Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
187/10.4GTABF.E2
Relator: ANA BACELAR
Descritores: OMISSÃO DE NOTIFICAÇÃO
INSTRUÇÃO
IRREGULARIDADE PROCESSUAL
RECURSO
DOENÇA MENTAL
EXAME
Data do Acordão: 09/08/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - Não constando a omissão de notificação para se requerer a abertura da fase processual da instrução no artº 119º do C.P.P., que consagra as nulidades insanáveis, nem no artº 120º do C.P.P., que trata das nulidades relativas ou dependentes de arguição, tal omissão constitui uma irregularidade sujeita ao regime previsto no artº 123º, nº 1, do C.P.P..

2 - O recurso para o tribunal superior não constitui o meio processualmente adequado para arguir tal irregularidade, uma vez que não estamos perante invalidade insanável/de conhecimento oficioso, invalidade reportada à sentença, nem invalidade oportunamente suscitada na 1ª instância.

3 - Em processo penal a doença mental relevante não se reduz à existente à data da prática do crime. A que surge depois da prática do crime não pode deixar de se considerar para aferir da possibilidade de o Arguido validamente se representar no decurso da audiência de julgamento, bem como para ajustar a pena que venha a ser imposta e a forma do seu cumprimento.

4 – Assim, o indeferimento do exame às faculdades mentais do Arguido constitui violação do disposto no artigo 340.º do Código de Processo Penal, na vertente da produção de prova indispensável à boa decisão da causa, consubstanciando irregularidade que afeta o valor do ato praticado e dos subsequentes, de conhecimento oficioso – n.º 2 do artigo 123.º do Código de Processo Penal.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação do Évora


I. RELATÓRIO
No processo comum n.º 187/10.4GTABF do Juízo Local Criminal de Albufeira [Juiz 2] da Comarca de Faro, o Ministério Público acusou
(…),
pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigos 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal.

Realizado o julgamento, perante Tribunal Singular, por sentença proferida e deposita em 9 de novembro de 2016, foi decidido:
«i) Condenar o arguido (…) pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 60 (sessenta) dias de multa à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), perfazendo um montante global de € 300,00 (trezentos euros).
ii) Condenar ainda o arguido (…) na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados de qualquer categoria pelo período de 3 (três) meses e 15 (quinze) dias.
iii) Mais se condena o arguido (…) no pagamento das custas do processo, fixando a taxa de justiça em 2 (duas) unidade de conta.»

Na sequência de recurso desta decisão, interposto pelo Arguido, por acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 26 de junho de 2018, foi declarada a nulidade prevenida na alínea c) do artigo 119.º do Código de Processo Penal, que acarretou a invalidade da audiência de julgamento e de todos os atos subsequentes.

Devolvido o processo à 1.ª Instância e aí tendo sido dado cumprimento à decisão acabada de mencionar, foi proferida nova sentença, a 24 de fevereiro de 2020 e cujo depósito ocorreu na mesma data, onde se decidiu:
«(…) condenar o arguido (…) , pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292.º, n.º 1, e 69.º do Código Penal
A) Na pena principal de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de € 5 (cinco euros);
B) Na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor por 6 (seis) meses.
Condena-se ainda o arguido (…) no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (art. 8.º do Regulamento das Custas Processuais, com referência à Tabela III do mesmo diploma).»

Inconformado com tal decisão, o Arguido dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]:
«a) – O despacho recorrido que negou ao arguido a produção dos meios de prova requeridos por extemporânea, violou o disposto nos arts. 283.º e 277.º e nos arts. 20.º e 32.º da CRP, na medida em que tinha que considerar que o arguido só foi validamente notificado quando prestou o TIR em 23 OUT 2019 e foi notificado de todas as demais obrigações legais.
b) – Porém, tais notificações do RAI para contestar e apresentar rol de testemunhas ficaram sem efeito por força do despacho recorrido, em recurso que sobe com os presentes.
c) – Pelo que entende o arguido que foi submetido a julgamento e condenado, sem que até à data tenha sido validamente notificado da acusação e para apresentar o RAI, na medida em que esta notificação não se confunde de todo com as notificações das datas para julgamento e para contestar.
d) – O entendimento de que um arguido pode ser submetido a julgamento, relativamente a uma acusação de que nunca foi validamente notificado para apresentar RAI constitui inequivocamente uma interpretação inconstitucional e violadora dos arts. 20.º e 32.º da CRP, quanto ao disposto nos arts. 283.º e 272.º do CPP.
e) – O arguido nunca foi sequer notificado editalmente da acusação.
f) – Assim, entende o arguido que o seu requerimento dos meios de prova que apresentou não só é tempestivo, como os meios de prova em causa são pertinentes e necessários para o apuramento dos factos, a descoberta da verdade e a aplicação do direito;
g) – O segundo exame pericial admitido pelos arts. 158.º e 159.º do CPP integra-se no regime da contraprova prevista e admissível nos termos do art. 153.º do CE uma vez que as amostras biológicas são guardadas para esse efeito nos termos do art. 16.º da Lei 18/2007 de 17/5.
h) – Já que se o Tribunal não tem razões para duvidar do resultado do 1.º exame pericial, o arguido não tem razões para confiar no mesmo, e assiste-lhe o direito de requerer a contraprova, como contra-análise que a própria lei de fiscalização prevê.
i) – O arguido foi objeto no início do ano de 2019 de um processo de internamento compulsivo como resultado provado e é do conhecimento oficial do Tribunal como resulta do proc. N.º (…) do Juízo Local Criminal da Póvoa de Varzim e por isso foi internado no Centro Psiquiátrico Magalhães Lemos no Porto.
j) – Onde lhe foi diagnosticada “psicose paranoica evolutiva” a qual terá sido desenvolvida pelo choque da morte da sua mãe em abril de 2003 quando ainda tinha 22 anos de idade, segundo a médica psiquiátrica.
k) – Pelo que tal doença terá afetado a sua consciência para efeitos da perceção da disfunção cognitiva relativamente a comportamentos legalmente censuráveis, impondo-se por isso a necessidade da realização de um exame psiquiátrico nos termos do artigo 159.º e 351.º do CPP, com fundamento na indicação daquele processo ao qual o Sr. Juiz a quo tem acesso.
l) – Ao não ordenar os exames o Sr. Juiz a quo violou o disposto nos arts. 151.º, 158.º, 159.º, 340.º e 351.º do CPP e ainda nos arts. 20.º e 32.º da CRP.
m) – Os factos constantes dos n.ºs 3 e 4 da matéria de facto dada como provada têm de ser eliminados por não integrarem qualquer facto, mas tão só conclusões de direito e meros juízos e por isso violarem o disposto na al. A) do n.º 1 do art. 389.º-A do CPP.
n) – No que respeita ao facto n.º 5 devem do mesmo ser eliminadas as referências feitas aos processos relativos aos factos de março de 2008 e OUT 2008, por sobre os mesmos já terem decorrido mais de 10 anos e sobre as respetivas decisões mais de oito anos, pelo que já deveriam até ter sido eliminados do CRC.
o) – Até o n.º 2 do art. 71.º do CP refere que “não releva para a reincidência” se entre a prática tiverem decorrido mais de 5 anos o que é manifesto em relação ao processo da R. P. da China, região de Macau.
p) – O Sr. Juiz a quo desconsiderou que os registos do arguido não contêm quaisquer condenações sejam de que natureza forem quanto a alcoolemia e por isso a desnecessidade de qualquer prevenção especial para efeitos de censura da conduta do arguido ocorrida há cerca de 11 anos.
q) – Na escolha da pena aplicável entre pena de prisão e pena de multa, na sua aplicação concreta quanto à medida da sua fixação não pode deixar de se ponderar sobre a gravidade, a reincidência e as necessidades de prevenção geral e especial e o grau de culpa.
r) – Não pode sob pena de contradição e consequente nulidade referir-se que a infração tem gravidade média e aplicar-se a pena máxima como é o caso da decisão recorrida, punindo-se o arguido não pelo facto criminoso que lhe é imputado mas pelos factos das condenações pelas quais já foi julgado e devidamente censurado.

Termos em que deve o presente recurso ser dado como provado e procedente e em consequência ser a audiência de julgamento declarada nula e sem efeito e ordenando-se a sua repetição, após repetição de todos os atos omitidos desde a prolação da acusação.
Se assim não se entender deve a decisão ser revogada e substituída por outra em que a pena aplicada ao arguido corresponde a 1/3 da moldura penal da multa.
Termos em que assim decidindo farão V. Exas., aliás como sempre, a costumada JUSTIÇA!»

Os recursos foram admitidos.

Respondeu o Ministério Público, junto do Tribunal recorrido, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
«1. Por despacho proferido a 11.02.2020, foi indeferida a realização de exame de uma amostra de sangue recolhida em 2010 e o incidente de alienação mental, ambos requeridos pelo arguido , a 16.01.2020, tendo o Tribunal a quo entendido que o requerimento apresentado era tardio, pois podia ter sido oferecido na contestação, e, além disso, não era indispensável à descoberta da verdade e boa decisão da causa (art. 340.º, n.º 4, al. a), do CPP), porque inexistia qualquer motivo para duvidar do rigor do exame de fls. 12 e não existia nos autos qualquer indício de que, em 2010, o arguido padecia de qualquer doença mental.
2. Por sentença proferida a 24.02.2020, foi condenado, em autoria material e sob a forma consumada, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º, do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de €5,00 (cinco euros), bem como na pena acessória de proibição de conduzir veículo motorizados pelo período de 6 (seis) meses.
3. Inconformado com estas decisões, delas veio o arguido interpor recurso.
4. Quando ao despacho recorrido, o recorrente apresenta os seguintes fundamentos: A) Não se encontrava ainda precludido o prazo para apresentar o requerimento de prova; B) Quanto ao exame de sangue requerido, referiu que tem direito a requerer a contraprova, ao abrigo do disposto no artigo 153.º, do Código da Estrada, não sendo necessário sequer alegar quais os motivos pelos quais duvida do resultado da primeira análise, e, ao negar-lhe tal possibilidade, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 158.º, 159.º, do Código de Processo Penal, e 32.º, n.ºs 1 e 6, da CRP. Quanto ao incidente de alienação mental, explicou que nos autos não consta qualquer indício de que o arguido padecia de doença mental, nem o arguido sequer o alegou, uma vez que apenas foi internado compulsivamente no início do ano de 2019, tendo-lhe sido diagnosticada “psicose paranoica evolutiva”, facto que o próprio desconhecia, sendo que, por não ter confirmado se no ano de 2009 já padecia de tal doença e se a mesma era capaz de afetar a sua consciência e conduta relativamente a atos de natureza criminal, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 351.º, 151.º, 159.º e 340.º todos do Código de Processo Penal, e ainda do artigo 32.º, n.ºs 1 e 6, da CRP.
5. Quanto à sentença recorrida, o recorrente apresenta os seguintes argumentos: A) Os factos dados como provados vertidos sob os n.ºs 3 e 4 consistem em meras conclusões de direito e, como tal, deverão ser eliminadas da matéria de facto, por violarem o disposto no artigo 389.º-A, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal; B) Nenhuma das condenações mencionadas no artigo 5.º dos factos dados como provados tem qualquer relevo para efeitos de reincidência, mas foram relevantes para a fundamentação da medida de pena aplicada, a qual no seu entender é excessiva, porquanto não devia ter sido aplicada uma pena superior a 30 dias de multa. Conclui pedindo que seja declarada a nulidade da audiência de julgamento e que seja dada em efeito, ordenando-se a repetição de todos os atos omitidos desde a prolação da acusação ou, caso assim não se entenda, a revogação da sentença proferida e a sua substituição por outra em que a pena aplicada ao arguido corresponda a 1/3 da moldura da pena de multa prevista para o crime pelo qual foi condenado.
6. Quanto ao despacho recorrido, conforme referido, o recorrente alegou que não tinha decorrido o prazo para apresentação do requerimento de abertura de instrução e, como tal, os meios de prova requeridos não foram apresentados extemporaneamente. Note-se que, nas alegações que apresenta, o recorrente reconhece que foi notificado pessoalmente, a 30.01.2014, da acusação, do despacho que designou a data para a audiência de julgamento, bem como do prazo para apresentar contestação e rol de testemunhas, pelo que dúvidas não existem que não tinha de ser notificado novamente para esse efeito e que o requerimento probatório que apresentou era claramente extemporâneo, conforme decidido pelo Tribunal a quo.
7. No que concerne ao exame de sangue requerido, verifica-se que, no caso em apreço, o arguido efetuou teste de alcoolemia ao ar expirado em aparelho quantitativo, tendo apresentado uma TAS de 2,02g/l. Foi então notificado de que podia requerer contraprova, recorrendo a novo teste por ar expirado ou através de análise sanguínea, o que fez, tendo requerido contraprova através de análise sanguínea, a qual apresentou o resultado de 1,66g/l.
8. Existindo a prova do grau de alcoolização do arguido, resultante do meio legalmente previsto (o exame de pesquisa de álcool no sangue), e tendo sido efetuada contraprova válida (por análise sanguínea), a qual prevalece sobre o resultado do exame inicial, não há razão alguma para afastar a força probatória do exame efetivamente realizado, como bem decidiu o Tribunal a quo.
9. Das alegações do recorrente extrai-se alguma confusão a respeito dos exames efetivamente realizados, porquanto parece entender – ou dar a entender – que apenas foi realizado um exame de prova, através de análise sanguínea, e que o arguido nunca requereu a contraprova, pretendendo fazê-lo decorridos mais de 10 anos após ter sido notificado para esse efeito, ao abrigo do disposto no artigo 153.º, do Código da Estrada, sendo certo que também não o poderia fazer nestes termos.
10. A recolha de amostra de sangue ao arguido, no circunstancialismo dos autos, constituiu um meio de obtenção de prova legal, constituindo o respetivo resultado da pesquisa quantitativa de álcool efetuada nessa amostra um meio de prova válido, que aliás, em momento algum foi colocado em causa pelo recorrente, limitando-se este a requerer “contraprova” ou segunda perícia (10 anos após a realização do primeiro exame perícia) entendendo que não tem de indicar por que motivo duvida do resultado da primeira análise.
11. Tratando-se de exame pericial o resultado obtido no mesmo apenas pode ser colocado em crise por outro meio de prova idêntico, sendo certo que nenhum meio de prova foi apresentado que invalide o relatório de exame toxicológico constante dos autos.
12. No que diz respeito ao requerido “incidente de alienação mental”, dos elementos carreados para os autos, não resultam quaisquer suspeitas de que o arguido padecesse de anomalia psíquica, antes, à data e mesmo após a prática dos factos, sendo certo que, apesar de o seu internamento ter tido lugar no início de 2019, apenas um ano depois informa que foi internado nessa altura e requer a realização de perícia psiquiátrica, sem juntar quaisquer elementos comprovativos dos factos que alega.
13. Não podia o Tribunal a quo, decorridos mais de 10 anos sobre a data dos factos pelos quais o arguido estava a ser julgado, determinar a realização de exame psiquiátrico, quando inexistia qualquer suspeita fundada de que o mesmo pudesse ser portador de anomalia psíquica que o incapacitasse à data dos factos, de avaliar a ilicitude dos atos que praticou e de se determinar de acordo com essa avaliação. Não bastava ao recorrente alegar ter sido sinalizado e orientado para consultas de psiquiatria, cerca de 10 anos após a prática dos factos, necessitando também de invocar circunstâncias concretas reveladoras da sua incapacidade no referido plano de avaliação e determinação, pelo que o Tribunal a quo só podia ter decidido indeferir – como indeferiu - tal pretensão, por ser infundada e não necessária para a descoberta da verdade.
14. No que diz respeito à sentença recorrida, conforme referimos supra, o recorrente alegou que os factos dados como provados nos n.ºs 3 e 4 consistem em meras conclusões de direito e, como tal, deverão ser eliminados da matéria de facto, por violarem o disposto no artigo 389.º-A, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal (presume-se que pretendia referir-se ao artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, tendo em conta que o arguido foi julgado em processo comum). Não prodigalizaremos muitas considerações a respeito deste argumento, porquanto é evidente que os pontos n.ºs 3 e 4 dos factos dados como provados fazem parte integradora os elementos do tipo subjetivo do crime imputado. Têm de constar da acusação pública e, provando-se em sede de audiência de julgamento – como foi o caso - têm de constar na sentença.
15. Quanto às condenações registadas pelo arguido e sua valoração pelo Tribunal, o juízo sobre a pena envolve uma identificação casuística das exigências de prevenção geral e especial e na aferição destas últimas releva necessariamente o comportamento delituoso do condenado. Do que se tratou, no caso concreto, não foi de condenar o arguido como reincidente - conforme alega o recorrente - sem se encontrar acusado como tal, mas de incluir os seus antecedentes criminais no processo de ponderação sobre a pena, como se impunha.
16. À data do julgamento e da condenação nestes autos, o arguido não era primário, pois contava já as condenações constantes do seu CRC e descritas na sentença.
17. Para a determinação da pena o Tribunal a quo teve devidamente em consideração o intervalo de temporal decorrido desde os factos (cfr. sentença recorrida), optando ainda por uma pena de multa, considerando, no entanto, que, atendendo às elevadas necessidades de prevenção geral (geral e especial), tal pena devia ser graduada no patamar mais elevado.
18. Resulta claro que não assiste razão ao recorrente e que o recurso deve ser julgado improcedente, mantendo-se as decisões recorridas.

Termos em que deverá o recurso improceder, confirmando-se integralmente as decisões recorridas, assim fazendo V.ªs Ex.ªs a costumada
JUSTIÇA

Em 8 de janeiro de 2020 foram admitidos outros dois recursos, interpostos pelo Arguido (…) , de cuja motivação conjunta foram extraídas as seguintes conclusões [transcrição]:
«Resulta dos autos que:
a) – Entre 22 de agosto de 2009 e 23 de outubro de 2019 o arguido não foi ouvido em declarações;
b) – Que o arguido só prestou TIR em 23 OUT 2019.
c) – Que na mesma data foi notificado da acusação contra si deduzida em 11 MAR 2011 pelo MP e simultaneamente do Direito de Requerer a Abertura de Instrução e ainda para, se nada requeresse, contestar e juntar meios de prova.
d) – Bem como do despacho que recebeu a acusação e designou data para audiência de julgamento a 14 JAN 2020;
e) – Por despacho ora recorrido de 12 NOV 2019 o Sr. Juiz a quo deu sem efeito a notificação dos factos constantes da al. c) supra, com o fundamento que os prazos para o RAI e para a Contestação e requerer meios de prova já estão ultrapassados, por força da Certidão de 30 JAN 2014 da C.R. para a Républica P. da China – R.A.E. de Macau.
f) – Dessa certidão consta que a C.R. foi nessa data cumprida no E.P.Macau por o arguido aí se encontrar preso desde 24 AGO de 2013 , sendo que foi notificado para:
- comparecer nas datas designadas para julgamento a 10 FEV 2014
- do conteúdo do despacho que recebeu a acusação - do despacho que designou aquelas datas
- para no prazo de 20 dias contestar querendo e apresentar meios de prova;
g) – Face à falta do arguido foi proferido novo despacho a designar como datas para a audiência os dias 29/03/2016 e 6 ABR 2016 o que deu origem à C.R. de 6 OUT 2015.
h) – Face à informação de fls. 363 dos autos, o Sr. Juiz a quo proferiu em 12 MAI 2016 novo despacho a designar novas datas de julgamento em 2 e 9 NOV 2016, justificando que por causa do prazo de prescrição os autos não podiam aguardar e ordenou nova remessa de C.R. e que foi cumprida a 14 SET 2016 conforme certidão junta aos autos.
i) – Em cada uma das C.R. o arguido foi apenas e de novo notificado das novas datas designadas em cada uma das audiências.
j) – Em obediência ao despacho o Tribunal a quo decidiu em 2 NOV 2016 proceder ao julgamento do arguido e condenar o mesmo por sentença de 9 NOV como resulta dos autos, a qual foi revogada por douto acórdão do T.R. ÉVORA que considerou ter ocorrido a nulidade da al. c) do art.º 119 do CPP, por o arguido não estar presente, e o art.º .32 da CRP e o disposto no art.º 61 do CPP exigir a presença do arguido tendo em vista assegurar as garantias de defesa.
k) – Resulta inequívoco que em nenhuma das Cartas Rogatórias, nomeadamente da ordenada na audiência de julgamento de 30 SET 2013, que o arguido foi notificado da acusação, mas nunca para exercer o Direito de Requerer a Abertura de Instrução nos termos das als. a); b); c); g) e h) do nº 1 do art.º 61, 283, 287, 277 e 113 todos do CPP e do art.º 32 da CRP;
l) – Resulta inequívoco da ata da audiência de julgamento de 30 SET 2013 que o Tribunal considerou que o arguido não tinha sido até aí notificado da acusação, nem do despacho que a recebeu e que designou datas para a audiência e da notificação para contestar e apresentar meios de prova (cfr fls. 132) e ata.
m) – O despacho que designou a primeira data de julgamento foi proferido em 20 FEV 2012 cfr fls. 106 e o que recebeu a acusação de 16 SET 2012 cfr fls. 68 ss.
n) – Resulta claro deste despacho que o arguido não prestou TIR e que, tendo em vista apurar o seu paradeiro foi ordenada a colheita de informações a todas as entidades possíveis;
o) – Do que resulta a inequívoca e clara conclusão que entre 11 MARÇO 2011, data da acusação cfr fls 49 a 51 e os despachos de 24 MAI 2011 e 20 FEV 2012 o arguido Não foi notificado da acusação deduzida pelo MP e do direito à apresentação do RAI;
p) – Como nunca mais o foi desde este despacho e a data de 23 OUT 2019 , omissão de notificação essa que integra o regime de nulidade do nº1 do art.º 118 e do art.º 119 ambos do CPP e de violação do art.º 32 da CRP o que expressamente se argui para os devidos efeitos legais.
q) – O despacho que indeferiu a suspensão do prazo para apresentação do RAI face ao apresentado pedido de Apoio e Patrocínio é nulo e de nenhum efeito porque viola o elementar direito do arguido à sua defesa nos termos do art.º 32 da CRP e do art.º 61 e 283 e 287 do CPP, ou seja o de sindicar o despacho de acusação proferido pelo M.P., antes de se submeter a julgamento;
r) – Pelo despacho também ora recorrido de 12 DEZ 2019 o Sr. Juiz a quo indeferiu o requerimento no qual o arguido reclamava a apreciação do instituto da prescrição do procedimento criminal quanto aos factos de 22 AGO 2009, por entender que o arguido foi notificado da acusação em 30 JAN 2014 por força da Carta Rogatória e, em consequência tal ato interrompeu a contagem do prazo;
s) – Como supra se demonstrou os autos padecem da nulidade insanável da omissão da notificação ao arguido da acusação do MP e do direito imprescritível do arguido de verificar e sindicar a legalidade da mesma através da Abertura de Instrução, o que só veio a ocorrer em 23 OUT 2019 e que o Sr. Juiz anulou, pela decisão supra recorrida;
t) – A consequência da nulidade da omissão da notificação mencionada na al. supra, é a da nulidade de todos os atos subsequentes, os quais foram todos proferidos no errado pressuposto que aquela notificação havia ocorrido, o que como supra se demonstrou está provado nos autos, nunca ocorreu;
u) –Assim com a ressalva da notificação de 23 OUT 2019, todas as anteriores ainda que feitas por Cartas Rogatórias nunca deram cumprimento àquela formalidade essencial já que o direito à sindicância pelo Juiz de Instrução é um direito inalienável do arguido que dispõe ou não de fazer uso do seu exercício, mas que não lhe pode ser retirado como foi.
v) – Pelo que entre 22 de AGO 2009 e 23 OUT 2019 decorreram mais de 5 anos de prazo sem que este, em algum momento, tivesse sido interrompido nos termos do art.º 121 do CP.
x) – Já que o único instituto que ocorreu foi o da suspensão a que alude o art.120 do CP na exata medida em que entre 24 AGO 2013 e 23 AGO 2016 ou entre 30 JAN 2014 e 29 JAN 2017, decorreu o prazo máximo de suspensão, a que se refere o nº 2 daquele normativo, pela situação de prisão efetiva em país estrangeiro em que o arguido se encontrou, como resulta provado documentalmente dos autos.
y) – Já que todas as notificações ocorridas pelas Cartas Rogatórias são nulas e de nenhum efeito por de nenhuma delas constar a notificação do direito do arguido de sindicar a acusação deduzida através da Abertura de Instrução, notificação e fase processual essa que precede o recebimento da acusação e a designação da data de julgamento e do direito a apresentar acusação e a apresentar meios de prova.
z) – Pelo que o 2º despacho recorrido violou os art.º 32 da CRP, os arts.º 118, 120, e 121 do CP e os arts.º 61, 113, 277, 283, 287 e 118 e 119 todos do CPP.

Nestes termos, e nos mais de Direito aplicáveis que doutamente serão supridos deve o presente recurso ser recebido e revogadas as decisões recorridas e em consequência reconhecida a nulidade decorrente da omissão de notificação da acusação e do direito do arguido requerer a abertura de instrução para aferir da validade da acusação antes de esta ser recebida e designada data para julgamento, e mais deve em consequência ser declarada a nulidade de todas as notificações feitas pelas cartas rogatórias e dos despachos que as ordenaram, e em consequência ser declarada a prescrição do procedimento criminal nos termos da al. c) nº1 do art.º 118 do CP. Termos em que assim decidindo farão V. Exas., aliás como sempre, acostumada JUSTIÇA!»

Respondeu o Ministério Público, junto do Tribunal recorrido, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
«1.ª foi acusado pela prática de um crime de crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 291.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1 alínea a) do Código Penal.
2.ª Deduzida acusação no despacho de encerramento de inquérito proferido no dia 11-3-2011, fls. 49 a 51, foi a defensora oficiosa de Hugo Valentim notificada de tal despacho e para, querendo, requerer a abertura da instrução, por notificação remetida no dia 18-3-2011, fls. 55.
3.ª O acusado Hugo Valentim não foi notificado para requerer a abertura da instrução e; 4.ª Foi notificado no dia 30-1-2014, fls. 187-189, da acusação e do despacho que designo data para julgamento.
5.ª Apesar de ser essa a prática na tramitação processual, as normas dos artigos 113.º, n.º 10 e n.º 14, 283.º, n.º 5, 277.º, n.º 3, 287.º, 313.º e 315.º, n.º 1 do Código de Processo Penal não determinam que o arguido deva ser notificado da possibilidade de requerer a abertura da instrução.
6.ª Por isso, a omissão da notificação indicada na conclusão 3.ª não constitui nulidade a enquadrar no artigo 119.º ou 120.º do Código de Processo Penal.
7.ª Os factos imputados foram praticados no dia 22 de agosto de 2009.
8.ª O prazo de prescrição de procedimento é de 5 anos nos termos do disposto no artigo 118.º, n.º 1 alínea c) do Código Penal.
9.ª Foi constituído arguido com a dedução da acusação no dia 11-3-2011 e notificado da acusação e do despacho que designou data para julgamento no dia 30 de janeiro de 2014, fls. 49-51 e fls. 187-189.
10.ª No dia 30 de janeiro de 2014 estava preso em estabelecimento prisional da China a cumprir pena de prisão, situação em que se manteve até 5-7-2018 (concedida liberdade condicional), fls. 187-189 e fls. 576.
11.ª Ocorreram as causas de interrupção da prescrição do procedimento previstas no artigo 121.º, n.º 1 alíneas b) e d) do Código Penal, com o efeito previsto no n.º 2 da mesma norma.
12.ª Ocorreram as causas de suspensão da prescrição do procedimento previstas no artigo 120.º, n.º 1 alíneas b) e f), e n.º 2 do Código Penal, que suspenderam o prazo entre 30 de janeiro de 2014 e 5 de julho de 2018, fls. 187-189 e 576.
13.ª Tem aplicação ao caso o previsto no artigo 121.º, n.º 3 do Código Penal.
14.ª O procedimento criminal não está prescrito.

Deve o recurso interposto ser considerado totalmente improcedente.»
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Enviados os autos a este Tribunal da Relação, o Senhor Procurador Geral Adjunto, subscrevendo integralmente a resposta apresentada pelo Ministério Público na 1ª Instância – a primeira a que supra se fez referência -, emitiu parecer no sentido da improcedência dos recursos.

Observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, nada mais se acrescentou.

Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO
De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995[[1]], o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1 do artigo 379.º do mesmo diploma legal.[[2]]

Posto isto, e vistas as conclusões dos recursos, a esta Instância são colocadas as seguintes questões:
- da violação do disposto no artigo 340.º do Código de Processo Penal;
- da eliminação dos pontos 3 e 4 e de parte do que conta do ponto 5 dos factos provados;
- da desadequação, por excesso, da pena imposta;
- da nulidade da decisão judicial que deu sem efeito a notificação feita ao Arguido, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 287.º do Código de Processo Penal – requerer, querendo, a fase processual da instrução;
- da prescrição do procedimento criminal.
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Na sentença recorrida foram considerados como provados os seguintes factos [transcrição]:
«1. No dia 22 de Agosto de 2009, pouco antes das 04h 01m, o arguido (…) conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula (…), na E.N. 395, Vale Paraíso, Ferreiras, nesta comarca de Albufeira.
2. Foi fiscalizado pela GNR e, por isso, foi recolhida amostra sanguínea para exame toxicológico de quantificação, no qual acusou a taxa de álcool no sangue de 1,66 g/l.
3. Deste modo, o arguido conduzia o referido veículo na via pública, após ingerir bebidas alcoólicas, com a referida taxa de álcool no sangue, o que fez de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que não podia conduzir naquelas condições.
4. Mais sabia que tais condutas eram proibidas por Lei Penal.
*
5. O arguido regista as seguintes condenações criminais anteriores:
. Por decisão transitada em julgado em 16/05/2011, proferida no processo nº (…) do Tribunal Judicial da Póvoa de Varzim, o arguido foi condenado pela prática, em 20/03/2008, de um crime de violência doméstica na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na execução por igual período;
. Por decisão transitada em julgado em 09/05/2012, proferida no processo nº (…) do Tribunal Judicial da Póvoa de Varzim, o arguido foi condenado pela prática, em outubro de 2008, de um crime de abuso de confiança fiscal na pena de 170 dias de multa;
. Por decisão proferida no processo nº (…) do Tribunal Judicial de Base de Macau o arguido foi condenado pela prática de um crime de violação, um crime de coação sexual, um crime de ofensa à integridade física, e um crime de gravações e fotografias ilícitas na pena de 5 anos e 6 meses de prisão; Na execução da referida pena, por decisão de 5 de Julho de 2018, foi concedida liberdade condicional ao arguido

Relativamente a factos não provados, consta da sentença que [transcrição]:
«Produzidas as provas, não ficou por provar qualquer facto relevante constante da acusação.»

A convicção do Tribunal recorrido, quanto à matéria de facto, encontra-se fundamentada nos seguintes termos [transcrição]:
Para formação da convicção quanto aos factos o Tribunal baseou-se na apreciação crítica da prova produzida em audiência de julgamento ponderada à luz das regras da experiência comum.
Os meios de prova pesados foram os seguintes:

Perícia
. Relatório de exame toxicológico de fls. 12;

Testemunhas
. (…);
Documentos
. Auto de fls. 3,
. Certificado do registo criminal de fls. 653,
. Acórdão do Tribunal de Segunda Instância da Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China de fls. 577.

Concretizando.
Para formação da convicção quanto aos factos provados o Tribunal baseou-se na valoração da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento (…), militar da GNR que procedeu à fiscalização rodoviária do arguido) e da prova pericial e documental constante dos autos (relatório de exame toxicológico de fls. 12, auto de notícia de fls. 3, e o certificado do registo criminal de fls. 653).
A unanimidade de todos os meios de prova supra elencados convenceu-nos da verdade de todos os factos imputados na acusação.
A testemunha ouvida demonstrou ter ainda memória suficiente dos acontecimentos, mesmo considerando o grande intervalo temporal decorrido desde então; depôs de forma assertiva, o que emprestou fiabilidade à sua descrição do circunstancialismo em que fiscalizou a condução do arguido (e as vicissitudes que contou terem ocorrido durante a fiscalização), e o seu relato foi coerente com a documentação dos autos.
Quanto à taxa de álcool com que o arguido seguia, o Tribunal assentou convicção no relatório de toxicologia de fls. 12, inexistindo quaisquer motivos para duvidar da conclusão pericial aí vertida.
Os factos respeitantes à consciência e vontade do arguido decorrem da articulação da prova onde se estribou o convencimento sobre a demais factualidade respeitante ao dia dos factos com o que são as regras da experiência comum. De acordo com o que é o normal acontecer, quem apresenta uma taxa de álcool no sangue como a indicada no facto 2 fá-lo porque antes ingeriu bebidas alcoólicas —e assim é salvo raríssimas e exóticas exceções, nenhum indício havendo nesse sentido— com pleno conhecimento de que se encontra fora das condições legais para conduzir. Por tal motivo ficámos convencidos ter assim sucedido também com o arguido.
Por fim, os antecedentes criminais do arguido decorrem do teor do CRC de fls. 653 e da decisão judicial estrangeira cuja cópia consta de fls. 577.»
û
Conhecendo.
Na análise das questões que acima se deixaram enunciadas, importa fazer anteceder as considerações de facto sobre as de direito e, no domínio destas últimas, dar prioridade aos aspetos da previsão jurídica sobre aqueles outros que decorrem da sua verificação.
E segundo um critério de lógica e cronologia preclusivas, o conhecimento dos vícios in procedendo deve preceder o dos vícios in judicando.

(i) Da prescrição do procedimento criminal
A prescrição, enquanto causa de extinção da responsabilidade criminal, encontra-se regulada nos artigos 118.º a 126.º do Código Penal – prescrição do procedimento criminal e prescrição das penas e das medidas de segurança.
A prescrição traduz-se na renúncia do Estado ao seu direito de punir, ditada pelo decurso de um certo lapso de tempo que apaga a exigência de justiça e, consequentemente, a necessidade de retribuição penal para a satisfazer.

É hoje aceite a teoria jurídico-material da prescrição, tanto a nível doutrinal como jurisprudencial. Recorde-se o Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de novembro de 1975, onde se considerou que a lei sobre a prescrição é de natureza substantiva.
«Tal natureza determina, no domínio da aplicação da lei no tempo, a sujeição das respetivas normas ao princípio da aplicação retroativa do regime jurídico mais favorável ao agente de uma infração.
O princípio da aplicação do regime mais favorável no tocante às normas sobre prescrição, significa que nenhuma lei sobre prescrição mais gravosa do que a vigente à data da prática dos factos pode ser aplicada, bem como deve ser aplicado sempre, mesmo retroativamente, o regime da prescrição que eventualmente se mostre mais favorável ao agente da infração.
O regime jurídico aplicável a uma qualquer infração penal é constituído por um complexo de normas jurídicas em que se inscrevem, entre outras, normas legais que se referem à qualificação jurídica, à determinação da sanção e seus efeitos, à extinção do procedimento, às causas de justificação, à prescrição do procedimento.
Deste modo, tendo sucedido regimes penais diversos, haverá sempre que ponderar até à decisão que, segundo as possibilidades processuais, possa constituir a decisão final, qual dos regimes sucessivos é mais favorável ao agente.
Mas, estando em causa a prescrição do procedimento criminal, a determinação do regime mais favorável constitui um procedimento metodológico complexo, dependendo da consideração de vários pressupostos, quer diretamente materiais (o prazo de prescrição), como da conjugação do tempo com os atos processuais relevantes e de cujos efeitos depende a contagem do prazo de prescrição.»[[3]]

Considerando as alterações introduzidas no Código Penal desde o ano de 2009, podemos afirmar que a condução de veículo em estado de embriaguez continua a ser crime e que não foi modificada a moldura penal abstrata que lhe corresponde.
O instituto da prescrição do procedimento criminal foi, também, sujeito a alterações desde o ano de 2009, com a introdução de crimes a que corresponde um prazo prescricional de 15 (quinze) anos e com a introdução de novas causas de suspensão.
Este último aspeto torna mais favorável a aplicação do instituto da prescrição com a redação vigente à data da prática dos factos em causa nos presentes autos – sendo certo que a lei [leia-se o instituto jurídico da prescrição] – deve ser aplicada em bloco.

Isto posto,
(i) é de 5 (cinco) anos o prazo de prescrição do procedimento criminal – artigo 118.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal;
(ii) este prazo corre desde o dia em que o facto se tiver consumado – artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal;
(iii) a prescrição do procedimento criminal suspende-se durante o tempo em que o delinquente cumprir no estrangeiro pena ou medida de segurança privativas da liberdade – artigo 120.º, n.º 1, alínea e), do Código Penal;
(iv) a prescrição do procedimento criminal interrompe-se com a notificação do despacho que designa dia para a audiência na ausência do arguido – artigo 121.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal.
Cumpre, ainda, ter presente que depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição e que a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal acrescido de metade.

Com interesse para a decisão a proferir, o processo fornece os seguintes elementos:
a) ocorreram em 22 de agosto de 2009 os factos que levam à imputação ao Arguido de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigos 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal;
b) a acusação formulada pelo Ministério Público surge no processo a 11 de março de 2011 – fls. 49 a 51;
c) no dia 29 de março de 2011, foi o Arguido notificado (i) para comparecer em julgamento e das consequências da sua ausência a essa diligência, (ii) do conteúdo do despacho que recebeu a acusação e da acusação, tendo-lhe sido entregue cópia destas peças processuais, (iii) da possibilidade de contestar e de apresentar testemunhas e do prazo que, para o efeito, dispunha – fls. 117, 118 e 124;
d) notificação idêntica à acabada de referir ocorreu, ainda, em 30 de janeiro de 2014 - fls. 187 a 189;
e) em 30 de janeiro de 2014, o Arguido prestou termo de identidade e residência – fls. 190;
f) entre 22 de agosto de 2013 e 5 de julho de 2018, o Arguido cumpriu pena no Estabelecimento Prisional de Macau – fls. 576 a 583.

É agora tempo de “fazer contas”.
Entre o dia 22 de agosto de 2009 [data da prática dos factos] e o dia 29 de março de 2011 [ocasião em que ocorre a notificação do Arguido, que constitui causa de interrupção da prescrição], decorreu 1 (um) ano 7 (sete) meses e 7 (sete) dias.
No dia 29 de março de 2011, o prazo de prescrição do procedimento criminal, de 5 (cinco) anos, estava longe do seu termo. E nessa mesma ocasião, por força de causa interruptiva, o prazo de prescrição começa a correr de novo.
O que acontece até 22 de agosto de 2013 – durante 2 (dois) anos 4 (quatro) meses e 24 (vinte e quatro) dias -, ocasião em que o Arguido inicia o cumprimento de pena de prisão no estrangeiro e que constitui causa de suspensão da prescrição que se manteve até 5 de julho de 2018 – ou seja, durante 4 (quatro) anos 10 (dez) meses e 13 (treze) dias.
Em 5 de Julho de 2018 retoma-se a contagem do prazo de prescrição. Naturalmente pelo tempo em falta – 2 (dois) anos 7 (sete) meses e 6 (seis) dias.
E chegamos a este resultado considerando que do prazo de prescrição de 5 (cinco) anos haviam já decorrido 2 (dois) anos 4 (quatro) meses e 24 (vinte e quatro) dias.
Pelo que podemos concluir que, com os elementos que os autos até agora fornecem, o prazo de prescrição do procedimento criminal ocorrerá no dia 11 de fevereiro de 2021.

Resta referir a observância da regra contida no n.º 3 do artigo 121.º do Código Penal – a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade.
Atente-se que do que se deixa exposto decorre que desde 22 de agosto de 2009 e até 11 de fevereiro de 2021, ressalvado o tempo em que o Arguido cumpriu pena de prisão em Macau, se contam 6 (seis) anos 7 (sete) meses e 7 (sete) dias.

O prazo de prescrição do procedimento criminal não se encontra ultrapassado.
E o recurso, neste segmento, improcede.

(ii) Da nulidade da decisão judicial que deu sem efeito a notificação feita ao Arguido, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 287.º do Código de Processo Penalrequerer, querendo, a fase processual da instrução
Insurge-se o Arguido contra decisão judicial proferida em 12 de novembro de 2019 que ordenou a reparação da notificação que lhe foi feita, também, para requerer a abertura da instrução e apresentar contestação.

Com interesse para a decisão a proferir, o processo fornece os seguintes elementos:
a) ocorreram em 22 de agosto de 2009 os factos que levam à imputação ao Arguido (…) de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigos 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal;
b) o auto de notícia que deu origem aos presentes autos foi elaborado no dia 29 de março de 2010 – fls. 3 e 4;
c) a acusação formulada pelo Ministério Público surge no processo a 11 de março de 2011 – fls. 49 a 51;
d) no dia 29 de março de 2011, foi o Arguido notificado (i) para comparecer em julgamento e das consequências da sua ausência a essa diligência, (ii) do conteúdo do despacho que recebeu a acusação e da acusação, tendo-lhe sido entregue cópia destas peças processuais, (iii) da possibilidade de contestar e de apresentar testemunhas e do prazo que, para o efeito, dispunha – fls. 117, 118 e 124;
e) notificação idêntica à acabada de referir ocorreu, ainda, em 30 de janeiro de 2014 - fls. 187 a 189;
f) em 30 de janeiro de 2014, o Arguido prestou termo de identidade e residência – fls. 190;
g) em 25 de fevereiro de 2016, o Arguido foi notificado para comparecer a audiência de julgamento e das consequências da ausência a essa diligência, bem como para esclarecer se consente na realização do julgamento na sua ausência – fls. 355;
h) em 29 de março de 2016, a Senhora Advogada que assume nos autos a defesa do Arguido fez juntar requerimento ao processo onde afirma que este não autoriza a realização do julgamento na sua ausência – fls. 359;
i) em 14 de setembro de 2016, foi o Arguido notificado para comparecer a audiência de julgamento e das consequências da ausência a essa diligência – fls. 418;
j) na sequência de julgamento realizado, em 2 de novembro de 2016, sem a presença do Arguido, foi proferida, em 9 de novembro de 2016, a sentença condenatória supra referida;
k) por acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 26 de junho de 2018, foi declarada a nulidade prevenida na alínea c) do artigo 119.º do Código de Processo Penal, que acarretou a invalidade da audiência de julgamento e de todos os atos subsequentes.
l) entre 22 de agosto de 2013 e 5 de julho de 2018, o Arguido cumpriu pena no Estabelecimento Prisional de Macau – fls. 576 a 583.
m) no dia 24 de outubro de 2019, foi o Arguido notificado
- do conteúdo da acusação proferida nos autos e de que dispõe do prazo de 20 (vinte) dias para, querendo, requerer a abertura da instrução;
- da data designada para julgamento e da obrigação de então comparecer em Tribunal e das consequências da sua ausência;
- de que dispõe do prazo de vinte dias para contestar e apresentar rol de testemunhas – fls. 605 e 612;
n) no dia 29 de outubro de 2019, o Arguido em documento que fez juntar ao processo requereu a abertura da instrução – fls. 606;
o) o despacho recorrido tem o seguinte teor [transcrição]:
«Compulsados os autos constato que a fls. 605 se solicitou a notificação do arguido de que, entre o mais, pode requerer a abertura da instrução em 20 dias ou apresentar contestação no mesmo prazo.
Todavia, como resulta patente do processado dos autos, há muito que estão esgotados os prazos para um e outro ato processual. Com efeito, o direito a praticar qualquer destes atos – requerimento de abertura da instrução e contestação da acusação – ficou precludido, por decurso dos respetivos prazos, após a notificação “original” para a audiência de julgamento. Ora, considerando que a nulidade declarada no acórdão do Tribunal da Relação de Évora proferido nos autos invalidou tão-somente a audiência de julgamento (e, por dependência, os atos que se lhe seguiram na 1.ª Instância), não se repristinam os prazos já então esgotados (nem os direitos já então precludido) quando se iniciou o ato anulado.
Motivo pelo qual determino a reparação da notificação em questão, notificando-se o arguido das datas agendadas para a realização da audiência de julgamento

O percurso dos presentes autos evidencia que, após a dedução da acusação, teve o Arguido a possibilidade de contestar e apresentar prova – alíneas c), d) e e).
Inequívoco é, ainda, que o Arguido teve conhecimento da acusação contra si deduzida, tendo-lhe sido entregue cópia da mesma – alíneas d) e e).
O Arguido não contestou nem arrolou qualquer meio de prova. E conformou-se com o desenrolar do processo, limitando-se a nele dissentir do julgamento na sua ausência.
A tramitação do processo, nesta parte, não merece atenção nem reparo.

Todavia, da tramitação do processo que se deixou descrita resulta, ainda, que até 24 de outubro de 2019, ao Arguido não foi comunicada, através de notificação para o efeito, a possibilidade de requerer a abertura da instrução.
Repare-se que a as notificações efetuadas ao Arguido surgem após a remessa do processo para a fase de julgamento.
Ao que acresce ter sido dada sem efeito pelo despacho recorrido a notificação realizada no dia 24 de outubro de 2019 para o Arguido, querendo e no prazo de 20 (vinte) dias, requerer a abertura da instrução.
Estamos, assim, perante a omissão de ato processual que a lei consagra no n.º 1 do artigo 287.º do Código de Processo Penal.
Como refere o Professor Cavaleiro de Ferreira [[4]], «… a apreciação do processo, em razão do seu fim, desdenha do que para esse fim foi acidental ou desnecessário, embora em si mesmo ilegal
A imperfeição do ato processual, por via da não observância da norma ou normas que regulam o seu processamento, pode assumir formas diversas consoante a gravidade do vício que lhe subjaz, desde a mera irregularidade até à inexistência.
Entre estes dois extremos, encontram-se os vícios que dão lugar à nulidade.
Esta, por sua vez, subdivide-se em nulidade insanável e nulidade dependente de arguição.
O nosso Código de Processo Penal adotou um sistema de nulidades taxativas.
Princípio que se encontra consagrado, de forma inequívoca no artigo 118º do referido diploma legal e que é complementado por uma rigorosa delimitação geral e especial das causas de nulidade, sejam elas insanáveis ou dependentes de arguição.
E as irregularidades são tratadas, também na lei processual penal, como uma subespécie das nulidades, fazendo-lhes corresponder um vício de menor gravidade e submetendo-as a um regime de arguição limitada.
Mas o “retrato” nítido das irregularidades apenas se consegue por contraposição com o regime das nulidades propriamente ditas, sendo tendencialmente correto afirmar que constitui irregularidade aquele defeito que não é causa de nulidade, e dizemos “tendencialmente” porque o legislador, associando às irregularidades os defeitos que não são causa de nulidade, acaba por lhes atribuir – contra o que seria de esperar – efeitos invalidantes próprios das nulidades [algumas irregularidades determinam a invalidade do ato a que se referem e dos termos subsequentes que aqueles possam afetar, acabando por produzir os mesmos efeitos das nulidades].
Por outro lado, em matéria de irregularidades consagrou-se uma “válvula de segurança”, no n.º 2 do artigo 123.º do Código de Processo Penal, quando se permite ordenar oficiosamente a reparação daquelas que possam afetar o valor do ato praticado.
Dito de outra forma, quando na génese da irregularidade está uma omissão, pode ordenar-se a reparação oficiosa desse vício quando o ato omitido, podendo ainda ser praticado, afete o valor dos atos subsequentes.

A omissão de notificação para se requerer a abertura da fase processual da instrução não consta da previsão do artigo 119.º do Código de Processo Penal, que consagra as nulidades insanáveis.
Atente-se que «ao fulminar, na alínea d) do art.º 119º do CPP, com a sanção de nulidade insanável, a “falta de instrução quando ela seja obrigatória”, quer a lei reportar-se unicamente às hipóteses em que tal fase não foi aberta apesar de requerida por quem tinha legitimidade e no prazo legal, e não à mera insuficiência ou a algum desvio processual nos formalismos previstos para a instrução (…).»[[5]]
A omissão de notificação para se requerer a abertura da fase processual da instrução também não se encontra entre as diversas situações prevenidas no artigo 120.º do Código de Processo Penal, que trata das nulidades relativas ou dependentes de arguição.

Constitui, por isso, irregularidade sujeita ao regime previsto no artigo 123.º do Código de Processo Penal. A arguir nos três dias seguintes a contar daquele em que o interessado tiver sido notificado para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado.
Ora, após a notificação feita ao Arguido no dia 29 de março de 2011 – supra referida na alínea d) – não foi invocada a invalidade decorrente da falta de notificação para se requerer a abertura da instrução.

O que impõe se conclua que tal invalidade ficou sanada.
Impõe-se, ainda, deixar expresso que tendo a fase processual da instrução natureza facultativa e comportando o processo, necessariamente, a realização da audiência de julgamento – momento, obrigatório de comprovação judicial de uma acusação, onde confluem todos os elementos probatórios relevantes, onde todas as provas têm de se produzir e examinar e onde todos os argumentos devem ser apresentados, para que o Tribunal possa alcançar a verdade histórica e decidir justamente a causa – a invalidade assinalada não tem aptidão para afetar o valor dos atos posteriormente praticados no processo.

Por fim, uma nota.
As irregularidades e as nulidades dependentes de arguição têm de ser suscitadas perante o Tribunal de 1ª instância. E é a decisão judicial que delas conhecer que pode ser objeto de recurso para o tribunal superior.

Aqui chegados e em jeito de síntese, pode dizer-se que o recurso para o Tribunal Superior não constitui o meio processualmente adequado para arguir a irregularidade decorrente da omissão da notificação para se requerer a abertura da instrução, uma vez que não estamos perante invalidade insanável/de conhecimento oficioso – artigos 119.º e 120.º, n.º 1 do Código de Processo Penal -, invalidade reportada à sentença – artigo 379.º, n.º 2 do Código de Processo Penal - nem invalidade oportunamente suscitada na 1.ª Instância.

Não pode, pois, o Arguido vir agora arguir semelhante invalidade, que não impugnou na altura própria e sobre a qual não há, consequentemente, qualquer decisão da 1ª instância.
Pelo que o recurso, neste segmento, também não procede.

c) Da violação do disposto no artigo 340.º do Código de Processo Penal
Entende o Recorrente ser tempestivo e pertinente o seu requerimento para produção de prova, apresentado no decurso da audiência de julgamento – sessão realizada em 11 de fevereiro de 2020.

Com interesse para a decisão a proferir, o processo fornece, para além dos que já se enunciaram, os seguintes elementos:
a) em 27 de março de 2019 a Senhora Advogada que assume a defesa do Arguido nestes autos fez juntar declaração emitida pelo Hospital Magalhães Lemos, E.P.E., datada de 4 de março de 2019, onde conta que o Arguido aí se encontra internado desde o dia 1 de março de 2019
b) em requerimento que fez juntar ao processo, em 16 de janeiro de 2020, diz o Arguido que foi sujeito a internamento compulsivo no âmbito de processo n.º 325/19.1T8VCD e, a pretexto de meios de prova [transcrição]:
«
O arguido por ser asmático não procedeu ao exame de sopro, tendo de imediato sido conduzido para exame de sangue.
Foram feitas 2 recolhas, uma para exame imediato e outra para contra-análise.
Como o arguido foi até agora impedido de requerer abertura de instrução, vem agora requerer se proceda à prova do exame da 2ª amostra recolhida para efeitos de contra-análise ou contraprova.
Como supra se referiu o arguido foi sujeito a internamento compulsivo, por padecer de psicose paranoica evolutiva.
10º
A qual por indicação médica já existe há mais de 10 anos.
11º
O que a ser verdade retira imputabilidade ao arguido, à data da apontada infração.
12º
Pelo que requer o incidente de alienação mental.
Com este requerimento, o Arguido fez juntar ao processo
»
c) no decurso da sessão da audiência de julgamento que teve lugar no dia 11 de fevereiro de 2020, foi proferido o seguinte despacho [transcrição]:
«A defesa requereu:
. a realização de exame de uma amostra de sangue recolhida em 2010;
. incidente de alienação mental.
Lê-se no art. 340.º, n.º 4, al. a) do Código de Processo Penal que os requerimentos de prova são indeferidos se for notório que as provas requeridas já podiam ter sido juntas ou arroladas com a acusação ou a contestação, exceto se o tribunal entender que são indispensáveis à descoberta da verdade ou à boa decisão da causa. Nos termos das alíneas seguintes do mesmo normativo, os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que:
b) As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas;
c) O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou
d) O requerimento tem finalidade meramente dilatória.
Ante o objeto fixado à causa na acusação, ambos os meios de prova em questão (presume-se que o segundo ponto supra referido se reporta à realização de exame pericial psiquiátrico) podiam ter sido oferecidos na contestação. Uma primeira conclusão, o requerimento de prova é tardio.
Assim sendo, o requerido só pode ter deferimento caso se considere a sua análise indispensável à descoberta da verdade e boa decisão da causa (art. 340.º, n.º 4. Al. a) do CPP).
O que não é o caso, tanto porque inexiste qualquer motivo para duvidar do rigor do exame de fls. 12, como porque não há nos autos qualquer indício de que, em 2010, o arguido padecia de qualquer doença mental.
Motivos pelos quais, por não serem meios de prova indispensáveis à descoberta da verdade, se indefere o requerido

Acolhemos a opinião do Tribunal de 1.ª Instância a propósito do requerimento formulado pelo ora Recorrente para a realização de novo exame ao seu sangue recolhido nos autos.
Atente-se que a formulação do requerimento não foi determinada por qualquer suspeita relativamente à qualidade da contraprova anteriormente realizada em meio hospitalar e a pedido do Arguido. O Arguido formula este requerimento por ter sido «até agora impedido de requerer abertura de instrução».
Trata-se de razão não aceitável para a realização do exame pretendido, que raia a inutilidade e convence de finalidade meramente dilatória.

Não acolhemos a opinião do Tribunal de 1.ª Instância a propósito do requerimento para exame às suas faculdades mentais.
Porque em processo penal a doença mental relevante não se reduz à existente à data da prática do crime.
A que surge depois da prática do crime não pode deixar de se considerar para aferir da possibilidade de o Arguido validamente se representar no decurso da audiência de julgamento, bem como para ajustar a pena que venha a ser imposta e a forma do seu cumprimento.
Porque nos encontramos na fase processual do julgamento, uma eventual doença do foro mental que acometa o Arguido, de forma incapacitante, não pode deixar de ser averiguada para determinar a sua capacidade judiciária – a capacidade para estar em juízo e, não a tendo, serem adotadas as medidas processuais adequadas.[[6]]
Neste contexto, o indeferimento do exame às faculdades mentais do Arguido constitui violação do disposto no artigo 340.º do Código de Processo Penal, na vertente da produção de prova indispensável à boa decisão da causa.

Damos aqui por reproduzido o que acima se deixou dito a propósito das invalidades processuais.
A omissão de diligência probatória necessária à boa decisão da causa – visando aferir da capacidade judiciária do Arguido em fase de julgamento – não integra a nulidade prevenida na alínea d) do n.º 2 do artigo 120.º do Código de Processo Penal.
Constitui, antes, irregularidade que afeta o valor do ato praticado e dos subsequentes, de conhecimento oficioso – n.º 2 do artigo 123.º do Código de Processo Penal.
Irregularidade que se declara.
E que afeta a apreciação das restantes questões suscitadas no recurso interposto da decisão final, razão pela qual se torna inútil prosseguir no seu conhecimento.

A terminar, uma nota.
Que se exara no âmbito do estrito propósito de proporcionar a melhor aplicação do direito e de evitar a eternização processual.
A sentença recorrida não contém factos, entre os provados, de onde resultem as condições de vida do Arguido.
Temos como certo que na ajustada aplicação do direito penal tem particular importância o princípio da verdade material, que impõe ao Julgador o conhecimento amplo dos factos que importam à decisão da causa.
Regra que vale não só no domínio da indagação dos factos constitutivos do crime, mas também na determinação da pena que lhe seja aplicável.

Apurada a prática de um crime, impõe-se que o Julgador determine a moldura penal abstrata que lhe corresponde.
De seguida, tem que escolher a pena a aplicar – se ao crime cometido forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa ou pena não privativa de liberdade.
Após o que se inicia o momento da determinação da medida concreta da pena.
E fixada a pena, pode ainda ter de proceder à escolha da espécie da pena a cumprir.
É o que resulta do preceituado nos artigos 70.º, 71.º, 43.º, 44.º, 45.º, 46.º, 48.º e 50.º do Código Penal.
E o critério orientador de semelhante atividade encontra-se no disposto no artigo 40.º do Código Penal:
«1 - A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2 - Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa

Ora, no domínio da determinação da pena, são indispensáveis “informações” relativas ao agente do crime – os factos reveladores da sua personalidade, das suas condições pessoais e da sua situação económica, bem como aqueles que caracterizem a sua conduta anterior e posterior ao crime.
E é com base em tais elementos, que o Tribunal fica também habilitado a decidir a pena que o autor do crime deve cumprir.

Nas situações em o Arguido não comparece à audiência de julgamento ou em que, comparecendo a tal diligência, se remete ao silêncio e não arrola prova, deve o Julgador diligenciar no sentido de obter os elementos indispensáveis à caracterização da sua personalidade e do seu carácter, bem como à determinação das suas condições pessoais e conduta anterior e posterior à prática do crime.
Nas situações como a acima descrita, um dos meios comuns de obtenção de tal informação consiste na elaboração de relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social – cfr. artigo 370.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

Atente-se que quando o Tribunal de 1.ª Instância não cuida de providenciar pela obtenção de alguns dos mencionados elementos, não resta senão concluir pela omissão de elementos essenciais à decisão da causa.
E ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, prevenido na alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.

III. DECISÃO
Em face do exposto e concluindo, decide-se invalidar a sentença recorrida e ordenar a realização das diligências necessária a determinar a situação de saúde mental do Arguido , com vista a aferir a sua capacidade judiciária.

Sem tributação.
û
Évora, 2020 setembro 8
(certificando-se que o acórdão foi elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelos seus signatários)


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(Ana Luísa Teixeira Neves Bacelar Cruz)


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(Renato Amorim Damas Barroso)

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[1] ] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A.
[2] ] Neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em www.dgsi.pt [que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria].
[3] ] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-11-2008, preferido no processo n.º 08P2868 e acessível em www.dgsi.pt/jstj
[4] ] Lições de Processo Penal, Volume I, página 269.
[5] ] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10 de outubro de 2012, proferido no processo 12905/09.9TDPRT.P1 e acessível in www.dgsi.pt.
[6] ] Crf. Pedro Soares Albergaria, in “Anomalia Psíquica E Capacidade Do Arguido Para Estar em Juízo” – Revista Julgar, n.º 1 – 2007.