrigação de celebrar actos jurídicos por conta doutrem; o segundo confere o poder de os celebrar em nome doutrem»,
II - Constituindo regra a livre revogabilidade do mandato (artº 1170º, nº 1) e da procuração (artº 265º, nº 2) e a ineficácia das convenções de irrevogabilidade (segundo as mesmas normas, no segmento «não obstante convenção em contrário»), o certo é que essa revogabilidade é afastada quando o mandato ou a procuração tenha sido «conferido(a) também no interesse do mandatário (ou procurador) ou de terceiro»: só nessa hipótese (do mandato ou procuração também no interesse do mandatário ou procurador, ou de terceiro) haverá mandato ou procuração irrevogável.
III – Para se considerar que uma procuração é irrevogável, não basta o facto de na declaração de vontade (…) se ler que "o mandante considera esta procuração irrevogável nos termos da Lei por ser passada no interesse da própria mandatária" é antes necessário averiguar se, em concreto, ela foi conferida também no interesse do procurador.
IV – A procuração irrevogável não caduca com a morte do mandante. A sua eficácia post mortem , traduz-se, como se afirma no Ac. STJ de 3/6/97 –, em «ficcionar o prolongamento da vida do mandante até ao cumprimento integral da missão atribuída ao mandatário, podendo este, por isso, validamente praticar, em nome do mandante e para além da sua morte, os actos de que fora incumbido». Daqui se infere que não é possível qualificar a venda ou doação posterior à morte do mandante como venda ou doação de bens alheios, ainda que entretanto, por efeito da morte do mandante e da subsequente abertura da sucessão (artº 2031º do C. Civil), e eventual aceitação da herança pelos sucessores (artº 2050º do C. Civil), esses bens tenham passado temporária e aparentemente a integrar o acervo hereditário.
Decisão Texto Integral:
Proc. nº 67/1999.E1-2ª (2009)
Apelação-1ª
(Acto processado e revisto pelo relator signatário: artº 138º, nº 5-CPC)
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ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


I – RELATÓRIO:

Na presente acção ordinária que Maria Ana da ........................ e marido, Manuel Joaquim ........................ ........................, intentaram, na comarca de Loulé, contra Libânia ........... ........................ e seu filho, Filipe António ........................ ........................ (menor à data da instauração dos autos e então representado por sua mãe), vem pedido pelos primeiros que se declare as nulidades do contrato de mandato em que foi mandante Manuel ..............................................., já falecido, respectivamente sogro e avô dos RR., e da correspondente procuração por aquele emitida a favor da 1ª R., bem como do contrato de doação de dois prédios (um rústico, sob o artigo matricial nº 467 e com o nº registral 07372, e outro urbano, sob o artigo matricial nº 2503 e com o nº registral 07373, ambos da freguesia de Almancil) a favor do 2º R., celebrado com base nessa procuração, com os consequentes cancelamentos no registo predial. Mais pedem que sejam declarados válidos testamentos outorgados pelo referido Manuel .........................................., para quem a A. trabalhou desde 1968 e até à morte deste (apenas com uma interrupção de cerca de 5 anos), em que eram deixados os aludidos prédios, a título de legados, aos AA..

Na petição inicial, alegaram os AA., no essencial, o seguinte: que são beneficiários, como legatários, de testamento outorgado pelo de cujus em 17/10/1988, em que – a par de instituir como «herdeiro universal da sua herança seu único neto, Filipe António ........................» – declarou legar a favor dos AA., «um talhão de terreno com a área de mil metros quadrados (…) a desanexar de um prédio rústico que possui (…) e se destina a arredondamento de um prédio que os legatários possuem no mesmo sítio», e de um outro testamento outorgado pelo mesmo de cujus em 9/1/1996, pelo qual «amplia o legado feito naquele [primeiro] testamento» aos AA., de modo a que «o legado compreend[a] a totalidade do prédio misto, abrangendo todo o urbano de rés-do-chão ou cave e primeiro andar ou rés-do-chão elevado, bem como todo o rústico», ao mesmo tempo que declara «que deseja manter o seu anterior testamento (…) em tudo quanto não tenha sido alterado pelo presente, vigorando assim ambos em conjunto»; que foi lavrada no 2º Cartório Notarial de Loulé, com data de 24/3/1998, uma procuração, em que outorga o referido Manuel ............................................, e em que este declara «que constitui sua bastante procuradora Libânia ................................ (…), a quem atribui poderes para vender ou doar, outorgando as respectivas escrituras notariais de compra e venda e/ou doação, a favor do seu neto e único herdeiro, Filipe António de ........................ ........................», vários prédios, entre os quais os dois supra identificados; que nessa mesma procuração declara o outorgante que a «procuração é irrevogável nos termos dos artigos 265º e 1170º do Código Civil, a pedido das partes por ser do interesse do mandante e mandatário, e não caduca por morte daquele»; que o referido Manuel ........................ de ........................ faleceu em 19/6/1998; e que foi lavrada no 1º Cartório Notarial de Loulé, com data de 2/11/1998, uma escritura de doação, em que outorgou «Libânia .................................. (…), na qualidade de procuradora de Manuel ..............................................., já falecido», e pela qual «doa a Filipe António ..........................................., neto do seu representado» os dois prédios supra identificados. Pretendem os AA. que essa procuração foi emitida quando o de cujus já havia sofrido grave acidente cerebral (em 31/1/1997), não estando à data em condições de entender e perceber o acto que estava a praticar, o que inquina de nulidade, quer o mandato e respectiva procuração, quer a doação, para além de a doação já envolver, por posterior à morte do de cujus, a disposição de bens alheios.

Na contestação, os RR. opõem-se aos pedidos, sustentando que as deixas testamentárias a favor dos AA. se deveram a pressão psicológica por eles exercida sobre o de cujus, que este procurou contrariar através da emissão da procuração sub judicio, a fim de permitir que os bens ali referidos ficassem para o seu neto após a sua morte, e que foi lavrada quando o de cujus ainda se encontrava na plena posse das suas faculdades mentais, apenas não assinando (mas apondo a sua impressão digital) por ter dificuldade em fazê-lo, devido a trombose sofrida em Janeiro de 1997, pelo que são válidas a aludida procuração e a doação outorgada com base nessa procuração – e que, na prática, revogaram a deixa testamentária a favor dos AA.. Alegando que a impossibilidade de tomarem posse dos bens (móveis e imóveis) da herança aberta por óbito de Manuel .......................................... causa prejuízos aos RR., pedem estes, em reconvenção, a condenação dos AA. a pagar-lhes indemnização, a liquidar em execução de sentença.

Aos AA. veio a ser concedido parcialmente apoio judiciário, na proporção de metade (1/2), por decisão de fls. 117-118.

Estabelecidos os factos assentes e a base instrutória, foi realizado o julgamento, na sequência do qual foi lavrada sentença em que se decidiu julgar improcedentes a acção e a reconvenção, absolvendo RR. e AA. dos respectivos pedidos. Para fundamentar a sua decisão, argumentou o Tribunal, essencialmente, o seguinte: quanto aos pedidos dos AA., estes não lograram provar que tivesse ocorrido vício ou erro da vontade do declarante na emissão da procuração sub judicio, pelo que essa procuração se deve considerar válida e, sendo irrevogável (por conferida no interesse de mandante e mandatário, conforme nela expressamente declarado), se deve ter por igualmente válida a doação outorgada com base nela, assim improcedendo os respectivos pedidos de declaração de nulidade; quanto ao pedido reconvencional, verifica-se que não foram alegados e provados factos bastantes para sustentar o pretendido direito de indemnização dos RR., pelo que sempre teria de improceder tal pedido.

Desta decisão foi interposto pelos AA. recurso de apelação.

Esse recurso foi objecto de acórdão proferido nesta Relação, em 20/9/2007, no qual se decidiu aditar dois novos factos à matéria de facto assente e anular parcialmente o julgamento quanto à matéria dos quesitos 2º, 3º, 4º, 5º e 9º, por se ter proferido decisão sem que ocorresse a junção aos autos de documentação clínica do de cujus, relativa à sua capacidade intelectual, ordenada mas não recebida, e tida por relevante para as respostas a dar a esses quesitos.

Junta a referida documentação clínica e repetido o julgamento na parte anulada, com novas respostas aos quesitos de teor semelhante, teve lugar nova prolação de sentença, que voltou a julgar improcedentes os pedidos de AA. e RR., com argumentação muito próxima da utilizada na anterior sentença.

Inconformados com a nova decisão, dela apelaram os AA., culminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

«A) A douta sentença, salvo o devido respeito, errou na interpretação e aplicação do direito.
B) A prova documental referida em C) da matéria facto assente, analisada criticamente e devidamente valorada conduz a uma decisão diversa da que foi proferida e a decisão sobre a matéria de facto constitui uma violação do direito probatório, maxime na vertente de análise, avaliação e valoração de prova produzida nos autos.
C) Assim, entendem os Recorrentes, que além dos factos dados como assentes é matéria que deveria ser levada a especificação por resultar provado e com interesse para a decisão da causa que:
a) A escritura de doação, em benefício do Recorrido, foi levada a efeito depois do óbito do doador, Manuel .........................
b) Da procuração outorgada em 24.03.1998 [e não 24.04.1998, como por lapso se escreve], foram conferidos poderes para vender/doar os prédios identificados em F) da especificação.
c) Das inscrições tabulares dos prédios objecto dos testamentos, correspondentes às descrições nos 07372 e 07373, freguesia de Almancil, as inscrições G2 e G1, ambas pela Ap. 50 de 03.07.98, consta a aquisição provisória por natureza a favor do R. Filipe Bota.
d) Dos indicados documentos consta ainda registado:
- Pela inscrição G3, Ap. 58/081098, a aquisição provisória por dúvidas por legado, a favor dos Recorrentes.
- Pela Ap. 46/101198, a inscrição G2 foi convertida.
- Pela Ap. 43/090999, a instauração da presente acção.
e) Pela escritura de habilitação de herdeiros junta aos autos, lavrada por óbito de Manuel ........................, sucederam-lhe como herdeiros, além do seu neto, Filipe António, ora Recorrido, os ora Recorrentes.
D) A doação exige um acordo de vontades, a do proponente doador e a do aceitante donatário, de acordo com o disposto no artº 945º do CC, a aceitação embora possa ocorrer em momento diferente da proposta tem de ocorrer em vida do doador, sob pena de caducidade da proposta.
E) A aceitação da doação quando incide sobre bens imóveis só se dá com a formalização por escritura pública (cfr. artº 947º/1 do CC): não tendo a doação sido aceite em vida do doador, verifica-se a caducidade do mandato, que como acto unilateral, só poderá ser visto como uma proposta.
F) Não é pelo facto de ser aposta a cláusula de irrevogabilidade que uma procuração é irrevogável e não constituindo o mandato um contrato translativo, não opera qualquer transferência do direito de propriedade.
G) Sendo que os bens adquiridos pelo Recorrido através daquela escritura de doação tinham já passado para a esfera patrimonial dos Recorrentes, atenta a existência dos testamentos, cujos efeitos se produzem à data de óbito do de cujus, a doação incidiu sobre bens alheios, pelo que nula face ao disposto no artº 956º do CC.
H) Sendo que, se a intenção era fazer uma doação post mortem, igualmente seria nula face ao disposto no artº 946º do CC.
I) A escritura de doação está também inquinada de outro vício de nulidade em face do artº 949º do CC. O carácter pessoal das doações é equiparado ao das disposições testamentárias, apenas permitindo as excepções contempladas no nº 2 do artº 2182º/2 do CC.
J) Preceitua o artº 2182º que o testamento é um acto pessoal, insusceptível de ser feito por meio de representante ou de ficar dependente do arbítrio de outrem, quer pelo que toca à instituição de herdeiros ou a nomeação de legatários, quer pelo que respeita ao objecto da herança ou legado, quer pelo que pertence ao cumprimento ou não cumprimento das suas disposições, excepcionando a repartição da herança ou do legado, quando institua ou nomeie uma generalidade de pessoas.
K) Por outro, da natureza da proposta de doação, em que se impõe a livre revogabilidade, não permitir que seja aposta uma cláusula de irrevogabilidade, a procuração havia igualmente caducado com a morte do mandante, sendo ineficaz a doação [que] com base na mesma foi feita, porquanto era indispensável que houvesse um interesse comum do mandante e do mandatário ou de terceiro, e que tal interesse se integrasse numa relação jurídica vinculativa, o que não é o caso.
L) Pelo próprio conteúdo da procuração, poderes para vender/doar, onde se não alcança o que em concreto eram as instruções do mandante ou a proposta concreta e ainda pelo facto de [que], sendo o Recorrido seu único herdeiro, [este] viria a herdar os bens que se encontrassem na sua esfera patrimonial, e como tal não era necessária a procuração.
M) Face ao teor da procuração, da mesma não resulta qual o negócio causal que estava na sua base, cabendo, assim, aos Recorridos o ónus de alegarem e provarem o seu interesse e a relação subjacente ao mandato.
N) Não o alegando nem provando, a procuração é nula ou ineficaz por inexistir relação subjacente ou interesse comum ao mandante, mandatário e terceiro, nulidade ou ineficácia que, aliás, é de conhecimento oficioso.
O) Sendo, assim, nula a sentença por ter cometido omissão de pronúncia nos termos do disposto no artº 668º/ 1 d) do C.P.C..
P) Além [disso], e para além dos apontados vício de nulidade, caducidade ou ineficácia do próprio mandato, há ainda a ilegitimidade substantiva do acto de doação por o mandante, o falecido Manuel ........................, já não ser, a essa data, titular do direito alienado, visto numa perspectiva do conflito entre dois adquirentes do mesmo transmitente.
Q) Mostrando-se que à data do falecimento do autor da herança os testamentos se encontravam plenamente em vigor e reportando-se o efeito dos testamentos, à data do respectivo óbito (cfr. artos 1317º e 2050º/2 do CC) deu-se, a essa data, a transmissão a favor dos Recorrentes do direito de propriedade dos bens por válido título – os testamentos.
R) Tendo sido transmitidos os bens aos Recorrentes, por válido título, careciam os Recorridos de legitimidade substantiva na doação, e que sendo deles conhecido o óbito como expressamente declaram na escritura, por efeito, tidos como agindo de má-fé.
S) Má-fé tanto mais relevante, pois que como único herdeiro cabia-lhe o dever de administrar a herança, cumprir e respeitar os legados, não lhes sendo permitido, após o óbito declararem desconhecer os testamentos, não lhes sendo facultando o uso do instrumento da procuração cuja ilegitimidade não podiam deixar de conhecer: antes pelo contrário, assistia-lhes o dever e obrigação de respeitar os legados para todos os efeitos válidos, assim respeitando a vontade do testador.
T) Não respeitando, dessa forma, a vontade do testador expressa nos testamentos.
U) A estar, como pretendem os Recorridos, Manuel ........................ no gozo pleno das suas faculdades mentais, nada o impedia de ter pedido ao Notário a revogação dos testamentos e, dessa forma, o Recorrido, por morte daquele, passaria a ser o herdeiro da totalidade da herança.
V) Em causa não está a nulidade do registo, não sendo o Recorrido terceiro para efeitos de registo, mas do próprio acto susceptível de ser registado, falhando a legitimidade substantiva do Recorrido, para adquirir, por à data da transmissão o mandante já não ser titular do direito alienado: elidida está a presunção de o R. em nome de quem a aquisição foi inscrita em primeiro lugar ser titular do direito de propriedade, aliás, não realizada de boa-fé.
W) Cominando o artº 70º/1 e) do Código do Notariado, a nulidade formal do instrumento notarial, se dele não constar a assinatura do outorgante que sabe assinar, sendo de referência obrigatória no acto notarial a sua ignorância ou impossibilidade em assinar (cfr. artº 46º/1 al. m) do CN) e tratando-se de uma nulidade “ad substantiam”, provado que o mesmo sabia assinar, não ditou os termos da procuração e não assinou devido à sua incapacidade cognitiva para o poder fazer.
X) A par dos Recorridos não terem alegado nem provado que o mesmo não assinou por motivo apenas de impossibilidade física, de referir que a testemunha arrolada pelos ora Recorridos, Jorge Manuel Rocheta Cabrita, cassete nº 2, Lado A, 0600 a 1280, no seu depoimento, diz que nunca o viu assinar documento nenhum na sua presença, mas saber que ele estava em condições físicas aparentemente boas para fazer qualquer assinatura, nula é a procuração.
Y) Por se vir nos termos do disposto no artº 690º-A do C.P.C., impugnar a decisão sobre a matéria de facto, entende-se que deve ser dada resposta positiva aos quesitos 2º, 4º e 5º.
Z) Relativamente aos quesitos 2º, 4º e 5º, deve dar-se resposta positiva no sentido de que, à data e momento, Manuel ........................ encontrava-se mentalmente impossibilitado de perceber e entender o acto em causa, por tal resultar do relatório médico e dos depoimentos conjugados das testemunhas João Paulo Madeira Filipe Bota, que se encontra na cassete nº 1, lado A, de 0000 a 0700, da testemunha João Manuel Silvestre dos Santos, cassete 1, lado A, de 0700 a 1250 e cassete nº 1, lado A, de 2250 a 2500, da Srª Carmelo do Carmo Dinis Cordeiro Câmara, cassete nº 3, lado A, de 0000 a 0477, da testemunha Emanuel Augusto ........................, CD nº 1, desde 00:00:01 a 00:14 mn (referência 20080620153522), da testemunha Eleutério João Pedro Rocheta, médico do falecido, CD nº 1, desde 00:00:01 a 00:57:42 mn (referência 20080620155535).
AA) Tais testemunhas, além de merecerem credibilidade, em nada fo[ram] contrariad[as] pelas testemunhas que intervieram na procuração e pela própria funcionária do Notário que lavrou a procuração, ademais que do depoimento da testemunha Carla Alexandre Torrado Viegas, cassete nº 1, lado B, de 1550 a 1910 e da testemunha Maria José Pinto Gago Baião, cassete nº 3, lado A, de 0690 a 0930, apenas decorre que a procuração foi lida, e não que foi explicado o seu conteúdo.
BB) Parte de alguns dos depoimentos mostram-se imperceptíveis e completamente inaudíveis, tendo os Recorrentes como não sendo causa de nulidade por não ser essencial à descoberta da verdade; porém, a não ser esse o entendimento do Tribunal, e que a falha verificada é essencial, deve proceder-se à repetição parcial do julgamento.
CC) Houve, assim, por parte da douta decisão, violação e errada aplicação da lei substantiva e da lei adjectiva, nomeadamente, além dos supra citados, dos artos 265º/2, 945º, 946º, 947º, 956º, 1157º, 799º/1, 487º/2, 1161º, 762º/2, 1170º, 1174º, 226º/2, 2080º/1 d), 2082º, 2265º e 2270º, 1316º, 1317º e 2050º/2 do Cód. Civil, artº 70º/1 e) do Código do Notariado, artos 264º/2, 659º e 660º, 664º do C.P.C., pelo que deve ser dado provimento ao recurso, anulando-se a aliás douta sentença, com todas as consequências legais.»

Contrariamente ao sucedido no anterior recurso, não houve desta vez contra-alegações dos RR..

Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artos 660º, nº 2, e 664º, ex vi do artº 713º, nº 2, do CPC). Saliente-se, ainda, que este Tribunal apenas está obrigado a resolver as questões que sejam submetidas à sua apreciação, e não a apreciar todos os argumentos produzidos nas alegações (e suas conclusões) de recurso, além de que não tem de se pronunciar sobre as questões cuja decisão fique prejudicada, tudo conforme resulta do disposto nos artos 660º, nº 2, e 713º, nº 2, do CPC.

Do teor das alegações da apelante extraem-se as seguintes questões essenciais a discutir (por ordem de precedência):

1) nulidade da sentença por omissão de pronúncia (artº 668º, nº 1, al. d), 1ª parte, do CPC), ao não ser apreciada a questão de alegada nulidade da procuração em causa nos autos, por inexistir relação subjacente ou interesse comum ao mandante, mandatário e terceiro;
2) modificabilidade da matéria de facto, no sentido de serem aditados determinados factos à factualidade assente com base em documentos, e, quanto à prova gravada, aferição da questão prévia da inaudibilidade parcial da gravação da prova e, subsidiariamente, alteração das respostas aos quesitos 2º, 4º e 5º, de modo a serem considerados plenamente «provados»;
3) apreciação das pretensões de nulidade (ou, eventualmente, de caducidade por morte do mandante) da procuração em causa nos autos e da doação outorgada com base nela, à luz da eventual procedência da impugnação da matéria de facto.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO:
A) DE FACTO:

O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, que se passam a reproduzir:

«[A] No dia 17.10.88, no Cartório Notarial de Loulé, Manuel ................................................ “outorgou” o testamento que consta dos autos a fls. 16 a 18, cujo teor aqui se tem por inteiramente reproduzido (dos factos assentes);
[B] No dia 09.01.96, no Cartório Notarial de Loulé, Manuel ........................ de ........................ “outorgou” o testamento que consta dos autos a fls. 20 a 22, cujo teor se dá aqui por inteiramente reproduzido (dos factos assentes);
[C] No dia 10.04.97, no 1º Cartório Notarial de Loulé, foi “formalizada”’ a procuração que consta dos autos a fls. 86 e 87, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido (dos factos assentes);
[D] No dia 19.06.98, na Freguesia de S. Clemente, faleceu Manuel ...................... ........................, deixando como herdeiro legitimário o R Filipe António ........................ ........................ (dos factos assentes);
[E] No dia 24.03.98 foi elaborada a procuração que consta dos autos a fls. 32 a 36, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, nela figurando como um dos “outorgantes” Manuel ..................................... (dos factos assentes);
[F] Com base na procuração referida em E), em 02.11.98, no 1º Cartório Notarial de Loulé, foi realizada a escritura de doação que consta dos autos a fls. 38 a 40, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido, através do qual são doados ao R. os seguintes prédios:
– o prédio urbano, para habitação, de cave esquerda com corredor, cave direita e rés-do-chão, com vários compartimentos (...), inscrito sob o artº 2503 e descrito sob o nº 7373;
– o prédio rústico composto de terra de cultura com árvores, inscrito sob o artº 467 e descrito sob o nº 7372 (dos factos assentes);
[G] Os prédios identificados em F) encontram-se actualmente inscritos (com carácter definitivo) a favor do R. Filipe António ........................ ........................, na Conservatória do Registo Predial de Loulé, através respectivamente das cotas G1 e G2 (dos factos assentes);
[H] Os AA. ocupam os prédios identificados em F), incluindo o respectivo recheio e mobiliário (dos factos assentes);
[I] Em 31.07.97, Manuel ........................ sofreu um acidente vascular cerebral que lhe afectou temporariamente a consciência e ainda os movimentos, sendo que, naquela data, se apresentava confuso e desorientado espácio-temporalmente, o que sucedia também em 20.05.97 (da resposta ao quesito 3º);
[J] Manuel ............................................ não assinou a procuração que consta dos autos a fls. 32 a 36 por não poder fazê-lo (da resposta ao quesito 9º);
[L] Manuel ............................................... sabia assinar o seu nome (aditado pelo Ac. RE de 20/9/2007);
[M] Manuel ........................................... não ditou os termos da procuração referida em E) (aditado pelo Ac. RE de 20/9/2007).»

B) DE DIREITO:

1. Quanto à questão da eventual nulidade da sentença por omissão de pronúncia (artº 668º, nº 1, al. d), 1ª parte, do CPC), comece-se por dizer que os recorrentes mais não fazem do que reproduzir a mesma argumentação que já apresentaram aquando da arguição de idêntica nulidade no primeiro recurso de apelação, a qual foi julgada improcedente no acórdão deste Tribunal de 20/9/2007.

A decisão, nessa parte, não foi objecto de recurso, pelo que a questão ficou definitivamente resolvida – não sendo admissível retomá-la.

Em todo o caso, e tal como então se afirmou, deve sempre recordar-se, a esse propósito, a lição de ALBERTO DOS REIS, segundo a qual «não enferma da nulidade da 1ª parte [da al. d) do nº 1] o acórdão que não se ocupou de todas as considerações feitas pelas partes, por o tribunal as reputar desnecessárias para a decisão do pleito (…). São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam, para sustentar a sua pretensão» (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p. 143). O que os AA. fizeram, no anterior recurso, foi suscitar a nulidade da procuração em causa nos autos, apresentando várias razões – e o tribunal a quo afastou essa nulidade, com argumentação que exclui implicitamente o argumento respigado pelos AA. para sustentar a arguição de nulidade. E, por isso, o Tribunal ad quem entendeu, então, não ocorrer qualquer nulidade por omissão de pronúncia. A mesma justificação procederia agora, se houvesse que tomar nova posição sobre a questão da nulidade de sentença.

Em todo o caso, a questão da nulidade da procuração, nas suas várias vertentes, que também é objecto do presente recurso, sempre se colocará no plano substantivo – e nesse plano terá de ser apreciada, numa perspectiva de procedência ou improcedência da acção, e não do ponto de vista de uma nulidade da sentença. Diríamos, até, que os apelantes confundiram os planos e acabaram por arguir uma nulidade de sentença (instituto de que, aliás, é muito comum fazer-se errado uso nos recursos interpostos nos tribunais portugueses) quando, afinal, se pretendia impugnar a interpretação dos factos e a solução jurídica formuladas pelo tribunal recorrido – o que também fizeram amplamente, noutros trechos das suas alegações.

Em suma: não se atende, por já decidida definitivamente nos autos, a arguição de nulidade da sentença por omissão de pronúncia.

2.
2.1. A questão da modificabilidade da matéria de facto começa por ser colocada na perspectiva de uma pretensão de aditamento de determinados factos à factualidade declarada assente. Pretende-se que sejam inscritas, no conjunto dos factos assentes, menções a: posterioridade da escritura de doação relativamente ao óbito do de cujus; identificação dos poderes conferidos pela procuração de fls. 32 a 36; teor das inscrições registrais constantes da certidão do registo predial de fls. 23 a 29; e teor da habilitação de herdeiros de fls. 76 a 78.

Vejamos cada um dos factos indicados.

Quanto à posterioridade da doação face ao óbito do de cujus, tal circunstância temporal infere-se claramente do simples confronto entre as datas da escritura de doação e do aludido óbito (factos sob as als. D) e F) da factualidade provada).

Quanto aos poderes conferidos pela procuração cuja nulidade se pede na presente acção, constata-se que o tribunal a quo deu esse documento por reproduzido (facto sob a al. E) da factualidade provada), pelo que o seu teor faz, expressamente, parte integrante da matéria de facto – e, logo, nada mais é necessário aditar à factualidade provada.

Quanto às inscrições constantes da mencionada certidão do registo predial, alude-se a parte delas na al. G) da factualidade provada, pelo que, mesmo sem o tribunal a quo ter dito expressamente que dava por reproduzido o seu teor, é óbvio que a força probatória conferida a parte do teor dessa certidão pelo tribunal a quo vale para toda a certidão, como se esta tivesse sido dada por reproduzida – e, logo, nada mais é necessário aditar à factualidade provada para se poder invocar qualquer dos elementos que figuram nessa certidão.

Por fim, e quanto ao teor da escritura de habilitação de herdeiros referente ao óbito de Manuel ........................, e lavrada em 16/3/1999, certificada a fls. 76 a 78, é certo que não se lhe faz menção na matéria de facto, nem mesmo indirectamente (por meio da declaração de mera reprodução): porém, essa escritura – que apenas poderá ter, no máximo, o alcance de significar que houve aceitação da herança pelos habilitados (o que também não é líquido, como sugere CAPELO DE SOUSA, Lições de Direito das Sucessões, vol. I, 2ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1984, p. 16, e vol. II, 1980, pp. 18 e 29) – nada acrescenta à discussão da causa, que se centra na nulidade da procuração e da doação subsequente supra referenciadas, pelo que é irrelevante in casu, não sendo necessária a sua inclusão na matéria de facto.

Podemos, pois, concluir pela improcedência da pretensão de alteração da matéria assente da factualidade provada.

2.2. Quanto à questão prévia da inaudibilidade parcial da gravação da prova, que os recorrentes não chegam a suscitar plenamente (já que deixam ao critério deste Tribunal o juízo sobre a relevância dessa situação), diremos que se procedeu à audição integral das 3 cassetes e 1 CD contendo a gravação da prova produzida em audiência, sem que fosse detectada qualquer inaudibilidade.

Com efeito, foi possível ouvir completamente e sem qualquer falha de percepção todos os depoimentos produzidos – pelo que, se os AA. tiveram alguma dificuldade de audição, tal apenas se poderá dever ao equipamento que utilizaram. Não se reconhece, assim, qualquer situação de inaudibilidade, sendo desatendida a implícita arguição de nulidade do julgamento.

2.3. Passemos então à reapreciação da prova gravada.

Como vimos, os AA. apelantes pretendem que o tribunal a quo respondeu erradamente à matéria dos artigos 2º, 4º e 5º da base instrutória, invocando essencialmente, para sustentar a consequente alteração da decisão de facto, o teor dos depoimentos de 5 testemunhas – concretamente, as testemunhas João Paulo Madeira Filipe Bota, João Manuel Silvestre dos Santos, Carmelo do Carmo Dinis Cordeiro Câmara, Emanuel Augusto ........................ e Eleutério João Pedro Rocheta –, de que cita, no corpo das alegações, certas expressões por eles proferidas, a propósito de referências ao estado de saúde do de cujus nos últimos tempos de vida.

Recorde-se que os artigos 2º, 4º e 5º obtiveram respostas negativas (a resposta ao artigo 5º é substancialmente negativa, porque se limita a dar como provado o que já consta da resposta ao quesito 3º, nada acrescentando assim a esta) – sendo pretensão dos AA. que a esses quesitos sejam agora dadas respostas de «provado».

A redacção desses artigos apresentava o seguinte teor:

– quesito 2º: «Pois à data e momento [Manuel ............................................] encontrava-se física e mentalmente impossibilitado de perceber e entender o acto em causa?»;
– quesito 4º: «E do qual [acidente vascular cerebral], embora com algumas melhoras, não chegou a recuperar a capacidade de entender e querer?»
– quesito 5º: «Por vezes não se compreendendo sequer o que dizia?».

A resposta ao quesito 3º, para que remete a resposta ao quesito 5º foi a seguinte: «Em 31.07.97, Manuel ....................... sofreu um acidente vascular cerebral que lhe afectou temporariamente a consciência e ainda os movimentos, sendo que, naquela data, se apresentava confuso e desorientado espácio-temporalmente, o que sucedia também em 20.05.97».

Na fundamentação das respectivas respostas (despacho de fls. 452-454), explicitou o M.mo Juiz a quo, com algum pormenor, as razões da sua convicção quanto às mesmas. Designadamente, declarou-se o seguinte:

«As respostas positivas basearam-se nos depoimentos das testemunhas João Bota, João Santos, Leonor Figueira, Dulce Valério, José Pinto, Cesaltina Cristina, Albertino Bota, Emanuel ........................, Eleutério Rocheta e Manuel Gonçalves (pessoas que mantiveram uma relação familiar, de amizade ou profissional com o falecido Manuel ........................, tendo convivido com ele ao tempo do AVC e após o mesmo) – 3º e 5º – e Maria José Baião (que testemunhou a outorga da procuração esp. em E), a qual confirmou que a funcionária do Cartório Notarial a leu em voz alta, explicou ao Manuel ........................ o seu conteúdo e que este o entendeu, não tendo aquele assinado por não se encontrar em condições físicas de o fazer) – 9º – complementando o já atestado pela Srª funcionária notarial na mencionada procuração; bem como na análise da documentação clínica enviada pelo Hospital Distrital de Faro.
O respondido negativamente resultou de a prova testemunhal produzida não ter sido suficiente à criação no julgador de uma convicção positiva.
Na verdade, quase todas as testemunhas inquiridas depuseram de forma monocórdica, orientada em face da versão factual apresentada pela parte que as arrolava, havendo contudo, que excepcionar os depoimentos – que se nos afiguraram como muito sérios, isentos e convincentes – das funcionárias notariais; do Sr. Dr. Eleutério Rocheta (médico e amigo do falecido que, porém, não o acompanhou em termos clínicos após o AVC, mas que sublinhou que “ter dificuldade em articular palavras não significa que não se saiba o seu significado”); e do Sr. Dr. Manuel Gonçalves (iI. advogado e amigo de infância do falecido, que relatou uma conversa tida com este pouco tempo antes do seu decesso, no Lar da St.ª C. Misericórdia de Loulé, a qual durou cerca de uma hora e meia e versou diversos assuntos, nomeadamente caça, não se tendo a testemunha apercebido de quaisquer limitações do falecido no tocante ao raciocínio ou ao pensamento, mas apenas do “verbo”), os quais se traduziram num desabono da tese dos AA.»

Ou seja, o tribunal recorrido indicou, suficientemente, os motivos da sua convicção, identificando os elementos considerados relevantes, por referência a documentos e depoimentos. E daí resulta uma perspectiva diferente da sustentada pelos AA., quanto ao sentido a dar aos elementos probatórios.

Uma vez que foram cumpridas as exigências do artigo 690º-A do CPC (indicação concreta dos pontos de facto a alterar e dos meios probatórios relevantes para tal alteração), estão reunidas as condições formais para a reapreciação da matéria de facto.

É neste quadro processual que deve ser equacionada a pretensão dos AA. de reapreciação da prova gravada.

Antes de mais, importará então atender às condicionantes legais da impugnação da matéria de facto.

Desde logo, tenha-se presente o que se sublinhava no preâmbulo do Decreto-Lei nº 39/95, de 15 de Fevereiro: «A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento».

Daqui derivam dois pensamentos essenciais que devem parametrizar esta matéria da apreciação da impugnação da matéria de facto: por um lado, a noção de que a garantia do duplo grau de jurisdição não pode subverter o princípio da livre apreciação da prova; por outro, a ideia de que o tribunal de 2ª instância não deve ir além de um juízo sobre a razoabilidade da convicção probatória da 1ª instância, face aos elementos disponíveis nos autos.

Quanto ao primeiro aspecto, saliente-se o que já dizia o Ac. RE de 3/6/2004 (CJ, XXIX, t. III, p. 249): «(…) o sistema legal, tal como está consagrado, [mesmo] com recurso à gravação sonora dos meios probatórios oralmente produzidos, não assegura a fixação de todos os elementos susceptíveis de condicionar ou influenciar a convicção do julgador perante o qual foram produzidos os depoimentos em causa». Têm-se aqui em mente aqueles «elementos intraduzíveis e subtis», como a «mímica e todo o aspecto exterior do depoente», de que falava LOPES CARDOSO (in BMJ, nº 80, pp. 220-221, citado por ABRANTES GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. II, 4ª ed, Almedina, Coimbra, 2004, p. 247).

Sobre o segundo ponto, pronuncia-se assim o Ac. RC de de 3/10/2000 (CJ, XXV, t. IV, p. 27): «o tribunal da 2ª jurisdição não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova), mas à procura de saber se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os mais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si». Trata-se aqui de «através das regras da ciência, da lógica e da experiência, (…) controlar a razoabilidade daquela convicção [do tribunal de 1ª instância] sobre o julgamento do facto como provado ou não provado», conforme se expressa TEIXEIRA DE SOUSA (in Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., Lex, Lisboa, 1997, p. 348).

Diremos, pois, na linha de outros arestos desta Relação, que a constatação de erro de julgamento no âmbito da matéria de facto impõe que se tenha chegado à conclusão de que a formação da decisão devia ter sido em sentido diverso daquele em que se julgou, como decorrência de «um juízo conclusivo de desconformidade inelutável e objectivamente injustificável entre, de um lado, o sentido em que o julgador se pronunciou sobre a realidade de um facto relevante e, de outro lado, a própria natureza das coisas» (cfr., por todos, Ac. RE de 23/9/2004, Proc. 1027/04-2, in www.dgsi.pt).

Revertendo ao caso dos autos, verifica-se que as respostas sob impugnação foram fundamentadas com referência a depoimentos (e também em documentos de natureza clínica, quanto à resposta ao quesito 5º, enquanto remete para a resposta ao quesito 3º), que mereceram juízos de credibilidade por parte do julgador, conforme se evidencia do teor do despacho de fls. 452-454 – nada havendo, perante os elementos disponíveis, que permita pôr em dúvida ter sido feita pelo M.mo Juiz a quo uma adequada ponderação.

Acresce que, mesmo atentando no registo gravado dos depoimentos produzidos em audiência (em particular dos depoimentos invocados pelos apelantes) – e ainda que se considerem os mesmos na perspectiva da formação de uma nova convicção em 2ª instância –, também é de concluir que os mesmos não consentem a pretendida modificação dos factos, pois deles não se evidencia erro de julgamento, traduzido em desconformidade flagrante entre os elementos probatórios e a decisão.

Sublinhe-se, neste ponto, que, apesar do teor nominal das declarações especialmente invocadas pelos apelantes (as quais poderiam sugerir, fora do contexto – como as apresentam os AA. –, uma factualidade de sentido diverso do que veio a ser consignado na decisão de facto), a verdade é que se lhes contrapõem declarações de outras testemunhas, suficientemente consistentes no sentido inverso. Ou seja, não obstante haver divergências entre depoimentos (ou trechos de depoimentos), toda a matéria de facto provada (e não provada) se contém no quadro das diferentes versões dos factos apresentadas nos depoimentos produzidos (e registados).

Em concreto, atente-se no seguinte:

– por um lado, os depoimentos, especialmente invocados pelos apelantes, das testemunhas João Paulo Madeira Filipe Bota (conhecido do falecido), João Manuel Silvestre dos Santos (que trabalha numa farmácia e que afirma ter-se encarregado de fazer pagamentos de despesas do falecido, a pedido deste), Carmelo do Carmo Dinis Cordeiro Câmara (empregada do Lar onde esteve internado o falecido) e Emanuel Augusto ........................ (filho da A.) coincidem nas afirmações de que, tendo contactado o de cujus após o AVC sofrido em 1997, este teria ficado afectado física e mentalmente e não teria capacidade para entender e querer o conteúdo da procuração impugnada nos autos (que previa a venda ou doação a favor do neto dos bens que deixava em testamento aos AA.): a 1ª dessas testemunhas diz que aquele estava «baldeado» e as demais afirmam que o falecido «não dizia coisa com coisa» ou «dizia coisas sem nexo»;
– porém, todas essas testemunhas não conseguiram concretizar temporalmente essa situação de saúde do falecido, pelo que se fica sem saber se o seu grau de afectação era impeditivo de entender e querer o conteúdo da procuração impugnada nos autos, à data em que esta foi outorgada (sendo certo que o facto sob a al. I) da factualidade provada, já assente, por se referir a momento diverso, também nada esclarece sobre a situação nessa data precisa);
– por outro lado, a testemunha Eleutério João Pedro Rocheta (que foi médico assistente do falecido antes do AVC) nada pôde concretizar quanto ao exacto estado do falecido à data da outorga da procuração, por não o ter acompanhado após aquela ocorrência, pelo que apenas emitiu opiniões sobre o alcance da descrição clínica constante dos documentos enviados pelo Hospital de Faro, mas sempre com reservas quanto ao caso concreto;
- e, em contrapartida, as testemunhas Albertino Filipe Bota (cunhado do falecido), Jorge Manuel Rocheta Cabrita (advogado e marido de sobrinha do falecido), Maria Patrocínia Jesus Abrantes Castro (conhecida do falecido) e Manuel Mendes Gonçalves (advogado e amigo do falecido) convergiram na afirmação de que o de cujus, mesmo depois do AVC e até pouco antes de falecer, ainda se manteve lúcido e capaz de manter conversação, apenas ficando mais lento na fala e nos movimentos («limitado no verbo, mas não no raciocínio», dizia a última dessas testemunhas), pelo que teria capacidade para entender e querer o conteúdo da procuração impugnada nos autos;
– além disso, a testemunha Ana Cristina ........................ Feijão (funcionária notarial que lavrou o acto) relatou os procedimentos que adopta na realização deste tipo de actos para assegurar a garantia de plena capacidade dos outorgantes, sem que se suscitasse dúvida quanto a um incumprimento no caso concreto, sendo certo que a aposição de impressão digital pelo falecido se encontra já justificada pelos factos indicados sob as als. J) e L) da factualidade provada, que não foram impugnados;
– por sua vez, as outras pessoas que intervieram na referida procuração como testemunhas – as depoentes Maria José Pinto Gago Baião e Carla Alexandra Torrado Viegas – também prestaram declarações que não permitem pôr em causa a sua seriedade na percepção da capacidade do falecido para entender e querer o seu acto.

De tudo se extrai uma contradição entre diferentes versões dos factos, sem que seja possível afirmar, com total segurança, a ocorrência, na ocasião da feitura da procuração sob impugnação, de um estado de debilidade psíquica do de cujus impeditivo de este entender e querer o seu conteúdo – o que reverte contra a tese dos AA., atentas as regras do ónus da prova (que lhes impunham a prova dos factos constitutivos do direito invocado – artº 342º, nº 1, do C. Civil).

Ou seja, não se dispõe de quaisquer elementos que contrariem a particular percepção do conjunto da prova produzida que foi colhida directamente pelo tribunal a quo e que permitam desvalorizar os depoimentos em que esse tribunal fundou a sua convicção – e que, no caso concreto, não consentiam respostas afirmativas aos quesitos controvertidos, dada a suficiente credibilidade dos depoimentos que colocaram em dúvida aqueles em que tais respostas se poderiam sustentar, pelo que o funcionamento das regras do ónus da prova sempre imporia as respostas negativas que o tribunal a quo adoptou.

Neste conspecto, são manifestamente razoáveis as respostas do tribunal recorrido aos quesitos em causa.

Diremos, pois, que, do ponto de vista dos elementos testemunhais que sustentam a decisão de facto na parte impugnada, a mesma não pode ser alterada ao abrigo do artº 712º, nº 1, do CPC, na medida em que os autos não fornecem elementos que imponham decisão diversa da proferida.

Sendo assim, mantém-se integralmente a decisão de facto, tal como foi proferida no julgamento efectuado em 1ª instância.

3. Assente a inalterabilidade dos factos apurados em sede de julgamento de 1ª instância, passemos a apreciar a questão nuclear do presente recurso: a de saber se é lícita a outorga de uma escritura de doação já após a morte do doador, com base em procuração irrevogável por aquele emitida, conflituante com deixa testamentária da mesma pessoa a favor de terceiro (relativamente à doação).

Antes de mais, diga-se que a aposição nessa procuração da impressão digital do declarante se encontra explicada pela combinação dos factos constantes das als. J) e L) da factualidade provada: o falecido sabia assinar, mas não o podia fazer (certamente devido à situação descrita na al. I), mas sem que esteja provada a sua incapacidade cognitiva à data da outorga da procuração), devendo interpretar-se nestes termos a expressão constante da parte final da procuração («não assinando o declarante por declarar não saber fazê-lo»), como já foi entendido no anterior acórdão deste Tribunal proferido nos autos (em particular, a fls. 387). E não tem qualquer relevância o facto sob a al. M), já que não é suposto estarem todos os particulares aptos a formular os termos das procurações, que exigem uma linguagem minimamente correcta do ponto de vista técnico-jurídico: importa apenas que correspondam à sua vontade e entendam os termos utilizados. Não se vislumbra, pois, qualquer invalidade formal do documento, à luz das regras notariais, designadamente do artº 70º, nº 1, al. e) (nulidade do acto notarial por falta de assinatura de outorgante que saiba e possa assinar) do Código do Notariado (aprovado pelo Decreto-Lei nº 207/95, de 14/8).

Em seguida, importa averiguar se a procuração em presença se pode considerar irrevogável. Recorde-se que nessa procuração se declarou expressamente que a «procuração é irrevogável nos termos dos artigos 265º e 1170º do Código Civil, a pedido das partes por ser do interesse do mandante e mandatário, e não caduca por morte daquele».

Comece-se por dizer que não basta a menção expressa numa procuração, no sentido da irrevogabilidade, para esta ser efectivamente irrevogável. E diga-se também que procuração e mandato são conceitos distintos, não obstante as suas afinidades e regimes próximos, designadamente quanto à sua caducidade.

Como se diz no Ac. RP de 28/4/2009, «mandato e procuração não coincidem conceptualmente: o mandato é um contrato, a procuração é um acto unilateral; o primeiro impõe a obrigação de celebrar actos jurídicos por conta doutrem; o segundo confere o poder de os celebrar em nome doutrem», mas «os institutos comunicam entre si, já que, nos termos do art° 1178°, n°1, do C. Civil, no mandato com representação, o mandatário recebe poderes para agir em nome do mandante, aplicando-se o disposto nos artos 258° ss. do C. Civil, relativos à representação e nos quais se englobam as normas que disciplinam juridicamente a procuração» (Proc. 2043/05.9TVPRT.P1, in www.dgsi.pt). Essa aproximação leva-nos a considerar a aplicação das normas relativas ao mandato, ainda que não tenha ficado plenamente demonstrado que houve in casu um verdadeiro e próprio mandato, embora a referência ao artº 1170º do C. Civil na própria procuração seja um indício nesse sentido.

Segundo o respectivo regime, a regra é a da caducidade do mandato pela morte do mandante, dado o carácter pessoal da relação de mandato (cfr. artº 1174º, al. a), do C. Civil). Mas afirma-se no artº 1175º que «a morte (…) não faz caducar o mandato, quando este tenha sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro». Na mesma linha, diz o artº 265º, nº 3, do C. Civil que «se a procuração tiver sido conferida também no interesse do procurador ou de terceiro, não pode ser revogada sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa».

É sobre esses preceitos que se constrói o conceito de procuração irrevogável. Constituindo regra a livre revogabilidade do mandato (artº 1170º, nº 1) e da procuração (artº 265º, nº 2) e a ineficácia das convenções de irrevogabilidade (segundo as mesmas normas, no segmento «não obstante convenção em contrário»), o certo é que essa revogabilidade é afastada quando o mandato ou a procuração tenha sido «conferido(a) também no interesse do mandatário (ou procurador) ou de terceiro»: só nessa hipótese (do mandato ou procuração também no interesse do mandatário ou procurador, ou de terceiro) haverá mandato ou procuração irrevogável, sem prejuízo da revogação poder ter lugar com a consequência da constituição de um direito de indemnização (cfr. artº 1172º, al. b), do C. Civil).

Isto permite-nos afirmar, como no Ac. STJ de 3/6/97, que «não é o facto de na declaração de vontade (…) se ler que "o mandante considera esta procuração irrevogável nos termos da Lei por ser passada no interesse da própria mandatária" que a torna irrevogável, havendo que conhecer se concretamente ela foi conferida também no interesse desta» (Proc. 97A140, idem). A esta caracterização se refere JANUÁRIO GOMES, quando declara que a «convenção de irrevogabilidade nada acrescenta ao regime legal, sendo, de per si, inoperante» (Em Tema de Revogação do Mandato Civil, Almedina, Coimbra, 1989, p. 149): ou há interesse comum do mandante e do mandatário ou de terceiro, e há irrevogabilidade, com ou sem convenção expressa; ou não há tal interesse comum, e prevalece a livre revogabilidade, que torna ineficaz qualquer convenção em contrário. Como diz ainda o mencionado Ac. STJ, citando VAZ SERRA, «a irrevogabilidade tem de "resultar da relação jurídica basilar e, em especial, por ter sido conferido no interesse do mandatário (ou do procurador) ou de terceiro"».

Nesta perspectiva, é essencial aferir da existência de interesse do mandatário (ou procurador) ou de terceiro para se poder considerar irrevogável a procuração editada por pessoa entretanto falecida e daí se inferir uma ultractividade da procuração ou a sua validade post mortem.

Na caracterização desse interesse afirma-se que «para se concluir pelo interesse do mandatário ou de terceiro, é forçoso descortinar um direito subjectivo de que um deles seja titular, direito que é exercido, ou por qualquer forma actuado, através do mandato e, mais especificamente, através do cumprimento do acto gestório» (assim, JANUÁRIO GOMES, idem, p. 149). Por sua vez, declara-se no Ac. STJ de 3/6/97, citando anteriores arestos do mais Alto Tribunal, que «para haver mandato de interesse comum não basta que o mandatário ou o terceiro tenham um interesse qualquer, é necessário que esse interesse se integre numa relação jurídica vinculativa, isto é, que o mandante, tendo o mandatário o poder de praticar actos cujos efeitos se produzem na esfera jurídica daquele, queira vincular-se a uma prestação a que o mandatário ou terceiro tenham direito».

Fazendo uso deste critério, crê-se ser óbvia a vantagem para terceiro decorrente da procuração em causa nos autos. Nela surge o referido Manuel ............................................. a declarar «que constitui sua bastante procuradora Libânia ................................ (…), a quem atribui poderes para vender ou doar, outorgando as respectivas escrituras notariais de compra e venda e/ou doação, a favor do seu neto e único herdeiro, Filipe António de ........................ ........................», vários prédios (entre os quais os dois pretendidos pelos AA.). O evidente benefício estabelecido a favor do neto do declarante, aqui terceiro em relação ao autor da procuração e ao procurador, permite configurar o interesse exigido pela lei para conferir irrevogabilidade à respectiva procuração. Consequentemente, deve entender-se que a procuração em causa manteve a sua eficácia para a realização do acto de venda ou doação a que se reporta, mesmo depois da morte do mandante (ou autor da procuração).

Esta eficácia post mortem da procuração traduz-se, afinal – como já se afirmava no supracitado Ac. STJ de 3/6/97 –, em «ficcionar o prolongamento da vida do mandante até ao cumprimento integral da missão atribuída ao mandatário, podendo este, por isso, validamente praticar, em nome do mandante e para além da sua morte, os actos de que fora incumbido». Daqui se infere que não é possível qualificar a venda ou doação posterior à morte do mandante como venda ou doação de bens alheios, ainda que entretanto, por efeito da morte do mandante e da subsequente abertura da sucessão (artº 2031º do C. Civil), e eventual aceitação da herança pelos sucessores (artº 2050º do C. Civil), esses bens tenham passado temporária e aparentemente a integrar o acervo hereditário.

Nada, pois, parece obstar a que, através dessa procuração irrevogável e subsequente doação após a morte do mandante em execução do respectivo mandato, se venham a limitar os efeitos da abertura de testamento e da deixa de legados, como o do caso sub judicio. E não é por essa consequência se poder também alcançar pela figura de revogação do testamento que se obvia a que tal limitação se produza pela emissão de procuração com eficácia post mortem relativamente a bem objecto de legado em testamento.

Com efeito, os regimes legais da procuração e do mandato – e, em particular, as normas de que decorre a eficácia post mortem desse mandato ou procuração – não excluem expressamente da aplicação desses regimes situações que afectem o conjunto do património hereditário, nem há uma qualquer directiva legal que faça prevalecer as regras de direito sucessório sobre as do mandato e da procuração. E a intencionalidade de tal omissão é tanto mais significativa quanto se sabe que, na prática, são muito comuns as procurações concedendo poderes de representação para alienação de bens e que qualquer eficácia post mortem de procurações para alienação de bens sempre afectaria os patrimónios hereditários dos respectivos dominus (autores das procurações).

Sobre os efeitos da morte do mandante ou dominus sobre o mandato ou procuração irrevogáveis, se pronunciam JANUÁRIO GOMES (idem, p. 37), aludindo ao «chamado mandatum post mortem exequendum, entendendo-se por tal o contrato de mandato celebrado em vida do mandante – mandato inter vivos – e que se destina a ter execução a partir da sua morte ou em que é expressamente prevista a irrelevância da morte do mandante para efeitos de extinção do mandato» (segunda hipótese esta que ocorre no caso sub judicio), e também PEDRO LEITÃO PAIS DE VASCONCELOS (A Procuração Irrevogável, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 180 ss.), este a propósito da figura da procuração post mortem (cujos efeitos não divergem, no ponto em apreço, da eficácia post mortem de uma típica procuração naturalmente irrevogáveli.e., de procuração cuja irrevogabilidade resulte da existência de um interesse do procurador ou de terceiro, por contraposição à procuração convencionalmente irrevogável, conforme distinção desse autor, idem, p. 120).

Segundo o primeiro autor, os mandatos post mortem «serão válidos sempre que não contendam com as regras que disciplinam a sucessão contratual ou pactícia» (ibidem), restringindo assim às situações (aliás, excepcionais) de sucessão contratual as hipóteses de ineficácia post mortem de mandato ou procuração irrevogável, com o que acaba por admitir essa eficácia quando esse mandato se confronte, designadamente, com situações de sucessão testamentária (e, logo, unilateral ou não contratual).

O segundo autor é ainda mais explícito, quando equaciona a hipótese em que, munido de uma procuração naturalmente irrevogável, «o procurador, após a morte do dominus originário, procedesse à distribuição de bens e direitos a pessoas diferentes dos herdeiros», em contrário à aplicação das normas sucessórias. Depois de reconhecer que tal consequência «poderia levar à tendência para não admitir a validade da procuração naturalmente irrevogável post mortem», considera em seguida ser errada essa perspectiva, em função do interesse do procurador ou terceiro na procuração. E afirma: «Numa situação destas, mesmo que a outorga da procuração influa na herança, diminuindo-a, nem por isso se pode considerar que a procuração viole as regras sucessórias» (idem, p. 189). Em seguida, concretiza com um exemplo de alienação post mortem, com base em procuração irrevogável, de imóvel integrante da herança e remata: «(…) não se pode considerar que se está a violar as regras do direito sucessório, embora através da procuração se legitime o procurador a celebrar negócios que irão produzir efeitos após a morte do dominus, provocando alterações no património da herança» (idem, p. 190). A única ressalva a este regime que esse autor acaba por estabelecer prende-se com a protecção das quotas legítimas dos herdeiros legitimários.

Refira-se ainda que idêntica solução foi encontrada, quer no citado Ac. STJ de 3/6/97, quer no Ac. RC de 31/5/2005 (Proc. 462/05, idem), em que se confrontavam, semelhantemente, um contrato de compra e venda de determinado bem, celebrado com base em procuração irrevogável (por conferida no interesse do mandatário ou de terceiro) de mandante entretanto falecido, e a aquisição por sucessão desse mesmo bem por diferentes titulares.

Entende-se, assim, não haver fundamento para ser declarada a nulidade, seja da procuração de fls. 32 a 36, seja da escritura de doação de fls. 38-40. Concorda-se, pois, com a decisão sob recurso, a que se adere, ao abrigo do artº 713º, nº 5, do CPC.

Em suma: o tribunal a quo não violou as disposições legais mencionadas nas conclusões das alegações de recurso, pelo que não merece censura o juízo de improcedência da pretensão dos AA. formulado na decisão recorrida.
*


III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a presente apelação, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelos apelantes, sem prejuízo do apoio judiciário parcial que lhes foi concedido (v. fls. 117-118).


Évora, / /


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(Mário António Mendes Serrano)


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(Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes)


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(Jaime Ferdinando de Castro Pestana)