Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
84/19.8YREVR
Relator: ANA MARGARIDA LEITE
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
UNIÃO DE FACTO
ESCRITURA PÚBLICA
Data do Acordão: 11/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: INDEFERIDO O PEDIDO DE REVISÃO
Sumário:
Não integra o conceito de decisão previsto no artigo 978.º, n.º 1, do CPC, pelo que não pode ser revista e confirmada, a escritura declaratória de união estável, lavrada em cartório notarial sito no Brasil, a qual consiste apenas em declarações prestadas pelos outorgantes perante o tabelião, não contendo qualquer segmento decisório.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

1. Relatório

Na presente ação de revisão de sentença estrangeira, com processo especial, movida por BB, natural do Brasil, de nacionalidade brasileira e portuguesa, contra CC, natural do Brasil, de nacionalidade brasileira, ambos residentes em Portugal, no … n.º …, Óbidos, União das Freguesias de Gondemaria e Olival, Ourém, pede a requerente que seja revista e confirmada, para que produza efeitos em Portugal, a escritura pública outorgada no Cartório Notarial do Rio de Janeiro, República do Brasil, em 07-12-2017, exarada a fls. 141 e 141 verso do Livro n.º 185, atestando a existência de convivência em união estável entre requerente e requerido há pelo menos 23 anos.
Regularmente citado, o requerido não deduziu oposição.
Cumprido que o disposto no artigo 982.º do Código de Processo Civil, o Ministério Público e a requerente apresentaram alegações, ambos sustentando que a escritura revidenda deve ser revista e confirmada, passando a ter plena eficácia em Portugal.

2. Pressupostos processuais

O tribunal é absolutamente competente.
Requerente e requerido são dotados de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade para a presente causa e encontra-se a requerente devidamente patrocinada.
Não existem nulidades ou quaisquer exceções de que cumpra conhecer, nada obstando à apreciação do mérito da causa.

3. Fundamentos

2.1. Matéria de facto
2.1.1. Com interesse para a apreciação da causa suscitada, consideram-se provados os factos seguintes:
a) a requerente nasceu no dia 09-08-1972, no Brasil, encontrando-se o registo do nascimento transcrito em Portugal;
b) o requerido nasceu no dia 13-08-1965, no Brasil;
c) no dia 07-12-2017, foi lavrada escritura pública no Brasil, em Cartório Notarial do Estado do Rio de Janeiro, Comarca de Campos dos Goytacazes, 7.º Ofício de Notas, intitulada Escritura Declaratória de União Estável, com o seguinte teor:
“SAIBAM quantos esta escritura vir, que aos sete dias do mês de dezembro do ano de dois mil e dezassete (…), neste 7.º Ofício de Notas (…) perante mim (…) Notário/matrícula 06/2482, compareceram como OUTOGANTES DECLARANTES E RECIPROCAMENTE OUTORGADOS: CC, brasileiro, solteiro, (…) e BB, brasileira, solteira, (…) pelos Outorgantes Declarantes e reciprocamente Outorgados Assentidos me foi uniformemente dito, sob as penas da lei, e livres de qualquer coação ou induzimento, do que dou fé, o seguinte: 1.º) Que, passam a conviver em união estável, como se casados fossem, há mais ou menos uns 23 (vinte e três) anos; 2.º) Que, assim sendo, é do desejo dos outorgantes e por livre e espontânea vontade ora manifestada, que sejam beneficiários de quaisquer pecúlios ou pensões, inclusive perante o órgão competente do INSS, planos de saúde e odontológicos, valendo esta declaração para todos os efeitos de inscrição justo a quaisquer instituições que forem de direito, as quais os mesmos outorgantes contribuem; 3.º) Afirmam, ainda, os outorgantes, por livre e espontânea vontade ora manifestada, a sua opção, nos termos da lei, art. 1725 CC/02, pelo Regime da Comunhão Universal de Bens; 4.º) Que, desta união ainda não nasceram filhos. Assim sendo, as partes declarantes outorgam a presente escrituras pública em carácter irrevogável e irretratável, que foi redigida na forma da lei vigente e do Código Civil Brasileiro; e mais, que se responsabilizam civil e criminalmente pela veracidade das declarações prestadas (…). Certifico e dou fé que: I) Os documentos necessários e exigidos por Lei para a prática deste ato, foram apresentados e ficam arquivados em Cartório a fazer parte integrante desta escritura; II) As custas relativas a este ato (…); III) Da presente escritura será enviada nota ao Cartório Distribuidor desta Comarca, no prazo da lei. Assim o disseram do que dou fé, me pediram em minhas notas lhes lavrasse a presente escritura, o que eu fiz e feita li em voz alta aos contratantes que reciprocamente aceitaram, outorgaram e assinam em minha presença e das duas testemunhas a todo ato presente, do que dou fé (...)”.
2.1.2. Motivação da decisão de facto
Foram considerados provados os factos indicados em 2.1.1. em resultado da apreciação do teor dos documentos juntos aos autos.

2.2. Matéria de direito
Pretende a requerente, com a presente ação, obter a revisão e confirmação de escritura declaratória de união estável outorgada a 07-12-2017, no Brasil, em Cartório Notarial do Estado do Rio de Janeiro, Comarca de Campos dos Goytacazes, 7.º Ofício de Notas, para que tenha eficácia em Portugal.
Dispõe o artigo 978.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que, sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada.
Sustenta a requerente que a escritura declaratória de união estável que apresenta, outorgada em cartório notarial no Brasil, deverá considerar-se abrangida pela previsão do n.º 1 do citado artigo 978.º. Alega, para o efeito, que, nos termos da lei processual brasileira, o reconhecimento da convivência em união estável de duas pessoas tem de obedecer aos requisitos de publicidade, estabilidade, continuidade e durabilidade, podendo ser certificada e reconhecida por meio de escritura pública; acrescenta que o reconhecimento feito por meio de escritura pública das uniões estáveis definidas no direito brasileiro tem força igual à das sentenças que decretam a existência de tal união de facto entre duas pessoas, dado ser proferida pela entidade brasileira legalmente competente para o efeito.
Cumpre verificar se a escritura declaratória de união estável apresentada pela requerente, lavrada em cartório notarial sito no Brasil, configura uma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, nos termos previstos no artigo 978.º, n.º 1, do CPC e, assim, se pode ser revista e confirmada para produzir efeitos em Portugal.
Analisando a escritura apresentada, verifica-se que os outorgantes, requerente e requerido nos presentes autos, declararam que mantêm uma “união estável, como se casados fossem, há mais ou menos uns 23 (vinte e três) anos”, que “é do desejo dos outorgantes (…) que sejam beneficiários de quaisquer pecúlios ou pensões” e que optam “nos termos da lei, art. 1725 CC/02, pelo Regime da Comunhão Universal de Bens”.
O artigo 1723.º do Código Civil brasileiro dispõe o seguinte: “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. O artigo 1725.º do indicado código, por seu turno, dispõe o seguinte: “Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens”.
Do teor da escritura apresentada apenas decorre uma declaração por parte dos outorgantes de que mantêm uma união estável há cerca de 23 anos e de que optam pelo regime da comunhão geral de bens, dela não constando qualquer decisão, ainda que homologatória, proferida pelo tabelião, suscetível de revisão e confirmação.
Assim, ainda que não se limite o conceito de decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, às decisões efetivamente proferidas por tribunais, antes se admitindo que nele possam integrar-se decisões proferidas por entidades administrativas, nos casos em que para tal lhes seja conferida competência, sendo equiparadas a tribunal para efeitos do n.º 1 do citado artigo 978.º, sempre se impõe concluir que a escritura pública em apreciação não preenche tal conceito amplo de decisão, dado não conter qualquer segmento decisório, antes consistindo apenas em declarações prestadas pelos outorgantes perante o tabelião.
Assim sendo, considerando que a escritura declaratória de união estável apresentada pela requerente não contém qualquer segmento decisório, verifica-se que não preenche o conceito de decisão previsto no artigo 978.º, n.º 1, do CPC, pelo que não se mostra suscetível de revisão e confirmação.
Neste sentido, na jurisprudência recente do Supremo Tribunal de Justiça, podem indicar-se os acórdãos seguintes (publicados em www.dgsi.pt):
- o acórdão de 28-02-2019 (relator: Nuno Pinto Oliveira), proferido na revista n.º 106/18.0YRCBR.S1 - 7.ª Secção, no qual se entendeu: Nem a declaração da Junta de Freguesia prevista pelo direito português nem a escritura declaratória de união estável prevista pela lei brasileira fazem com que o acto composto pelas declarações dos requerentes seja “caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido”, com a consequência de a escritura declaratória de união estável apresentada pelos requerentes não poder ser confirmada/revista;
- o acórdão de 21-03-2019 (relator: Ilídio Sacarrão Martins), proferido na revista n.º 559/18.6YRLSB.S1 - 7.ª Secção, no qual se entendeu: A declaração dos requerentes numa Escritura Pública Declaratória de União Estável, perante uma autoridade administrativa estrangeira (tabelião) de que vivem, como se casados fossem, desde 15-03-1992, não deve ser considerada como abrangida pela previsão do art. 978.º, n.º 1, do CPC, não podendo ser revista e confirmada para produzir efeitos em Portugal;
- o acórdão de 09-05-2019 (relator: Nuno Pinto Oliveira), proferido na revista n.º 828/18.5YRLSB-A.S1 - 7.ª Secção, no qual se entendeu: A escritura pública declaratória de união estável prevista pelo direito brasileiro não pode ser confirmada ou revista nos termos do art. 978.º do CPC.
Nesta conformidade, verificando que a escritura declaratória de união estável apresentada pela requerente não configura uma decisão, nos termos previstos no artigo 978.º, n.º 1, do CPC, cumpre concluir que a mesma não pode ser revista e confirmada para produzir efeitos em Portugal.
Improcede, assim, a presente ação.

Em conclusão:
Não integra o conceito de decisão previsto no artigo 978.º, n.º 1, do CPC, pelo que não pode ser revista e confirmada, a escritura declaratória de união estável, lavrada em cartório notarial sito no Brasil, a qual consiste apenas em declarações prestadas pelos outorgantes perante o tabelião, não contendo qualquer segmento decisório.

3. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar improcedente a presente ação de revisão de sentença estrangeira, em consequência do que se indefere o pedido de revisão e confirmação formulado.
Custas pela requerente.
Valor da causa: € 30 000,01 (artigos 296.º e 303.º, n.º 1, do CPC).
Registe e notifique.

Évora, 07-11-2019
Ana Margarida Leite
Cristina Dá Mesquita
José António Moita