Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
307/21.3PAENT.E1
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
Data do Acordão: 05/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Constitui jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça que a comunicação ao arguido mencionada no artigo 358º, nº 3, do CPP não se impõe quando a alteração da qualificação jurídica resulta na imputação ao arguido de uma infração que representa um minus relativamente à da acusação ou da pronúncia, pois o arguido teve conhecimento de todos os seus elementos constitutivos e possibilidade de os contraditar.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO

1. Nos presentes autos com o NUIPC 307/21.3PAENT, do Tribunal Judicial da Comarca de …– Juízo de Competência Genérica … – Juiz …, em Processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular, foi o arguido AA condenado, por sentença de 09/11/2022, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, nº 1 e 145º, nº 1, alínea a) e nº 2, por referência ao disposto no artigo 132º, nº 2, alíneas b) e e), todos do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sendo esta acompanhada de regime de prova assente num plano de reintegração a elaborar pelos Serviços de Reinserção Social, subordinada à condição de o arguido, nesse prazo, comprovar o pagamento a BB da indemnização no montante de mil euros em que foi condenado.

Foi ainda o arguido/demandado condenado a pagar à demandante BB, a título de indemnização civil, a quantia de mil euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da notificação para contestar, até efectivo e integral pagamento.

2. O arguido não se conformou com a decisão e dela interpôs recurso, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

1. O procedimento criminal pela prática do crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo art. 143º, nº 1, do CP, depende de queixa, nos termos do nº 2 do art. 143.º do Código Penal.

2. Não foi apresentada queixa relativamente aos factos descritos no ponto 4 da matéria de facto provada. Da inexistência de queixa resultou a não dedução de Acusação pelo Ministério Público, quanto a tais factos.

3. É nula a sentença recorrida, que condenou por factos não descritos na acusação nem objeto de Queixa, referentes a crimes de natureza semi-pública e se pronunciou sobre questões de que não podia tomar conhecimento, nos termos do artigo 379.º 1, b) e c) do Código de Processo Penal.

4. Não basta a verificação objetiva de qualquer uma das circunstâncias previstas no n.º 2 do art. 132º CP para qualificar o crime de ofensa à integridade física. O facto de a demandante e o arguido terem vivido em condições análogas às dos cônjuges não constitui circunstância suficiente para se poder afirmar que o arguido perpetrou uma agressão qualificada.

5. Dos autos resulta que os factos pelos quais o arguido vem acusado e condenado nenhuma conexão têm com a relação que “havia terminado há muito” (cfr despacho de arquivamento e de acusação).

6. A matéria de facto provada não revela um grau de censurabilidade que mereça ser qualificado de especialmente censurável ou de especialmente perverso, pelo que dos autos não resulta a qualificação do crime de ofensa à integridade física por que o arguido foi condenado.

7. Da “concatenação” da matéria de facto atinente ao facto objetivo com as regras da experiência, a sentença recorrida concluiu os elementos subjetivos do ilícito criminal qualificado, ao mesmo tempo que reconheceu não serem tais elementos suficientes para decidir com o grau de certeza necessária.

8. A decisão judicial que julga provados todos os elementos subjetivos do crime “representações e intenções do Arguido referidas de 20 a 25 dos factos provados” com base na “extração” judicial a partir dos factos objetivos ou acontecimentos que considerou demonstrados, é inadmissível e viola a presunção de inocência do arguido.

Pelo que, deverão ter-se como não provados os factos 20 a 25.

9. O único meio de prova considerado pelo Tribunal a quo acerca da prática dos factos foi o depoimento da Demandante. A sentença recorrida não tem base real que sustente a imputação do crime ao arguido.

10. As “regras da experiência comum” não são meio de prova e não sustentam a demonstração de factos penalmente relevantes. À sentença recorrida que conclui pela condenação do arguido pela prática de um crime de ofensas à integridade física qualificada, falta a objetivação necessária.

11. O recorrente não praticou qualquer facto ilícito.

12. Foram também incorretamente aplicados os princípios da livre apreciação da prova, in dubio pro reo, culpa, proporcionalidade e subsidiariedade do Direito Penal.

Termos em que, concedendo provimento ao recurso e revogando a decisão recorrida, Vossas Excelências farão Justiça.

3. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

4. A Magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo apresentou resposta à motivação de recurso, pugnando pelo seu não provimento.

5. Neste Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de o recurso ser julgado improcedente.

6. Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta

7. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do CPP – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/99, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:

Nulidade da sentença, nos termos do artigo 379º, nº 1, alíneas b) e c), do CPP.

Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento/violação dos princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo.

Enquadramento jurídico-penal da conduta do recorrente.

2. A Decisão Recorrida

O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos (transcrição):

Factos da acusação e factos que resultaram da prova produzida

1. O Arguido AA viveu com a Ofendida BB como se fossem marido e mulher, em condições análogas às dos cônjuges, desde cerca de outubro ou novembro de 2015 até ao final do ano de 2020.

2. No dia 10-09-2021, entre as 10h30m e as 11h00m, na loja da empresa …, sita na loja … do Shopping …, na Rua …, n.º …, no …, o Arguido dirigiu-se à Ofendida, que estava a trabalhar, ocasião em que se originou uma discussão, por motivos relacionados com a empresa, entre o Arguido e a Ofendida.

3. Nesta sequência, o Arguido ficou exaltado e puxou o braço direito da Ofendida, pela zona acima do cotovelo, com força, a ponto de lhe deixar nódoas negras nessa área durante vários dias.

4. Em seguida, a Ofendida levantou-se e o Arguido deu-lhe um murro na zona do peito, do lado esquerdo, acima do seio, seguido de outro murro no lado direito da barriga, na zona abaixo das costelas.

5. Após, como a Ofendida tivesse agarrado o seu telemóvel com a mão esquerda, o Arguido agarrou-lho e arrancou-lho da mão com força.

6. Nestas circunstâncias, a Ofendida saiu do escritório e foi até ao corredor do centro comercial onde o mesmo se situa, onde encontrou CC, que aí passava, e disse-lhe que o Arguido lhe batera e não lhe dava o telemóvel, pedindo-lhe ajuda.

7. CC entrou no escritório e pediu calma a ambos, após o que o Arguido devolveu o telemóvel à Ofendida.

8. Após CC ter saído do escritório, a Ofendida pegou no telemóvel e telefonou à irmã do Arguido, na presença deste, com o telemóvel em «alta voz».

9. Nessa conversa, a Ofendida disse à irmã do Arguido que já não tinha de se entender com o Arguido pois tinha outra pessoa na sua vida, com mais caráter do que aquele que o Arguido teve.

10. Nesta sequência, estando a Ofendida sentada em frente ao computador, o Arguido debruçou-se sobre a secretária e desferiu um murro na cara da Ofendida, atingindo-a no lado esquerdo do nariz.

11. Após, o Arguido deslocou-se novamente na direção da Ofendida e esta agarrou uma vassoura, que impeliu na direção do Arguido.

12. Ato contínuo, o Arguido agarrou a vassoura que a Ofendida segurava contra si e puxou-a com força para si, sem que a Ofendida estivesse à espera, o que fez com que o seu corpo se deslocasse na direção do Arguido, atrás da vassoura, e lhe provocou uma dor imediata no braço esquerdo com o qual segurara o objeto, fazendo-a largar a mão esquerda de imediato.

13. Após, o Arguido abriu a porta e saiu.

14. Na sequência da conduta do arguido, a Ofendida teve de receber assistência médica no Serviço de Urgência do Hospital de ….

15. Também na sequência da conduta do Arguido, a Ofendida ficou com dores e ferimentos e apresentou posteriormente:

15.1. na cabeça: equimose arroxeada, ténue, na vertente lateral direita do nariz, medindo 0,4 centímetros por 0,2 centímetros; equimose arroxeada com halo amarelado na região bucal esquerda, medindo 1,2 centímetros por 0,4 centímetros; bordo oclusão dos dentes 11, 21 e 22, 31, 32 e 41 irregular;

15.2. no tórax: equimose fortemente arroxeada com zonas amareladas no quadrante súpero-medial da mama esquerda, medindo 3,5 centímetros por 3,3 centímetros;

15.3. no abdómen: equimose amarelada com centro arroxeado no hipocôndrio direito, medindo 2 centímetros por 1,5 centímetros;

15.4. no membro superior direito: três equimoses arroxeadas com halo amarelado no terço distal das faces lateral e posterior do braço, ocupando uma área medindo 9 Centímetros por 9 centímetros, a maior medindo 7 centímetros por 5 centímetros;

15.5. no membro superior esquerdo: mobilidades do ombro limitada por dor aos 90º na antepulsão e na abdução ativas, consegue com dificuldade e dores levar a mão à nuca e à coluna dorsal; permanente limitação da mobilidade do ombro esquerdo, na antepulsão e na abdução.

16. As lesões sofridas pela Ofendida importaram 167 dias para a consolidação médico-legal: com afetação da capacidade de trabalho geral (167 dias) e com afetação da capacidade de trabalho profissional (167 dias).

17. Cerca de 6 meses antes da data referida em 2, a Ofendida fora operada ao septo nasal para correção de um desvio, o que o Arguido sabia, tendo, de resto, sido o próprio a ir pô-la e levá-la ao Hospital sempre que se teve de deslocar a tal unidade de saúde antes e depois da cirurgia.

18. O Arguido tem 1,80m e pesa mais de 100 Kg.

19. A Ofendida tem 1,67m e pesa 68Kg.

20. O Arguido agiu nos termos descritos em 3, 4 e 10 com o propósito concretizado de maltratar a ofendida, ofendendo-a na sua integridade física, provocando-lhe dor, ferimentos e sofrimento.

21. O Arguido agiu consciente e voluntariamente, bem sabendo que molestava fisicamente a ofendida e prejudicava o seu bem-estar, o seu corpo e saúde.

22. O Arguido sabia que a ofendida fora sua companheira e que com ela vivera nos termos referidos em 1.

23. O Arguido agiu nos termos descritos em 3, 4 e 10 com o intuito de satisfazer a sua vontade de agredir fisicamente a Ofendida, nomeadamente na região do nariz, sabendo que esta não tinha como se opor a essa conduta agressiva, atenta a superioridade física do Arguido e sabendo que a mesma fora operada ao nariz na altura referida em 17 dos factos provados.

24. O Arguido atuou nos termos descritos em 3, 4 e 10 com intenção de molestar a saúde e o corpo da Ofendida e de lhe provocar as dores verificadas, o que quis e concretizou.

25. O Arguido agiu de modo livre, voluntário, consciente e deliberado, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Factos relativos aos pedidos de indemnização civil

26. A Ofendida nasceu em …1971.

27. Como consequência direta da atuação do Arguido descrita nos pontos 3, 4 e 10 supra, a Ofendida sofreu dores e mal-estar nas zonas atingidas.

28. Com a sua referida atuação, o Arguido gerou na Ofendida sentimentos de angústia, mágoa, medo, depressão e desgosto.

29. O Arguido não se encontra arrependido.

30. O Arguido não tem condenações averbadas no seu registo criminal.

Quanto aos factos não provados, considerou como tal (transcrição):

a) Que o Arguido, para retirar o telemóvel da mão da Ofendida, lhe tenha puxado o braço esquerdo.

b) Que a Ofendida, na conversa telefónica referida em 8 e 9 dos factos provados, tenha dito à irmã do Arguido que este a agredira, que não lhe perdoava e que iria à Polícia relatar os factos.

c) Que, no momento referido em 10 dos factos provados, o Arguido tenha desferido mais murros à Ofendida (para além do ali descrito) ou que, com o murro desferido, a tenha atingido também na boca.

d) Que o Arguido, ao agir nos termos referidos em 12, soubesse que, agindo do modo aí descrito, podia afetar, de modo grave, a possibilidade de a Ofendida utilizar o seu corpo, com o que se conformou, não se abstendo de agir do modo descrito.

Fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

Motivação da decisão sobre os factos provados

O Arguido, no exercício do seu direito ao silêncio, não prestou declarações.

Assim, a convicção do Tribunal sobre os factos provados relativos à matéria da acusação e do pedido de indemnização civil assentou, fundamentalmente, nas declarações da Demandante Civil e Ofendida, BB, que, tendo sido prestadas com espontaneidade e serenidade e na ausência de qualquer versão oposta apresentada pelo Arguido ou por qualquer uma das testemunhas, mereceram a credibilidade do Tribunal.

Tais declarações encontraram ainda eco (em aspetos parciais ou secundários das mesmas) no testemunho de CC (lojista do mesmo centro comercial que confirmou que a Ofendida a abordou no corredor pedindo-lhe que entrasse no escritório onde estava o Arguido e afirmando que este acabara de a agredir) e nos testemunhos de DD (filho da Ofendida que, não obstante tal parentesco, depôs de forma isenta e imparcial), de EE e de FF (amigas da Ofendida), que descreveram as consequências que observaram na sua mãe e amiga, respetivamente, após o sucedido.

As premissas extraídas destes meios de prova foram outrossim analisadas, de forma crítica e cruzada, à luz do auto de denúncia de fls. 110 a 112 verso, das fichas de identificação civil de fls. 19 e 26 e do assento de nascimento da Ofendida de fls. 22 e 23.

Relativamente às lesões e sequelas sofridas pela Ofendida, o Tribunal tomou em consideração os relatórios médico-legais constantes de fls. 63 a 66 e de fls. 179 a 180 dos autos, os elementos clínicos de fls. 89 a 94 e as fotografias de fls. 131 e seguintes, cuja versão a cores consta do DVD anexo à contracapa do processo.

Mas vejamos mais concretamente.

No que concerne à matéria constante do ponto 1 dos factos provados, quer a Ofendida quer as testemunhas DD, EE e FF confirmaram a existência de uma relação pretérita entre o Arguido e a Ofendida análoga à dos cônjuges, tendo a Ofendida precisado a duração, termo inicial e termo final da mesma, nos moldes que se consideraram demonstrados.

A convicção do Tribunal acerca da factualidade referida nos pontos 2 a 5 dos factos provados assentou, em primeira linha, na única testemunha ocular dos factos aí narrados que foi a própria Ofendida.

Efetivamente, BB narrou como, estando na empresa do filho (onde ia ajudar quando possível e para a qual o Arguido prestava serviços através de uma empresa de transportes que à data tinha) este entrou na sala onde a Ofendida se encontrava, já «maldisposto», tendo sido questionado pela Ofendida a propósito de serviços prestados e faturados pela sua empresa.

De acordo com a Demandante Civil, o tema implicou que esta telefonasse a uma terceira pessoa, após o que foram trocadas algumas palavras entre ela e o Arguido, a que se seguiu a atuação do Arguido nos moldes descritos de 3 a 5 dos factos provados.

Relativamente à força empregue pelo Arguido para retirar o telemóvel das mãos da Ofendida (mencionada no ponto 5 dos factos provados), de acordo com esta a mesma foi tal que a película protetora do ecrã do telemóvel se partiu.

Pese embora não tenha visto o sucedido, a testemunha CC (que tem um cabeleireiro ao lado do escritório onde os factos ocorreram) narrou em Tribunal que, antes de ir ao corredor e ser chamada pela Ofendida, ouvira um barulho que parecia de algo a cair e depois gritos de uma mulher, e que quando foi chamada pela Ofendida para entrar no escritório, esta, aparentando estar nervosa e amedrontada, lhe mostrou o braço vermelho, disse-lhe que o Arguido lhe batera e lhe tirara o telemóvel, e o Arguido estava com o telemóvel da Ofendida na mão, dizendo-lhe calmamente que já o devolvia e tendo respondido à acusação da Ofendida de que lhe batera dizendo que não lhe batera, antes a empurrara por a Ofendida ter ido para cima dele.

No que tange aos factos provados n.ºs 6 e 7, a convicção do Tribunal formou-se a partir da concatenação das premissas probatórias extraídas do depoimento da Ofendida e do testemunho de CC, que, quanto aos factos por ambas presenciados, se revelaram, no essencial, compatíveis.

É certo que a Ofendida referiu que foi após a entrada daquela testemunha no escritório que o Arguido lhe devolveu o telemóvel e a aludida testemunha disse não ter assistido a tal devolução, mas ambas as asserções não são logicamente incompatíveis entre si.

Foi também o depoimento da Ofendida que permitiu ao Tribunal formar a sua convicção no sentido da veracidade dos factos que se consideraram nos pontos 8 a 13 da factualidade provada, que espelham o que BB descreveu ao Tribunal, estando o seu depoimento, no que às lesões descritas concerne, corroborado pelos relatórios periciais de fls. 63 a 66 e pelos fotogramas que constam de fls. 142 a 160 do suporte físico dos autos e, a cores, do DVD junto na contracapa do suporte físico dos autos (fotografias essas com as quais a Ofendida foi confrontada no seu depoimento, tendo esclarecido as que foram por si tiradas após os factos objeto destes autos e descrito o que nelas procurara retratar).

Refira-se que o puxão do braço esquerdo (quando agarrava uma vassoura na direção do Arguido) descrito pela Ofendida em audiência de julgamento, encontrou eco quer nas queixas que a mesma apresentou quando foi atendida no serviço de urgência (cf. diário clínico de fls. 92, onde se refere que a Ofendida, naquele mesmo dia, apresentava dor e limitação dos movimentos no ombro esquerdo) quer no relato que a vítima fez do sucedido, no INML, quando foi realizar exame pericial (cf. fls. 64 dos autos onde se narra que a Ofendida descreveu que «Tentou defender-se, tendo sido puxada pelo membro superior esquerdo e agredida com murros.»).

Também foi a Ofendida que descreveu em Tribunal a matéria constante dos pontos 14 e 17 a 19 dos factos provados, sendo os pesos de um e outro, indicados pela mesma, compatíveis com a compleição física do Arguido e da Assistente que o Tribunal pôde observar no julgamento e resultando as alturas dos dois intervenientes processuais da informação extraída das bases de dados de identificação civil que constam de fls. 19 e 26 dos autos.

As lesões descritas em 15 e 16 dos factos provados refletem o teor dos relatórios médico-legais de fls. 63 a 66 e de fls. 179 a 180 dos autos.

Quanto às representações e intenções do Arguido referidas de 20 a 25 dos factos provados, as mesmas extraíram-se da concatenação da restante matéria que se deu por demonstrada com as regras de experiência comum, uma vez que a atuação (intrinsecamente externa) do Arguido demonstrada neste processo é apenas condicente com a existência subjetiva dos propósitos, intentos e representações elencados nestes pontos da matéria de facto.

Para a prova do facto provado n.º 26, o Tribunal considerou a certidão de assento de nascimento da Ofendida, de fls. 22 e 23 dos autos.

O sentido da decisão refletida em 27 e 28 da matéria de facto provada reflete o teor das declarações da própria Assistente (que descreveu as dores sentidas, como, durante 2 dias, não conseguiu comer e ficou com céu da boca inchado pelo murro que recebeu no nariz e que classificou os sentimentos experienciados como de revolta, raiva, mágoa e medo) conjugadas com os depoimentos das testemunhas CC, DD, EE e FF, que descreveram o estado físico e de espírito da Ofendida após os factos objeto dos autos.

O Tribunal inferiu a falta de arrependimento do Arguido, levada ao ponto 29 dos factos provados, do depoimento da Ofendida que, perguntada, afirmou que o Arguido nunca lhe pediu desculpa nem se mostrou consternado com o sucedido.

O facto provado n.º 30 resultou da análise do certificado de registo criminal do Arguido, junto ao processo eletrónico sob a referência 9091326, de 17-10-2022.

Motivação da decisão sobre os factos não provados

No que concerne à matéria de facto com relevância para a decisão da causa que o Tribunal deu por não provada, tal decisão assentou na ausência de meios de prova que tenham convencido o Tribunal da sua ocorrência.

Em particular, relativamente à matéria de facto não provada constante da alínea d), a descrição dos factos levada a cabo pela Ofendida, nos termos que se deram por provados em 12 da matéria de facto provada, não permitiu ao Tribunal concluir, apenas com base em juízos de presunção judicial e invocando as regras de experiência comum, com o grau de certeza que se exige em processo penal (para lá de qualquer dúvida razoável) que, ao puxar a vassoura que a Ofendida empunhou na direção do Arguido, este tivesse sequer representado como possível que a Ofendida não largasse a aludida vassoura e, nessa senda, viesse a sofrer uma limitação permanente de mobilidade no ombro respetivo.

As regras de experiência de vida oferecem uma multiplicidade de intenções e representações alternativas para tal atitude de puxar a vassoura, algumas até de mera reação automática e impensada, não sendo possível, na ausência de mais factos indiciários, concluir que tenha havido tal representação por parte do Arguido, ou sequer a consciência de que, em face do contexto em causa, teria de ter particular cuidado com a forma como manejava a vassoura que lhe era apontada para não magoar a Ofendida.

Apreciemos.

Nulidade da sentença, nos termos do artigo 379º, nº 1, alíneas b) e c), do CPP

Sustenta o recorrente que a sentença recorrida é nula, porquanto foi condenado por factos que não constavam da acusação (concretamente: em seguida, a Ofendida levantou-se e o Arguido deu-lhe um murro na zona do peito, do lado esquerdo, acima do seio, seguido de outro murro no lado direito da barriga, na zona abaixo das costelas), nem sobre os quais incidiu queixa por parte da ofendida, do que resulta também ter o tribunal a quo se pronunciado sobre matéria de que não podia tomar conhecimento.

Estabelece-se no artigo 379º, nº 1, do CPP, que é nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e condições previstos nos artigos 358º e 359º - alínea b); sendo que se verifica também essa nulidade quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento – alínea c).

Nos termos do nº 1, do artigo 358º, do CPP, “se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa”.

A alteração não substancial dos factos constitui uma divergência ou diferença de identidade que não transforma o quadro da acusação em outro diverso no que se refere a elementos essenciais, mas apenas, de modo parcelar e mais ou menos pontual, sem descaracterizar o quadro factual da acusação, e que, de qualquer modo, não têm relevância para alterar a qualificação penal ou para a determinação da moldura penal, sendo que a alteração, para ser processualmente considerada, tem de assumir relevo para a decisão da causa – cfr. Ac. do STJ de 21/03/2007, Proc. nº 07P024, disponível em www.dgsi.pt.

Analisada a acusação pública, resulta que o arguido foi acusado da prática de um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, p. e p. pelos artigos 145º, nº 1, alíneas a) e c) e nº 2, por referência aos artigos 144º, alínea b), 143º, nº 1 e 132º, nº 2, alíneas b) e e), do Código Penal, não constando, efectivamente, nessa peça processual do Ministério Público os factos alvo do inconformismo do recorrente.

Contudo, de acordo com o consagrado no artigo 368º, nº 2 em conjugação com o artigo 374º, nº 2, do CPP, da sentença têm de constar os factos que “resultarem da discussão da acusa”.

Pois bem.

Resulta da acta de audiência de julgamento de 09/11/2022, que o tribunal recorrido comunicou ao arguido essa alteração factual, ao abrigo do disposto no artigo 358º, nº 1, do CPP, nada tendo sido requerido pela defesa.

E, veio a ser o arguido condenado pelo cometimento de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, nº 1 e 145º, nº 1, alínea a) e nº 2, por referência ao disposto no artigo 132º, nº 2, alíneas b) e e), do Código Penal. Ou seja, por infracção menos gravosa até do que aquela por que vinha acusado.

Ora, no que tange a esta alteração, constitui jurisprudência consolidada do nosso Supremo Tribunal de Justiça, que a comunicação ao arguido mencionada no artigo 358º, nº 3, do CPP, não se impõe quando a alteração da qualificação jurídica resulta na imputação ao arguido de uma infracção que representa um minus relativamente à da acusação ou da pronúncia, pois o arguido teve conhecimento de todos os seus elementos constitutivos e possibilidade de os contraditar.

Designadamente, pode-se ler no Ac. STJ de 27/04/2011, Proc. nº 712/00.9JFLSB.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt, que “quando o Tribunal se limita a alterar a qualificação jurídica, “desagravando” um crime de qualificado para simples, por entender que determinada circunstância qualificativa acaba por não ter no caso em apreciação o valor agravativo suposto pela norma, não só não se verifica surpresa, pois o interessado já fora chamado a pronunciar-se sobre a circunstância qualificativa que agora se tem por não verificada, como o bem jurídico protegido é o mesmo e se trata de uma reforma para melhoria da qualificação e consequente condenação – cf. Simas Santos e Leal-Henriques, Código de Processo Penal Anotado, II, anotação ao art. 358º” - vd., entre muitos outros, também os Acs. do STJ de 12/09/2007, Proc. nº 07P2596 e de 28/05/2008, Proc. nº 08P1129, disponíveis no mesmo sítio.

Face ao que, inexiste a assinalada nulidade prevista no artigo 379º, nº 1, alínea b), do CPP.

Já quanto a ter o tribunal recorrido apreciado questão cujo conhecimento lhe estaria vedado, reporta-se o recorrente a, em relação à aludida factualidade, não ter existido, em seu entender, queixa de BB.

Só que, o crime em causa reveste natureza procedimental pública, pelo que o julgador da 1ª instância teria sempre de ter em conta essa factualidade, independentemente de constar ou não a mesma em concreto da queixa apresentada, não se verificando, assim, nulidade por excesso de pronúncia.

Improcede, pois, o recurso, neste segmento.

Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento/violação dos princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo

Conforme estabelecido no artigo 428º, nº 1, do CPP, os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, de onde resulta que, em regra e quanto a estes Tribunais, a lei não restringe os respectivos poderes de cognição.

A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do CPP, no que se denomina de “revista alargada”, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento – neste sentido, por todos, Ac. do STJ de 05/06/2008, Proc. nº 06P3649 e Ac. do STJ de 14/05/2009, Proc. nº 1182/06.3PAALM.S1, disponíveis em www.dgsi.pt. - ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se reporta o artigo 412º, nºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma legal.

O recorrente aponta, em concreto, a sua discordância quanto à matéria de facto dada como provada nos pontos 20 a 25, aduzindo no corpo da motivação de recurso (que não passou para as conclusões da mesma, diga-se) que “importará ainda sindicar a matéria de facto através da revista alargada, por arguição dos vícios a que faz referência o art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal”.

Contudo , não especifica qual dos vícios elencados nesse artigo considera estar presente, referindo, apenas, que a sentença recorrida fundamenta “Quanto às representações e intenções do Arguido referidas de 20 a 25 dos factos provados, as mesmas extraíram-se da concatenação da restante matéria que se deu por demonstrada com as regras de experiência comum, uma vez que a atuação (intrinsecamente externa) do Arguido demonstrada neste processo é apenas condicente com a existência subjetiva dos propósitos, intentos e representações elencados nestes pontos da matéria de facto” (fls 10).

Porém, adiante, afirma “a descrição dos factos levada a cabo pela Ofendida, nos termos que se deram por provados em 12 da matéria de facto provada, não permitiu ao Tribunal concluir, apenas com base em juízos de presunção judicial e invocando as regras de experiência comum, com o grau de certeza que se exige em processo penal (para lá de qualquer dúvida razoável) que…” (fls 11).

Considerando esta argumentação, poderá querer significar que está verificado o vício mencionado na alínea b), do dito (contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão).

Vejamos.

Este vício, tal como os demais desse artigo, só releva se, assim se explicitou retro, resultar do texto (e do contexto) da decisão recorrida apreciado na sua globalidade, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum. São vícios da decisão, não do julgamento, como frisa Maria João Antunes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Janeiro/Março de 1994, pág. 121.

E, está presente, como se salienta no Ac. do STJ de 29/10/2015, Proc. nº 230/10.7JAAVR.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto ou contradição entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta ou não justifica a decisão.

Ora, analisado o texto da sentença, conclui-se que o tribunal a quo se está a reportar, no primeiro segmento mencionado, a como formou a sua convicção quanto à factualidade que verteu nos pontos 20 a 25 dos factos provados e no segundo elucida a razão de ter considerado como não demonstrados os que descreve na alínea d) dos não provados.

A passagem completa é a seguinte:

Em particular, relativamente à matéria de facto não provada constante da alínea d), a descrição dos factos levada a cabo pela Ofendida, nos termos que se deram por provados em 12 da matéria de facto provada, não permitiu ao Tribunal concluir, apenas com base em juízos de presunção judicial e invocando as regras de experiência comum, com o grau de certeza que se exige em processo penal (para lá de qualquer dúvida razoável) que, ao puxar a vassoura que a Ofendida empunhou na direção do Arguido, este tivesse sequer representado como possível que a Ofendida não largasse a aludida vassoura e, nessa senda, viesse a sofrer uma limitação permanente de mobilidade no ombro respetivo.

As regras de experiência de vida oferecem uma multiplicidade de intenções e representações alternativas para tal atitude de puxar a vassoura, algumas até de mera reação automática e impensada, não sendo possível, na ausência de mais factos indiciários, concluir que tenha havido tal representação por parte do Arguido, ou sequer a consciência de que, em face do contexto em causa, teria de ter particular cuidado com a forma como manejava a vassoura que lhe era apontada para não magoar a Ofendida.

Face ao exposto, conclui-se que inexiste contradição alguma entre os segmentos que o recorrente transcreve.

E, também não vislumbramos que padeça a sentença dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (pelo menos no que tange à factualidade susceptível de integrar o crime por que foi condenado) ou erro notório na apreciação da prova, sendo certo que a mera discordância do recorrente quanto a como a prova foi pelo julgador da 1ª instância apreciada não integra qualquer destes vícios.

Mas, argumenta ainda o arguido quanto à factualidade narrada nos pontos 20 a 25 dos factos provados, que “as “regras da experiência comum” não são meio de prova e não sustentam a demonstração de factos penalmente relevantes”.

Mas, não tem razão.

Em causa estão factos consubstanciadores do dolo (quer do dolo do tipo, quer do da culpa, onde se inclui a consciência da ilicitude) e, porque inerentes à dimensão subjectiva, do foro psicológico, são, quase sempre, indemonstráveis de forma naturalística, extraindo-se, normalmente, das circunstâncias objectivas que rodearam a prática do facto e da ausência ou afastamento das causas que os possam excluir, conferidas com as máximas da experiência e da lógica e as presunções judiciais admissíveis.

Provado se mostra que, o arguido puxou o braço direito de BB com tal energia que lhe provocou nódoas negras por vários dias; desferiu-lhe um soco na região do tórax (quadrante súpero-medial da mama esquerda) e outro no abdómen (hipocôndrio direito); desferiu-lhe ainda um soco que a atingiu no lado esquerdo do nariz.

Face a esta factualidade objectiva que assente se encontra, não podia o tribunal recorrido deixar de dar como provados os factos constantes dos pontos 20 a 25, não se podendo deixar de assinalar que, de acordo com o estabelecido no artigo 127º, do CPP, “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.

Considera ainda o arguido, ter ocorrido violação dos princípios in dubio pro reo e da presunção de inocência.

Ora, a violação daquele princípio, corolário do da presunção de inocência constitucionalmente tutelado, pressupõe “um estado de dúvida insanável no espírito do julgador”, só podendo concluir-se pela sua verificação quando do texto da decisão recorrida decorrer, por forma evidente, que o tribunal encontrando-se nesse estado, optou por decidir contra o arguido (fixando como provados factos dubitativos ao mesmo desfavoráveis ou assentando como não provados outros que lhe são favoráveis) ou, quando embora se não vislumbre que o tribunal tenha manifestado ou sentido dúvidas, da análise e apreciação objectiva da prova produzida, à luz das regras da experiência e das regras e princípios válidos em matéria de direito probatório, resulta que as deveria ter – cfr. Ac. do STJ de 27/05/2009, Proc. nº 05P0145 e Ac. R. de Évora de 30/01/2007, Proc. nº 2457/06-1, ambos em www.dgsi.pt.

Analisando a sentença revidenda, dela não se conclui que o tribunal de 1ª instância tenha ficado num estado de dúvida – dúvida razoável, objectiva e motivável – e que, a partir desse estado, tenha procedido à fixação dos factos provados desfavoráveis ao arguido e nem a essa conclusão (dubitativa) se chega da análise desse mesmo texto à luz das regras da experiência comum.

Não se encontrando o tribunal a quo nesse estado de dúvida e nada nos permitindo concluir que o devesse estar, não se manifesta obliterado esse princípio.

E, também se não alcança onde possa ser encontrada a violação do princípio da presunção de inocência, pois em passagem alguma da mesma peça processual se manifesta ou sequer se extrai considerar o tribunal a quo que o arguido tinha de demonstrar a sua inocência, sendo certo que, como retro se enunciou, impedimento legal algum existe a que se chegue à factualidade relativa aos elementos subjectivos típicos do crime através de um raciocínio lógico e intelectual de inferição ou dedução alicerçado nos factos concernentes à realidade objectiva que provados se mostram.

De onde, a não violação da norma contida no artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.

Para que se proceda à alteração da matéria de facto no sentido propugnado pelo recorrente teria este que demonstrar que a convicção obtida pelo tribunal a quo constitui uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação das aludidas regras, uma manifestamente errada utilização de presunções naturais, não bastando que apresente uma argumentação no sentido de que outra convicção era possível.

Tal demonstração, não a fez, pelo que não merece acolhimento a sua pretensão de alteração da matéria de facto.

Termos em que, cumpre concluir que da análise efectuada resulta que a factualidade considerada provada objecto de impugnação se apresenta sustentada por prova suficiente, adequada e legalmente permitida, não se registando obliteração das regras da experiência comum, sem margem para dúvidas razoáveis, não havendo, por isso, fundamento para a pretendida alteração da matéria de facto, não podendo proceder a pretensão do recorrente de impor a sua convicção pessoal face à prova produzida em audiência em detrimento da do julgador, pois a decisão sobre esta está devidamente fundamentada, tendo sido proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção – artigo 127º, do CPP.

Assim, carecendo de razão o recorrente no que tange à alteração da matéria de facto, tem de se considerar esta definitivamente fixada nos termos mencionados, improcedendo o recurso nesta parte.

Enquadramento jurídico-penal da conduta do recorrente

O arguido foi condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, nº 1 e 145º, nº 1, alínea a) e nº 2, por referência ao disposto no artigo 132º, nº 2, alíneas b) e e), todos do Código Penal.

Subsidiariamente, discorda deste enquadramento jurídico-legal, pugnando pela não qualificação da sua conduta.

Ora, estabelece-se no artigo 143º, nº 1, do Código Penal, que “quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido (…).”

E, de acordo com o consagrado no artigo 145º, do mesmo, se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143º - cfr. alínea a) do nº 1; sendo susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no nº 2 do artigo 132º - nº 2.

Face à factualidade que está provada, dúvidas inexistem de que preenchidos se mostram os elementos objectivos e subjectivos do crime previsto no artigo 143º, nº 1, do Código Penal.

Mas, o tribunal recorrido concluiu que estava perante o crime qualificado, tendo em atenção as circunstâncias previstas nas alíneas b) – “praticar o facto contra (…) pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação (…)”- e e) – “ser determinado por (…) qualquer motivo (…) fútil - do nº 2, do artigo 132º, do Código Penal.

E, explicitou o seu entendimento nos seguintes termos:

Por outro lado, e no que concerne à qualificação do crime nos termos do artigo 145º, nº 1, alínea a) e 132º, nº 2, do Código Penal, a factualidade apurada nestes autos revela que o Arguido atuou sabendo que a vítima era a sua ex-companheira e apesar desse facto, e num contexto que revela a total futilidade do mote para a sua atuação, se se considerar que a primeira discussão do arguido com a Ofendida se deveu a questões de trabalho e a segunda agressão saquela a esta foi resposta primária e gratuita ao facto de a Ofendida ter dito à irmã do Arguido que tinha outra pessoa que revelava melhor caráter do que o Arguido.

Mostram-se, assim, preenchidos os exemplos-padrão das alíneas b) e e) do artigo 132º, nº 2, do Código Penal, sendo que, em qualquer caso, a desproporção física entre agente e vítima, a repetição das agressões e a circunstância de o Arguido a ter atingido no nariz, pese embora soubesse que a Ofendida sofrera uma intervenção cirúrgica recente nessa parte do corpo, seriam, por si só, suficientes para considerar reunida a especial censurabilidade e perversidade de que depende o preenchimento do tipo qualificado.

Vejamos então se estão preenchidos os elementos do tipo qualificado.

Ainda que concernente à problemática do homicídio, entendemos ser aplicável, no caso em apreço, com as pertinentes adaptações, o entendimento vertido por Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1995, págs. 63/64, de que a censurabilidade especial respeita a situações em que as circunstâncias em que a morte (leia-se aqui a ofensa à integridade física) foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores, enquanto a especial perversidade revela uma atitude profundamente rejeitável, constituindo um indício de motivos e sentimentos absolutamente rejeitados pela sociedade, reconduzindo-se a uma atitude má, atinente à personalidade do autor.

Ou, nas palavras de Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 29, a especial censurabilidade refere-se a condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, enquanto a especial perversidade se reporta aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação do facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas.

Está provado que, o arguido puxou o braço direito de BB com tal energia que lhe provocou nódoas negras por vários dias; desferiu-lhe um soco na região do tórax (quadrante súpero-medial da mama esquerda) e outro no abdómen (hipocôndrio direito); desferiu-lhe ainda um soco que a atingiu no lado esquerdo do nariz, pancadas de que resultaram para esta equimoses.

Cerca de 6 meses antes da data dos factos, BB fora operada ao septo nasal para correção de um desvio, o que era do conhecimento do arguido.

O arguido tem 1,80 metros de altura e pesa mais de 100 Kg, enquanto BB tem 1,67 metros de altura e pesa 68 Kg.

Entendeu o tribunal recorrido que a actuação do recorrente configura “motivo fútil.”

Elucida-nos o Ac. do STJ de 17/04/2013, Proc. nº 237/11.7JASTB.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt:

“Tem sido entendido que motivo torpe ou fútil é aquele que não chega a ser motivo ou que não tem qualquer relevância, que não pode razoavelmente explicar e, muito menos, justificar a conduta do agente – acórdão de 24-11-1998, BMJ n.º 481, p. 149 -, ensinando este acórdão que é no subjectivismo do agente que terá de ser encontrada a natureza da motivação do crime para efeitos de apreciação da futilidade do motivo (seguido de perto no acórdão de 03-10-2002, processo n.º 2709/02-5.ª).

Para o acórdão de 15-12-2005, processo n.º 2978/05-5.ª, citando vários acórdãos e doutrina e seguido de perto pelo acórdão de 17-01-2007, processo n.º 3845/06-3.ª e de 05-12-2007, processo n.º 3879/07-3.ª, “motivo fútil é o motivo de importância nenhuma, o motivo frívolo, leviano, a ninharia que leva o agente à prática desse grave crime, na inteira desproporção entre o motivo e a extrema reacção homicida, o que se apresenta notoriamente inadequado do ponto de vista do homem médio em relação ao crime de que se trate, o que traduz uma desconformidade manifesta entre a gravidade e as consequências da acção cometida e o que impeliu o agente a essa comissão, que acentua o desvalor da conduta por via do desvalor daquilo que impulsionou a sua prática”.

Diz-se ainda: “O vector fulcral que identifica o motivo fútil não é pois tanto o que passe por dizer-se que, sendo ele de tão pouco ou imperceptível relevo, quase que pode nem chegar a ser motivo, mas sim, aquele que realce a inadequação e faça avultar a desproporcionalidade entre o que impulsionou a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal com que ela se objectivou: no fundo, em essência, o que prefigure a especial censurabilidade que decorre da futilidade, sendo que esta pressupõe um motivo por ela rotulável e que dela e por ela se envolva (Ac. do STJ de 4/10/2001, proc. n.º 1675/01-5.ª)” – cfr. os acórdãos de 27-05-2010, processo n.º 58/08.4JAGDR.C1.S1, in CJSTJ 2010, tomo 2, p. 206 e de 27-06-2012, processo n.º 127/10.0JABRG.G2.S1, ambos da 3.ª Secção e do mesmo relator, e ainda do acórdão de 13-03-2008, processo n.º 2589/07-5.ª” – fim de citação.

Ora, se vero é que se desconhece qual a materialidade concreta subjacente ao desentendimento ocorrido entre o arguido e a ofendida por motivos relacionados com a empresa, menos certo não resulta que, qualquer que ela fosse, o puxar do braço com emprego de força tal que provocou nódoas negras nesse membro, seguido de um soco no peito e outro no estômago, de que resultaram equimoses nessas zonas corporais, se apresentam como desproporcionais face a esse motivo de actuação, o que integra uma situação radicalmente afastada das concepções éticas e de valores da comunidade.

Como espelha também essa desequilíbrio e inadequação, o soco desferido no nariz da vítima, em razão de esta em conversa telefónica com a irmã do arguido ter verbalizado que já não tinha de se entender com ele pois tinha outra pessoa na sua vida, com mais caráter do que aquele que o arguido era possuidor.

E, este circunstancialismo não pode deixar de levar à conclusão de que tal soco ocorreu porque a vítima mantivera consigo uma relação análoga à dos cônjuges, aliás, por mais de cinco anos.

Daí que, para além do preenchimento da previsão das alíneas b) e e), do nº 2, do artigo 132º, esteja também configurada a especial censurabilidade e perversidade da actuação do arguido exigida para a qualificação do crime, porquanto o circunstancialismo referido tornam-no mais grave, por a conduta ser mais reprovável, reconduzindo-se também a uma atitude má, respeitante à personalidade do agente, ao desferir o soco no nariz da ofendida quando estava ciente de que esta cerca de 6 meses antes tinha sido operada ao septo nasal.

Assente se encontra igualmente que o arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, ciente da proibição da sua conduta.

Termos em que, se mostram efectivamente preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de ofensa à integridade física qualificada em que o recorrente foi condenado, cumprindo negar provimento ao recurso.

Importa ainda se diga que, nada consta da factualidade que provada se encontra no que diz respeito à personalidade e situação pessoal, económica e social do arguido, não se vislumbrando razão alguma para essa omissão, pois o seu paradeiro nunca foi desconhecido, não se mostrando inviabilizada a elaboração de relatório social, caso tivesse sido solicitado, nos termos do artigo 370º, nº 1, do CPP, o que não foi.

Tal redundaria no vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – neste sentido, entre outros, Ac. do STJ de 06/11/2003, Proc. nº 03P3370; Ac. R. de Lisboa de 10/02/2010, Proc. nº 372/07.6GTALQ.L1-3; Acs. R. de Guimarães de 05/06/2006, Proc. nº 765/05-1 e de 11/06/2012, Proc. nº 317/11.9GTVCT.G1; Acs. R. de Coimbra de 05/11/2008, Proc. nº 268/08.4GELSB.C1 e de 23/02/2011, Proc. nº 83/09.8PTCTB.C1; Acs. R. do Porto de 18/11/2009, Proc. nº 12/08.6GDMTS.P1 e de 02/12/2010, Proc. nº 397/10.4PBVRL.P1; Ac. R. de Évora de 20/11/2012, Proc. nº 186/09.9GELL.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

Vício que este Tribunal da Relação pode conhecer oficiosamente.

Contudo, o recorrente não coloca em causa, ainda que subsidiariamente, a pena aplicada, pelo que a declaração de existência do mesmo não teria relevância para a decisão da causa.

Assim sendo, cumpre negar provimento ao recurso.

III - DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC.

Évora, 9 de Maio de 2023

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94º, nº 2, do CPP).

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(Artur Vargues)

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(Nuno Garcia)

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(António Condesso