Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1777/15.4T8LLE.E1
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 11/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Não existe obrigação de indemnizar sem a imputação ao agente de um acto ou omissão ilícitos, recaindo sobre a Autora o ónus da prova respectiva.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1777/15.4T8LLE.E1
Comarca de Faro
Juízo Local Cível de Loulé – Juiz 2

I. Relatório
(…), casada, doméstica, com domicílio postal no sítio da (…), caixa postal (…), em Almancil, instaurou acção declarativa de condenação, a seguir a forma única do processo comum, contra “Café Snack Bar (…) – O Mundo (…), Unipessoal, Lda.”, com sede no (…), em Loulé, e “(…) Seguros, S. A.”, com sede na Avenida (…), n.º 6, 11.º, 1069-001 Lisboa, pedindo a condenação das demandadas no pagamento da quantia de € 11.681,71 (onze mil, seiscentos e oitenta e um euros e setenta e um cêntimos), a título de indemnização por danos patrimoniais e € 12.300,00 (doze mil e trezentos euros) a título de indemnização por danos não patrimoniais, bem como quantia a apurar em liquidação de sentença relativa a danos futuros.
Para tanto alegou, em síntese útil, ter sofrido uma queda no dia 25 de Agosto de 2014, a qual ocorreu no estabelecimento de restaurante explorado pela primeira Ré, tendo ficado a dever-se à circunstância do local não cumprir com as regras de segurança impostas por lei. Em consequência da queda sofreu fractura do úmero, o que determinou a sua sujeição a procedimentos cirúrgicos e originou diversos gastos, para além de ter ficado portadora de incapacidade, danos de natureza patrimonial e não patrimonial por cujo ressarcimento são responsáveis as RR, uma vez que a sociedade 1.ª Ré havia transferido para a demandada seguradora a responsabilidade civil por eventuais danos causados a terceiros no exercício da actividade de exploração do mencionado estabelecimento comercial.
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Regularmente citadas, contestaram ambas as RR:
A demandada “O Mundo (…), Unipessoal, Lda.” defendeu-se por excepção, arguindo a sua ilegitimidade para a causa, uma vez que transferiu para a demandada seguradora a responsabilidade civil emergente dos danos causados a terceiros na exploração do estabelecimento de snack-bar, contendo-se o pedido formulado na cobertura contratada. Em sede de impugnação negou que o acidente ocorrido tivesse tido a sua causa em algum acto ou omissão que lhe possa ser imputada, mais impugnando, por desconhecidos, os danos alegados.
Também a Ré (…) Seguros apresentou contestação, na qual confirmou a existência do contrato de seguro em vigor à data do sinistro sofrido pela autora, recusando todavia qualquer responsabilidade da sua segurada, atendendo à versão do acidente que lhe foi narrada pela própria sinistrada, concluindo pela sua absolvição.
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Teve lugar a audiência prévia e nela foi proferido despacho saneador, no qual foi julgada improcedente a excepção de ilegitimidade passiva invocada pela 1.ª ré, prosseguindo os autos com identificação do objecto do litígio e selecção dos temas da prova, sem reclamação das partes.
Realizou-se audiência de discussão e julgamento em cujo termo foi proferida douta sentença que decretou a improcedência da acção, com a consequente absolvição das RR do pedido.

Inconformada, apelou a autora e, tendo desenvolvido nas alegações apresentadas as razões da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:
“I A Recorrente entende que o douto Tribunal a quo decidiu de forma incorrecta tendo em conta a factualidade provada nos presentes autos relativamente à queda da Autora, bem como incorreu num erro na apreciação da prova, invertendo o ónus da mesma.
II Bem como entende a Recorrente que o Tribunal a quo considerou como factos principais e conclusivos para a decisão da causa, factos de somenos importância, baseando a sua decisão nesses mesmos factos.
III Desconsiderando o Tribunal a quo que uma cidadã idosa caiu num degrau de um estabelecimento aberto ao público, que não reunia as condições de segurança necessárias na zona da casa de banho e cuja responsabilidade civil se encontrava devidamente segurada.
IV Considerando o Tribunal a quo de forma errónea apenas a suposta forma como a queda se deu, não dando a devida atenção aos demais factos envolventes no presente processo.
V A Recorrente em consequência da queda teve graves lesões física no úmero, o que nos dias de hoje ainda impede a Recorrente de prover aos seus cuidados básicos, tal como vestir-se, alimentar-se ou proceder à sua higiene sem a ajuda de terceiros.
VI Resulta meredianamente claro que se encontram reunidos todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual e como consequência ser o pedido efectuado pela Recorrente em primeira instância considerado procedente por provado e assim ser revogada e substituída a decisão da primeira instância.
VII Resulta à saciedade que a causa de pedir da Recorrente resumia-se única e exclusivamente à queda e não ao motivo da mesma.
VIII O motivo da queda, nomeadamente o pisar de um caroço ou de uma pedrinha uma redundância.
IX Redundância essa aproveitada pelos Recorridos, principalmente pela Recorrida “Liberty Seguros, S.A.”.
X Como é usual e do conhecimento do senso comum, bem como da experiência do foro, as entidades seguradoras tentam sempre usar de todos os meios e argumentos para se eximirem à sua responsabilidade.
XI No presente processo os Recorridos conseguiram através da sua argumentação inverter injustificadamente o ónus da prova, bem como a douta decisão do Tribunal a quo.
XII A Recorrente até poderia não ter tropeçado numa pedra ou num caroço e o que sentiu debaixo do seu sapato ter sido uma pequena saliência do azulejo.
XIII Ou, quando o dono do estabelecimento explorado pelo Recorrido “Café Snack Bar – O Mundo (…), Unipessoal, Lda.” foi socorrer a Recorrente ter reparado no caroço ou na pedrinha e ter removido a mesma, uma vez que a Recorrente com a queda e consequentes lesões não teve a presença de espírito para verificar no que tinha efectivamente tropeçado.
XIV O que é certo e dado como provado é que existiu uma queda por parte da Recorrente.
XV Queda essa num local que não reunia as condições mínimas de segurança tal como supra exposto.
XVI Condições de segurança que a existir poderiam ter evitado a queda da Recorrente.
XVII Cabendo aos Recorridos provar que mesmo que as condições de segurança estivessem reunidas, a Recorrente teria caído na mesma.
XVIII Prova essa que os Recorridos não lograram obter no âmbito dos presentes autos.
XIX Com a queda num local onde não existiam as condições mínimas de segurança a Recorrente teve as lesões dadas como provadas em primeira instância.
XX Pelo que devem os pedidos efectuados na petição inicial serem considerados procedentes por provados e em consequência serem os Recorridos condenados nos mesmos, revogando-se e substituindo-se assim a decisão do Tribunal a quo.
Com tais fundamentos pretende que na procedência do recurso seja revogada a sentença recorrida e as RR condenadas no pedido formulado.
Contra alegou a ré (…) Seguros, SA, pugnando pela manutenção da decisão proferida.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, a única questão suscitada no recurso pela apelante vincula a indagar se se encontram reunidos os pressupostos da responsabilidade civil extra contratual geradora da obrigação de indemnizar, conforme defende, tendo o tribunal da 1.ª instância incorrido em erro de direito no que concerne à repartição do ónus da prova.
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Questão prévia:
Antes de mais, cumpre precisar que pese embora os termos equívocos em que se encontra formulada a conclusão 1.ª, nela se aludindo a erro na apreciação da prova, em lado algum a recorrente impugnou a decisão proferida no que respeita à matéria de facto, que aceita e entende bastante para sustentar a pretensão indemnizatória que formulou em juízo. Conforme resulta claro do teor das alegações, a recorrente entende que de acordo com o critério legal de repartição do ónus da prova, a si competia apenas e só provar a queda, recaindo sobre as RR o encargo de demonstrar que, ainda que tivessem tomado todas as medidas preventivas, aquela teria ocorrido do mesmo modo. De tal encargo, em seu entender, não se teriam as demandadas desincumbido, pelo que deveriam ter sido condenadas, o que consubstanciaria o tal erro de “inversão do ónus da prova” que imputa ao tribunal.
Assim precisados os termos da discordância da apelante, resulta evidente que o seu inconformismo com o decidido não passa pela impugnação da factualidade apurada, dirigindo-se antes à interpretação que pela 1.ª instância foi feita das normas jurídicas tidas por aplicáveis ao caso, o que configura erro de direito e não de facto.

Deste modo, não tendo sido impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto e inexistindo razões para proceder à sua modificação oficiosa, os factos a considerar são os seguintes, tal como nos chegam da 1.ª instância:
1. A ora Autora tem nacionalidade portuguesa, tendo emigrado para o Canadá, onde habitualmente reside.
2. Tem 69 anos de idade e é doméstica.
3. A Autora possui casa de férias em Portugal, sita no sítio da (…), em Almancil, onde se desloca todos os anos.
4. Em 25 de Agosto de 2014 a Autora viajou para Portugal, onde se encontrava no dia 28 de Agosto de 2014.
5. Pelas 19 horas daquele dia 28 de Agosto de 2014 a Autora, na companhia do seu marido, (…), deslocou-se ao estabelecimento comercial de restauração e bebidas denominado “O Mundo (…)”, sito no (…), em Loulé, explorado pela primeira Ré.
6. No decurso da presença no referido estabelecimento a Autora deslocou-se a uma das casas de banho existentes no referido estabelecimento.
7. No acesso à referida casa de banho existe um degrau.
8. Nesse local não existe corrimão, outras protecções contra quedas, faixas ou fitas antiderrapantes.
9. Depois de utilizar a referida casa de banho a Autora, ao sair, desequilibrou-se e caiu, embatendo com o ombro direito na parede que se encontra em frente.
10. Logo após a Autora começou a sentir fortes dores no braço e ombro direitos, pelo que foi conduzida ao Centro de Saúde de Loulé por uma ambulância do INEM e posteriormente reencaminhada para o Hospital Público de Faro, onde entrou pelas 22 horas e 45 minutos, permanecendo ali toda a noite.
11. Após observação médica e submissão a exames médicos, foi diagnosticado que a Autora sofrera uma fractura – luxação proximal do úmero direito, (três partes de Neer), com indicação cirúrgica, programada para o dia 9 de Setembro de 2014 e foi-lhe concedida alta em 31 de Agosto de 2014.
12. Em 1 de Setembro de 2014 a Autora foi submetida a operação cirúrgica denominada astroplastia parcial cefálica do úmero direito com prótese De Puy, Global FX cimentada, no Hospital Particular do Algarve, e teve alta em 4 de Setembro de 2014 com indicação de regressar a consulta em 7 de Setembro de 2014.
13. Na sequência da cirurgia referida em 12. foi proposta recuperação funcional progressiva durante um período previsível de seis semanas, apenas com movimentos passivos seguida de movimentos ativos controlados (apoiados) até às dez semanas, podendo a partir daí realizar movimentos ativos, pelo que sofreu défice funcional temporário total entre 28 de Agosto de 2014 e 27 de Outubro de 2014 (sessenta dias); défice funcional temporário parcial entre 28 de Outubro de 2014 e 19 de Fevereiro de 2015.
14. A Autora permaneceu internada na instituição de saúde referida em 12.º durante quatro dias.
15. Após a alta a Autora permaneceu em casa, tendo-lhe sido prescritos vários tratamentos terapêuticos e sessões de fisioterapia, consultas de ortopedia em 8 de Setembro de 2014 e remoção dos agrafos da cirurgia em 11 de Setembro de 2014.
16. A Autora beneficiou de sessões de fisioterapia nos dias 12, 15, 17, 22, 24, 26, 29 de Setembro, 3, 6 e 8 de Outubro de 2014.
17. Suportou o custo da intervenção cirúrgica referida em 11., no montante de Euros 11.171,04.
18. Suportou também o custo das sessões de fisioterapia referidas em 15. no montante de Euros 395,05.
19. E medicamentos no montante de Euros 82,82.
20. Actualmente a Autora apresenta cicatriz operatória deltopeitoral com 18 cm com limitação acentuada da mobilidade articular com abdução ativa de 30º, retropulsão de 10º de antepulsão de 30º rotação interna de 30º e rotação externa 30º e limitação da mobilidade passiva (abdução de 70º antepulsão e retropulsão de 45º e rotações de 45º, pelo que sente dificuldade em pegar ou manipular objectos com a mão direita; sente dores que se agravam com o esforço e dificuldade na mobilização do membro superior direito, dificultando a realização das actividades diárias, em especial, higiene pessoal, comer, vestir-se e conduzir automóveis, pelo que necessita da assistência contínua de uma terceira pessoa.
21. O quantum doloris até à consolidação fixa-se no grau cinco numa escala de sete graus de gravidade crescente e um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica fixável em vinte pontos em cem e o dano estético permanente fixa-se no grau quatro, numa escala de sete graus de gravidade crescente.
22. A primeira Ré, através do seu gerente, tomou de imediato conhecimento da queda referida em 9.º.
23. A Ré “(…) Seguros”, por carta datada de 4 de Setembro de 2014, por referência a “sinistro ocorrido a 28-08-2014”, apólice “(…)”: comunicou à primeira Ré: “(…) Acusamos a recepção da participação de sinistro supra referenciada, a qual mereceu a nossa melhor atenção. / Após análise atenta e cuidada do contrato subscrito por V. Exas., bem como da Participação de Sinistro, concluímos que o supra referenciado sinistro se encontra fora do âmbito das garantias da Apólice. / Com efeito, a ocorrência participada caracterizou-se pela queda de uma cliente após esta ter saído do wc do estabelecimento, devido ao facto de se ter esquecido da existência do degrau, apesar de sinalizado. / Sucede que a ocorrência resultou de um acto imputável à própria sinistrada, eventualmente por distracção ou falta de coordenação/equilíbrio. / Acresce que a lesada para aceder ao wc já tinha utilizado o degrau, pelo que era conhecedora da existência do mesmo e deveria ter adequado a marcha às condições do local. / Nestes termos concluímos não existir qualquer responsabilidade imputável a V. Exas, no âmbito do sinistro supra identificado, pelo facto de não se encontrarem preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil e bem assim da consequente obrigação de indemnizar. / Pelo exposto, não existindo responsabilidade civil do tomador do Seguro, não pode a mesma ser transmissível para a Seguradora pela Apólice subscrita, pelo que iremos proceder ao encerramento do nosso processo de sinistro. / Agradecemos que transmitam esta comunicação à lesada. / Assim, e embora lamentando o facto, não nos será possível dar seguimento à pretensão de V. Exas., pelo que iremos encerrar o nosso processo de sinistro sem indemnização. (…)”
24. A Autora remeteu à Ré “(…) Seguros, S. A.” carta datada de 22 de Setembro de 2014, consignando o assunto “Sinistro ocorrido em 28 de Agosto de 2004 / Apólice (…)” e com o seguinte teor: “Venho pela presente participar a V. Exas que sofri um acidente no passado dia 28 de Agosto de 2014, quando me encontrava a utilizar o estabelecimento de restaurante em (…), pertencente ao v/segurado “O Mundo (…), Unipessoal, Lda.” mediante a apólice de Seguro (…). / Na verdade, nesse dia cerca das 19 horas levantei-me da mesa onde me encontrava a comer e fui à casa de banho. / Porém, depois de sair da casa de banho e de ter descido um degrau, ao colocar o pé sobre o pavimento cerâmico do estabelecimento coloquei sobre um pequeno objecto duro como uma pequena pedra ou um caroço de azeitona que me fez perder a aderência e cair. / Na queda bati com o ombro direito na parede em frente que se fracturou em 3 partes distintas. / Fui de seguida transportado pelo INEM para o Hospital de Loulé e após os primeiros socorros transferidos para o Hospital de Faro e deste para o Hospital Privado das (…), onde fui objecto de intervenção cirúrgica. / Com as consultas, tratamentos e intervenção cirúrgica despendi já 11.300,00 € encontrando-me já em recuperação com fisioterapia. / O acidente só ocorreu porque no local se encontrava o referido objecto duro tipo pedra ou um caroço de azeitona que ao pisar me fez cair, sendo certo que o V/segurado tinha a obrigação de ter o piso do restaurante limpo e isento de objectos como aquele que nele se encontrava que uma vez pisado são adequados a fazer cair quem pisa. / Acresce que o local não tinha qualquer indicação ou localização designadamente o degrau, sendo certo que a causa do acidente não foi o degrau mas a existência anómala de pequeno objecto que pisei e me fez cair. (…)”.
25. A Ré “(…) Seguros” remeteu à Autora carta datada de 4 de Dezembro de 2014, também por referência ao sinistro ocorrido em 28-08-2014 e apólice (…), com o seguinte teor: “Recebemos a sua reclamação de sinistro, que agradecemos e cujo teor mereceu a nossa atenção. / Após análise do relatório do perito que nomeamos para averiguar a ocorrência que nos foi participada, apuramos que na data do evento não se registou qualquer outra ocorrência semelhante à que nos reportou nem foi identificado nenhum objecto estranho na escada de acesso ao wc do estabelecimento. / É nosso entendimento que a queda resultou do facto de não ter reparado na existência de sinalização do degrau, eventualmente por distracção ou falta de coordenação/equilíbrio já que usava sapatos de salto alto. / Da apreciação ao local da queda e elementos apurados, não detectamos violação/incumprimento de qualquer norma ou dever de segurança por parte do Segurado, que possa ter concorrido para a ocorrência participada, pois o piso encontrava-se em boas condições sem que se verificasse o seu mau estado. / Assim, salvo prova em contrário, face às circunstâncias da ocorrência e respectivo local, admitimos o seu descuido para a queda, pelo que não há responsabilidade do Segurado. / Pelo exposto e embora lamentando o facto, não nos será possível dar seguimento à sua pretensão, pelo que iremos encerrar o nosso processo de sinistro sem indemnização.”
26. A Ré “(…) Seguros S. A.” acordou, por instrumento escrito denominado apólice n.º (…) Protecção Comércio, com a Ré “Café Snack (…) – O Mundo (…), Unipessoal, Lda.”, responder pelos danos sofridos por terceiros e decorrentes da exploração do estabelecimento comercial referido em 5.º até ao montante de cinquenta mil euros, fixando as partes uma franquia de 10% por sinistro e no mínimo cinquenta euros.
27. A Ré “O Mundo (…), Unipessoal, Lda.” mantém um registo de limpeza das instalações sanitárias de onde resulta que o ali identificado funcionário “SM” procedeu no dia referido em 5.º, pelas 15 horas, à limpeza das casas-de-banho destinadas aos clientes do estabelecimento comercial.
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Factos não provados
a) Que nas circunstâncias referidas em 9.º a Autora tenha pisado um caroço, pedra ou outro objecto duro e que tenha sido essa a razão para se desequilibrar;
b) Que a parede existente em frente da porta da casa de banho utilizada pela Autora possuísse, naquela data, uma esquina viva, em forma de bico;
c) Que a Autora tenha despendido o montante de Euros 30,35 em gasóleo;
d) Que a cirurgia referida em 12. não tenha corrido da melhor maneira por os nervos do braço terem ficado presos;
e) Que a Autora tenha sido aconselhada, por indicação de outros médicos, a fazer nova cirurgia;
f) Que os tratamentos referidos em 12. não tenham sido os adequados ao problema de saúde da Autora ou que a Autora não tenha vislumbrado melhoras;
g) Que na data referida em 5. a Autora usasse sapatos de salto alto.
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De Direito
Da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil
Decorre do disposto no art.º 483.º do Código Civil[1] que a obrigação de indemnizar com origem na responsabilidade civil subjectiva depende da verificação cumulativa de determinados pressupostos, a saber: a existência de facto voluntário pelo agente, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Primeiro dos enunciados pressupostos é a existência de um comportamento -que não tem de consistir necessariamente numa acção, podendo traduzir-se numa omissão- posto que seja dominável pela vontade. Todavia, no caso das omissões, e como resulta do disposto no art.º 486.º, a imputação ao agente da conduta omissiva exige que sobre ele recaia o dever de praticar o acto omitido, uma vez que inexiste um dever genérico de evitar a ocorrência de danos. “Daí que para alguém ser responsável por omissão pelos danos sofridos por outrem se exija, para além dos outros pressupostos da responsabilidade delitual, um dever específico, que torne um particular sujeito garante da não ocorrência desses danos”[2]. Conforme tivemos antes oportunidade de referir[3], tal específico dever pode resultar de contrato ou ser imposto por lei, como ocorre na previsão dos art.ºs 491.º, 492.º e 493.º, havendo que ter em consideração, neste domínio, os denominados deveres de prevenção do perigo (ou, noutra terminologia, deveres de segurança no tráfico), cujo acolhimento permite estender a responsabilidade delitual por omissão a todo aquele que, exercendo o domínio de facto sobre uma coisa, móvel ou imóvel, ou determinada actividade, sendo aquela e esta susceptíveis de causar danos a terceiro, não tome as providências destinadas a evitá-los[4].
A existência de um dever genérico de prevenção impõe assim ao criador ou mantenedor de uma situação especial de perigo que proceda à sua remoção, sob pena de responder pelos danos provenientes da omissão. Os deveres em causa têm a ver com a prevenção dos perigos em locais privados ou públicos (estradas, edifícios), relacionados com coisas ou actividades perigosas, deles sendo projecção, entre outras, as citadas disposições legais -art.ºs 492.º e 493.º-, nelas surgindo a posição do lesante agravada pela presunção de culpa.[5] [6]
Do n.º 1 do art.º 483.º extraem-se portanto com clareza as modalidades que a ilicitude pode revestir: violação de direitos subjectivos alheios ou de disposições legais destinadas a proteger interesses alheios, incluindo os assinalados deveres de segurança no tráfico[7], que terão todavia de corresponder a uma norma de conduta cujo desrespeito seja havido como ilícito e cujo conteúdo dependerá da ponderação de diversos factores, como a probabilidade da ocorrência do acidente e efeitos danosos a evitar, das medidas preventivas exigíveis e possibilidade de auto-protecção do lesado, sob pena de “uma ampla construção e admissão de deveres de prevenção do perigo equivaler na realidade à consagração de uma verdadeira responsabilidade pelo risco, que apenas formalmente se ampara nos esquemas da responsabilidade por culpa”[8].
A culpa exprime-se através de um juízo de reprovabilidade pessoal da conduta do agente que, em face das circunstâncias concretas do caso, podia e devia ter agido de modo a evitar o facto ilícito, e a sua apreciação, na ausência de outro critério legal, afere-se pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, por força do princípio consagrado no art.º 487.º, n.º 2, do CC.
Finalmente, é necessário que do facto ilícito e culposo resulte um dano – o prejuízo, a perda “in natura” que o lesado sofreu, como consequência do facto, nos seus interesses (materiais, espirituais ou morais) – e que interceda um nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Parece aqui oportuno referir, e o art.º 342.º, n.º 1, di-lo com clareza, que “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado” (vide n.º 1), regra que se inverte apenas nos casos previstos no art.º 344.º, nomeadamente “quando haja presunção legal, dispensa ou liberação do ónus da prova (…) e, de um modo geral, sempre que a lei o determine” (cf. n.º 1 do preceito).
De volta ao caso dos autos, não se questiona que a autora sofreu uma queda no estabelecimento comercial de restauração explorado pela 1.ª ré, de que resultou fractura do úmero, com as consequências que o acervo factual apurado bem reflecte, tendo portanto sofrido danos de natureza patrimonial e não patrimonial, o que também não se mostra controvertido.
Todavia, não existe obrigação de indemnizar sem a imputação ao agente de um acto ou omissão ilícitos, recaindo sobre a autora o ónus da prova respectiva.
No que concerne à causa da queda, impõe-se fazer notar que das várias versões que a agora apelante foi sucessivamente apresentando, nenhuma resultou provada, sabendo-se apenas quanto consta dos pontos 6. a 9. dos factos provados, ou seja, que a dada altura se deslocou às instalações sanitárias existentes no estabelecimento da 1.ª demandada, para o que teve de subir um degrau (o que resulta da motivação e a apelante confirma nas suas alegações – cf. ponto 26) e que depois de utilizar a referida casa de banho desequilibrou-se e caiu, embatendo com o ombro direito na parede que se encontra em frente. Em suma, sabe-se que a autora caiu mas não se sabe porque caiu.
A apelante pretende ter a 1.ª ré violado regras de segurança – que, todavia, não especifica – pelo que, tendo ocorrido a queda, tanto bastaria para a responsabilizar, já que não demonstrou que o sinistro ocorreria ainda que as tivesse adoptado.
Pois bem, nada relevando para o caso quanto dispõe o DL 10/2015, de 16 de Janeiro (diploma que contém o regime jurídico de acesso e exercício de actividades de comércio, serviços e restauração), nem tão pouco o DL 234/2007, entretanto revogado – ambos os diplomas invocados pela apelante – ponderou a Mm.ª juíza a aplicação do DL 163/2006, de 8 de Agosto (que aprovou o regime da acessibilidade aos edifícios e estabelecimentos que recebem público, via pública e edifícios habitacionais), por força da previsão da al. j) do n.º 2 do art.º 2.º, que se reporta a instalações sanitárias de acesso público. Todavia, como se vê do anexo a tal diploma, nenhuma das regras atinentes às instalações sanitárias nele contidas está aqui em causa, não tendo de resto a queda da autora ocorrido no WC.
Por outro lado, mesmo a considerar-se que o estabelecimento explorado pela 1.ª ré estava sujeito às disposições legais do aludido diploma por força da previsão da al. q) do n.º 2 (admitindo portanto que tem uma área superior a 150 m2 conforme ali se prevê, o que se desconhece em absoluto), mostrando-se violadas as disposições dos pontos 2.4.3., no seu n.º 5[9] e 2.4.10[10] do respectivo anexo, a verdade é que, conforme consta da missiva que pela própria autora foi enviada à demandada seguradora, a presença do degrau – que já tinha subido para aceder às instalações sanitárias, recorda-se – foi alheio à queda, uma vez que declarou ter-se desequilibrado “depois de ter descido o degrau, ao colocar o pé sobre o pavimento cerâmico do estabelecimento (…)”.
Não se tendo apurado uma específica regra legal que impusesse à 1.ª ré um determinado comportamento cuja omissão tenha causado o acidente, importa finalmente indagar se resultou demonstrada violação de dever genérico de prevenção do perigo que sobre ela recaísse por força da actividade desenvolvida e de que beneficia, traduzida no incumprimento de regras de conduta que lhe fosse exigível observar.
Admitindo portanto que, enquanto entidade exploradora de um estabelecimento comercial aberto ao público, sobre a 1.ª ré recaía o dever de prevenir a causação de danos a terceiros, encontrava-se obrigada a adoptar condutas adequadas a prevenir nomeadamente o risco de quedas, mantendo o pavimento limpo e seco. No entanto, não havendo aqui lugar a qualquer inversão do ónus da prova, por não beneficiar a autora de presunção legal, sobre ela recaía o encargo probatório da violação de tal dever, demonstrando designadamente -conforme alegou mas não provou-, a existência de um objecto estranho no pavimento que foi causa do seu desequilíbrio e subsequente queda, impondo-se ainda que fizesse prova da culpa da demandada, por dever/poder ter um comportamento alternativo, tudo conforme prevê e prescreve o art.º 483.º, n.ºs 1 e 2. E lamentando-se embora a queda que sofreu, a verdade é que a apelante não fez prova dos factos constitutivos do direito à indemnização que pretendia ver arbitrada (cf. art.º 342.º, n.º 1), pelo que a acção terá necessariamente que naufragar, tal como decidiu a 1.ª instância.
Atento o que vem de se expor, e dada a manifesta improcedência dos fundamentos do recurso, impõe-se a confirmação da sentença recorrida.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, confirmando a douta sentença recorrida.
Custas a cargo da apelante.
Évora, 23 de Novembro de 2017
Maria Domingas Simões
Victor Sequinho dos Santos
Maria da Conceição Ferreira
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[1] Diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.
[2] Menezes Leitão, “Direito das obrigações”, vol. I, 9.ª ed., pág. 296, e também Carneiro da Frada, “Contrato e deveres de protecção”, Coimbra 1994, págs. 163-165. Segundo este autor estão em causa situações em que a violação da propriedade ou da integridade pessoal não resultou de um ataque directo ou imediato a esses bens, ainda que negligente, e sim de uma conduta que só mediatamente a produziu, ou que se traduziu então na não observância de um dever de cuidado que a teria certamente evitado. E foi a propósito destas hipóteses, em que o dano se produziu já para além do quadro do decurso da acção que o originou, ou então por virtude de uma omissão, que se desenvolveram os chamados deveres de segurança no tráfico. Estes deveres cumprem dogmaticamente duas funções: a de assinalar os termos da equiparação à acção no campo da violação dos direitos de outrem, preenchendo assim a previsão delitual, por um lado; e a de proporcionar os quadros de tratamento das chamadas ofensas mediatas dos bens delitualmente protegidos, sobretudo do ponto de vista da fixação do juízo de ilicitude, por outro. Materialmente eles exprimem, quanto a este último aspecto, a reprovação de fazer perigar certas posições jurídicas, impondo àquele que cria ou mantém uma situação especial de perigo a adopção de providências adequadas a prevenir os danos que ela pode ocasionar.
[3] Ac. do TRC de 14/1/2014, proferido no processo 1393/11.0 TBVIS relatado pela ora relatora, acessível em www.dgsi.pt.
[4] Menezes Leitão, ob. cit., pág. 297.
[5] Cf. Antunes Varela, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 114.°, págs. 77-79.
[6] Com recurso à violação dos deveres gerais de prevenção do perigo decidiram o STJ em arestos de 11/7/2013, processo n.º 95/08.9 TBAMM.P1.S1, 1.ª secção, de 6/2/2009, processo n.º 560/2001.S1, 6.ª secção (“I- O dever genérico de prevenção do perigo ou dever de segurança no tráfico existe relativamente aos donos de coisas privadas, ainda que imóveis, devendo aferir-se o grau de exigência do obrigado à prevenção do perigo, [na tomada de medidas aptas a evitar o maior ou menor risco de acidente que a coisa representa] pela maior ou menor probabilidade do risco de acidente; II Quanto mais intenso for o perigo mais intensa é a obrigação de o prevenir adequadamente, e, em caso de omissão, mais exigente deve ser o juízo de censura); a Relação do Porto, acórdão de 14/11/2011, processo n.º 5632/07.3 TBMAI.P1, este versando sobre queda em piso escorregadio à saída de um restaurante, acessíveis em www.dgsi.pt.
[7] Carneiro da Frada, ob. e loc. citados, chama a atenção para o facto de, independentemente da ordenação sistemática dos deveres de prevenção do perigo na 1.ª parte do n.º 1 do art.º 483.º (que parece preferir) ou antes na 2.ª alternativa (assim os aproximando das disposições de protecção cuja violação acarretaria responsabilidade delitual), no campo das omissões e das ofensas mediatas a direitos de outrem, a ilicitude não ser automaticamente indiciada pela produção (adequada) de uma lesão no direito de outrém, “necessitando antes de ser positivamente determinada pela ponderação de diversos factores, com relevo naturalmente para a perigosidade de um comportamento no confronto com a necessidade de protecção do potencial lesado, para as próprias concepções dominantes no tráfico jurídico, eventualmente até para a utilidade social da actividade portadora de riscos, etc.”.
[8] Idem.
[9] Com o seguinte teor:
“2.4.3 - Os degraus das escadas devem ter:
(…) 5) Faixas antiderrapantes e de sinalização visual com uma largura não inferior a 0,04 m e encastradas junto ao focinho dos degraus”.
[10] Com o seguinte teor:
“2.4.10 - É recomendável que não existam degraus isolados nem escadas constituídas por menos de três degraus, contados pelo número de espelhos; quando isto não for possível, os degraus devem estar claramente assinalados com um material de revestimento de textura diferente e cor contrastante com o restante piso”.