Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2075/13.3GBABF.E1
Relator: JOÃO CARROLA
Descritores: CRIME DE BURLA
ELEMENTOS ESSENCIAIS DO CRIME
Data do Acordão: 01/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. São elementos do crime de burla:
a) a “astúcia” empregue pelo agente;
b) o “erro ou engano” da vítima devido ao emprego da astúcia;
c) a “prática de atos” pela vítima em consequência do erro ou engano em que foi induzida;
d) o “prejuízo patrimonial” – da vítima ou de terceiro – resultante da prática dos referidos atos;
e) nexo causal: é necessário que entre os elementos acima descritos existam sucessivas relações de causa e efeito, nomeadamente que: da astúcia resulte o erro ou engano; do erro ou engano resulte a prática de atos pela vítima; da prática desses atos resulte o prejuízo patrimonial;
f) intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo: é necessário que se verifique a existência de dolo.
II. Para a criação do erro ou engano não se mostra necessário que o agente contacte diretamente com a vítima prejudicada com a disposição patrimonial que vem a fazer, podendo esse erro ou engano ser provocado mediante a intervenção de terceiro.
III. Tal é o que sucede quando o agente se vale de qualidade falsa que invoca junto de intermediário em negócio de venda de viatura, este invoca aquela qualidade junto dos compradores e o agente, sabendo disso, mantém todos eles na ignorância da sua verdadeira qualidade tida como essencial para a realização do negócio.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I.
No processo comum n.º 2075/1.3GBABF do Juízo Central Criminal ..., Comarca ..., o arguido AA foi submetido a julgamento e, realizada a audiência, foi proferido acórdão que o condenou:
- Pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 217º e 218º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão;
- Pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 217º e 218º, n.º 2, alínea a) do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão;
- Pela prática de um crime de burla qualificada na forma tentada, previsto e punido pelo artigo 217º e 218º, n.º 2, alínea a) e 22º do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão e,
- Em cúmulo jurídico das penas parcelares acabadas de indicar, na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Desta decisão condenatória veio o arguido interpor recurso, com os fundamentos constantes da respectiva motivação que aqui se dá por reproduzida e as seguintes conclusões:
1. Por intermédio da sentença recorrida, foi o Recorrente condenado, pela prática de dois crimes de burla qualificada e um crime de burla qualificada na forma tentada.
2. O Recorrente não se conforma com a decisão contra si proferida.
3. Primeiramente considera não ter a sentença dado como provado de forma correta a prova produzida em sede de julgamento, bem como ter sido valorado os fatos de forma equitativa, o que obstou a boa decisão da causa.
4. Os ofendidos BB e CC sequer contactaram diretamente o recorrente, tendo acreditado numa história contacta por terceiros, o que não pode resultar numa culpa ao recorrente.
5. Primeiro porque dos atos praticados pelo recorrente não resulta a incidência dos crimes a que vem o recorrente condenado, o que influi diretamente com a aplicação da pena.
6. Não nos parece que tendo em conta os factos ora expostos e imputados ao Recorrente, seja proporcional a pena de prisão efetiva.
7. Até porque a pena privativa de liberdade obstará a possibilidade de ressarcimento do dano efetivamente causado ao Sr. DD.
8. Ademais, se a culpa é o limite máximo e inultrapassável na determinação da medida de qualquer pena, se atendermos ao facto de que do referido período até a presente data já decorreram mais de 10 anos sem nova incidência em novos crimes, tal facto também deverá ser valorado.
9. Resultando que, na determinação da pena, o tribunal recorrido violou o art.º. 71º do C.P. – visto que errou na ponderação dos elementos atenuantes e agravantes.
10. Pelo que, no limite deverá ser imposta outra pena, face a ausência do preenchimento do crime de burla qualificada na forma tentada, devendo no seu limite ser imposta uma pena passível de suspensão na sua execução.
11. Na verdade o Tribunal a quo não analisou bem a prova produzida em sede de julgamento e aquela constante nos autos.
12. Ora, o princípio da livre apreciação da prova é um princípio atinente à prova, que determina que esta é apreciada, não de acordo com regras legais pré-estabelecidas, mas sim segundo as regras da experiência comum e de acordo com a livre convicção do juiz, uma livre convicção que não pode ser arbitrária ou subjetiva e por isso, deve ser motivada. A motivação da convicção apresenta-se, pois, como o meio de controlo da decisão de fato, em ordem a garantir a objetividade e a genuinidade da convicção formada pelo tribunal.1
13. Nestes termos e nos melhores de Direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência face a prova produzida em sede de julgamento, ser o recorrente condenado apenas e tão-somente aos crimes por si praticados, devendo ser aplicada uma pena que coadune aos atos praticados.
14. Na medida em que a prova produzida impunha diversa consideração sobre a matéria de facto, pelo que a sentença recorrida incorre em erro notório na apreciação da prova. E de igual forma na aplicação da pena, ferindo de legalidade a sentença recorrida.
15. Alterando-se a matéria de facto provada e balizando-se a livre convicção pelas provas objetivas constantes nos autos, tanto mais que as declarações das testemunhas, deverá esse Venerando Tribunal revogar a sentença condenatória quanto ao Arguido, devendo ser aplicada uma nova pena, suspensa na sua execução, com vista a ser possível a compensação do ofendido DD.
1 ACSTJ de 11-07-2007. Consultado em www.dgsi.pt.”


O M.º P.º respondeu, concluindo:
1 – O arguido AA, vem recorrer do douto Acórdão proferido nos autos à margem referenciados, que o condenou, pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 217.º e 218.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão; pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 217.º e 218.º, n.º 2, alínea a) do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão; pela prática de um crime de burla qualificada, na forma tentada, previsto e punido pelo artigo 217.º e 218.º, n.º 2, alínea a) e 22.º, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;
Em o cúmulo jurídico foi o arguido condenado na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.
2 – O recorrente entende que não foi produzida prova suficiente que permita a sua condenação pela prática de um dos crimes de burla.
3 – Estriba tal entendimento no facto de nunca ter chegado sequer a falar com as testemunhas EE e FF, pessoas que supostamente desembolsaram os valores referidos no Acórdão recorrido e, como tal, não ser possível tê-los enganado astuciosamente.
4 - A convicção do Tribunal Colectivo foi devidamente motivada, dando, assim, adequado e cuidadoso cumprimento ao dever de fundamentação.
5 - O Tribunal formou a sua convicção através da conjugação de várias provas, designadamente: nas declarações do ofendido GG e das testemunhas HH, EE e II e no teor dos documentos juntos aos autos, em particular as declarações de fls. 194 e 196, elaborada pelo ofendido JJ a confirmar, respectivamente, o recebimento de €20.200,00 da testemunha BB, (datada de 24.10.2013) e de €10.500,00 da testemunha FF (datada de 24.10.2013).
6 – Desses depoimentos conjugados e documentos não restam dúvidas de que os factos dados como provados tiveram pleno apoio na prova produzida em audiência.
7 - Quanto à qualificação jurídica desses factos consideramos que nenhuma censura merece o d. Acórdão recorrido pois não há dúvida que são integradores do crime de burla qualificada pelo qual o arguido foi condenado.
8 – Na verdade, face à matéria dada como provada concluímos que o arguido actuou com astúcia produzindo um erro/engano no ofendido GG e que foi essa actuação que determinou o seu enriquecimento ilegítimo, com o correspondente prejuízo patrimonial que veio a ser sofrido pelas testemunhas EE e FF.
9 - Esta circunstância, em nada “afecta” o preenchimento dos elementos do tipo já que, como se retira da letra da lei, o prejuízo patrimonial pode ser do sujeito passivo ou de terceiro.
10 – O tribunal não errou no doseamento das penas parcelares e única.
11 - O crime de burla qualificada é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos e o arguido foi condenado, pela prática de dois crimes de burla qualificada e um crime de burla qualificada tentada, na pena única de 6 anos e 6 meses de prisão.
12 - O Acórdão a quo tomou em linha de conta todas as circunstâncias impostas: o grau de ilicitude acentuado, atento nomeadamente aos valores de que o arguido se apropriou, ao dolo directo, e às elevadas exigências de prevenção especial, tendo o arguido antecedentes criminais pela prática de crimes da mesma natureza.
13 - Para além destes aspectos, não podem também deixar de se considerar, como fez o tribunal, as fortíssimas exigências ao nível da prevenção geral.
14 - No que concerne à eventual suspensão da pena, considerando que se pugnou pela manutenção da pena concreta aplicada de 6 anos e 6 meses de prisão não se mostram reunidos os pressupostos do disposto no art. 50.º, do Código Penal, que apenas se refere a penas de prisão de medida não superior a 5 anos.”
Termina no sentido de não merecer censura a decisão recorrida.

Neste Tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta teve vista nos autos, elaborando parecer em que, aderindo à resposta ao recurso já apresentada, propugna pela improcedência do recurso.
Foi dado cumprimento ao artigo 417.º n.º 2 do C.P.Penal, o arguido ofereceu resposta em que reitera o que alegou na motivação.

II.
Colhidos os vistos legais, procedeu-se a conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
Antes de elencarmos as questões suscitadas no recurso importa tecer duas ou três observações quanto ao modo como o recurso se mostra interposto. Assim, a primeira dirige-se à divergência entre o que consta da motivação e o que consta das conclusões, em termos de clara não convergência decorrente de uma não integral observância do disposto no art.º 412º n.º 1 CPP - “…termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.” – uma vez que, enquanto naquela enuncia “as questões a decidir são as seguintes: - Impugnação da matéria de facto dada como provada - o Tribunal a quo julgou incorretamente os factos constantes da acusação no que tange a incidência do crime de burla qualificada quanto aos ofendidos BB e CC…”, nestas esse aspeto impugnativo mostra-se omisso.
Poder-se-ia dizer que essa divergência seria ultrapassável mediante o convite ao aperfeiçoamento das conclusões previsto na primeira parte do n.º 3 do art.º 417º CPP [“Se das conclusões do recurso não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.os 2 a 5 do artigo 412.º, o relator convida o recorrente a completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afetada.”], mas esse convite mostra-se comprometido pelo facto de, na própria motivação, não se mostrar indicado em concreto quais os factos que pretende impugnar, tal como impõe a al. a) do n.º 3 do art.º 412º CPP, não sendo possível lê-los na fórmula seguida pelo recorrente - os factos constantes da acusação – pois essa indicação terá de ser feita por relação à decisão condenatória e não à acusação. A isto acresce o facto de o recorrente não ter dado cumprimento, sequer na motivação, ao disposto na al. b) do n.º 3 do art.º 412º CPP, o que se mostra identicamente omisso nas conclusões, pelo que qualquer convite ao aperfeiçoamento só poderia traduzir um alargamento do recurso, o que se mostra inviabilizado pelo n.º 4 do art.º 417º CPP.
É certo que na página 5 da sua motivação o recorrente indica um meio de prova – testemunhal – que cita e do qual indica as referências à sua localização na gravação da audiência, mas, se se ler o segmento todo em que essa invocação se mostra feita, nenhuma referência concreta se faz ali quanto a um qualquer concreto facto provado, antes se aponta para uma apreciação da questão de direito, qual seja “tenha consubstanciado a incidência de dois crimes de burla qualificada e um na forma tentada” como mais à frente conclui, embora na decorrência de qualquer conhecimento/confronto directo entre o arguido e os ofendidos.
Por outro lado, se com a invocação desse testemunho concreto pretende impugnar qualquer facto dos provados na decisão recorrida, então teria de o identificar em concreto na motivação para se poder passar à fase do convite como acima se enunciou.
Acresce que na motivação de recurso o recorrente indica expressamente que “não pode o Recorrente concordar com os fundamentos indicados, pelo que deverá ser a sentença a quo corrigida, conforme previsto no artigo 380.º, n.º 1, alínea b) do CPP, por terem sido incorretamente dado como provado factos em dissonância com a prova produzida em sede de julgamento”, fundamento legal e pretensão que na realidade não conseguimos entender.
Na realidade, qualquer alteração da matéria de facto [incorrectamente dado como provado factos] só pode ser atingido através de duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P., no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º 3, 4 e 6, do mesmo diploma. Nunca por via da correcção da decisão mediante o mecanismo do art.º 380º CPP.
Aqui chegados, somos de concluir, face á impossibilidade de realização do convite pelas razões aduzidas, perante as conclusões da motivação do recurso, as quais, conforme jurisprudência constante e pacífica, delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271), as questões suscitadas são:
1. A decisão enferma de vicio de erro notório na apreciação da prova;
2. Se se verifica o preenchimento dos elementos típicos do crime de burla,
3.Medida da pena.

Do acórdão recorrido consta, na parte ora relevante:
FACTOS PROVADOS

Em data não concretamente do ano de 2012, o arguido AA decidiu engendrar um esquema que lhe permitisse obter proventos económicos à custa de terceiros.
Para o efeito, decidiu assumir-se como Inspetor da Polícia Judiciária de ..., visando convencer todos os que contactavam ou conviviam com ele que estavam na presença de um verdadeiro Inspetor da Polícia Judiciária, tratando-se dessa forma de pessoa séria e confiável para o comum dos cidadãos.
Como tal e por força do alegado exercício de tais funções, começou a informar potenciais interessados que lhes conseguiria a venda de veículos automóveis por valores abaixo do mercado.
Alegava que tais veículos estariam apreendidos no âmbito de processos-crime e teriam de ter o seu destino. Assim, o arguido, explicava que se tratavam de processos de venda legais e resultantes da normal tramitação processual, afirmou que seriam vendidos por despacho judicial e por valores inferiores ao mercado, tratando-se de bons negócios para os compradores e que, atentas as suas funções teria acesso a tais negócios e que os dava a conhecer apenas a algumas (poucas) pessoas das suas relações.
O arguido, para reforçar a sua credibilidade perante os seus potenciais "clientes", apesar de não apresentar qualquer identificação que confirmasse a sua alegada identidade, afirmava que, apesar de tal venda de veículos ser legal e devidamente acompanhada por Juiz, era uma negociação sigilosa e que não seria conveniente que os interessados dessem publicidade a tais processos.
O arguido, embora não desempenhasse qualquer cargo na Polícia Judiciária, auto intitulando-se agente/Inspector daquela força policial perante terceiros, convencia-os que estavam na presença de um verdadeiro agente/Inspector da polícia judiciária e que através dos seus conhecimentos e das prerrogativas legais afectas a tais funções profissionais conseguia acesso a processos para venda de veículos automóveis apreendidos.
Assim, no prosseguimento do seu plano, a partir de data não apurada, mas já durante os anos de 2012 e 2013, o arguido passou a frequentar a Pastelaria “Q...”, em ..., onde começou a ganhar confiança com o dono do estabelecimento, KK, perante quem se auto intitulava Inspetor da Policia Judiciária de ... e alegava que prestava “Serviço” diariamente apenas a partir da meia-noite.
O KK frequenta o ..., sendo adepto e praticante da modalidade de hóquei em patins.
Os jogos de tal clube têm habitualmente lugar nas sextas-feiras à noite a que se segue habitualmente, após os jogos, um jantar-convívio entre todos os atletas, membros e amigos.
O arguido passou a acompanhar o KK nas atividades de tal clube e em tais jantares-convívio, tendo estabelecido relações pessoais com outros membros, atletas e frequentadores desse clube, perante os quais se assumia sempre como Inspetor da Polícia Judiciária de ....
Entre esses membros, em data não apurada, mas nos finais do ano de 2012, o arguido conheceu o ofendido DD, que lhe foi apresentado pelo KK, mais uma vez, como sendo Inspetor da Polícia Judiciária.
A partir dessa altura, o arguido encontrava habitualmente o referido ofendido nos jantares semanais do clube.
O arguido, numa dessas ocasiões informou pessoalmente o ofendido DD que era efetivamente Inspetor da Polícia Judiciária que “fazia Serviço no Norte”, mas que tinha sido destacado para ... para substituir o Inspetor LL, que se tinha reformado.
Nesses jantares, era habitual o KK pagar o jantar ao arguido AA, como seu convidado.
Assim, o ofendido DD convenceu-se que o AA era efetivamente Inspetor da Polícia Judiciária de ....
Num dos jantares, em data não apurada, mas durante o Verão de 2013, numa das mesas onde o arguido se encontrava a jantar e em convívio com os membros do clube, estes estavam a conversar sobre a necessidade de um dos elementos de adquirir um veículo automóvel.
De facto, um dos convivas, de nome MM, comentou que lhe tinha agradado um veículo que vira à venda “on-line”, no site “OLX”.
O arguido intervém então, sempre no seguimento do plano anteriormente gizado e prontifica-se a verificar nos registos da Polícia se estava tudo certo com o veículo pretendido.
No Jantar da semana seguinte, aborda tais pessoas e informa-os que o carro referido não é uma boa compra, pois, após verificar a matrícula no seu local de trabalho, apercebeu-se que se tratava de um carro acidentado.
Explicou a quem o ouvia que vendia veículos apreendidos no âmbito das suas funções de Inspetor da Polícia Judiciária, tratando-se de veículos em boas condições e aprendidos em processos-crime.
Por tal razão, tais veículos seriam vendidos por valores abaixo do valor de mercado, sendo tudo legal e seguindo os procedimentos em uso para dar destino a tais objetos.
Como os valores referidos pelo arguido lhe pareceram valores interessantes, o ofendido DD perguntou-lhe se estaria disponível um veículo ... da Gama R.
O arguido disse-lhe então que, de facto, estava disponível um ... ... pelo preço de 24.250 Euros, o qual teria sido “apreendido em ... num processo de notas falsas”.
O arguido pediu-lhe confidencialidade no negócio, uma vez que, apesar de ser “oficial”, não deveria ser do “conhecimento geral.”
Depois da compra-e-venda estar combinada, o ofendido veio posteriormente a encontrar-se com o arguido, em dia não apurado do mês de Junho de 2013, no estabelecimento “C...”, em ....
Nesse local e data, o arguido exibiu ao ofendido um documento com as características do veículo em causa e no qual constava um número que referiu ser o número do Processo em que o veículo estava apreendido.
O arguido informou o ofendido que o preço do veículo seria de 24250 Euros, apenas caso fosse vendido por venda direta.
O ofendido, convencido da regularidade da proposta, concordou com as condições que lhe foram propostas.
O arguido pediu-lhe então 450 Euros em dinheiro para iniciar o processo de venda, valor que o ofendido lhe entregou alguns dias depois em mãos, numa sexta-feira, nas Bombas de combustível da Repsol das ..., em ..., local perviamente combinado para o efeito.
No dia seguinte, o arguido telefonou ao ofendido a dizer-lhe que ainda teria de pagar 65 Euros para o registo do veículo, o que ficou combinado para o próximo Jantar do Clube de Hóquei, o que veio a acontecer.
O arguido não entregou nenhum documento ao ofendido que confirmasse o negócio, mas informou-o que o veículo era seu e que o processo duraria cerca de 2 meses até à entrega.
O arguido manteve o contacto com o arguido e combinou-se a entrega dos 24250 Euros para o dia 9-7-2013, entre as 9h e as 10h, junto à CM de ..., a pagar em “dinheiro vivo”.
Nessa ocasião e lugar, o ofendido, convencido da regularidade do acordado e que teria adquirido um veículo automóvel nas condições que lhe foram propostas pelo arguido, entregou-lhe o valor acordado num envelope no qual foram juntas, por exigência deste, cópias do seu bilhete de identidade e da sua carta de condução.
Para efectuar tal pagamento, o ofendido procedeu ao levantamento de 17.000 Euros da sua conta do BANIF e o restante da sua conta da CGD.
Dois dias depois, o arguido abordou o ofendido durante um jantar do Clube e apresentou-lhe um requerimento de registo automóvel e um pedido de certificado de matrícula que este assinou.
Nessa ocasião, o arguido mostrou-lhe novas fotografias do veículo que alegadamente teria adquirido, embora não lhe tenha entregado qualquer documento.
Após a realização dessas reuniões e face à disponibilidade mostrada pelo ofendido em aceitar as suas condições, o arguido verificou que o seu estratagema tinha resultado e que aquele estava efetivamente convencido de estar na presença de um verdadeiro Inspetor da Polícia Judiciária, que tinha acesso a veículos apreendidos para venda a preços abaixo dos valores de mercado, pelo que resolveu aproveitar tal situação, locupletando-se com mais quantias monetárias.
Assim nesta mesma ocasião e lugar, o arguido propôs ao ofendido a venda de um outro veículo, da marca ... modelo ..., pelo valor de 25.500 Euros, nas mesmas condições e com a mesma proveniência do anterior.
O arguido informou o ofendido que tal veículo não poderia ser adquirido por si, pois um cidadão só poderia adquirir um veículo naquelas condições.
Ficou então combinado que o veículo seria registado em nome da esposa do ofendido.
O arguido pediu ao ofendido o pagamento de 450 Euros para dar início ao processo e 65 Euros para o respetivo registo, valores que este entregou àquele de imediato.
Mais lhe explicou que, em virtude da eventual adquirente, esposa do ofendido, ser funcionária pública, o pagamento poderia ser feito com uma entrada correspondente a metade do valor total e o resto pago na altura da entrega.
Todavia, o ofendido informou o arguido que procederia ao pagamento integral do segundo veículo apenas após a entrega do primeiro, pelo que, apesar da sua conduta, este não conseguiu concretizar a sua intenção de se apropriar do valor de 25.500 Euros, valor esse pedido para a venda do veículo ... modelo ....
Até ao dia de hoje, o ofendido não recebeu nenhum dos veículos que o arguido se obrigou a entregar-lhe, sendo certo que nunca mais o encontrou.
Através de tal estratagema, o arguido, durante o período referido, locupletou-se à custa do ofendido no valor global de cerca de € 25.280,00) sendo certo que nunca entregou qualquer recibo ou documento comprovativo em como tinha recebido tal valor.
Desta forma, com tais condutas, determinou o ofendido a entregar-lhe tais valores, o que efectivamente conseguiu.
Ainda no seguimento do plano previamente gizado, em dia não apurado de Julho de 2013, o arguido AA, dirigiu-se ao “Stand” de Automóveis “V...”, sito na Guia, ..., pertencente a JJ.
Ali chegado, mostrou interesse na aquisição de um veículo usado que ali estava à venda, de marca ..., de matrícula ..-IF-.., pelo valor de 10.500 Euros.
Dois dias depois, o arguido regressou ao referido estabelecimento e informou que iria proceder à aquisição de tal veículo, procedendo ao pagamento imediato de 150 Euros para dar início ao processo de compra.
No dia 12-07-2013, 3 dias depois de receber o pagamento do ofendido DD, o arguido adquiriu tal veículo e pagou o valor em falta no montante de 10.350 Euros, em “Dinheiro vivo”.
Nessa ocasião, o arguido apresentou-se como sendo “Polícia de Investigação Criminal em ...”.
A partir desse dia, o arguido passou a dirigir-se diariamente ao referido estabelecimento, onde ficava a conversar com o dono do mesmo.
Habitualmente, o arguido passava pelo referido estabelecimento na parte da tarde e informava o dono que estava a “sair do Serviço “ naquele momento.
Ao fim de alguns dias, o arguido informou-o então que tinha acesso a veículos automóveis apreendidos pela Polícia e que os conseguia adquirir por preços abaixo do custo de mercado, já que o valor seria atribuído pelo Juiz do processo ou pelo valor da penhora.
Mais acrescentou que os veículos teriam de ser vendidos a particulares e que seria necessário dar uma entrada em dinheiro para as custas do processo de venda.
Convencido da seriedade da proposta e que a mesma era efectuada por Inspector da Policia Judiciária que estava a actuar no exercício das suas funções a vender veículos apreendidos licitamente em processos criminais, o ofendido aceitou a proposta e solicitou que lhe fossem entregues os veículos de marca ... ..., ..., de cor ..., do ano de 2009, pelo valor de 12.700 Euros e o “...” ... pelo preço de 7.500 Euros.
Estes veículos destinavam-se ao seu cliente e amigo BB, que contactou nessa ocasião e a quem deu conhecimento da proposta do arguido.
Convencido este por sua vez que a conduta do arguido seria lícita e que era Inspetor da Policia Judiciária que atuava no exercício de funções e que procedia à venda legal de veículos apreendidos em Processo-crime, este ofendido acordou a compra de tais veículos pelos valores pedidos.
Assim, o ofendido entregou o valor total de 20.200 Euros no “Stand V...” ao arguido que se deslocou a esse local para receber tal valor, após contacto com o JJ.
Ainda no seguimento da proposta inicial do arguido, o ofendido JJ solicitou-lhe ainda a entrega de um veículo da marca ... ... de 2010, de cor ..., pelo preço de 10.500 Euros.
Tal veículo destinava-se ao seu amigo e cliente F..., que contactou nessa ocasião e a quem deu conhecimento da proposta do arguido.
Convencido este, por sua vez, que a conduta do arguido seria lícita e que este era Inspector da Polícia Judiciária que actuava no exercício de funções e que procedia à venda legal de veículos apreendidos em Processo-crime, este ofendido acordou a compra de tal veículo pelos valores pedidos.
Assim, este ofendido entregou o valor total de 10.500 Euros no “Stand V...” ao ofendido JJ que por sua vez o entregou ao arguido que se deslocou a esse local para receber tal valor.
Através de tal estratagema, o arguido, durante o período referido, locupletou-se à custa dos ofendidos no valor global de cerca de € 30.700,00) sendo certo que nunca entregou qualquer recibo ou documento comprovativo em como tinha recebido tal valor.
Desta forma, com tais condutas, determinou os ofendidos a entregar-lhe tais valores, o que efectivamente conseguiu.
O arguido agiu com a intenção de obter para si uma vantagem patrimonial de forma ilícita, obtendo para si um enriquecimento ilegítimo através da integração no seu património das quantias que recebeu de todos os ofendidos, à custa do prejuízo que lhes causou, induzindo-os astuciosamente nesse engano, que foi executado de forma ardilosa e astuciosa e que consistia em convencê-los que estavam na presença de um Inspector da polícia judiciária que, por força do exercício de tais funções, tinha acesso a veículo automóveis apreendidos em processos-crime.
Mais os convenceu que podia vendê-los a preços abaixo dos valores de mercado, tudo de forma legal e legítima, conseguindo através de tal esquema incutir-lhes a confiança necessária para que os mesmos lhe entregassem diversas importâncias monetárias para concretização de tais vendas, situações que lhes acarretaram prejuízos patrimoniais nos suprarreferidos montantes.
Até ao dia de hoje, todos os ofendidos continuam prejudicados no valor das quantias suprarreferidas, sendo certo que não recuperaram nem as quantias em dinheiro nem receberam os veículos que supostamente adquiriram.
Em todas as suprarreferidas condutas agiu o arguido no enquadramento factual e circunstancial supra descrito que criou no espírito dos ofendidos uma confiança e convicção de que estavam a tratar com um Inspector da Polícia Judiciária e que tais procedimentos eram habituais e conforme a Lei.
O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que todas as referidas condutas lhe eram vedadas e proibidas pela Lei Penal.

Mais se apurou:
Consta do Relatório Social do arguido que
AA é o terceiro de uma fratria de quatro irmãos, fruto do relacionamento dos progenitores, tendo o seu processo de desenvolvimento decorrido junto do agregado de origem, de modesta condição socioeconómica, onde ainda assim, os rendimentos provenientes da atividade laboral dos progenitores asseguravam as necessidades domésticas.
O relacionamento familiar aparentava proximidade e vinculação afetiva, gozando o arguido de uma imagem favorável no meio residencial.
O arguido referiu ter concluído o 6.º ano de escolaridade com cerca de 14 anos, apresentando um percurso escolar reduzido e pouco investido, embora sem problemas significativos de assiduidade, comportamento ou aproveitamento, embora tivesse reprovado um ano.
Não foi possível apurar em concreto a atividade do arguido entre os 14 e os 16 anos de idade.
De acordo com a informação transmitida, iniciou atividade laboral com cerca de 16 anos numa indústria de confeção, onde se manteve até aos 18 anos e para onde regressou após o cumprimento do serviço militar obrigatório. Posteriormente terá exercido atividade laboral como projecionista (cinema), no ramo da construção civil e como carpinteiro, não tendo referido qualquer formação específica para o exercício dessas atividades.
Em 2002 estabeleceu-se por conta própria na montagem de alarmes, câmaras e outros sistemas de segurança, atividade que manteve até 2007, data em que referiu ter integrado a Dea Portugal, como comercial, até 2009. Nesta data refere ter efetuado contrato com entidade bancária estrangeira para empréstimo com vista ao estabelecimento por conta própria no ramo da padaria/pastelaria, não tendo sido percetível em que circunstâncias tal projeto não se concretizou.
A nível pessoal contraiu matrimónio com NN quando tinha cerca de 24 anos, relacionamento que durou nove anos e terminou em circunstâncias não concretamente apuradas, tendo uma filha em comum.
Segundo a progenitora de AA, a separação constituiu um processo traumático para o arguido, que se começou a afastar do agregado de origem, mantendo reserva sobre a sua situação laboral, familiar e económica, tendo sido referida eventual doença de foro oncológico e ideação suicida.
À data dos alegados factos, o arguido mantinha residência em local que não foi possível apurar, mantendo-se evasivo relativamente à situação familiar referindo ter-se divorciado e manter contactos com a filha.
Exercia atividade laboral para entidade não concretamente apurada, dedicando-se, segundo afirmou, a funções que consistiriam na entrega de encomendas, cujo conteúdo desconhecia.
Atualmente referiu residir num anexo da habitação na morada indicada, propriedade de pessoa idosa. Segundo mencionado não efetua qualquer pagamento pelo arrendamento do espaço habitacional, efetuando trabalhos de jardinagem e tarefas indiferenciadas como contrapartida da sua estadia.
Não obstante a informação recolhida junto da progenitora, o arguido não mencionou a existência de problemas de saúde. Segundo apurado, não mantém contactos presenciais com o agregado de origem há cerca de 10 anos, situação que parece provocar alguma angústia na progenitora.
O arguido manifesta reduzida capacidade de análise crítica, externalizando responsabilidades, ainda assim, em termos abstratos consegue reconhecer o dano e a existência de lesados.
Face à postura do arguido não foi possível avaliar as suas competências pessoais e sociais.
Apesar de se desconhecerem condenações anteriores, AA apresenta outros contactos com o sistema de administração da justiça, cuja tramitação se desconhece, designadamente pela alegada prática de crimes de burla informática, acesso ilegítimo e branqueamento, no âmbito do processo 202/11....). Foi ainda possível apurar junto do OPC contactado que o arguido consta como suspeito por crimes contra o património em geral (NUIPC 1540/12.....
No âmbito do processo n.º 655/11...., por decisão transitada em julgado a 21.11.2016, foi o arguido condenado pela prática em 11.10.2011, de um crime de falsificação de boletins, na pena de 210 dias de multa à razão diária de €5,00.
No âmbito do processo n.º 207/10...., por decisão transitada em julgado a 23.11.2021, foi o arguido condenado pela prática em 04.01.2008, de um crime de falsificação de documento, na pena de 120 dias de multa à razão diária de €5,00.
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2. FACTOS NÃO PROVADOS
Os factos constantes das contestações que acima não se encontram provados.
Não se provou qualquer outro facto com relevância para a decisão da causa.
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3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
No que concerne aos factos provados, baseou-se o Tribunal em toda a prova produzida em julgamento e bem assim na cabal documentação que se encontra junta aos autos e que se enunciará infra.
O arguido nunca compareceu em qualquer sessão de audiência de discussão e julgamento, alegando sempre doença.
Foi ouvido o ofendido DD que reconheceu o arguido sem margem para duvidas quando confrontado com a fotografia de fls. 34, sendo que acrescentou que igualmente viu o cartão de cidadão do arguido pelo que não tem dúvidas da sua identificação. Este ofendido referiu que no ano que 2012 conheceu o arguido, sendo que este se apresentava como Inspector da PJ. Em conversa acabou por referir que tinha acesso a viaturas perdidas a favor do Estado e que o Estado vendia por um preço inferior ao de mercado. As conversas foram decorrendo, sendo que em maio de 2013, mostrou-se interessado em adquirir uma viatura ... .... O arguido ainda lhe mostrou fotografias do veículo e lhe entregou o impresso para transferência de propriedade do veículo, pelo que lhe pareceu tudo sério. O veículo custaria €24.250 euros, pelo que no dia 9 de julho de 2013, em ..., perto da Camara Municipal, o depoente entregou-lhe a quantia de €24.250 em dinheiro, pois que o arguido disse que tinha que ser entregue em numerário. Ainda lhe entregou copia do seu cartão de cidadão e uma folha de registo de propriedade assinada para ser efetuada a transferência de propriedade. O arguido referiu que a conclusão do processo demoraria cerca de dois meses.
Para alem do valor do veículo ainda entregou 450 euros para a abertura do processo e 65 euros para o registo do veículo em seu nome, segundo o arguido lhe explicou, sendo que estas quantia foram logo entregues em ... no dia seguinte ao acordo.
As semanas foram passando e o depoente encontrava o arguido quase todas as semanas no Clube que frequentavam (e onde conheceu o arguido através do seu amigo KK), sendo que este sempre dizia que era uma questão de semanas ou de dias para receber o veículo. Em agosto de 2013 e enquanto aguardava a chegada do ... (que ainda achava que vinha, pois estava dentro do prazo acordado), o arguido começou a dizer que igualmente estava para venda um ... X5 por €25.500. Como considerou que a proposta era boa e via o arguido a circular com diversos veículos não considerou estranho e igualmente se mostrou interessado, peo que novamente entregou a quantia de €450,00 para abertura do processo e €65,00 para o registo automóvel, mas não efetuou qualquer pagamento da viatura pois estava à espera que o outro carro viesse. Ainda viu o arguido até setembro, altura em que o mesmo desapareceu. Ainda foi à procura dele no Casino pois disseram que ele era frequentador do mesmo, mas nunca mais o viu.
A testemunha OO confirmou que a pessoa identificada a fls. 34 é o arguido e que o meso frequentava os jantares do Clube ... onde o conheceu. Foi-lhe apresentado pelo Presidente do clube como Inspector da PJ. Os colegas, entretanto, disseram-lhe que ele vendia carros do Estado através de um leilão. Não lhe comprou qualquer carro mas sabe – porque o ofendido lhe disse – que este lhe tinha entregue dinheiro para adquirir um veiculo e que nunca o recebeu.
A testemunha MM referiu que o arguido lhe foi apresentado pelo Presidente do Clube KK (entretanto falecido) como Inspetor da PJ. O arguido estava sempre presente nos jantares do Clube. Num desses jantares, falou-se em comprar um carro na plataforma «OLX», sendo que o arguido disse para não comprar enquanto ele não vir o histórico do mesmo junto da PJ. Nessa altura, referiu que na PJ conseguia vender carros aprendidos com outras matrículas. A conversa foi tida perante todos. Só mais tarde, soube que o DD se interessou por um veículo e fez negócio com o arguido, sendo que teve conhecimento através do DD que este lhe havia entregue cerca de €20.000,00.
O ofendido EE confirmou ter conhecido o arguido através da testemunha JJ. Este terá referido que tinha um amigo na PJ que vendia os carros apreendidos. Como a testemunha ficou interessada num marca ..., fez o negócio com o JJ, sendo que o depoente entregou o dinheiro ao JJ e este deu o dinheiro ao AA. Confirma o documento de fls. 197 e refere ter entregue €12.000,00 pelo marca ... e mais cerca de €7000,00 por um outro veículo, num total de €20.200,00. Nunca viu qualquer documento em relação aos carros e acreditou sempre no JJ. Viu o AA uma vez mas fez o negocio com o JJ, pelo que foi a este que foi pedir o dinheiro de volta quando os veículos não vieram.
A testemunha II, ajudava no Stand do primo JJ e apenas conhecia o AA pois ele ia perguntar muitas vezes pelo seu primo. O AA estava interessado num carro que estava à venda. Dizia que tinha que entrar ao serviço da PJ às 16 horas. Não sabe nada dos negócios dos carros, mas viu o seu Primo JJ entregar um envelope ao AA.
A testemunha PP referiu ter conhecido o arguido através de amigos, sendo que disse que dava formação às forças de segurança. O arguido ainda lhe levou cliente para fazer seguros. Mais referiu que o arguido conduzia um Opel ....
A testemunha HH, conheceu o arguido quando este comprou um Opel ... no Stand de automóveis do seu pai. Apresentou-se como sendo da Polícia Judiciaria e disse ter acesso privilegiado a venda de carros mais baratos que lhe daria uma margem de lucro grande. A proposta do arguido ao seu pai foi feita na sua presença. O acordo foi feito com o pai e não com os outros compradores. Sabe que foi dado dinheiro ao AA, sendo que na sua presença foram entregues €10.000,00 e igualmente sabe que o CC entregou cerca de 10.000,00 euros e o CC outros 10.000,00 euros, mas isso o pai tem conhecimento direto.
A testemunha JJ referiu conhecer o arguido quando este lhe comprou um carro no seu Stand. Pagou o mesmo em dinheiro. Referiu que trabalhava em ... na Polícia Judiciária e inclusivamente trabalhava com um Juiz Desembargador. Após a compra do carro, o arguido ia ao Stand quase todos os dias. Referiu que tinha acesso a veículos mais baratos. Nunca lhe mostrou fotografias de qualquer veículo, mas era convincente. Como não tinha dinheiro para os três carros que tinham que vir em lote, contactou o BB e o CC a propor-lhes o negócio que o arguido tinha referido. Estes gostaram do negócio e entregaram-lhe a quantia em dinheiro o que foi entregue ao AA. O BB e o CC terão entregue cerca de 20.000,00 e o depoente entregou cerca de 15.000 euros. O dinheiro ia na totalidade e era a soma do valor dos veículos e das burocracias necessárias, pois era para adquirir os quatro carros. O arguido disse então que a entrega do veículo demoraria cerca de duas semanas. Após algum tempo em que o arguido se desculpava do atraso, o arguido nunca mais apareceu. O BB e o CC foram ressarcidos pelo depoente pois eles tinham feito o negócio com ele ainda que soubessem que o depoente era mero intermediário. Confirma os documentos manuscritos de fls. 194 e 196.
A testemunha de Defesa QQ, Inspetor da Polícia Judiciaria referiu que foi formalizada uma denuncia anonima em que o denunciado era o arguido AA, mas não se recorda de qualquer queixa apresentada pelo próprio arguido.
A testemunha de defesa NN, ex-mulher do arguido, referiu que não fala com o arguido regularmente e que não sabe nada da sua vida. Apenas sabe que existia muita gente que ia a sua casa perguntar por ele. Nunca foi ameaçada e nunca teve conhecimento de quaisquer Angolanos atras do ex-marido.
A testemunha de defesa RR, mãe do arguido, raramente fala com ele, não sabe o que ele fez, mas sabe que a polícia perguntava por ele. Nunca foi ameaçada por ninguém.

O Tribunal socorreu-se igualmente, entre os demais,
- Auto de denuncia de fls. 3/24, datado de 24 de setembro de 2013 (DD)
- Extrato de conta do Banif (ofendido DD) do levantamento de €17.000,00 de fls. 60;
- Extrato de conta do mesmo ofendido de fls. 61
- Declaração assinada pelo arguido, datada de 09.07.2013 a referir ter recebido do ofendido DD a quantia de €25.000,00, de fls. 83;
- Auto de denuncia de fls. 117 e 129 (ofendido JJ), datada de 03.12.2013;
- Declaração de fls. 194 do ofendido JJ a confirmar o recebimento de €20.200,00 da testemunha BB, datada de 24.10.2013)
- Declaração de fls. 196 do ofendido JJ a confirmar o recebimento de €10.500,00 da testemunha FF, datada de 24.10.2013);
- Fatura do Veículo vendido ao arguido de fls. 212, datado de 12.07.2013;
- Certidão Automóvel de fls. 215;
- Extrato de conta corrente de CGD do ofendido DD de fls. 239, onde se consta um levantamento de €7000 euros datado de 09.07.2013;
Ora, perante a prova acabada de referir (ainda que em resumo), o Coletivo de Juízes não ficou com duvidas que os factos se passaram conforme supra descritos.
Na verdade, ainda que tenha existido um grande hiato de tempo entre os factos e a audiência de discussão e julgamento (por culpa exclusiva do arguido que foi declarado contumaz), as testemunhas foram todas elas claras, corroboraram os documentos e lograram convencer o tribunal.
Ademais, as testemunhas arroladas pela defesa não colocaram em causa a cabal prova da acusação, pois que mais não foi do que a tentativa de dizer que o arguido andava a ser perseguido por terceiros a este processo e por isso até tinha apresentado queixa (conforme decorre da contestação) o que não ficou minimamente provado. Alem disso, mesmo a ficar provado, nunca derrogaria os factos da acusação.”

Apreciando:
A decisão enferma de vicio de erro notório na apreciação da prova:
A invocação do vicio referido mostra-se feita com o fundamento genérico de que “a prova produzida impunha diversa consideração sobre a matéria de facto”, feito na conclusão 14ª e, revisitando a motivação que a antecede, nenhuma referência faz o recorrente ao texto da própria decisão em termos de demonstração, por confronto entre a factualidade provada e a motivação que se lhe segue relativa à formação da convicção do tribunal acerca dos mesmos, de qualquer erro grosseiro por se terem dado como provados factos que, face às regras da experiência comum e á lógica do homem médio, não se teriam podido verificar ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsos.
Na sua essência, aquele vicio é, de natureza ou por definição, intrínseco da decisão recorrida, e não deve obter raízes no exterior da mesma, só existindo, quando a convicção do julgador (fora dos casos de prova vinculada) for inadmissível, contrária às regras elementares da lógica ou da experiência comum. Deve assim tratar-se de um erro manifesto, isto é, facilmente demonstrável, dada a sua evidência perante o texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Não existe tal erro quando a convicção do julgador é plausível, ou possível, embora pudesse ter sido outra.
O erro notório na apreciação da prova, previsto na al. c), do nº 2, do art. 410º do CPP não reside na desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido a do próprio recorrente, e só existe quando do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, resulta por demais evidente a conclusão contrária àquela a que chegou o tribunal.
In casu, porém, nenhum erro transparece do texto da decisão recorrida, quer por si só, quer conjugada com as regras da experiência comum, nem se vislumbra o desrespeito por prova legalmente vinculativa ou tarifada que tivesse sido desprezada, ou não investigada pelo tribunal recorrido.
O Tribunal recorrido fundamentou a sua decisão quanto à matéria de facto provada e não provada, de forma minuciosa, enumerando os elementos probatórios em que se baseou para formar a sua convicção, com indicação dos depoimentos das testemunhas prestados em audiência, e do porquê da relevância/credibilidade que lhe foi atribuída, com critérios lógicos e objectivos, e alicerçada nos elementos de prova obtidos em audiência, bem como nos documentos juntos aos autos e invocados na motivação da matéria de facto, encontrando-se a matéria de facto fixada de acordo com um raciocínio lógico e coerente.
Da leitura integral da motivação do recurso, o essencial da discordância do recorrente mostra-se assente numa pretensa impossibilidade de induzir em erro ou engano os ofendidos na medida em que, alega, não contactou directamente com os mesmos [sequer falou com as mesmas, tendo toda transação negocial sido feita por intermédio do Sr. JJ, alegação que só pode ser vista como uma tentativa de agora pretender prestar declarações apresentando as sua versão pessoal, quando primou a audiência com a sua ausência] nem, indo mais longe, concluindo que não foi tal engano provado pelo recorrente ou que era exigível aos ofendidos, de acordo com a postura de um bonus pater familiae, que tivessem feito outras diligências para comprovar tais afirmações (da sua qualidade de inspector da PJ).
Essa postura só demonstra que o recorrente faz decorrer o alegado vício de erro notório na apreciação da prova de uma diferente apreciação da prova produzida em audiência, impugnando dessa forma a convicção assim adquirida e pondo em causa a regra da livre apreciação da prova. Contudo, a motivação expressa pelo Tribunal a quo é suficiente para habilitar os sujeitos processuais, bem como este Tribunal de recurso a concluir que as provas a que aquele atendeu são todas permitidas por lei de acordo com o preceituado no art.º 355º, do CPP, e que o julgador seguiu um processo lógico e racional na formação da sua convicção, desta não resultando uma decisão ilógica, arbitrária, contraditória ou claramente violadora das regras experiência comum na apreciação da prova.
Assim sendo, os factos dados como provados no acórdão recorrido têm-se por assentes, nada havendo a alterar por efeito do vicio que não ocorre, improcedendo, nesta parte o recurso.

Se se verifica o preenchimento dos elementos típicos do crime de burla:
Nesta concreta questão avança o recorrente com a tese de que “o recorrente quanto as vítimas BB e CC sequer falou com as mesmas, tendo toda transação negocial sido feita por intermédio do Sr. JJ, o qual inclusivamente indemnizou-os, pelo que se conclui que não foi tal engano provado pelo recorrente.
Assim, não é possível concluir que há consumação do crime de burla qualificada quanto mais na forma tentada, tão pouco afirmar que conseguiu incutir-lhe confiança para que lhe fosse entregue determinadas quantias, conforme afirma o Tribunal a quo na página 12, uma vez que não teve contacto com os mesmos.”
Como primeira nota, diremos que a alegação de não ter contactado directamente com os ofendidos BB e CC não tem qualquer correspondência com a matéria de facto dada como assente na instância recorrida, mormente quando ali se diz
Assim, o ofendido entregou o valor total de 20.200 Euros no “Stand V...” ao arguido que se deslocou a esse local para receber tal valor, após contacto com o JJ.
Ainda no seguimento da proposta inicial do arguido, o ofendido JJ solicitou-lhe ainda a entrega de um veículo da marca ... ... de 2010, de cor ..., pelo preço de 10.500 Euros.
Tal veículo destinava-se ao seu amigo e cliente F..., que contactou nessa ocasião e a quem deu conhecimento da proposta do arguido.
Convencido este, por sua vez, que a conduta do arguido seria lícita e que este era Inspector da Polícia Judiciária que actuava no exercício de funções e que procedia à venda legal de veículos apreendidos em Processo-crime, este ofendido acordou a compra de tal veículo pelos valores pedidos.
Assim, este ofendido entregou o valor total de 10.500 Euros no “Stand V...” ao ofendido JJ que por sua vez o entregou ao arguido que se deslocou a esse local para receber tal valor.”
Mesmo que se considere a interposição do identificado JJ, inexistem dúvidas de que o arguido sabia a quem pretensamente eram destinadas as viaturas cujo negócio estava a contratualizar, inexistem dúvidas acerca do recebimento das quantias monetárias destes dois ofendidos, mediante a intervenção do JJ não procurando desfazer a sua qualidade invocada de Inspector da Policia Judiciária, antes se aproveitando dela para se conferir credibilidade.
Isso é o que se mostra exarado em sede integração jurídica dos factos, quando ali se procede à análise dos elementos típicos do crime em questão:
Ora, os elementos do crime de burla são os seguintes:
a) a “astúcia” empregue pelo agente;
b) o “erro ou engano” da vítima devido ao emprego da astúcia;
c) a “prática de actos” pela vítima em consequência do erro ou engano em que foi induzida;
d) o “prejuízo patrimonial” – da vítima ou de terceiro – resultante da prática dos referidos actos;
e) nexo causal: é necessário que entre os elementos acima descritos existam sucessivas relações de causa e efeito, nomeadamente que: da astúcia resulte o erro ou engano; do erro ou engano resulte a prática de actos pela vítima; da prática desses actos resulte o prejuízo patrimonial;
f) intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo: é necessário que se verifique a existência de dolo.

Assim, analisemos cada um dos elementos em pormenor:
a) Astúcia empregue pelo agente:
Quanto à conduta do agente, o artigo 217º nº 1 do CP determina que o erro do sujeito passivo tem de ser provocado astuciosamente.
Sendo que, “É usada astúcia quando os factos invocados dão a uma falsidade a aparência de verdade, ou são referidos pelo burlão factos falsos ou este altere ou dissimule factos verdadeiros, e actuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado, de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro” (Ac. do STJ de 20/03/2003, disponível em www.dgsi.pt).
Para caracterizar a acção astuciosa não bastará qualquer mentira (esta está sempre presente na burla), exigindo-se que se trate de uma mentira qualificada ou que se concretize numa manobra fraudulenta ou mise em scène” (Ac. do STJ de 09/05/2002, disponível em www.dgsi.pt).
b) erro ou engano da vítima devido ao emprego da astúcia:
O erro deve ser considerado como a falsa ou nenhuma representação da realidade concreta, que funcione como vício do consentimento da vítima.
Já no caso do engano, “o burlão terá que ter cometido a mentira adequada a lograr o burlado” (Marques Borges, citado in Código Penal Anotado, Leal-Henriques e Simas Santos, Ed. Rei dos Livros, Vol. II, pág. 839).
No entanto, não basta qualquer erro ou engano; é ainda necessário que ele tenha sido provocado ou aproveitado astuciosamente, nos termos suprarreferidos.
Sendo certo que o erro pode ser provocado pelo agente quando este descreve a outrem, por palavras ou declarações expressas, sob a forma oral ou escrita, uma falsa representação da realidade.
A burla por palavras ou declarações expressas pode ocorrer, conforme se assinalou, sob a forma oral ou escrita; (…) Na modalidade de execução em apreço incluem-se, também, a apresentação de documento falso ou de documento que, não sendo falso, não fundamenta (ou não fundamenta ainda) determinada pretensão 1), a solicitação de subsídios ou comparticipações para despesas não efectuadas 2) ou o acto de invocar meios de prova falsos, desde que se observem os restantes pressupostos do delito 3)” (Almeida Costa, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Coimbra Ed., Tomo II, pág. 302).
c)Prática de actos pela vítima em consequência do erro ou engano em que foi induzida:
«Esses actos além de astuciosos devem ser aptos a enganar, não sendo, no entanto, inevitável que se trate de processos rebuscados ou engenhosos, podendo o burlão, numa “economia de esforço”, limitar-se ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima concreta» (cfr. Ac. do STJ de 12/12/2002, disponível em www.dgsi.pt).
Sendo certo que “Numa tal adequação de meios – adequação essa que, atentas as particularidades do caso, pode encontrar o “ponto óptimo” no menos sofisticado dos procedimentos – radica, em suma, a inteligência ou astúcia que preside ao estereotipo social da burla e, sob pena de um divórcio perante as realidades da vida, tem de subjazer à fattispecie do nº 1 do art. 217º. Refira-se, por último, que só esta perspectiva se harmoniza com o entendimento, hoje pacífico, de que a idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente se afere tomando em consideração as características do concreto burlado” (cfr. Almeida Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Ed., Tomo II, pág. 298).
d) Prejuízo patrimonial:
O conceito de dano patrimonial, enquanto requisito da consumação do delito, adoptado pela opinião dominante na actualidade consiste num conceito objectivo-individual de dano patrimonial e de acordo com o qual “o prejuízo deverá determinar-se através da aplicação de critérios objectivos de natureza económica à concreta situação patrimonial da vítima, concluindo-se pela existência de um dano sempre que se observe uma diminuição do valor económico por referência à posição em que o lesado se encontraria se o agente não houvesse realizado a sua conduta” (cfr. Almeida Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Ed., Tomo II, pág. 284/285).
Saliente-se que nem sempre a pessoa que foi induzida em erro ou engano é a mesma que foi lesada (titular do património lesado), pois, e como refere Nelson Hungria, “Sujeito passivo, portanto, é o que vem a sofrer, realmente o prejuízo. Se o enganado é titular de direito real sobre a res captada, o sujeito passivo tanto será ele quanto o titular da propriedade” (citado no CPAnotado, Leal-Henriques e Simas Santos, Ed. Rei dos Livros, 2º Volume, pág. 838).
Sendo certo que, “a burla constitui um crime de dano, que só se consuma com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo da infracção ou de terceiro” (Almeida Costa, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Coimbra Ed., Tomo II, pág. 276).
e) nexo causal entre os elementos acima descritos:
Como foi já referido, “é necessário que: da astúcia resulte o erro ou engano; do erro ou engano resulte a prática de acto(s) pela vítima; da prática de acto(s) resulte, finalmente, o prejuízo patrimonial. Em sede de imputação objectiva do evento à conduta do agente, a burla é, assim, um crime complexo, que comporta um triplo nexo de causalidade” (Ac. do STJ de 09/05/2002, disponível em www.dgsi.pt).
É precisamente por isso que o crime de burla constitui um crime material ou de resultado, pois a sua consumação verifica-se com a saída dos bens ou valores da esfera do legítimo detentor dos mesmos ao tempo da infracção, sendo que para a sua consumação é necessário a verificação de um duplo nexo de imputação objectiva:
1) entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do património próprio ou alheio;
2) entre os actos tendentes a uma diminuição do património próprio ou alheio e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial.
Sendo certo que, a qualquer destes momentos subjazem os pressupostos da teoria da adequação prevista no artigo 10º nº 1 do CP. “A correspondente afirmação depende, por isso, das circunstâncias do caso, aí incluídas as características do burlado” (Almeida Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Ed., Tomo II, pág. 294).
Também integra um delito de execução vinculada, em que “a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento. Traduz-se ela na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios. Para que se esteja em face de um crime de burla, não basta, porém, o simples emprego de um meio enganoso: torna-se necessário que ele consubstancie a causa efectiva da situação de erro em que se encontra o indivíduo. De outra parte, também não se mostra suficiente a simples verificação do estado de erro: requer-se, ainda, que nesse engano resida a causa da prática, pelo burlado, dos actos de que decorrem os prejuízos patrimoniais” (cfr. Almeida Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Ed., Tomo II, pág. 293).
f) Dolo:
A burla só é criminalmente censurada se a conduta do agente for dolosa. Sendo certo que o dolo tem de ser específico, pois “Para que se verifique o preenchimento do tipo subjectivo não basta, contudo, o dolo de causar um prejuízo patrimonial ao sujeito passivo ou a terceiro, exigindo-se, de outra parte, que o agente tenha a “intenção” de conseguir, através da conduta, um enriquecimento ilegítimo próprio ou alheio. A burla consubstancia, portanto, um delito de intenção (Absichtsdelikt) – categoria que exprime, do lado do tipo subjectivo, a mesma ideia que, no plano do tipo objectivo, preside à sua qualificação como um “crime de resultado parcial” ou “cortado” (kupiertes Erfolgsdelikt): não obstante se requeira que o sujeito actue com aquela intenção de enriquecimento, a consumação do crime não depende da efectivação do último, verificando-se logo que ocorra o prejuízo patrimonial da vítima” (cfr. Almeida Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Ed., Tomo II, pág. 309).
Sendo certo que, como se escreve no Ac. do STJ de 23/01/1997, “na determinação do enriquecimento ilegítimo importa considerar o conceito civilístico do enriquecimento sem causa: o enriquecimento de alguém com o consequente empobrecimento de outrem, o nexo causal entre a primeira e a segunda destas situações, e a falta de causa justificativa de tal empobrecimento”.
Assim, enriquecimento ilegítimo deve ser entendido como enriquecimento ilícito, ou seja, ao qual não corresponde, objectiva ou subjectivamente, qualquer direito, pois só este é relevante como elemento constitutivo do crime aqui em causa.
Caso concreto:
Ora, posto isto, face aos factos que acima ficaram provados, dúvidas inexistem que se encontram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos dos crimes pelo qual o arguido vem acusados na sua forma agravada (ofendidos DD e GG), tanto consumada como tentada (ofendido DD, relativamente ao veiculo ...), pelo valor que ficou provado, pelo que serão os mesmos condenados.”
O art. 217.º do Código Penal, prevê que comete o crime de burla “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial.” (destaques nossos)
O arguido actuou com astúcia produzindo um erro/engano no ofendido GG, sendo essa actuação, o erro em que induziu este que determinou o seu enriquecimento ilegítimo, com o correspondente prejuízo patrimonial que veio a ser sofrido pelas testemunhas EE e FF.
Esta circunstância, em nada “afecta” o preenchimento dos elementos do tipo já que, como se retira da letra da lei, o prejuízo patrimonial pode ser do sujeito passivo ou de terceiro.
Este conjunto de argumentos mostra claramente que a pretensão do recorrente não tem qualquer fundamento para ser acolhida, decaindo também o recurso neste particular.

Medida da pena:
No tocante à medida da pena em que o recorrente foi condenado, a sua discordância manifesta-se pela adjetivação que lhe apõe de “excessiva”, “não é equitativa e correta” e adiantando que “tenha consubstanciado a incidência de dois crimes de burla qualificada e um na forma tentada”.
Se bem que de toda a argumentação trazida à motivação ou espelhada nas conclusões nenhuma restrição cognitiva seja feita pelo recorrente em termos de a discordância se dirigir à pena única ou às penas parcelares, parece-nos que, pelos adjectivos que lhe apõe em termos de utilizar uma expressão na forma singular, dirão respeito à pena única.
Vejamos o que se argumentou na decisão recorrida quanto à determinação da medida da pena:
Os crimes de burla qualificada consumada cometido pelo arguido é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.
O crime de burla qualificada tentada cometido pelo arguido é punido com pena de prisão de um mês e cinco anos e quatro meses
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Na determinação da medida concreta da pena, importa atender à culpa do agente, às exigências de prevenção de futuros crimes e a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele (artº 71º do C.P.).
Pela via da culpa, segundo refere o Prof. Figueiredo Dias (“As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, pág. 239), releva para a medida da pena a consideração do ilícito típico, ou seja, “o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente”, conforme prevê o artº 71º, nº 2, al. a) do C.P.
A culpa, como fundamento último da pena, funcionará como limite máximo inultrapassável da pena a determinar (artº 40º, nº 2 do C.P.). A prevenção geral positiva (“protecção de bens jurídicos”), fornecerá o limite mínimo que permita a reposição da confiança comunitária na validade da norma violada. Por último, é dentro daqueles limites que devem actuar considerações de prevenção especial, isto é, de ressocialização do agente (F. Dias, ob. cit., págs. 227 e segs.; Anabela Rodrigues, in R.P.C.C., 2, 1991, pág. 248 e segs.; e Ac. S.T.J. de 9/11/94, B.M.J. nº 441, pág. 145).
No caso em análise, são gritantes as necessidades de prevenção geral, pelas inúmeras praticas reiteradas deste tipo de situação junto da mais crentes, são todos os dias objeto de burla e de furtos ficando desapossados dos já fracos rendimentos que possuem, permanecendo um sentimento de insegurança no País explanado na comunicação social quase diariamente. Praticas ilícitas estas que geram um crescente sentimento de desconfiança junto daqueles que querem genuinamente ajudar as pessoas mais carenciadas tanto a nível económico como de saúde ou idade.
Elevadas são as necessidades de prevenção especial, uma vez que o arguido possui antecedentes criminais pela mesma natureza.
O arguido não parece se encontrar socialmente inseridos, atento o relatório social junto aos autos.
Atendendo ao valor do montante em causa e bem assim ao objectivo do arguido ao concretizar os factos que levaram aos crimes em causa e ao modo de execução dos factos, é de concluir que é elevadíssimo o grau de ilicitude dos factos e graves as suas consequências. Devendo-se ter presente que a elasticidade da pena decorre, não só do valor, mas também da multiplicidade das condutas que se compreendem na previsão das diversas alíneas da norma.
Nestes termos, e à luz do disposto nos artigos, 217º, 218º, 71º e 73º, todos do Código Penal, entendemos adequado e proporcional aplicar
Ao arguido AA:
- Pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 217º e 218º, n.º 2, alínea a), a pena de 4 (quatro) anos de prisão;
- Pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 217º e 218º, n.º 2, alínea a), a pena de 4 (quatro) anos de prisão;
Pela prática de um crime de burla qualificada, na forma tentada, previsto e punido pelo artigo 217º e 218º, n.º 2, alínea a), a pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;

Cúmulo Jurídico:
De acordo com o disposto no artigo 77º nº 1 do CP “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.
Para tal, é ainda necessário, avaliar a conexão e o tipo de conexão existente entre os vários factos criminosos concorrentes e averiguar se eles se reconduzem a uma tendência criminosa ou apenas a uma puriocasionalidade, bem como analisar o efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (cfr. Figueiredo Dias, in As Consequências jurídicas do Crime, fls. 291).
Sendo certo que, nos termos do nº 2 do artigo 77º do mesmo diploma legal, “A pena aplicável tem como limite máximo a doma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”.
Ora, no caso em apreço,
Ponderando-se, entre esses limites, (quatro anos a dez anos e seis meses) a globalidade dos factos, circunscritos num hiato de tempo diminuto, bem como a estreita conexão e interligação entre os crimes de burla agravada, o elevado valor monetário em causa e a falta de arrependimento, decide-se aplicar a pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Como resulta da citação supra, a decisão recorrida ponderou todas as circunstâncias impostas pelo art.º 71º CP e que se mostram reveladas na factualidade provada: o grau de ilicitude acentuado, atento nomeadamente os valores de que se apropriou e as elevadas necessidades de prevenção especial, uma vez que o arguido possui antecedentes criminais pela prática de crimes da mesma natureza.
Para além destes aspectos, não podem também deixar de se considerar, como fez o tribunal, as fortíssimas exigências ao nível da prevenção geral.
Atendendo a todos os factores já adiantados, a pena única - a situar dentro da moldura do cumulo decorrente das penas parcelares aplicadas: de 4 a 10 anos e 6 meses de prisão – mostra-se criteriosamente doseada, proporcional à culpa, equilibrada e adequada às necessidades de prevenção geral e especial que se postulam no caso, não merecendo qualquer censura.
No tocante à pena que foi condenado, pretendia o recorrente ainda vê-la substituída por pena suspensa na sua execução. Embora aponte como razão dessa suspensão “ser possível a compensação do ofendido DD”, registamos a manifestação dessa eventual intenção, mas a possibilidade de substituição teria de passar pela verificação de outros critérios de impossível satisfação, desde logo e o mais relevante, o de ordem formal estabelecido no n.º 1, do art.º 50.º, do Código Penal que faz depender a aplicação da suspensão da execução da prisão apenas que a medida concreta da pena aplicada ao arguido não seja superior a 5 anos, o que não é o caso.
Decai assim o recurso na sua totalidade.

III.
Tudo visto e ponderado, decide-se negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC.
Feito e revisto pelo 1º signatário.
Évora, 10 de Janeiro de 2023
João Carrola
Maria Leonor Esteves
Gomes de Sousa