Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1800/17.8T8PTM-E.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
PROVA TESTEMUNHAL
Data do Acordão: 11/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Nem os critérios de julgamento próprios do processo de jurisdição voluntária, nem os poderes de gestão processual genericamente aplicáveis aos processos cíveis, permitem ao juiz dispensar a produção de provas arroladas pelas partes ou deixar de realizar a audiência de discussão e julgamento, por razões de conveniência ou de oportunidade, nos casos em que a lei prevê a sua realização.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1800/17.8T8PTM-E.E1

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório
1. (…), residente na Rua do (…), Lote 6, 4º-Dto., (…), Alvor, instaurou contra (…), residente na Urbanização (…), Lote 7, 1º-Esq., (…), Estômbar, providência tutelar cível destinada à resolução do diferendo sobre a escolha do estabelecimento de ensino a frequentar por (…) e (…), filhos de ambos, nascidos em 14/10/2013.
Alegou, em resumo, que por efeito de sentença judicial, transitada em julgado, as questões de particular importância para a vida dos menores são decididas de comum acordo por ambos os progenitores, que nos anos letivos de 2019/2020 e 2020/2021, sem o seu consentimento, o Requerido matriculou os menores na Escola Básica de (…), em Lagoa e que os menores deverão frequentar a Escola Primária do (…) – Agrupamento Poeta (…), a qual é uma instituição de referência e de excelência e permitirá aos menores a necessária frequência de turmas separadas.
Concluiu pedindo que se autorize a inscrição dos menores na Escola Primária do (…) – Agrupamento Poeta (…), no ano letivo de 2020/2021, por ser a opção que melhor salvaguarda os seus superiores interesses e se determine a anulação da matrícula efetuada na Escola Básica de (…), em Lagoa.
2. Houve lugar a conferência de pais, não se logrando obter qualquer acordo; seguiram-se alegações, reiterando a Requerente a pretensão de frequência, pelos menores, da Escola Primária do (…) – Agrupamento Poeta (…) ou da Escola Básica de (…), no ano letivo de 2021/2022 e considerando o Requerido que os menores deverão continuar na escola que frequentam, sem prejuízo de ponderar a mudança de escola, caso tal venha a ser considerado do interesse dos menores por parecer técnico ou indicação dos cuidadores ou professores.

3. O Ministério Público pronunciou-se pelo deferimento da pretensão da Requerente, no entendimento que a responsabilidade pela matrícula dos menores incumbe ao encarregado de educação, função que competirá à Requerente no ano letivo de 2021/2022.
Seguiu-se decisão que, depois de concluir pela desnecessidade da prova testemunhal arrolada nas alegações, indeferiu “a requerida alteração de escola a frequentar pelos gémeos no ano letivo de 2021/2022.”

3. Recurso
A Requerente recorre da decisão e conclui assim a motivação do recurso:
“A) Apesar de as partes terem arrolado testemunhas nas suas Alegações, o Tribunal de 1.ª Instância decidiu que não existia necessidade de produção de prova testemunhal, até porque o referido Tribunal só tem disponibilidade de agenda para Outubro de 2021, quando as aulas dos menores já começaram.
B) Nos termos do disposto no artigo 41.º, n.º 7, do RGPTC: Não tendo sido convocada a conferência ou quando nesta os pais não chegarem a acordo, o juiz manda proceder nos termos do artigo 38.º e seguintes e, por fim, decide.
C) De acordo com o disposto no artigo 39.º, n.º 4, do RGTPC: Se os pais não chegarem a acordo, o juiz notifica as partes para, em 15 dias, apresentarem alegações ou arrolarem até 10 testemunhas e juntarem documentos.
D) Por sua vez, nos termos do artigo 39.º, n.º 6, do RGPTC, caso não haja alegações, nem sejam indicadas provas, ouvido o Ministério Público, é proferida Sentença.
E) Porém, nos termos do artigo 39.º, n.º 7, do RGPTC: Se forem apresentadas alegações ou apresentadas provas, tem lugar a audiência de discussão e julgamento no prazo máximo de 30 dias.
F) Pelo que a Sentença ora em apreço foi proferida em despeito do regime previsto nas disposições legais ora enunciadas.
G) Isto porque, tendo sido apresentadas alegações e indicadas provas, o Tribunal tinha o dever de designar uma data para a realização da Audiência de Julgamento, por forma a, pelo menos, possibilitar a produção da prova testemunhal indicada pelas partes.
H) Até porque, não obstante estarmos perante um processo de jurisdição voluntária, nos termos do disposto no artigo 12.º do RGPTC e, como tal, o Tribunal não estar sujeito a critérios de legalidade estrita, podendo adotar, em cada caso, a solução que julgue mais conveniente e oportuna.
I) A realidade é que tal não permite que o Tribunal decida em preterição do direito a um processo equitativo, que pressupõe que cada uma das partes tenha a possibilidade de fazer prova dos factos que alegou, assim como de discutir a relevância de tais factos para a boa decisão da causa.
J) Pelo que, a presente decisão, ao não designar data para a realização de Audiência de Julgamento, contende frontalmente com o Direito à Tutela Jurisdicional Efetiva, consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
K) Mais, a não designação de uma data para a realização de Audiência de Julgamento, por consubstanciar a omissão de um ato que a lei prescreve e que, claramente, pode influir no exame ou na decisão da causa, gera uma nulidade processual, nos termos do disposto no art.º 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
L) Nulidade esta que, consequentemente, gera a nulidade da própria Sentença, nos termos do disposto no artigo 195.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
M) Pelo que deve a Sentença ora em apreço ser anulada e os presentes autos remetidos ao Tribunal de 1.ª Instância, a fim de o mesmo proceder em conformidade com o disposto no artigo 41.º, n.º 7, do RGPTC.
N) Neste sentido, veja-se o Acórdão proferido por este douto Tribunal da Relação de Évora, em 05/12/2019, no âmbito do Processo n.º 2310/13.8TBCLD-A.E1.
O) Para além do exposto, na Sentença de que ora se recorre, não se encontram discriminados os factos que o Tribunal de 1.ª Instância considerou provados e não provados, nem tão pouco foi realizada a devida análise crítica das provas apresentadas pelas partes, em despeito do disposto no artigo 607.º, n.º 3 e n.º 4, do Código de Processo Civil.
P) Pela forma como a Sentença está formulada, a Recorrente não conseguiria, ainda que quisesse, apresentar recurso sobre matéria de facto.
Q) Isto porque, não conseguiria indicar os pontos de facto que considera incorretamente julgados e os concretos meios de prova que impunham decisão diversa da recorrida, ou seja, não conseguiria dar cumprimento ao ónus previsto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil.
R) Pelo que a presente decisão, pela forma como está elaborada, designadamente, pela ausência de cumprimento dos requisitos previstos no artigo 607.º, n.º 3 e n.º 4, do Código de Processo Civil, limita mais uma vez o Direito à Justiça e à Tutela Jurisdicional Efetiva da Recorrente.
S) Desde logo, porque a Recorrente não sabe, entre outros, quais os factos que o Tribunal considerou provados e quais os factos que considerou não provados.
T) Neste sentido, veja-se o Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 26/02/2019, no âmbito do Processo n.º 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2.
U) Pelo que, a presente decisão, padece de um vício de nulidade, nos termos do disposto nos artigos 607.º, n.º 3 e n.º 4 e 615.º, alíneas b) e c), do Código de Processo Civil, que desde já se argui para os devidos efeitos legais.
V) Para além disso, contende, também por este motivo e uma vez mais, com o direito fundamental ao Acesso à Justiça e à Tutela Jurisdicional Efetiva, consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
W) Pelo que, no caso de se entender, o que não se consente, mas por mera cautela de patrocínio se alvitra, que o Tribunal de 1.ª Instância poderia ter decidido sem a realização de Audiência de Julgamento, sempre deverá, ainda assim, a Sentença de que ora se recorre ser declarada nula e os presentes autos remetidos ao Tribunal de 1.ª Instância, a fim de o mesmo proferir uma Sentença em conformidade com o disposto no artigo 607.º, n.º 3 e n.º 4, do Código de Processo Civil.
X) Ao indeferir o pedido apresentado pela Recorrente, relativamente ao estabelecimento de ensino a frequentar pelos menores no ano letivo de 2021/2022, a presente decisão contende frontalmente com o Princípio do Superior Interesse da Criança, previsto no artigo 1906.º, n.º 8, do Código Civil.
Y) Isto porque o facto de os menores continuarem a frequentar a mesma turma tem e continuará a ter uma influência direta e negativa no comportamento dos mesmos e, consequentemente, a prejudicar o seu aproveitamento escolar.
Z) Tal situação, poderá ainda não ter consequências expressivas no aproveitamento escolar dos menores, que frequentam apenas o 1.º ano de escolaridade.
AA) Porém, a breve trecho, o seu comportamento, que se tem vindo a agravar substancialmente, assim como a sua constante desatenção nas aulas, terá, inevitavelmente, consequências graves e irreversíveis para o processo de aprendizagem e desenvolvimento dos menores.
BB) Aliás, foi a própria educadora do Infantário que os menores frequentaram dos 11 meses aos 4 anos, que alertou os pais para a necessidade de os menores ficarem em turmas distintas no primeiro ciclo, uma vez que, no seu entendimento, a frequência da mesma sala de aula no primeiro ciclo seria absolutamente prejudicial para os menores, na medida em que tal situação afeta diretamente o seu comportamento.
CC) Mais, a psicóloga clínica que acompanhou os menores, referiu que os mesmos deveriam frequentar turmas separadas, por forma a favorecer o seu progresso educativo e a estabilização emocional de ambos.
DD) Uma vez que, pela observação do comportamento dos menores lhe foi possível perceber que os mesmos procuram sempre imitar-se, o que leva a um reforço dos seus comportamentos desadaptativos.
EE) Todavia, no âmbito da presente Sentença, o Tribunal entendeu que mudar os menores de estabelecimento de ensino lhes poderá causar alguma instabilidade, pelo que o pedido da Recorrente não haveria de ser atendido.
FF) Face a tais afirmações, proferidas pelo Tribunal de 1.ª Instância, cumpre questionar qual a opção que melhor irá salvaguardar o superior interesse dos menores.
GG) Ou seja, cumpre questionar se é preferível não mudar os menores de estabelecimento de ensino, por forma a não afetar a sua estabilidade, o que fará com que os menores continuem a adotar comportamentos desadequados.
HH) Comportamentos estes que, a médio prazo, terão consequências absolutamente nefastas para o processo de aprendizagem dos menores, podendo mesmo, a longo prazo, comprometer o seu desenvolvimento intelectual e social, assim como o seu futuro profissional.
II) Ou se, por outro lado, é preferível mudar os menores de estabelecimento de ensino em Outubro de 2021, ainda que tal mudança, como quaisquer outras, lhes possa criar alguma instabilidade momentânea em virtude do processo de adaptação, mas que, contudo, permitirá salvaguardar todo o seu processo de aprendizagem e de desenvolvimento intelectual e social no seio escolar.
JJ) Ora, salvo o devido respeito, estamos em crer que a resposta a esta questão se afigura clara e que, como tal, a presente Sentença não salvaguarda, de forma alguma, os interesses dos menores.
KK) Pelo que, deve a presente Sentença ser revogada e substituída por outra que ordene que os menores frequentem, no ano letivo de 2021/2022, o estabelecimento de ensino Escola Primária do (…) – Agrupamento Poeta (…) ou o estabelecimento de ensino Escola Básica da (…) – Agrupamento (…), de acordo com o seu superior interesse.
Nestes termos, nos demais de Direito e sempre com o V/douto suprimento, desde já se requer a V/Exa. se digne:
A) Revogar a Sentença de que ora se recorre substituindo-a por outra que ordene que os menores frequentem, no ano letivo de 2021/2022, o estabelecimento de ensino Escola Primária do (…) – Agrupamento Poeta (…) ou o estabelecimento de ensino Escola Básica da (…) – Agrupamento (…), de acordo com o seu superior interesse.
Ou, caso assim não se entenda, o que por mera cautela de patrocínio se alvitra:
B) Anular a Sentença de que ora se recorre, porquanto a mesma padece de um vício de nulidade nos termos do disposto no artigo 195.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, ordenando que os presentes autos desçam ao Tribunal de 1.ª Instância por forma a ser dado cumprimento ao disposto nos artigos 41.º, n.º 7 e 39.º, n.º 7, do RGPTC.
Ou, ainda que assim não se entenda, o que não se consente, mas, mais uma vez, por mera cautela de patrocínio se alvitra:
C) Declarar nula a Sentença de que ora se recorre, uma vez que a mesma padece de um vício de nulidade nos termos do disposto no artigo 607.º, n.º 3 e n.º 4 e 615.º, alíneas b) e c), do Código de Processo Civil, ordenando que os presentes autos desçam ao Tribunal de 1.ª Instância, por forma a ser dado cumprimento ao disposto no artigo 607.º, n.º 3 e n.º 4, do Código de Processo Civil.
Assim se fazendo JUSTIÇA!”
Responderam o Ministério Público e o Requerido por forma a defenderem a improcedência do recurso.
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso
Considerando que o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4 e 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), que nos recursos se apreciam questões e não razões ou argumentos e que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido, são questões a decidir: (i) se a dispensa de produção de prova arrolada pelas partes constitui nulidade do procedimento, (ii) se a sentença é nula por falta de especificação dos factos provados, (iii) se é do superior interesse dos menores frequentarem a Escola Primária do (…) – Agrupamento Poeta (…) ou o estabelecimento de ensino Escola Básica da (…) – Agrupamento (…).

III. Fundamentação
1. A decisão recorrida encerra os seguintes considerandos:
“Considerando que:
- A mãe e o pai dos gémeos (…) e (…) manifestam dentro e fora do processo alto nível de conflitualidade, de que é exemplo o número de apensos já criados (até ao “F”), quando as crianças têm apenas 7 anos de idade; cfr. ainda o auto de fls. 24.
- No presente apenso, no dia 6 de agosto de 2020, a progenitora requereu que a matrícula das crianças viesse a ser anulada e as crianças matriculadas na Escola Primária do (…) do Agrupamento de Escolas Poeta (…), ao invés de permanecerem na escola da (…), onde existe apenas uma sala de aula, sendo que no entendimento da requerente, as crianças deviam frequentar salas diferentes; depois, pronunciou-se no sentido de as crianças virem a ser transferidas para outra escola (Escola Básica da …, agrupamento …), ainda em Portimão – fls. 39 v.
- Realizada conferência de pais, no dia 18 de agosto, os progenitores não chegaram a acordo – fls. 19;
- Da escola, chegou a informação da educadora de infância das crianças, relatando que as maiores dificuldades que estas crianças manifestaram foi na formação pessoal e social, nomeadamente na relação com os pares, na aceitação e cumprimento das regras e ainda que haveria necessidade de as crianças frequentarem turmas diferentes no 1.º ano de escolaridade, pois quando alguma faltava o problema persistia; mais daí resultou que havia na escola uma única turma de 1.º ano – fls. 33.
- As crianças tiveram aconselhamento psicoterapêutico junto do GASMI cujo parecer foi no sentido de que deveriam ser separadas, isto depois de uma sessão com a mãe e de uma observação das crianças a interagir e antes de outra avaliação, designadamente de audição do pai – fls. 38/49;
- Foi realizada nova conferência, no dia 3 de dezembro de 2020, na qual a progenitora pediu que a apreciação se estendesse ao ano letivo seguinte, 2021/2022 – fls. 48/51;
- Foram apresentadas alegações e indicadas testemunhas, não dispondo, porém, o Tribunal de agenda antes de outubro de 2021, altura em que as aulas já terão começado;
- De acordo com o regime em vigor, no presente ano letivo, o encarregado de educação é o progenitor, sendo que no próximo ano 2021/22, será a progenitora – fls. 92 v./94;
- A Digna Procuradora pronunciou-se no sentido de a escolha da escola ser conferida ao progenitor que naquele ano vier a ser o encarregado de educação, posição que veio a merecer a concordância da progenitora e a oposição do progenitor – fls. 95/98 v./99 v.,
1. Em caso de conflito entre progenitores, a escolha da escola não pode estar dependente da vontade de cada um em cada ano, sob pena de as crianças mudarem de estabelecimento de ensino em cada ano, sem justificação atendível, a não ser a vontade e os interesses de cada um, ao invés do interesse das crianças;
2. Dos elementos juntos decorre que os problemas de comportamento das crianças, ainda no jardim de infância, nada tinham a ver com o facto de serem gémeos, com qualquer necessidade de separação – referiu em relatório a educadora que os acompanhava diariamente – mas antes com o acatamento de regras, a que pode não ser estranho o nível de conflitualidade entre os progenitores; por outro lado, não existem elementos de que as crianças não estejam bem adaptados à escola que se encontram a frequentar, do que o processo teria conhecimento através da mãe, atenta sua pretensão;
3. À instabilidade decorrente do conflito entre os progenitores não deve acrescentar-se outra, como a alteração da escola, ainda mais depois do início do ano escolar.
Por isso e sem necessidade de outra prova, designadamente a prova testemunhal indicada:
- Indefiro a requerida alteração de escola a frequentar pelos gémeos no ano letivo de 2021/2022.”

2. Nulidade do procedimento
A decisão recorrida foi proferida sem a produção da prova testemunhal arrolada pelas partes nas alegações e a Recorrente inicia por suscitar a nulidade deste procedimento, considerando que o mesmo contende com o princípio constitucional do direito à tutela jurisdicional efetiva.
A existir, a nulidade decorre da própria decisão recorrida quando nesta se afirma que “foram apresentadas alegações e indicadas testemunhas, não dispondo, porém, o Tribunal de agenda antes de outubro de 2021, altura em que as aulas já terão começado”, razão pela qual a sua arguição tem pleno cabimento no recurso em apreciação, uma vez que quanto à matéria que suscita se mostra extinto o poder jurisdicional do juiz da causa (artigo 613.º do CPC), o que significa que a seu reconhecimento e eventual correção deixou de ser viável por via da reclamação e só por via do recurso poderá ter lugar.
A nulidade mostra-se, pois, tempestivamente arguida no recurso.
Prosseguindo, o artigo 44.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8/9, dispõe o seguinte:
1 - Quando o exercício das responsabilidades parentais seja exercido em comum por ambos os pais, mas estes não estejam de acordo em alguma questão de particular importância, pode qualquer deles requerer ao tribunal a resolução do diferendo.
2 - Autuado o requerimento, seguem-se os termos previstos nos artigos 35.º a 40.º.
3 - O tribunal decide uma vez realizadas as diligências que considere necessárias.”
E de acordo com os artigos 35.º a 40.º do mesmo Regime Geral do Processo Tutelar Cível (como o serão os demais infra referidos sem indicação de proveniência) o procedimento deverá observar grosso modo os seguintes passos:
Os pais são citados para uma conferência (artigo 35.º, n.º 1); faltando os pais, ou algum deles, o juiz manda proceder às diligências de instrução necessárias e decide (artigo 37.º, n.º 3); comparecendo os pais e obtendo-se um acordo que corresponda aos interesses da criança, o juiz profere sentença homologando o acordo (artigo 37.º, nºs 1 e 2); comparecendo os pais e não se obtendo acordo, o juiz remete as partes para mediação ou audição técnica especializada (artigo 38.º), continuando depois a conferência e persistindo o diferendo, as partes são notificadas para, em 15 dias, apresentarem alegações, arrolarem até 10 testemunhas e juntarem documentos (artigo 39.º, n.º 4); na falta de alegações e de indicação de provas o juiz profere sentença depois de ouvido o Ministério Público (artigo 39.º, n.º 6); em caso de alegações ou de apresentação de provas tem lugar a audiência de discussão e julgamento e depois é proferida sentença (artigo 39.º, n.º 7); em qualquer dos casos, antes de proferir a sentença, o juiz pode ordenar os atos de instrução que entenda necessários (artigo 39.º, n.º 5).
Na espécie, as partes as partes produziram alegações e arrolaram testemunhas, seguindo-se a prolação da sentença depois de ouvido o Ministério Público, sem a realização da audiência de discussão e julgamento e, consequentemente, sem a produção da prova oferecida pelas partes [artigo 29.º, n.º 1, alínea b)].
O direito à prova constitui um princípio estruturante da legislação processual civil. É assim que a doutrina o caracteriza[1] e decorre, como inferência, do artigo 342.º, nºs. 1 e 2, do Código Civil, pois de nada valerá aceder ao tribunal para fazer valer um direito se neste não se puder usar de todos os meios de prova que a lei não proíba (vg. artigo 32.º, n.º 6, da CRP), respeitados que sejam os tempos e os modos exigidos para a sua produção ou formação.
O direito à prova entronca assim, no princípio constitucional de acesso aos tribunais ou a tutela jurisdicional, condensado no artigo 20.º, n.º 1, da Lei Fundamental, por implicar este, como implica, a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efetiva[2], a qual não se vislumbra possível sem a concessão às partes de uma ampla liberdade de disposição dos meios de prova, respeitados que sejam os indicados limites. A prova, no dizer de H. Lévy-Bruhl[3], “(…) é inseparável da decisão judiciária: é a sua alma, a sentença não representa senão uma ratificação.”
Direito à prova que não é postergado pela natureza de jurisdição voluntária do procedimento.
Os processos tutelares cíveis e, entre eles, a regulação do exercício das responsabilidades parentais e o conhecimento das questões a este respeitantes, têm a natureza de jurisdição voluntária [artigos 12.º e 3.º, alínea c)] e segundo esta jurisdição, nas providências a tomar o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna (artigo 987.º do CPC) enunciado que constitui, a nosso ver, um critério de julgamento e não um critério de gestão processual, ou seja, reporta-se ele à regulação do interesse expresso no procedimento e não ao procedimento propriamente dito, mais concretamente à sua gestão que incumbe ao juiz, é certo, mas dentro dos parâmetros enunciados no artigo 6.º do Código de Processo Civil, segundo os quais a adoção de mecanismos de simplificação e agilização processual devem garantir a justa composição do litígio.
Por isto que, nem os critérios de julgamento próprios do processo de jurisdição voluntária, nem os poderes de gestão processual genericamente aplicáveis aos processos cíveis, permitem ao juiz dispensar a produção de provas arroladas pelas partes ou deixar de realizar a audiência de discussão e julgamento, por razões de conveniência ou de oportunidade, nos casos em que a lei prevê a sua realização.
Acresce dizer que no processo especial de regulação do exercício das responsabilidades parentais e resolução de questões conexas se forem apresentadas alegações há sempre à audiência de discussão e julgamento, sejam ou não apresentadas provas, como resulta com suficiente clareza da disjuntiva “ou” introduzida na redação do artigo 39.º, n.º 7 – “se forem apresentadas alegações ou apresentadas provas, tem lugar a audiência de discussão e julgamento” – o que constitui um claro desvio à regra geral do processo civil, segundo a qual findos os articulados o juiz poder conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas [artigo 595.º, n.º 1, alínea b) e n.º 3, segunda parte, do Código de Processo Civil].
Nos referidos procedimentos, apresentadas alegações, tem lugar a audiência de discussão e julgamento ainda que o estado do processo permita conhecer do mérito da causa sem necessidade de mais provas, o que significa que a audiência de discussão e julgamento também não pode deixar de ter lugar nos casos em que as partes apresentam alegações e juntam prova com vista à demonstração de factos controvertidos.
O que é particularmente evidente no caso dos autos, estamos em crer, uma vez que neles subsistem factos que, por controvertidos, carecem de prova (cfr. v.g. artigos 5º e 8º e 29º a 33º das alegações respetivamente juntas a fls. 53 e 54 a 58 vº dos autos).
Proferida a sentença antes de se haver realizado a audiência de discussão e julgamento, por forma a facultar às partes a produção da prova tempestivamente arrolada, o procedimento encerra, por omissão, uma irregularidade suscetível de influir no exame e decisão da causa e, assim, uma nulidade, geradora da anulação do ato praticado e dos termos subsequentes que dele dependam absolutamente (artigo 195.º, nºs 1 e 2, do CPC).
Assim o acórdão desta Relação de 5/12/2019: “(…) ao não designar data para a realização de audiência de julgamento, na qual o recorrente poderia produzir a prova testemunhal por si arrolada, o juiz a quo violou o direito de defesa do requerido consagrado no artigo 20.º da CRP, cometendo uma nulidade processual suscetível de influir na instrução e na decisão da causa, a qual, por conseguinte, implica a anulação da sentença e a baixa dos autos ao tribunal de primeira instância a fim de o mesmo proceder em conformidade com o disposto no artigo 41.º, n.º 7, do RGPTC”.[4]
Os autos deverão, pois, prosseguir com a produção de prova arrolada pelas partes, proferindo-se depois a sentença com a discriminação dos factos provados e não provados.
Solução que prejudica o conhecimento das demais questões colocadas no recurso, uma vez que permanecerá inalterada independentemente de tal conhecimento.

3. Custas
Vencido no recurso, incumbe ao Recorrido o pagamento das custas (artigo 527.º, n.º 1, do CPC), uma vez que o Ministério Público se mostra isento do seu pagamento (artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento das Custas Processuais).

Sumário (da responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
(…)

IV. Dispositivo
Delibera-se, pelo exposto, na procedência do recurso, em anular a decisão recorrida e sem prejuízo de se ordenar em 1ª instância as diligências de instrução que, por permitidas, venham a considerar-se necessárias, determina-se que os autos prossigam com a realização da audiência de discussão e julgamento e a produção das provas arroladas pelas partes decidindo-se depois conforme for de direito.
Custas pelo Recorrido.
Évora, 11/11/2021
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
_________________________________________________
[1] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, páginas 56 e segs.; cfr. ainda Manuel Tomé Soares Gomes, Revista do CEJ, 2º semestre 2005, n.º 3, que a dado passo refere: “O direito à prova é um pilar fundamental do direito à proteção jurídica por via judiciária, que compreende não só o direito das partes a disporem no processo dos meios de prova sobre os factos alegados, mas também o direito ao modo de participação na produção de prova, nos termos previstos na lei (…)”.
[2] Ac. TC de 29/11/91, com sumário disponível em www.dgsi.pt.
[3] Cit. por Fernando Gil, Neutralidade do facto e ónus da prova, Sub Judice n.º 4, 1992, página 8.
[4] Proc. n.º 2310/13.8TBCLD-A.E1, decisão em www.dgsi.pt.