Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
649/13.1TMFAR-E.E1
Relator: ELISABETE VALENTE
Descritores: CONTRADITÓRIO
INSTITUIÇÃO PARTICULAR DE SOLIDARIEDADE SOCIAL
DEVER DE COLABORAÇÃO COM O TRIBUNAL
Data do Acordão: 06/09/2022
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Sumário: I – Não se pode falar em “incumprimento da decisão do tribunal” numa situação em que é decidido “permitir a saída da criança, (…), aos fins-de-semana para conviver com os seus pais” e a instituição em que permanece o menor não o permite quando o faz por razões que se prendem com a pandemaia que exigiu medidas para as quais as instituições não estavam preparadas e que justificam excepções e ponderação de factores que neste caso, no mínimo deveriam ter sido debatidos no tribunal obviamente com a intervenção da instituição em causa e em que tal decisão foi dada sem audição da instituição.
II - As decisões do tribunal devem ser proferidas após audição dos intervenientes envolvidos nas mesmas.
III- Não há razão para que as instituições de acolhimento não tenham direito ao contraditório sempre que a decisão as implique, tanto mais em situação de pandemia e respeitante a factos que ponham em causa o seu normal funcionamento.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1 – Relatório.

Em 2/2/2022, foi proferido despacho que determinou o seguinte: «sem prejuízo de a medida de acolhimento residencial aplicada à criança, (…), ter sido mantida por mais 6 meses nos termos do despacho de revisão de 5/1/2022, em 2/2/2022 “Pelo exposto, nos termos do artigo 58.º, alínea a), da LPCJP, determino que o (…) possa conviver com os pais todos os fins-de-semana em casa dos progenitores, recolhendo os pais o filho na casa de acolhimento às sextas-feiras pelas 18:00/19:00 horas e entregando a criança no mesmo local aos domingos pelas 18:00/19:00 horas.---Mais determino que o (…) possa conviver com os pais nas férias escolares da Páscoa durante o período de uma semana que deverá incluir o domingo de Páscoa.”
Na sequência dessa decisão a Casa de Acolhimento “Refúgio (…)” enviou a comunicação de fls. 66, onde entre outras razões explicou que não autorizava a saída no fim de semana em causa porque não podia permitir a saídas das crianças já que podiam voltar com covid, que no entender da instituição o regime intermitente não é benéfico para o menor em causa e que no fim de semana em causa iria ser administrada a 2ª dose de vacina no menor.
Por despacho de 9/2/2022, o Tribunal manteve a referida decisão de 2/2/2022 quanto aos convívios da criança com os pais aí estabelecidos e determinou o que se segue: “Pelo exposto, mantém o Tribunal a decisão proferida em 2/2/2022 nos seus exactos termos, advertindo expressamente a Casa de Acolhimento de que deverá cumprir tal decisão e permitir a saída da criança, Paulo Pina, aos fins-de-semana para conviver com os seus pais nos termos aí definidos, sob pena de, não o fazendo, poder ser condenada em multa / sanção pecuniária compulsória de 3 UC (€ 306,00) por cada convívio incumprido de forma injustificada (artigo 829.º-A do Código Civil). Advirta ainda da possibilidade de a Casa de Acolhimento e respectivos representantes legais poderem incorrer na prática de crime de desobediência, previsto e punível pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal em caso de novos incumprimentos injustificados dos convívios aos fins-de-semana determinados pelo Tribunal.”
Foram prestadas informações pela Segurança Social (ATT) constantes de fls. 81 e ss.
O Ministério Público em 7/3/2022, promoveu no sentido de a Instituição ser condenada em multa e de ser extraída certidão para investigação da prática de um crime de desobediência nos termos advertidos no despacho de 9/2/2022.
Foi proferida decisão que (decisão recorrida):
1. Condenou, nos termos do artigo 41.º do RGPTC e 829.º-A do CC, o Refúgio (…), Instituição Particular Cristã de Solidariedade Social (IPSS), em multa fixada em 15 UC (€ 1.530,00).
2. Ordenou a extracção de certidão para investigação criminal da prática pela referida IPSS e seus administradores de um crime de desobediência previsto e punível pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, certidão essa contendo as peças processuais mencionadas na matéria de facto dada como provada na presente sentença e aí expressamente identificadas.
3. Tendo em conta as participações já efectuadas ao Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, na pessoa do respectivo Exmo. Sr. Ministro, e ao Centro Distrital da Segurança Social de Faro, na pessoa da sua Exma. Sra. Directora, por despacho de 9/2/2022, ordenar a comunicação da presente decisão a tais entidades, advertindo-se do disposto no artigo 88.º da LPCJP quanto ao carácter reservado do processo. Mais solicite que seja comunicado por ambas as entidades a este Tribunal o resultado das referidas participações.
4. Comunicar a presente decisão ao Exmo. Sr. Juiz Presidente desta Comarca, advertindo-se do disposto no artigo 88.º da LPCJP.
Notifique os pais, a Casa de Acolhimento, a ATT e o Ministério Público. Registe.
Considerando o aí exposto quanto a manter a Casa de Acolhimento a recusa de cumprimento dos convívios determinados por este Tribunal, bem como a disponibilidade dos pais para aceitarem a suspensão dos convívios aos fins-de-semana até à diligência de 1/4/2022 (convocada precisamente para se definir solução para o problema gerado pelo incumprimento da Casa de Acolhimento de tais convívios), julga-se ser de relevar a posição assumida pela ATT no sentido de estes serem suspensos até 1/4/2022, data em que os progenitores serão ouvidos. Tal decisão de suspensão de convívios até à referida data é única e exclusivamente motivada pela salvaguarda do bem-estar emocional da criança face ao comportamento da Casa de Acolhimento de impedimento de tais convívios, assegurando-se por essa via que a criança, (…), tanto quanto possível, não fique emocionalmente afectada pela ansiedade de não saber se irá ou não conviver com os progenitores nesses fins-de-semana.
Pelo exposto, determina-se a suspensão de tais convívios aos fins-de-semana até à diligência de 1/4/2022.
Dê conhecimento à ATT, aos pais, à Casa de Acolhimento e ao Ministério Público. Solicite à ATT que comunique por via da técnica gestora do caso pessoalmente à criança a presente decisão.
Oportunamente, no dia 1/4/2022, o Tribunal tomará uma decisão quanto a tal questão, não se ouvindo a criança sobre o assunto, uma vez que já foi ouvida em 2/2/2022 e que importa não a melindrar.
Aguardem, pois, os autos a realização da diligência no dia 1/4/2022.»

Inconformado com tal decisão, veio o “Refúgio…” interpor recurso contra a mesma, apresentando as seguintes as conclusões do recurso (transcrição):
« I. O presente recurso versa sobre a sentença proferida pelo Tribunal a quo no dia 11.03.2022, através da qual a ora Recorrente foi condenada, nos termos do artigo 41.º do RGPTC e artigo 829.º-A do Código Civil, numa multa fixada em 15 UC (€ 1.530,00), tendo sido, simultaneamente, ordenada a extração de certidão para investigação criminal da prática de um crime de desobediência.
II. A sentença recorrida faz uma errada interpretação e aplicação da LPCJP, nomeadamente dos artigos 53.º, n.º 3, 58.º, n.º 1, alínea a) e 126.º, assim como do Regime de Execução do Acolhimento Residencial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 164/2019, de 25 de outubro, nomeadamente dos artigos 21.º, n.º 1, alínea m), artigo 22.º, alínea f), artigo 23.º, n.º 1, alínea e), artigo 24.º, alínea c), artigo 25.º, alínea d), artigo 26.º, alíneas a), f) e j) e artigo 28.º.
III. A sentença recorrida faz, ainda, uma errada interpretação e aplicação do artigo 41.º da LPCJP e do artigo 829.º-A do Código Civil, sendo, também, nula ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, porquanto não fundamenta, em termos de direito, a aplicação destes dois normativos legais à situação da ora Recorrente.
IV. A matéria de facto provada constante da sentença não reproduz com exatidão e rigor as diversas informações constantes dos autos, incluindo conclusões e interpretações subjetivas do Tribunal a quo, as quais não são admissíveis e, por essa razão, vão impugnadas com o presente recurso.
V. No ponto 1 da matéria de facto provada esqueceu-se o Tribunal a quo de incluir que, no despacho proferido no dia 05.01.2022, determinou a convocatória dos pais e da criança para serem ouvidos, conjuntamente com a técnica da ATT, mas também determinou a convocatória da técnica da Casa de Acolhimento para ser ouvida na mesma data, requerendo-se a V. Ex.ª a respetiva inclusão, tudo nos termos do próprio despacho de revisão datado de 05.01.2022.
VI. O ponto 4 da matéria de facto provada é uma mera falácia, que se impugna, na medida em que, como o Tribunal a quo deveria saber, a Recorrente, enquanto casa de acolhimento, não tem legitimidade para recorrer de qualquer decisão de aplicação, manutenção, alteração ou cessação de uma medida de promoção e proteção, nos termos do n.º 2 do artigo 123.º da LPCJP (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12.03.2008, proferido no âmbito do processo 625/08-1 pelo Exmo. Senhor Relator António Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt), pelo que não se compreende a razão de se ter incluído na matéria de facto provada este ponto que deverá ser, consequentemente, eliminado.
VII. O Tribunal a quo esqueceu-se de incluir na matéria de facto assente que, ao contrário do vertido na decisão de 05.01.2022 e em violação do disposto no n.º 4 do artigo 54.º da LPCJP e alínea a) do n.º 1 do artigo 18.º e alíneas a) e b) do artigo 25.º, ambos do Decreto-Lei n.º 164/2019, de 25 de outubro, na conferência realizada no dia 02.02.2022 a Técnica da ora Recorrente não foi ouvida.
VIII. Esta introdução é tanto ou mais relevante para toda e qualquer decisão posterior quanto ao regime pretendido aplicar pelo Tribunal a quo, e que teria de obter necessariamente a prévia anuência da Recorrente, porquanto exigiria desta a prática de atos não compreendidos no seu normal funcionamento e/ou no seu regulamento interno.
IX. Tendo sido confrontada com o despacho proferido no dia 02.02.2022 de aplicação de um regime de residência alternada entre a Instituição e a família biológica, a ora Recorrente reagiu nos termos explanados no requerimento remetido ao Tribunal a quo no dia 04.02.2022 e que a decisão de que se recorre apenas transcreve um único parágrafo.
X. Nesse requerimento, a Recorrente explica detalhadamente ao Tribunal a quo a sua impossibilidade objetiva, técnica, organizativa e logística de cumprir com o regime estipulado, não estando o cumprimento ou incumprimento do regime estabelecido dependente de qualquer ato de boa vontade da Recorrente, como se retira do ponto 12 da matéria de facto provada que, por essa razão, também vai impugnado.
XI. É falso que o despacho que foi notificado à Recorrente em 10.02.2022 seja fundamentado, impugnando-se o teor do ponto 11 dos factos provados.
XII. A este respeito, a Recorrente recebeu apenas a simples página da notificação lavrada pela Sra. Oficial de Justiça (…) sob a referência 123194721, através da qual foi informada de que o Tribunal a quo mantinha a sua anterior decisão e que esta deveria ser cumprida sob pena de se virem a aplicar penalidades.
XIII. Se existe algum despacho fundamentado, não foi dado conhecimento do mesmo à Recorrente.
XIV. O ponto 12 dos factos provados também é enganador e não reproduz com exatidão o requerimento da Recorrente datado do dia 11.02.2022, através do qual a Recorrente reiterou e justificou, uma vez mais, a sua impossibilidade (objetiva) de cumprimento do judicialmente ordenado, mais informando que, mantendo-se aquela decisão, não existiria outra alternativa que não a transferência da criança para outra Instituição.
XV. Esse pedido de transferência foi motivado não por qualquer questão atinente à criança ou ao seu superior interesse, mas apenas e somente por existir um claro conflito de interesses entre os direitos da Recorrente a ver cumprido o seu regulamento interno e respeitada a sua autonomia, organização e funcionamento e a decisão judicial violadora de tais direitos da Recorrente sob a ameaça de condenação nos termos efetivamente decididos na sentença de que se recorre.
XVI. O ponto 13 dos factos provados também peca pela falta de rigor, na medida em que tal despacho proferido no dia 15.02.2022 não se pronuncia nem fundamenta minimamente a manutenção do regime fixado tendo em consideração a impossibilidade objetiva da Recorrente em cumprir com o regime de “residência alternada” pretendido pelo Tribunal a quo e, sucessiva e reiteradamente, comunicado pela Recorrente.
XVII. Não existe em nenhum daqueles despachos (02.02.2022, 09.02.2022, 15.02.2022 e 04.03.2022), uma única palavra relacionada com a impossibilidade objetiva da Recorrente em cumprir o regime determinado, limitando-se os mesmos a estabelecer determinadas sanções em caso de manutenção do não cumprimento das ordens judiciais anteriormente proferidas.
XVIII. Os pontos 15, 16 e 17 revelam a ausência de imparcialidade com que foi elaborada a sentença ora em crise, contendo conclusões e expressões subjetivas («não pôde», «Respondendo-lhes a Casa de Acolhimento que havia apresentado recurso», «Apesar de tal recurso só ter sido interposto em 22/2/2022»), ao invés de matéria factual, devendo, por essa razão, serem devidamente alterados por violação do disposto no n.º 2 do artigo 266.º da CRP.
XIX. Na sentença recorrida, o Tribunal a quo não reproduz o relatório social da ATT de 23.02.2022, o qual, debruçando-se sobre os fins-de-semana, contem dois parágrafos importantíssimos e que revelam os receios e medos dos progenitores relativamente ao regime de residência alternada pretendido pelo Tribunal a quo, através do qual o (…) é discriminado positivamente em relação ao seu irmão (…), também ele acolhido na Recorrente.
XX. Apesar de toda a matéria constante dos autos relativamente à impossibilidade objetiva da Recorrente em colocar em prática o regime de residência alternada pretendido pelo Tribunal a quo, e dos receios dos próprios progenitores, foi mantido aquele regime, advertindo-se uma vez mais a Recorrente para as sanções a aplicar em caso de incumprimento, sendo ordenada a abertura de vista ao Ministério Público para se pronunciar «sobre a eventual condenação em multa/sanção pecuniária compulsória da referida Instituição, nem sobre a extracção de certidão para investigação criminal».
XXI. Ao contrário do expendido no ponto 21 dos factos provados, que se impugna, o Ministério Público não promoveu que se aplicasse à Recorrente «as consequências do incumprimento aludidas em 11)», tendo antes se limitado a pugnar pelo sancionamento da Recorrente sem, contudo, indicar quais as sanções que entendia ser legalmente aplicáveis ao presente caso, nunca se tendo pronunciado, direta ou indiretamente, pelas legalidade da aplicação das sanções mencionadas pelo Tribunal a quo nos seus anteriores despachos.
XXII. Atualmente, o regime de residência alternada foi, finalmente, eliminado, após audição da Técnica da Recorrente no passado dia 01.04.2022, tendo, no entanto, o Tribunal a quo sancionado a Recorrente nos termos da sentença ora em crise.
XXIII. A ora Recorrente considera, com muito respeito por opinião contrária, que as ordens judiciais constantes dos despachos de 02.02.2022, 09.02.2022, 15.02.2022 e 04.03.2022 impõem-lhe uma obrigação inexigível, ilegítima e contrária à lei que, por essa razão, a ora Recorrente não estava obrigada a cumprir.
XXIV. Efetivamente, nos presentes autos de promoção e proteção de menores, foi aplicada ao (…) a medida de promoção e proteção de acolhimento residencial prevista na alínea f) do n.º 1 do artigo 35.º da LPCJP, a qual é disciplinada pelos artigos 49.º a 54.º da LPCJP e bem assim pelo previsto no Decreto-Lei n.º 164/2019, de 25 de outubro.
XXV. O quadro normativo previsto na lei de promoção e proteção de crianças e jovens em perigo apenas permite aos tribunais de família e menores em caso de aplicação da medida de acolhimento residencial, decidir em pela manutenção ou pela restrição dos convívios da criança acolhida com a respetiva família (artigo 58.º, n.º 1, alínea a), da LPCJP).
XXVI. Optando o Tribunal pela manutenção dos convívios, estes serão estabelecidos de acordo com os horários e regras de funcionamento em vigor em cada Instituição, conforme dispõe o n.º 3 do artigo 53.º da LPCJP.
XXVII. O Tribunal a quo não tem capacidade, nem poderes para impor um regime de convívios ou de residência alternada entre a Recorrente e a família da criança, diferente do previsto no regulamento interno e em vigor na Recorrente e/ou mediante a prévia concordância desta.
XXVIII. O Decreto-Lei n.º 164/2019, de 25 de Outubro que estabelece o regime de execução do acolhimento residencial disciplina, precisamente, os direitos e deveres das crianças, das famílias e dos centros de acolhimento residencial, estabelecendo em todos os seus normativos legais a obrigatoriedade de cumprimento e respeito pelas normas de funcionamento e regulamento interno das instituições.
XXIX. Também o artigo 23.º, n.º 1, alínea e), deste Decreto-Lei estabelece como direitos dos familiares o contacto com a criança acolhida em datas e horários definidos considerando as regras do regime de visitas da casa de acolhimento.
XXX. A alínea j) do artigo 26.º deste Decreto-Lei invocada pelo Tribunal a quo na sentença de que se recorre, efetivamente prevê como um dever da casa de acolhimento, a autorização da saída das crianças «em situações em que a mesma implique a confiança da responsabilidade e cuidado da criança ou jovem a outrem, mediante consentimento expresso da comissão de proteção ou do tribunal, consoante os casos».
XXXI. Salvo o devido respeito que é muito, esta obrigação das casas de acolhimento nada tem a ver com a medida de promoção aplicada nem com o regime de convívios da criança com a família, os quais devem ser estipulados de acordo com o regime de visitas das casas de acolhimento e de acordo com os horários e as regras de funcionamento da casa, nos termos do n.º 2 do artigo 53.º da LPCJP e alínea e) do n.º 1 do artigo 23.º do Decreto-lei n.º 164/2019, de 25 de outubro.
XXXII. Esta obrigação refere-se a saídas pontuais e excecionais da criança e não a um regime fixo e semanal de saída da criança para o exterior e contrário às regras de funcionamento em vigor na Instituição.
XXXIII. Este regime de saídas fixas todos os fins-de-semana pretendido pelo Tribunal a quo apenas encontra semelhanças no processo tutelar cível com o regime de residência alternada, não existindo no nosso ordenamento jurídico, qualquer medida de promoção e proteção de menores com tamanha amplitude e alcance.
XXXIV. Concluindo-se, como tal, que o regime de residência alternada imposto pelo Tribunal a quo (sob a aparente camuflagem de convívios) e cujo incumprimento levou ao sancionamento da ora Recorrente através da sentença recorrida é ilegal e processualmente inadmissível, ainda que os processos de promoção e proteção de menores não estejam sujeitos a princípios de legalidade estrita.
XXXV. Sendo soberano, o Tribunal a quo está naturalmente limitado aos seus poderes jurisdicionais e ao cumprimento estrito da lei, estando-lhe vedado a imposição de obrigações a terceiras entidades que não são parte no processo, sem a expressa e prévia anuência destas e sem tal possibilidade estar prevista na lei.
XXXVI. O Tribunal a quo não tinha, nem tem, poderes para impor à Recorrente o cumprimento de uma residência alternada (a que apelidou de “convívios”) diferente do regime de visitas previsto no Regulamento Interno da Instituição, no Estatuto das IPSS ou, ainda, no Acordo de Colaboração existente.
XXXVII. E muito menos, sob a ameaça de aplicação de uma multa por cada fim- de-semana incumprido e com a extração de certidão para efeitos criminais nos termos em que a Recorrente foi condenada através da sentença recorrida.
XXXVIII. Principalmente se tivermos em consideração os vários alertas da Recorrente para a sua impossibilidade objetiva – técnica, humana, logística e organizativa – que a impedia de cumprir com o regime oficiosamente estabelecido e sem o seu prévio conhecimento ou consentimento.
XXXIX. As regras e normas em vigor na Recorrente têm em consideração as suas especificidades e valência, assim como têm em consideração, entre outros, (1) a faixa etária das crianças acolhidas, (2) o espaço disponível na Instituição para convívios das crianças acolhidas com os respetivos familiares, (3) o número de crianças acolhidas pela Instituição com regime de visitas de familiares em vigor e (4) o número de funcionárias disponíveis para a respetiva fiscalização e vigilância.
XL. É incompreensível que, atento o espírito e a nobreza da missão prosseguida pelo Refúgio (…) e que tem sempre em consideração o superior interesse das crianças, o Tribunal a quo, sem a prévia audição da Recorrente, a obrigue a determinado comportamento e que, após ser alertado para a impossibilidade – objetiva – de cumprimento desse comportamento, não só mantenha tal decisão como determine a aplicação de uma multa e extração de certidão para efeitos criminais.
XLI. Com certeza, o Tribunal a quo, com muita pena, não conhece o trabalho desenvolvido – e já muito galardoado – pelo Refúgio (…) e que tem sido colocado em prática nos últimos quase 40 anos, sempre em prol e no superior interesse das crianças acolhidas (a título de curiosidade, apesar de ser ano de pandemia, só em 2021, o Refúgio … conseguiu integrar 33 crianças nas respetivas famílias, 29 delas nas famílias biológicas).
XLII. Permitir que um Tribunal de Família e Menores imponha o cumprimento de um regime de residência alternada no âmbito dum processo de promoção e proteção de menores com medida de acolhimento institucional aplicada, sem a anuência da casa de acolhimento é totalmente contrário à lei, aos usos e aos bons costumes.
XLIII. Termos em que se requer a V. Exas. que, atendendo ao exposto supra, se dignem considerar ilegítimas e contrárias à lei as ordens constantes dos despachos de 02.02.2022, 09.02.2022, 16.02.2022 e de 04.03.2022 e, consequentemente, se dignem revogar a sentença de que se recorre na parte em que condena a Recorrente no pagamento de uma multa fixada em € 1.530,00 (mil quinhentos e trinta euros) e, bem assim, na parte em que ordena a extração de certidão para investigação criminal.
XLIV. Por outro lado, e independentemente de se considerarem as ordens judiciais supra mencionados legais e legítimas, cumpre acrescentar que a Recorrente considera que o Tribunal a quo não tem base legal para aplicação de qualquer multa pelo alegado incumprimento dos seus deveres enquanto casa de acolhimento.
XLV. A este respeito a sentença de que se recorre é nula, ao abrigo do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, porquanto não contém o mínimo de fundamentação de direito quanto às normas de que se socorre para aplicação de uma multa à ora Recorrente – artigo 41.º do RGPTC e artigo 829.º-A do Código Civil.
XLVI. A nulidade que ora se invoca sempre levará à revogação da condenação da ora Recorrente no pagamento da multa aplicada.
XLVII. Em todo o caso, sempre se dirá que o RGPTC não tem aplicação no caso em concreto, tal como não o tem o artigo 829.º-A do Código Civil.
XLVIII. Não podemos esquecer que estamos perante um processo de promoção e proteção de crianças regulado e regulamentado, para o que aqui interessa, pela LPCJP e pelo Decreto-Lei n.º 164/2019, de 25 de outubro.
XLIX. Nem a LPCJP, nem o mencionado Decreto-Lei preveem a aplicação de qualquer multa às casas de acolhimento que incumpram as suas obrigações no âmbito da execução das medidas de acolhimento aplicadas nos processos de promoção e proteção de menores.
L. O artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 164/2019, de 25 de outubro atribui competência fiscalizadora do cumprimento das obrigações das casas de acolhimento aos serviços competentes da segurança social, os quais podem, decorrente desse poder de tutela e supervisão, aplicar determinadas consequências previstas nos artigos 34.º e seguintes do Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social.
LI. Perante o incumprimento das ordens judiciais por parte da Recorrente, e partindo do pressuposto da legitimidade das mesmas – que não se concede – o Tribunal a quo apenas tinha poderes para comunicar esse incumprimento às entidades competentes como, de resto, o fez e consta da sentença ora recorrida.
LII. Com tal participação, o Tribunal a quo esgotou as suas competências e os seus poderes no que se refere ao comportamento da ora Recorrente enquanto IPSS e casa de acolhimento nos termos definidos na LPCJP.
LIII. Qualquer outra sanção aplicada à Recorrente pelo Tribunal a quo não tem cobertura legal.
LIV. O artigo 41.º do RGPTC não tem qualquer aplicação ao caso dos autos, porquanto não existe uma lacuna na lei, não podendo, de todo, ser a ora Recorrente condenada no pagamento de uma multa a coberto daquela norma legal, porquanto aquela norma não comporta aplicação analógica.
LV. Também o artigo 829.º-A do Código Civil exige que a sanção pecuniária compulsória seja requerida pela parte credora que, neste caso, não existe, retirando, assim, legitimidade ao Tribunal a quo para se socorrer desta norma na condenação da ora Recorrente.
LVI. Razão pela qual concluímos que as decisões de condenação da Recorrente em multa, assim como de extração de certidão para investigação criminal, devem ser revogadas para todos os efeitos legais.
Nestes temos e nos demais de Direito que V. Ex.as doutamente suprirão, deverá o presente Recurso ser considerado procedente e, em consequência:
a) deverá ser alterada a matéria de facto provada constante da sentença recorrida, nomeadamente no que se refere aos pontos 1, 4, 7, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17 e 21 nos termos indicados no presente recurso;
b) deverão ser consideradas ilegais, ilegítimas e contrárias à lei as ordens constantes dos despachos de 02.02.2022, 09.02.2022, 16.02.2022 e de 04.03.2022 e, consequentemente, deverá ser revogada a sentença de que se recorre na parte em que condena a Recorrente no pagamento de uma multa fixada em € 1.530,00 (mil quinhentos e trinta euros) e, bem assim, na parte em que ordena a extração de certidão para investigação criminal por desobediência às ordens constantes daqueles despachos;
Caso assim não se entenda, deverá ser declarada a nulidade da sentença de que se recorre, por falta de fundamentação de direito, no que se refere à aplicação de uma multa à ora Recorrente, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, com as demais consequências legais.
Caso, ainda, assim não se entenda deverá a condenação da ora Recorrente no pagamento da multa ser revogada pelas razões constantes do presente recurso,
Fazendo-se, assim, a tão costumada JUSTIÇA!»
Nas contra-alegações o M.º P.º conclui da seguinte forma:
a) A criança está acolhida desde 26 de agosto de 2019 (há quase4 3 anos).
b) No debate judicial 23 outubro 2019 a técnica do Refúgio foi ouvida assim como por diversas vezes na revisão da medida a equipa técnica da instituição sempre foi consultada., cf acima mencionado.
c) Antes do despacho da última revisão da medida a instituição foi notificada a 24.11.2021 para para, querendo, se pronunciar e nada respondeu.
d) A medida foi revista a 5-1-2022, no qual foi decidido manter a medida de acolhimento, sem prejuízo do aumento de convívios do (…) com os pais a ser decidido depois de ouvidos os intervenientes na data infra designada.”
e) Despacho de revisão de 05-01-2022, que determinou o aumento dos convívios não foi contestado nem recorrido.
f) O menor foi ouvido a 2-2-22 na presença da técnica da ATT (técnica da Segurança Social …) o qual manifestou desejo de ir viver com os pais.
g) O tribunal determinou que a criança, antes da reintegração familiar fosse a casa dos pais alguns fins de semana (conf havia sido decidido no despacho de revisão de cuja medida não houve recurso).
h) A necessidade de aumento de convívios da criança é manifesta e necessária pois durante a pandemia as visitas foram suspensas e passaram a ser muito restritas (os pais queixam-se de que tinham apenas 30 minutos de visitas por mês (cfr. doc. acima junto).
i) Foi determinado a ida da criança ao fim de semana a casa dos pais e a instituição reteve a criança e não cumpriu porque não concordava com a medida.
j) A medida fixava permanência da criança em casa dos pais, nada tem a ver com o estatuto e regime de visitas da criança na instituição.
k) Por tudo o exposto, uma vez que a instituição insiste em não cumprir, apesar das várias advertências, o tribunal não teve outra solução senão aplicar a multa referida, como deve fazer a qualquer cidadão ou entidade que não cumpra as decisões judiciais.
Por tudo o exposto, o recurso o douto despacho recorrido ao aplicar multa, cumpriu todos os requisitos materiais e formais, e é justificado porque a instituição não cumpriu com os convívios da criança com os pais, conforme havia sido judicialmente decidido.
Consideramos, pelo exposto que o despacho recorrido não enferma de qualquer irregularidade, formalidade e deve ser confirmado nos seus precisos termos, considerando-se improcedente o recurso.
No entanto, como sempre V. Exºs farão a costumada justiça.»
Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
Factos dados como provados na 1.ª instância:
1. Por despacho datado de 5/1/2022, foi mantida a medida de acolhimento residencial aplicada à criança, (…), por mais 6 meses, mais se determinando a convocatória dos pais e da criança para serem ouvidos, conjuntamente com a técnica da ATT, gestora do caso, em diligência a realizar no dia 2/2/2022 (cfr. despacho de revisão datado de 5/1/2022 junto nos autos).
2. Conforme referido em tal despacho de revisão de 5/1/2022: “Atenta a idade da criança (9 anos) e o facto de já se encontrar em acolhimento residencial há mais de 2 anos, importa definir rapidamente o projecto de vida da mesma, o qual, segundo a ATT, passará pela reintegração familiar junto dos pais. Nesse sentido, cumpre também definir convívios com os progenitores de modo muito habitual, preparando estes para as necessidades da criança no momento em que tal alteração possa vir a ser definida. Ora, tal definição exige a audição presencial dos pais e da criança, o que se determinará em data próxima infra.” (cfr. o aludido despacho de revisão).
3. Tal decisão aludida em 1) e 2) foi proferida em conformidade com o parecer da ATT veiculado no relatório social de 23/11/2021, segundo o qual, embora a criança tivesse uma relação muito carinhosa com os pais, ainda não estariam reunidas as condições para a aplicação de uma medida de apoio junto dos progenitores (cfr. relatório social da ATT de 23/11/2021, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
4. A Casa de Acolhimento “Refúgio (…)” foi notificada do referido despacho de revisão, não tendo impugnado o seu teor, designadamente, por via de recurso (cfr. ofício com a referência 122711902).
5. Por despacho de 2/2/2022, na sequência da audição da técnica da ATT, dos pais e da criança, foi determinado o seguinte: “Pelo exposto, nos termos do artigo 58.º, alínea a), da LPCJP, determino que o (…) possa conviver com os pais todos os fins-de-semana em casa dos progenitores, recolhendo os pais o filho na casa de acolhimento às sextas-feiras pelas 18:00/19:00 horas e entregando a criança no mesmo local aos domingos pelas 18:00/19:00 horas.---Mais determino que o (…) possa conviver com os pais nas férias escolares da Páscoa durante o período de uma semana que deverá incluir o Domingo de Páscoa” (cfr. acta de 2/2/2022 junta nos autos).
6. Durante a referida diligência, a criança, com 9 anos de idade, referiu ter convívios com os pais apenas na casa de acolhimento, querendo ter mais convívios com os progenitores e pretendendo ir residir com estes (cfr. a referida acta de 2/2/2022).
7. Por ofício remetido aos autos em 7/2/2022, a Casa de Acolhimento comunicou o Tribunal o seguinte (cfr. requerimento remetido pela Instituição na referida data e junto nos autos):
8. Alegou, para o efeito, que o facto de integrar 95 crianças, algumas das quais possuidoras de comorbilidades, bem como muitas das quais ainda não vacinadas, tornavam o cumprimento de convívios no exterior um risco de ocorrência de eventuais surtos de Covid (cfr. requerimento de 7/2/2022 deduzido pela Instituição).
9. Mais referiu que, caso o Tribunal entendesse que a criança poderia estar com os pais em convívios não supervisionados, então deveria substituir a medida por uma medida de apoio junto dos pais (cfr. requerimento de 7/2/2022 deduzido pela Instituição).
10. Apesar de, no relatório social de 23/11/2021, quando ouvida a Instituição, a mesma tivesse referido manifestado à ATT (Segurança Social) o seguinte quanto ao projecto de vida da criança: “A casa de acolhimento manifesta preocupação com as fragilidades dos progenitores, e sobretudo que estas possam vir a limitar/diminuir a capacidade de avaliação das necessidades futuras dos filhos, e nomeadamente do (…). Isto é, por vezes o relativizar a gravidade dos diagnósticos remete para a possibilidade futura de não ser atempadamente promovida a resposta necessária, ou procurada a ajuda essencial para a garantia do bem estar do (…). Na sua opinião a proposta futura mais adequada para o (…) poderia ser o Acolhimento Familiar.” (cfr. relatório social da ATT de 23/11/2021).
11. Por despacho fundamentado de 9/2/2022, o Tribunal julgou improcedentes os argumentos apresentados pela Casa de Acolhimento e, mantendo a decisão proferida em 2/2/2022, aludida em 4), e ordenou o seu cumprimento pela referida Instituição, advertindo-a nos seguintes termos: “Pelo exposto, mantém o Tribunal a decisão proferida em 2/2/2022 nos seus exactos termos, advertindo expressamente a Casa de Acolhimento de que deverá cumprir tal decisão e permitir a saída da criança, Paulo Pina, aos fins-de-semana para conviver com os seus pais nos termos aí definidos, sob pena de, não o fazendo, poder ser condenada em multa / sanção pecuniária compulsória de 3 UC (€ 306,00) por cada convívio incumprido de forma injustificada (artigo 829.º-A do Código Civil). Advirta ainda da possibilidade da Casa de Acolhimento e respectivos representantes legais poderem incorrer na prática de crime de desobediência, previsto e punível pelo artigo 348.º, n.º1, alínea b), do Código Penal em caso de novos incumprimentos injustificados dos convívios aos fins-de-semana determinados pelo Tribunal” (cfr. despacho de 9/2/2022 junto nos autos).
12. Veio a Casa de Acolhimento em 14/2/2022 requerer a transferência urgente da criança, (…), de Instituição, uma vez que não pretendia cumprir os convívios ordenados (cfr. requerimento da Instituição de 14/2/2022).
13. Por despacho fundamentado de 15/2/2022, o Tribunal indeferiu tal pretensão, ordenando, mais uma vez, à Casa de Acolhimento o cumprimento dos convívios da criança com os pais decididos em 2/2/2022, sob pena de incorrer nas sanções referidas em 11) (cfr. despacho de 15/2/2022).
14. Em 23/2/2022, a Casa de Acolhimento, mais uma vez solicitou ao Tribunal a alteração da medida de acolhimento residencial para a medida de apoio junto dos pais (cfr. requerimento de 23/2/2022).
15. Nos fins-de-semana de 4/2 a 6/2, 11/2 a 13/2 e 18/2 a 20/2, a criança, (…), não pôde conviver com os pais, não obstante estes tivessem contactado a Casa de Acolhimento para poderem recolher o seu filho (cfr. relatório social da ATT de 23/2/2022);
16. Respondendo-lhes a Casa de Acolhimento que havia apresentado recurso da decisão judicial de 2/2/2022 e que deviam aguardar a decisão de tal recurso (cfr. relatório social de 23/2/2022).
17. Apesar de tal recurso só ter sido interposto em 22/2/2022 (cfr. alegações de recurso juntas nessa data).
18. E de por despachos de 9/2/2022 e de 15/2/2022 este Tribunal ter ordenado o cumprimento imediato dos convívios ordenados em 2/2/2022, o que já havia feito no despacho de 2/2/2022 relativamente ao fim-de-semana de 4/2/2022 a 6/2/2022 (cfr. despachos de 2/2/2022, 9/2/2022 e de 15/2/2022).
19. O recurso interposto pela Casa de Acolhimento não foi admitido por despacho de 4/3/2022 (cfr. despacho com a referida data).
20. Perante a informação da ATT quanto ao não cumprimento dos convívios, em 4/3/2022, o Tribunal proferiu novo despacho com o seguinte teor: “Nestes termos, ordena-se à Casa de Acolhimento o cumprimento em todos os fins-de-semana dos convívios autorizados pelo Tribunal nos exactos termos já decididos em 2/2/2022. Ordena-se o cumprimento pela ATT de tal decisão mediante o acompanhamento dos pais na recolha da criança em todos os fins-de-semana, assegurando a sua entrega judicial nos termos dos artigos 41.º e 49.º do RGPTC enquanto a Casa de Acolhimento não cumprir voluntariamente tal decisão. Adverte-se ainda a Casa de Acolhimento novamente das consequências já referidas no despacho de 9/2/2022 nos termos dos artigos 348.º, n.º 1, alínea b), do CP, 41.º, n.º 5 e 49.º, n.º 6, do RGPTC. Notifique os pais, a ATT, a Casa de Acolhimento e o MP. Oportunamente, depois de o Ministério Público se pronunciar sobre a eventual condenação em multa e eventual extracção de certidão para inquérito, o Tribunal decidirá tal questão” (cfr. despacho com a referida data de 4/3/2022).
21. O Ministério Público pronunciou-se em 7/3/2022 no sentido de o Tribunal dever aplicar à Casa de Acolhimento as consequências do incumprimento aludidas em 11) (cfr. promoção de 7/3/2022).
22. Perante a decisão de assegurar o cumprimento dos convívios ordenados em 2/2/2022 por via de entrega judicial através da presença de técnica da ATT com os pais no acto de recolha da criança à sexta-feira, a Casa de Acolhimento comunicou à ATT o seguinte: “Pelo que se informa V. Ex.ª que o Refúgio (…) continuará a não cumprir com o regime de convívios decretado, o qual considera ilegal. Caso o (…) saia porventura do Refúgio (…) para passar um fim-de-semana com os pais, mais se informa que não se voltará a admitir o seu ingresso na Instituição, devendo V. Ex.ª tomar as devidas providências que considerem necessárias” (cfr. relatório da ATT de 10/3/2022).
23. Mais fez constar a Exma. Sra. Técnica no referido relatório de 10/3/2022 o seguinte: “Imediatamente após a sua receção foi efetuado o reencaminhamento do e-mail para os responsáveis hierárquicos do Centro Distrital de Segurança Social, e encetadas diligências, por vários interventores e interlocutores, no sentido de ser alcançada alteração da posição tomada pela instituição. Tal não logrou sucesso, mantendo-se a decisão da casa de acolhimento de não voltar a receber a criança (…) caso se concretize a entrega judicial na execução do regime de convívios. Considerando a segurança e bem-estar da criança em causa, que pelas suas características, não deve, nem pode, ser sujeita a fontes de stress e ansiedade (que seriam extremas no caso da recusa da instituição em o receber), e as características e fragilidades dos progenitores (que manifestamente têm dificuldade em gerir a ansiedade, frustração e conter impulsos) solicita-se que possa ser ponderado o adiamento da execução judicial do regime de convívios até à audiência prevista para o dia 1/04/2022. Contactados os progenitores estes manifestaram concordância com a atual sugestão, considerando ser primordial que a estabilidade do (…) seja assegurada, ainda que em detrimento dos convívios estipulados, mantendo-se focados no objetivo de alcançar as condições necessárias para que o (…) reintegre o agregado no fim do ano letivo (cfr. relatório de 10/3/2022).
24. Até à presente data ainda não ocorreram quaisquer convívios da criança em casa dos pais aos fins-de-semana nos termos estabelecidos pelo Tribunal em 2/2/2022 (cfr. relatório social de 10/3/2022).


2 – Objecto do recurso.

Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação, nos termos do artigo 684.º, n.º 3, do CPC:
1ª Questão – Saber se a sentença é nula por falta de fundamentação de direito, no que se refere à aplicação de uma multa à ora Recorrente, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
2ª Questão – Saber se deve ser alterada a matéria de facto provada constante da sentença recorrida, nomeadamente no que se refere aos pontos 1, 4, 7, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17 e 21 .
3ª Questão – Saber se houve incumprimento.


3 - Análise do recurso.

1ª Questão – Saber se a sentença é nula por falta de fundamentação de direito, no que se refere à aplicação de uma multa à ora Recorrente, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.

Diz a recorrente que, na no despacho de condenação em multa, o Tribunal a quo remete para os artigos 41.º do RGPTC e 829.º-A do CC, sem, contudo, fundamentar, em termos de direito, a aplicação daquelas leis à situação dos autos, sendo, por isso, nessa parte, a sentença nula nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
Não tem razão.
Nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC, é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Como já afirmava o Prof. Alberto os Reis, ob. citada, pág. 140, “Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade”.
Assim, como nos diz Rodrigues Bastos, "Notas ao Código de Processo Civil", vol. III, Lisboa, 1972, pag. 226: “a falta de motivação aqui prevista é a total omissão dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito em que assenta a decisão, sendo que uma especificação dessa matéria apenas incompleta ou deficiente não afecta o valor legal da sentença”.
Esse dever de fundamentação, causa de nulidade da sentença, respeita à falta absoluta de fundamentação, como dão nota A. Varela, M. Bezerra e S. Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, 1985, p. 687, ao escreverem “Para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente e incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”.
No mesmo sentido constitui jurisprudência pacifica e reiterada deste Supremo Tribunal de Justiça, sufragada, entre outros, nos acórdãos de 9.10.2019, Proc.º n.º 2123/17.8LRA.C1.S1, 15.5.2019, Proc.º n.º 835/15.0T8LRA.C3.S1 e 2.6.2016, Proc.º n.º 781/11.6TBMTJ.L1.S1, que só se verifica a nulidade da sentença em caso de falta absoluta de fundamentação ou motivação não bastando que esta seja deficiente, incompleta ou não convincente.
No caso dos autos, resulta à saciedade que a fundamentação da decisão recorrida existe.
Poderão os ora recorrentes não concordar com a fundamentação da decisão, mas tal discordância, só por si não consubstancia qualquer nulidade.
Improcede nesta parte o recurso.


2ª Questão – Saber se deve ser alterada a matéria de facto provada constante da sentença recorrida, nomeadamente no que se refere aos pontos 1, 4, 7, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17 e 21 .

Trata-se da seguinte matéria:
Facto 1 - «Por despacho datado de 5/1/2022, foi mantida a medida de acolhimento residencial aplicada à criança, (…), por mais 6 meses, mais se determinando a convocatória dos pais e da criança para serem ouvidos, conjuntamente com a técnica da ATT, gestora do caso, em diligência a realizar no dia 2/2/2022 (cfr. despacho de revisão datado de 5/1/2022 junto nos autos).»
Quanto a este facto, argumenta o recorrente que, também deve constar da matéria que “o despacho proferido no dia 05.01.2022, determinou a convocatória dos pais e da criança para serem ouvidos, conjuntamente com a técnica da ATT, mas também determinou a convocatória da técnica da Casa de Acolhimento para ser ouvida na mesma data”.
Por se entender relevante e resultar de fls. 61 atende-se o requerido incluindo-se tal facto na matéria assente.
Facto 4. «A Casa de Acolhimento “Refúgio (…)” foi notificada do referido despacho de revisão, não tendo impugnado o seu teor, designadamente, por via de recurso (cfr. ofício com a referência 122711902).»
Quanto a este facto, argumenta o recorrente que, enquanto casa de acolhimento, não tem legitimidade para recorrer de qualquer decisão de aplicação, manutenção, alteração ou cessação de uma medida de promoção e proteção, nos termos do n.º 2 do artigo 123.º da LPCJP (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de12.03.2008,proferido no âmbito do processo 625/08-1 pelo Exmo. Sr. Relator António Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt), pelo que não se compreende a razão de se ter incluído na matéria de facto provada este ponto que deverá ser, consequentemente, eliminado.
O que é relevante é que o referido despacho de revisão transitou em julgado.
Pede ainda o recorrente que, se consigne que: “na conferência realizada no dia 02.02.2022 a Técnica da ora Recorrente não foi ouvida” matéria que por se entender relevante e resulta de fls. 63 pelo que, se adita.
Embora o recorrente faça referência à intenção de impugnar o facto n.º 7 acaba por não concretizar nada a tal propósito pelo que não se considera tal impugnação.
Facto 11. «Por despacho fundamentado de 9/2/2022, o Tribunal julgou improcedentes os argumentos apresentados pela Casa de Acolhimento e, mantendo a decisão proferida em 2/2/2022, aludida em 4), e ordenou o seu cumprimento pela referida Instituição, advertindo-a nos seguintes termos: “Pelo exposto, mantém o Tribunal a decisão proferida em 2/2/2022 nos seus exactos termos, advertindo expressamente a Casa de Acolhimento de que deverá cumprir tal decisão e permitir a saída da criança, Paulo Pina, aos fins-de-semana para conviver com os seus pais nos termos aí definidos, sob pena de, não o fazendo, poder ser condenada em multa / sanção pecuniária compulsória de 3 UC (€ 306,00) por cada convívio incumprido de forma injustificada (artigo 829.º-A do Código Civil). Advirta ainda da possibilidade de a Casa de Acolhimento e respectivos representantes legais poderem incorrer na prática de crime de desobediência, previsto e punível pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal em caso de novos incumprimentos injustificados dos convívios aos fins-de-semana determinados pelo Tribunal” (cfr. despacho de 9/2/2022 junto nos autos)».
Quanto a este facto, argumenta o recorrente que não foi notificado de qualquer fundamentação, apenas recebeu a simples página da notificação lavrada pela Senhora Oficial de Justiça (…) sob a referência 123194721,através da qual foi informada de que “o Tribunal a quo mantinha a sua anterior decisão e que esta deveria ser cumprida sob pena de se virem a aplicar penalidades”.
Por relevante adita-se tal matéria.
Facto 12. «Veio a Casa de Acolhimento em 14/2/2022 requerer a transferência urgente da criança, (…), de Instituição, uma vez que não pretendia cumprir os convívios ordenados (cfr. requerimento da Instituição de 14/2/2022).»
Quanto a este facto, argumenta o recorrente que, é enganador e não reproduz com exatidão o requerimento da Recorrente datado do dia 11.02.2022, através do qual a Recorrente reiterou e justificou, uma vez mais, a sua impossibilidade (objetiva) de cumprimento do judicialmente ordenado, mais informando que, mantendo-se aquela decisão, não existiria outra alternativa que não a transferência da criança para outra Instituição, sendo que o pedido de transferência foi motivado não por qualquer questão atinente à criança ou ao seu superior interesse, mas apenas e somente por existir um claro conflito de interesses entre os direitos da Recorrente a ver cumprido o seu regulamento interno e respeitada a sua autonomia, organização e funcionamento e a decisão judicial violadora de tais direitos da Recorrente sob a ameaça de condenação nos termos efetivamente decididos na sentença de que se recorre.
A este propósito entende-se como melhor opção reproduzir o teor das comunicações efectuadas pelo recorrente, dando-se por reproduzido o teor de fls. 66 e 67, 74 e 75 e 78 a 80.
Facto 13. «Por despacho fundamentado de 15/2/2022, o Tribunal indeferiu tal pretensão, ordenando, mais uma vez, à Casa de Acolhimento o cumprimento dos convívios da criança com os pais decididos em 2/2/2022, sob pena de incorrer nas sanções referidas em 11) (cfr. despacho de 15/2/2022).»
E
Facto 14. Em 23/2/2022, a Casa de Acolhimento, mais uma vez solicitou ao Tribunal a alteração da medida de acolhimento residencial para a medida de apoio junto dos pais (cfr. requerimento de 23/2/2022)».
Quanto a estes factos, argumenta o recorrente que não são exactos pois o despacho proferido no dia 15.02.2022 não se pronuncia nem fundamenta minimamente a manutenção do regime fixado tendo em consideração a impossibilidade objetiva da Recorrente em cumprir com o regime de “residência alternada” pretendido pelo Tribunal a quo e, sucessiva e reiteradamente, comunicado pela Recorrente e não existe em nenhum daqueles despachos (02.02.2022, 09.02.2022, 15.02.2022 e 04.03.2022), uma única palavra relacionada com a impossibilidade objetiva da Recorrente em cumprir o regime determinado, limitando-se os mesmos a estabelecer determinadas sanções em caso de manutenção do não cumprimento das ordens judiciais anteriormente proferidas.
Cremos que deve ser eliminada a expressão “fundamentado” que é manifestamente conclusiva e dar por reproduzido o teor de fls. 68 e ss. e 76.
Facto 15, 16 e 17. «Nos fins-de-semana de 4/2 a 6/2, 11/2 a 13/2 e 18/2 a 20/2, a criança, (…), não pôde conviver com os pais, não obstante estes tivessem contactado a Casa de Acolhimento para poderem recolher o seu filho (cfr. relatório social da ATT de 23/2/2022);
Respondendo-lhes a Casa de Acolhimento que havia apresentado recurso da decisão judicial de 2/2/2022 e que deviam aguardar a decisão de tal recurso (cfr. relatório social de 23/2/2022).
Apesar de tal recurso só ter sido interposto em 22/2/2022 (cfr. alegações de recurso juntas nessa data).»
Quanto a tais factos, argumenta o recorrente que revelam a ausência de imparcialidade com que foi elaborada a sentença ora em crise, contendo conclusões e expressões subjetivas e não reproduz o relatório social da ATT de 23.02.2022, o qual, debruçando-se sobre os fins-de-semana, contem dois parágrafos importantíssimos e que revelam os receios e medos dos progenitores relativamente ao regime de residência alternada pretendido pelo Tribunal a quo, através do qual o (…) é discriminado positivamente em relação ao seu irmão (…), também ele acolhido na Recorrente.
Quanto ao exposto, por ser mais objectivo, deve ser dado por reproduzido o teor de fls. 81 e 82.
Facto 21. «O Ministério Público pronunciou-se em 7/3/2022 no sentido de o Tribunal dever aplicar à Casa de Acolhimento as consequências do incumprimento aludidas em 11) (cfr. promoção de 7/3/2022).
Quanto a este facto argumenta a recorrente que o Ministério Público não promoveu que se aplicasse à Recorrente «as consequências do incumprimento aludidas em 11)», tendo antes se limitado a pugnar pelo sancionamento da Recorrente sem, contudo, indicar quais as sanções que entendia ser legalmente aplicáveis ao presente caso, nunca se tendo pronunciado, direta ou indiretamente, pelas legalidade da aplicação das sanções mencionadas pelo Tribunal a quo nos seus anteriores despachos.
Também por ser mais rigoroso procede a alteração pretendida.


3ª Questão – Saber se houve incumprimento.

O Refugio (…), Instituição Particular Cristã de Solidariedade Social (IPSS), foi condenado em multa fixada em 15 UC (€ 1.530,00), nos termos do artigo 41.º do RGPTC e 829.º-A do Código Civil.
Dispõe o Artigo 41.º do RGPTC
Incumprimento
1 - Se, relativamente à situação da criança, um dos pais ou a terceira pessoa a quem aquela haja sido confiada não cumprir com o que tiver sido acordado ou decidido, pode o tribunal, oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou do outro progenitor, requerer, ao tribunal que no momento for territorialmente competente, as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até vinte unidades de conta e, verificando-se os respetivos pressupostos, em indemnização a favor da criança, do progenitor requerente ou de ambos.
2 - Se o acordo tiver sido homologado pelo tribunal ou este tiver proferido a decisão, o requerimento é autuado por apenso ao processo onde se realizou o acordo ou foi proferida decisão, para o que será requisitado ao respetivo tribunal, se, segundo as regras da competência, for outro o tribunal competente para conhecer do incumprimento.
3 - Autuado o requerimento, ou apenso este ao processo, o juiz convoca os pais para uma conferência ou, excecionalmente, manda notificar o requerido para, no prazo de cinco dias, alegar o que tiver por conveniente.
4 - Na conferência, os pais podem acordar na alteração do que se encontra fixado quanto ao exercício das responsabilidades parentais, tendo em conta o interesse da criança.
5 - Não comparecendo na conferência nem havendo alegações do requerido, ou sendo estas manifestamente improcedentes, no incumprimento do regime de visitas e para efetivação deste, pode ser ordenada a entrega da criança acautelando-se os termos e local em que a mesma se deva efetuar, presidindo à diligência a assessoria técnica ao tribunal.
6 - Para efeitos do disposto no número anterior e sem prejuízo do procedimento criminal que ao caso caiba, o requerido é notificado para proceder à entrega da criança pela forma determinada, sob pena de multa.
7 - Não tendo sido convocada a conferência ou quando nesta os pais não chegarem a acordo, o juiz manda proceder nos termos do artigo 38.º e seguintes e, por fim, decide.
8 - Se tiver havido condenação em multa e esta não for paga no prazo de 10 dias, há lugar à execução por apenso ao respetivo processo, nos termos legalmente previstos.
(Sublinhado nosso)
A recorrente defende que o artigo 41.º do RGPTC não tem qualquer aplicação ao caso dos autos, porquanto não existe uma lacuna na lei, não podendo, de todo, ser a ora Recorrente condenada no pagamento de uma multa a coberto daquela norma legal, porquanto aquela norma não comporta aplicação analógica. Tal como o artigo 829.º-A do Código Civil exige que a sanção pecuniária compulsória seja requerida pela parte credora que, neste caso, não existe, retirando, assim, legitimidade ao Tribunal a quo para se socorrer desta norma na condenação da ora. Recorrente.
Alega que, o quadro normativo previsto na lei de promoção e proteção de crianças e jovens em perigo apenas permite aos tribunais de família e menores em caso de aplicação da medida de acolhimento residencial, decidir em pela manutenção ou pela restrição dos convívios da criança acolhida com a respetiva família (artigo 58.º, n.º 1, alínea a), da LPCJP) e não estabelecer os horários e regras de funcionamento em vigor em cada Instituição, conforme dispõe o n.º 3 do artigo 53.º da LPCJP.
O Tribunal a quo não tem capacidade, nem poderes para impor um regime de convívios ou de residência alternada entre a Recorrente e a família da criança, diferente do previsto no regulamento interno e em vigor na Recorrente e/ou mediante a prévia concordância desta.
Alega ainda que reiterou e justificou, uma vez mais, a sua impossibilidade (objetiva) de cumprimento do judicialmente ordenado.
Vejamos:
É inequívoco que as decisões dos tribunais são para cumprir por todos os destinatários a quem se dirigem.
Também não se vê razão para que o recorrente não seja abrangido pelas sanções de incumprimento das decisões do tribunal, estabelecidas no artigo 41.º do RGPTC caso se verifiquem os seus pressupostos.
Cremos também que, o recorrente não sendo parte no processo mas apenas uma instituição que colabora com o Tribunal – não tinha legitimidade para recorrer do teor da medida aplicada pelo tribunal como se refere no referido Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de12.03.2008, proferido no âmbito do processo 625/08-1 pelo Ex.º Sr. Relator António Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt.
Também os despachos de advertência de cumprimento com o cominatório da multa são de mero expediente, na medida em que nada se decide (intimida a cumprir o decidido mas não tem cunho decisório) e por isso não cria direitos nem deveres.
Finalmente, também resulta demonstrado que a Associação não foi notificada de todo o conteúdo do despacho de 9.2.22 (só da decisão) como foi aditado à matéria de facto.
É neste contexto que importa averiguar se estamos ou não perante um incumprimento.
E no nosso modesto entender a resposta é de que não houve propriamente incumprimento por parte do recorrente.
Da sequência dos acontecimentos em causa ressaltam duas realidades que impedem a conclusão de incumprimento pelo recorrente:
Em primeiro lugar, o facto de na altura se estar a viver uma situação de pandemia, totalmente reconhecida que exigiu medidas para as quais as instituições não estavam preparadas e que justificam excepções e ponderação de factores que, neste caso, no mínimo, deveriam ter sido debatidos no tribunal, obviamente com a intervenção da instituição em causa.
Por outro lado, também se extrai dos factos que houve manifesta falta de comunicação, com possíveis equívocos, já que o despacho de 2/2/2022, foi proferido sem audição de técnico do Refúgio (…) e não houve resposta aos problemas que esta instituição colocou perante o tribunal (a sua impossibilidade organizativa e logística de cumprir com o regime estipulado bem como os aspectos negativos do estipulado, segundo o seu conhecimento da situação uma vez que o menor está permanece naquela instituição).
Com efeito, o que se nos afigura incorrecto é que decisões relativas à situação do menor, tenham sido proferidas sem audição da instituição necessariamente envolvida na decisão.
Não há razão para que as instituições de acolhimento não tenham direito ao contraditório sempre que a decisão as implique, tanto mais em situação de pandemia e respeitante a factos que punham em causa o seu normal funcionamento.
O tribunal deve sempre ouvi-las, para melhor aquilatar da verificação da colaboração que as mesmas impliquem.
Neste enquadramento, admite-se que a Associação tivesse expectativas no sentido de sensibilizar o tribunal para aquilo que era o seu entendimento relativamente à situação e que ao mesmo tempo era contrário ao ordenado.
Tanto basta no nosso modesto entender para considerar que não há propriamente uma situação de incumprimento .
No recurso é expressamente pedido que seja revogada a sentença também quanto à parte em que ordena a extração de certidão para investigação criminal por desobediência às ordens constantes daqueles despachos.
Ora, a extração de certidão é um acto de expediente, com um percurso processual próprio que é dirigido a terceiro, pelo que não nos compete a nós revogar tal decisão.
Ficam prejudicadas as demais questões invocadas no recurso.

Sumário: (…)

4 – Dispositivo.

Pelo exposto, acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto, revogando-se a decisão na parte em que «condenou o Refúgio (…), Instituição Particular Cristã de Solidariedade Social (IPSS), em multa fixada em 15 UC (€ 1.530,00)».
Custas pelo recorrente na proporção de metade.
Évora, 09 de Junho de 2022
Elisabete Valente (Relatora)
José António Moita (2.º Adjunto)

Declaração de Voto de Vencida
Votei vencida quanto à parte do acórdão que, julgando parcialmente procedente a apelação, revogou o segmento decisório de condenação do Refúgio (…), Instituição Particular Cristã de Solidariedade Social, em multa de 15 UC., na medida em que entendo verificar-se um incumprimento da decisão do tribunal, por parte da apelante, enquadrável, por isso, no disposto no artigo 41.º, n.º 1, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, doravante designado por RGPTC.
Passo a expor os fundamentos da minha posição:
1) Dispõe o artigo 41.º, n.º 1, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC), sob a epigrafe Incumprimento, que «Se, relativamente à situação da criança, um dos pais ou a terceira pessoa a quem aquela haja sido confiada não cumprir com o que tiver sido acordado ou decidido, pode o tribunal, oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou do outro progenitor, requerer, ao tribunal que no momento for territorialmente competente, as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até vinte unidades de conta e, verificando-se os respetivos pressupostos, em indemnização a favor da criança, do progenitor requerente ou de ambos».
2) Pressuposto da aplicação do preceito legal supra transcrito é uma situação de incumprimento do regime fixado de regulação das responsabilidades parentais.
3) Há “incumprimento” quando a prestação a que se está adstrito não se realiza, ou não se realiza nos termos devidos.
4) Um outro requisito é a imputabilidade do incumprimento, isto é, o incumprimento há-de ter sido causado pelo obrigado com culpa, isto é, com dolo ou negligência.
5) Em atenção ao princípio geral da boa fé, o qual se mostra contemplado no artigo 762.º, n.º 2, do Código Civil, o incumprimento há-se ser relevante, isto é, há-de ter alguma “gravidade” a qual se afere pelos interesses que se visam proteger, encontrando-se na primeira linha o “superior interesse da criança” .
6) No caso em apreço ao menor (…) foi aplicada a medida de acolhimento residencial, prevista no artigo 35.º, n.º 1, alínea f), da Lei n.º 147/99, de 09.09, a qual se encontra a ser executada na Casa de Acolhimento Refúgio (…).
7) Mediante despacho proferido em 05/01/2022 foi mantida a medida de acolhimento residencial aplicada à criança (…) por mais seis meses; e através de despacho proferido em 02/02/2002, e tendo em vista uma futura reintegração familiar da criança junto dos pais, o tribunal recorrido determinou que a criança (…) pudesse conviver com os pais todos os fins de semana em casa dos progenitores, os quais recolheriam o filho na Casa de Acolhimento às sextas feiras, pelas 18 horas/19 horas e o entregariam no mesmo local aos domingos, pelas 18H/19 horas, e, ainda, que nas férias escolares da Páscoa o menor pudesse conviver com os pais durante o período de uma semana que incluiria o Domingo de Páscoa.
8) A execução do regime alargado de “convívio” entre o menor (…) e seus pais exige a colaboração da instituição que acolhe o menor, a qual tem de o entregar e receber nos dias e horas estipulados pelo tribunal.
9) Não é controvertido que ambos os despachos referidos em 7) transitaram em julgado.
10) Nos termos do disposto no artigo 205.º, n.º 2, da Constituição da República, as decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades.
11) Por força do despacho proferido em 02/02/2022, a Casa de Acolhimento (…) estava obrigada a entregar o menor (…) a seus pais a cada sexta feira e a recebê-lo a cada Domingo, de forma a que aquele pudesse conviver com os progenitores nos períodos determinados pelo tribunal.
12) Não está em causa no presente recurso aferir da bondade do decidido pelo tribunal a quo através do despacho de 02/02/2022, o qual alargou o período de convívio entre o menor (…) e seus progenitores, ou se foram cumpridas, pelo tribunal todas as formalidades legai, antes da prolação daquela decisão, a qual, repete-se, transitou em julgado.
13) O que está em causa é aferir se a Casa de Acolhimento, aqui apelante, incumpriu, ou não, a sua obrigação de colaboração com o tribunal traduzida na entrega do menor aos seus pais nos períodos determinados pelo tribunal.
14) Não sendo controvertido que nos fins de semana de 4 a 6 de fevereiro, de 11 a 13 de fevereiro e de 18 a 20 de fevereiro, os progenitores de (…) não puderam recolher o seu filho, tendo este ficado privado do convívio com os pais nos termos estipulados pelo tribunal, tendo a Casa de Acolhimento Refúgio (…) justificado a não entrega do menor com o facto de ter apresentado recurso da decisão judicial de 02/02/2022, conclui-se que aquela não cumpriu a obrigação de entrega do menor a que estava obrigada.
15) Incumprimento que se enquadra no artigo 41.º, n.º 1, do RGPTC.
16) Pelo que não merece censura a decisão do tribunal a quo ao enquadrar a conduta da apelante no artigo 41.º, n.º 1, do RGPTC, que permite condenar o incumpridor no pagamento de uma multa.
Cristina Dá Mesquita (1.ª Adjunta)