Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
126/12.8GAMAC.E1
Relator: SÉNIO ALVES
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
DOLO
Data do Acordão: 07/11/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I. Expressões do género “o arguido agiu de forma voluntária, livre e consciente, conhecer do carácter proibido da sua conduta”, destinadas à uniformização do jargão judiciário, não podem transformar-se em fórmulas sacramentais.

II. Imputada ao arguido a prática de um crime de violência doméstica, se no RAI se afirma que este “manifestou intenção de agredir fisicamente” a queixosa, que agiu, “com propósitos de humilhação”, “determinado em continuar a agredir a queixosa”, “para (…) atingir a sua filha L.”, estamos perante expressões reveladoras de uma vontade livre e esclarecida, de um querer, mesmo de uma intenção.

III. E no que concerne ao elemento cognitivo do dolo, qualquer cidadão médio sabe que agredir física e verbalmente a pessoa que jurou amar e respeitar e a quem o liga um contrato de casamento, é algo de profundamente censurável, ofensivo das regras que presidem à vida em sociedade e, por isso, não permitido por lei. Daí que, nada sendo alegado e demonstrado em sentido contrário, se haja de concluir em conformidade com as regras da experiência de vida, isto é, que o arguido sabia ser proibido ofender física ou psiquicamente a assistente, a quem o ligava um contrato de casamento, cuja existência seguramente também não ignorava”.[1]
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES QUE COMPÕEM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I. Nos autos de inquérito que, com o nº 126/12.8GAMAC, correm termos nos serviços do Ministério Público da comarca de Mação, o Magistrado do MºPº decidiu, entre o mais e para o que ora importa, arquivar os autos “no que concerne ao crime de violência doméstica alegadamente perpetrado pelo denunciado V na pessoa da sua esposa MM (na realidade, MF), nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 277º, nº 1 do Código de Processo Penal”.

Notificada de tal despacho, MF constituiu-se assistente e requereu a abertura de instrução.

A Mª juíza, porém, indeferiu o requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal.

Inconformada com o teor desse despacho, recorreu a assistente, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões (transcritas a partir do respectivo suporte informático):

«A) O despacho recorrido preconiza uma interpretação exacerbadamente positivista e formalista do dispositivo legal vigente relativo ao requerimento de abertura de instrução e formalidades a que o mesmo deve obedecer. O RAI oferecido pela Assistente não merece as críticas de omissão de formalidades que o despacho recorrido lhe dirige.

B) O RAI da Assistente foi rejeitado pelo despacho recorrido, por alegada inadmissibilidade legal, com o fundamento de do mesmo não constar “qualquer elemento subjectivo imputável ao agente”, “um único elemento quanto ao dolo do arguido”.

C) A Assistente optou por não fazer constar no texto do seu RAI o habitual chavão “o arguido agiu de forma deliberada livre e consciente, sabendo ser ilícita e proibida por lei a sua conduta (…)”.

D) Porém, tal não pode significar, como pretende o Tribunal a quo, que não tenham sido cumpridas as formalidades que a lei exige, nomeadamente aquelas a que alude o artigo 283.º, n.º 3, alínea b) do CPP.

E) Ao contrário do que alega o despacho recorrido, a Assistente alegou factos no seu RAI com os quais pretendeu demonstrar o estado anímico do arguido aquando da prática dos factos, nomeadamente a sua intenção, assim dolo, que tem por inequívoco, em praticá-los.

F) Supra, a Assistente transcreveu as frases e expressões concretas constantes do seu RAI das quais decorre, de forma que temos por clara e directa, sem necessidade de recurso a quaisquer presunções, o dolo do arguido aquando da prática dos factos. Por motivos imperiosos de economia processual e necessidade de apresentação de conclusões sintéticas, limitamo-nos aqui a dá-las como integralmente reproduzidas para todos os legais efeitos.

G) Da leitura cuidada das expressões aludidas resulta, à saciedade, demonstrado o dolo do arguido na prática do crime pelo qual se pretende venha a ser pronunciado.

H) A forma como a Assistente factualizou as condutas do arguido permite demonstrar o dolo do mesmo na sua prática, seja relativamente aos diversos actos praticados pelo mesmo durante a relação conjugal, seja quanto ao último acto praticado, o qual determinou a ruptura definitiva da vida em comum do (ex)casal.

I) Parece-nos, pois, que a Assistente está a ver ser-lhe negada Justiça, num caso em que é vítima de violência doméstica, pelo simples facto de não utilizar um formalismo que a lei não obriga, mas que os usos forenses têm levado a algumas doutas peças processuais de acusação ou de RAI no nosso país, o que temos por manifestamente ilegal.

J) Com efeito, a Assistente não se limita a relatar as circunstâncias externas da actuação do arguido, ao invés caracterizando, ainda que sem recorrer a chavões/frases feitas, o estado de espírito deste aquando dessas acções criminosas. As palavras utilizadas pela Assistente “determinado”; “imparável”; “com propósitos de”, e demais transcritas, são reveladoras do dolo do arguido.

K) Também quanto à alegada falta de factualização da consciência da ilicitude por parte do arguido, a tese do despacho recorrido não pode proceder.

L) O crime pelo qual se pretende venha o arguido a ser pronunciado, violência doméstica, tem sido sistematicamente trazido a discussão e debate públicos, com notícias constantes de apelos por parte de órgãos e agentes de política criminal à sensibilização dos cidadãos para a gravidade e danosidade social do mesmo, à não passividade das autoridades, já para não falar nos recentes aperfeiçoamentos do tipo, alargando-se a sua factispecie para que nela caibam condutas isoladas desde que suficientemente graves.

M) O crime de violência doméstica, a par de outros como homicídio, furto e ofensas à integridade física, é dos mais impressivos, para qualquer cidadão, do ordenamento jurídico português, não podendo admitir-se que alguém possa não ter consciência de que uma tal conduta é ilícita e susceptível de ser sancionada penalmente.

N) A tese que o Tribunal a quo sufraga no despacho recorrido, a ser levada às últimas consequências, implicaria a recusa de praticamente toda e qualquer acusação ou RAI no nosso país.

O) Se o que se pretende é rigor, porque não obrigar a que se afirme também no RAI que “o arguido não sofre de nenhuma doença psicológica ou psiquiátrica que afecte a sua imputabilidade”; ou “o arguido não agiu ao abrigo de nenhuma causa de exclusão da culpa ou ilicitude prevista na lei”; ou “o arguido não agiu em erro sobre as circunstâncias de facto de forma a beneficiar do disposto no art.º 16.º do CP”; ou “o arguido não agiu em erro sobre a ilicitude”?!

P) Em nenhum processo crime a vítima sabe realmente o estado anímico do arguido aquando das actuações criminosas. Impor-se à Assistente que factualize algo que desconhece, e não pode conhecer, constitui uma total abstracção da realidade, não acolhida pelo nosso ordenamento jurídico, que, nunca é demais recordar, é feito para as pessoas e não para os teóricos do Direito.

Q) Existe uma verdadeira “consciência social” da ilicitude e danosidade do crime de violência doméstica bem como, naturalmente, do crime de ofensa à integridade física que pelo mesmo é consumido, que é extensível ao arguido.

R) Os factos constantes do RAI da Assistente, a serem dados como provados em julgamento, sempre determinariam a condenação do arguido pelo crime de violência doméstica, não carecendo, ao contrário do que dá a entender o Tribunal a quo, o Juiz de julgamento de recorrer a presunções do dolo do arguido para que se lograsse uma condenação.

S) Acresce que o Mm.º Juiz de Instrução sempre teria ao seu dispor o mecanismo da alteração não substancial dos factos, prevista no art.º 303.º, n.º 1 do CPP caso entendesse ser de acrescentar algum facto resultante das diligências instrutórias levadas a cabo, pois o aditamento de alguma expressão como o célebre chavão, acima aludido, nunca determinaria a imputação ao arguido de um crime diverso nem a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis – art.º 1.º, alínea f) do CPP. E de igual faculdade disporia também o Mm.º Juiz de julgamento.

T) O prosseguimento dos presentes autos para debate instrutório em nada afecta os direitos e garantia do arguido. Este, querendo apresentar uma distinta versão dos factos constantes do RAI da Assistente, não fica nunca inibido de o fazer em debate instrutório, e sempre poderá vir alegar o que bem entender acerca do seu estado anímico, a sua intenção na prática dos factos que lhe são imputados, a ausência de consciência da ilicitude, a existência de um qualquer erro acerca das circunstâncias de facto, etc, etc.

Nestes termos, e nos demais de Direito que V. Exa. doutamente suprirá, deve o despacho recorrido ser declarado nulo e de nenhum efeito, ordenando-se em consequência a baixa dos autos à primeira instância para proferimento de novo despacho que, admitindo o RAI apresentado pela Assistente, ordene a realização das diligências instrutórias requeridas e agende o debate instrutório, com o que farão V. Exas., Senhores Juízes Desembargadores, a esperada e costumada JUSTIÇA!».

Respondeu a Digna Magistrada do MºPº, pugnando pela manutenção do decidido e extraindo da sua resposta as seguintes conclusões (igualmente transcritas a partir do respectivo suporte informático):

«1. No requerimento de fls. 210 a 226, a assistente requereu a abertura de instrução, mas, apesar de ter enunciado um acervo factual pelo qual o Ministério Público não deduziu acusação, não se detecta a alusão ao elemento subjectivo do imputado crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Código Penal.

2. A prática de um ilícito criminal importa o preenchimento não só do elemento objectivo, mas também do elemento subjectivo.

3. A falta de preenchimento do elemento subjectivo radica na falta de punibilidade da conduta.

4. O requerimento que a assistente apresentou para abertura de instrução não contém os elementos essenciais à função processual que lhe é assinalada, pelo que não pode cumprir a função processual a que estaria vocacionado.

5. Não se mostra admissível a prolação de despacho de aperfeiçoamento nestas situações – cfr. cfr. Acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, publicado no Diário da República, I Série A, de 04-11-2005, páginas 6340 e seguintes.

6. Atentas as deficiências constantes no requerimento da assistente, e bem referidas no douto despacho recorrido, só resta concluir pela improcedência da pretensão da Recorrente.

7. O douto despacho recorrido não viola quaisquer preceitos legais, designadamente o disposto nos artigos 287.º, n.os 1, 2 e 3 e 283.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Penal.

8. O douto despacho recorrido fez uma correcta interpretação e aplicação da lei, pelo que deve o mesmo ser mantido e o recurso interposto ser julgado improcedente».

Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Cumprido o disposto no artº 417º, nº 2 do CPP, a recorrente reafirmou o que já consta das conclusões da sua motivação.

II. Sabido que são as conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação que delimitam o âmbito do recurso - artºs 403º e 412º, nº 1 do CPP - cumpre dizer que em discussão nos presentes autos está o saber se o RAI (requerimento de abertura de instrução) deduzido pela assistente reúne as condições legais para ser recebido.

O despacho recorrido tem o seguinte teor:

«Da Abertura da Instrução
A assistente MF veio requerer a fls. 211 e seguintes a abertura de instrução, pugnando pela prolação de despacho de pronúncia do arguido pela prática de um crime de violência doméstica.

Reza o artigo 286º, n.º1, do Código de Processo Penal, que “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”. Por outro lado, decorre do preceituado no artigo 287º do mesmo diploma legal, que a instrução poderá ser requerida pelo arguido ou pelo assistente, nos casos em que seja legalmente admissível, no prazo de 20 (vinte) dias, sendo que, “O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no art.º 283º, n.º 3, alíneas b) e c) (…)” (n.º 2, do citado preceito legal).

Por força da remissão em apreço, o requerimento de abertura de instrução, quando exarado pelo assistente, deve conter: 1º) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação, ao arguido, de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; 2º) A indicação das disposições legais aplicáveis.

Requerida, pois, a instrução por banda do assistente relativamente a factos que o Ministério Público se tenha abstido de acusar, o respectivo requerimento tem que enumerar os factos que fundamentam a eventual aplicação ao arguido de uma pena, factos esses indispensáveis para possibilitar a realização da instrução, particularmente no que concerne ao princípio do contraditório e à elaboração da decisão instrutória (Cfr. Acórdão da Relação de Évora de 17 de Maio de 1994, in C.J., Tomo III, p. 291).

Isto porque, se o juiz de instrução decidir que a causa deve ser submetida a julgamento, aceitando as razões apresentadas pelo assistente, isso significa que recebe a acusação implícita no requerimento para abertura da instrução, pronunciando o arguido em conformidade com ela. Daí que, o requerimento apresentado pelo assistente para abertura de instrução há-de conter, substancialmente, uma verdadeira acusação, como resulta desde logo do nº 3 do artigo 287º do Código de Processo Penal.

Como comenta Maia Gonçalves, o requerimento do assistente para abertura da instrução "deverá, a par dos requisitos do nº 1, revestir os de uma acusação, que serão necessários para possibilitar a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório, e a elaboração da decisão instrutória" – in "Código de Processo Penal Anotado", 1999, 11ª Edição, pág. 552.

A descrição exigida à peça acusatória, e pelo que acabou de se dizer, ao requerimento de abertura da instrução vinda de assistente, reporta-se a todos os factos (factos essenciais) de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, quer dizer, todos aqueles que constituem os elementos de algum crime.

Isto porque o juiz de instrução está substancial e formalmente limitado, na pronúncia, aos factos pelos quais tenha sido deduzida acusação formal ou tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser o objecto da acusação, por parte do Ministério Público. Nesta conformidade, o requerimento de abertura de instrução, quando formulado pelo assistente deverá consubstanciar, uma verdadeira acusação alternativa, que, atenta a divergência com a posição assumida pelo Ministério Público, será necessariamente sujeita a comprovação judicial. “A actividade cognitória do Juiz de Instrução está limitada, pois, pelo objecto da investigação (no caso de não ter havido acusação pelos factos que o assistente pretende provar), o que implica a necessidade da respectiva enunciação no requerimento de instrução, até para possibilitar a sua realização” (Acórdão da Relação do Porto de 5 de Maio de 1993, in C.J., Tomo III, p. 244).

Aliás, a comprovar o que antes se referiu, surge o regime estatuído no artigo 309º, do Código de Processo Penal, que comina com o vício da nulidade a decisão instrutória na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituem alteração substancial daqueles outros descritos na acusação ou no requerimento de abertura de instrução (cfr. art.º 1º/1, do Código de Processo Penal, quanto ao conceito de alteração substancial dos factos).

Tecido, pois, breve enquadramento jurídico no que concerne ao requerimento de abertura de instrução, quando formulado pelo assistente, cumpre, pois, analisar o requerimento apresentado nos presentes autos.

Pugna a assistente pela pronúncia do arguido pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1 e agravado pelo n.º 2 do mesmo preceito.

Analisado o requerimento de abertura da instrução da Assistente constata-se que a mesma esclarece os motivos de discordância quanto ao despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, tendo sido descritos os factos integradores do crime de violência doméstica e indicadas as disposições legais pertinentes.

No entanto, não se vislumbra qualquer elemento subjectivo imputável ao agente, não se percepciona um único elemento quanto ao dolo do arguido. Ou seja, falta um dos elementos que permitem imputar ao ora arguido uma acção típica e, consequentemente, o cometimento de um facto consubstanciador de um qualquer iter criminis.

Quanto a esta parte, não está pois cumprido o disposto na lei quanto á narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança (artigos 283º, nº 3, e 287º, nº 2, do CPP), uma vez que o dolo é um facto (assim, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 06-12-2010, proferido no processo n.º 121/09.4TAAVV.G1, disponível in www.dgsi.pt).

“O dolo, como elemento subjectivo - enquanto vontade de realizar um tipo legal, conhecendo o agente todas as suas circunstâncias fácticas objectivas - constitutivo do tipo legal, será, então, em definitivo, um dos elementos que o artigo 283º, n.º 3, do C. Proc. Penal, impõe que seja incluído na acusação e, por consequência, também no requerimento para abertura da instrução do assistente, cfr. art.º 287º, n.º 2, do mesmo Código” (assim, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23-05-2012, proferido no processo n.º 630/09.5TACNT.C1, disponível in www.dgsi.pt).

Também no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 30-09-2009, proferido no processo n.º 910/08.7TAVIS.C1, disponível in www.dgsi.pt, se sumariou que “1. São os elementos subjectivos do crime, com referência ao momento intelectual (conhecimento do carácter ilícito da conduta) e ao momento volitivo (vontade de realização do tipo objectivo de ilícito), que permitem estabelecer o tipo subjectivo de ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respectiva conduta como dolosa ou negligente e dentro destas categorias, nas vertentes do dolo directo, necessário ou eventual e da negligência simples ou grosseira. 2. Num crime doloso da acusação ou da pronúncia há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo – o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).”.

Aliás, como afirma o Acórdão da RG, in CJ nº 165, II, 2003, “não existem presunções de dolo; e, por isso, não é possível afirmar a sua existência simplesmente a partir das circunstâncias externas da acção concreta. Embora, processualmente, o dolo seja apreciado de forma indirecta, através de actos de natureza externa, é sempre necessário comprovar a existência dos diversos elementos constitutivos e relacioná-los com as pertinentes circunstâncias típicas de cada ilícito. Não se pode pois ter como implícita ou subentendida a descrição do dolo no requerimento de abertura de instrução. Conforme resulta do artigo 283°, n° 3, al. b), do CPP, na formulação da "acusação" não há lugar à existência de "factos implícitos", mas apenas à "narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena...". E percebe-se porquê, se tivermos bem presente que é pela acusação que se define e fixa o objecto do processo – o objecto do julgamento - e, portanto, passível de condenação é tão só o acusado e relativamente aos factos constantes da acusação”. Doutro modo, sempre o arguido estaria impedido de se defender cabalmente, por ignorar, nomeadamente, a modalidade do dolo.

Aliás, a este propósito escreveu-se no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 28-05-2012, proferido no processo n.º 615/11.1TAVCT.G1, disponível in www.dgsi.pt, “o juiz não pode substituir-se ao assistente, colocando por iniciativa própria os factos em falta referentes aos elementos objectivos e subjectivos, sob pena de violação da estrutura acusatória do processo penal e do direito de defesa do arguido. (…) O facto do dolo poder ser provado com recurso a presunções naturais ou com recurso às regras da experiência comum, não significa que se possa dispensar a respectiva alegação.”

Nada consta igualmente no requerimento de abertura de instrução quanto à consciência da ilicitude por parte do arguido.

A fase de instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (artigo 286º, nº 1) - não corresponde, portanto, a uma actividade materialmente policial ou de averiguações - não é, em suma, uma segunda fase investigatória desta feita levada a cabo pelo juiz.

A ausência dos factos indispensáveis para fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, como o mostra o artigo 287º, nº 2, ao remeter para o artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), comina com nulidade a falta de cumprimento destes ónus, a qual será de conhecimento oficioso.

Consequentemente, se o Juiz ordenar a abertura da instrução, “não descrevendo o assistente os factos que pretende imputar ao arguido, qualquer descrição que se venha a fazer numa eventual pronúncia redunda necessariamente numa alteração substancial do requerimento, estando ferida da nulidade cominada no art. 309º do Código do Processo Penal” (Acórdão da Relação de Coimbra, de 24 de Novembro de 1993, in CJ , Tomo V, pg. 61).

Por outro lado, não cabe, in casu, qualquer convite ao aperfeiçoamento. Neste sentido se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 7/2005, de 12 de Maio de 2005 (in D.R., 4 de Novembro de 2005, n.º 212, Série I-A, pp. 6340 a 6346), que fixa que, “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art. 287º/2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.

Como antes se referiu, o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente deverá consubstanciar uma verdadeira acusação, devendo conter, ainda que de forma sintética, a descrição dos factos de que o arguido é acusado, efectuada discriminada e precisamente com relação a cada um dos actos constitutivos do crime, pelo que se hão-de mencionar todos os elementos da infracção e os factos que o arguido realizou. É perante este quadro e esta factualidade que o arguido deve elaborar a sua estratégia de defesa e que a acusação define e fixa o objecto do processo, limitando a actividade cognitiva e decisória do tribunal, sendo perante essa factualidade que o juiz de instrução determinará os factos que aquele considera suficientemente indiciados e sobre os quais há-de recair a prova nesta fase.

Como também já referimos, a falta de descrição de factos no requerimento de abertura de instrução do assistente constitui ao mesmo tempo a nulidade prevista no artigo 283º, nº 3, alínea b), dada a remissão do artigo 287º, nº 2, e, em conformidade com o nº 3 deste último preceito, causa de rejeição desse requerimento.

É a própria lei processual penal que prevê a consequência da falta de narração dos factos no requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente e sendo a nulidade de conhecimento oficioso.

Pelo que, o requerimento apresentado pela assistente enferma da nulidade, prevista no artigo 283º, nº 3, para que remete o artigo 287º, nº 2, ambos do Código de Processo Penal (só é legalmente admissível a instrução mediante a apresentação de requerimento que obedeça aos requisitos previstos no nº 2 do artigo 287º do Código de Processo Penal).

Pelo exposto, ao abrigo dos citados preceitos legais, indefiro o presente requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal.

Custas a suportar pela assistente, fixando-se a taxa de justiça no mínimo, nos termos do disposto no artigo 515º, n.º 1, al. a) e f), do Código de Processo Penal, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

Notifique».

III. Decidindo (e nesta parte seguindo de muito perto o Ac. desta RE proferido no Proc. 1443/09.0TASTB.E1, relatado pelo aqui também relator):

Nos termos do disposto no artº 287º, nº 2 do CPP, o requerimento de abertura da instrução “não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283º”.

Este acréscimo de exigência legal constante da parte final do preceito referido foi, como se sabe, introduzido pela L. 59/98, de 25/8.

E assim sendo, o requerimento de abertura da instrução formulado pelo assistente há-de conter “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” (al. b) do nº 3 do artº 283º) e “a indicação das disposições legais aplicáveis” (al. c) idem).

Percebe-se que assim seja.

Não sendo deduzida acusação, o requerimento de abertura de instrução substitui tal peça, delimitando o thema decidendum, a actividade instrutória do juiz e, em última análise, o conteúdo de eventual despacho de pronúncia (cfr. o disposto nos artºs 303º, 308º e 309º do CPP).

É em função do conteúdo dessa peça que o arguido pode praticar o contraditório e exercer, na sua plenitude, as suas garantias de defesa. Daí que o cumprimento do estatuído nas als. b) e c) do nº 3 do artº 283º do CPP (ex vi do artº 287º, nº 2 do mesmo diploma) tenha em vista, em última instância, a tutela dessas garantias de defesa: perante um requerimento de abertura de instrução onde se não delimitem, com precisão, os factos concretos a apurar, susceptíveis de integrar os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime imputado ao arguido, carece este de elementos suficientes em ordem a organizar a sua defesa.

Como refere Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, 140, “na instrução a requerimento do assistente, o juiz investigará os factos descritos no requerimento instrutório e se os julgar indiciados e nada mais obstar ao recebimento da acusação pronunciará o arguido por esses factos (arts. 308º e 309º). Não há lugar a uma nova acusação; o requerimento do assistente actuou como acusação e, assim, se respeita formal e materialmente a acusatoriedade do processo”.

No mesmo sentido vai o acórdão desta Relação proferido em 14/4/95, CJ ano XX, 2º, 280: “I. O requerimento de abertura de instrução, no caso de abstenção da acusação, equivale à acusação, devendo conter a indicação dos factos concretos a averiguar e que possam preencher os elementos objectivos e subjectivos do crime imputado ao arguido. II. A decisão instrutória só pode recair sobre factos que foram objecto da instrução, ficando o objecto do processo delimitado pela indicação feita naquele requerimento” (ainda no mesmo sentido vão os acórdãos desta Relação de 16/12/97, BMJ 472º, 585 e de 13/1/98, BMJ 473º, 586 e o Ac. RP de 21/11/2001, www.dgsi.pt). E pelo mesmo diapasão alinha a generalidade da jurisprudência mais recente dos nossos tribunais superiores (a título meramente exemplificativo, cfr. Acs. RL de 1/4/2008 e de 31/1/2008 (rel. Ana Sebastião e João Carrola, respectivamente) e da RC de 1/4/2009 [2] (rel. Jorge Gonçalves), in www.dgsi.pt.

Assim delimitados os termos da questão, cabe verificar se o RAI formulado nos autos cumpre os requisitos enunciados no artº 287º, nº 2 do CPP e, em particular, as exigências legais expressas nas als. b) e c) do nº 3 do artº 283º do mesmo diploma (por força da remissão operada pelo primeiro dispositivo legal citado).

A assistente imputa ao arguido a prática de um crime de violência doméstica, p.p. pelo artº 152º, nºs 1, al. a) e 2 do Cod. Penal. Refere o casamento entre ambos (ponto 1), o nascimento das filhas (ponto 2), o relacionamento com a família do arguido (pontos 3 a 6), um acontecimento ocorrido em 23/12/2011 (pontos 7 a 11), durante o qual, segundo alega, o arguido ao ver a sua filha regressar a casa, agarrou-a pelos braços e “manifestou intenção de a agredir fisicamente”, razão pela qual a assistente se interpôs entre ambos, tendo sido atingida com um soco. Refere-se no RAI, ainda, que o arguido, em tom de desprezo “e com propósitos de humilhação” lhe dirige expressões como “és uma estúpida”, “és uma velha e estúpida”, “ignorante”, “em casa és a última a falar” (ponto 14). Consta ainda do RAI que no dia 12/8/2012 a assistente foi agredida a soco pelo arguido, “agressão que lhe foi dirigida em exclusivo” (pontos 34 e 35), que o arguido se mostrava “determinado em continuar a agredir a queixosa”, razão pela qual a filha L se interpôs entre ambos (ponto 36), e que, nessa sequência, o arguido levantou novamente o braço “para, desta vez, esta sim, atingir a sua filha L”.

A Mª juíza a quo rejeitou o RAI formulado pela assistente unicamente porque no mesmo “não se vislumbra qualquer elemento subjectivo imputável ao agente, não se percepciona um único elemento quanto ao dolo do arguido”.

Temos para nós (e assim o deixámos exposto no Ac. desta Relação proferido em 12/4/2011, no Pr. 700/06.1TASTB.E1, www.dgsi.pt., com o mesmo relator), que “não sendo deduzida acusação, o requerimento de abertura de instrução substitui tal peça, delimitando o thema decidendum. (…) Não deve ser recebido um RAI onde se não delimitem, com precisão, os factos concretos a apurar, susceptíveis de integrar os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime imputado ao arguido”.

Mas não é isso que sucede in casu, salvo o devido respeito por melhor opinião.

Dispõe-se no artº 152º, nº 1, al. a) do CP que “quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas corporais (…) ao cônjuge ou ex-cônjuge (…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos (…)”.

Como ensina Taipa de Carvalho, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, I, 332, o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica é a saúde – “bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que (…) afectem a dignidade pessoal do cônjuge”, sendo certo que a ratio do preceito incriminador “vai muito além dos maus tratos físicos, compreendendo os maus tratos psíquicos (p. ex., humilhações, provocações, ameaças, curtas privações de liberdade, etc.)”.

Trata-se, como é sabido, de um crime de natureza dolosa.

E o dolo, como é sabido, exige a verificação cumulativa de dois elementos:

- um, cognitivo, traduzido no conhecimento de que a conduta a praticar preenche um tipo legal de crime (ou, pelo menos, a admissão de tal resultado como consequência necessária ou possível da sua conduta);

- outro, volitivo, traduzido na vontade de realizar o facto.

A prática judiciária tem reconduzido os dois elementos referidos à expressão “o arguido agiu de forma voluntária, livre e consciente, conhecer do carácter proibido da sua conduta”, ou outra semelhante.

E aquilo que mais não era (ou não devia ser) do que mera tentativa de uniformização do jargão judiciário e de facilitação do labor dos profissionais forenses tem vindo, a pouco e pouco, a transformar-se em fórmula sacramental, perante cuja ausência tudo soçobra e nada faz sentido.

Mas não tem que ser assim.

No caso em apreço inexiste, é verdade, qualquer referência ao elemento cognitivo do dolo. Dito de outra forma: Não consta do RAI que o arguido soubesse que é proibido bater na mulher ou insultá-la.

Estatui-se no artº 14º do Cod. Penal que (nº 1) “age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar”; (nº 2) “age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta”; (nº 3) “quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização”.

Já Cavaleiro de Ferreira ensinava (“Lições de Direito Penal”, Parte Geral, 290): “Conhecer para agir é sempre discernir, ajuizar e não só contemplar cada elemento objectivo do crime, sem simultânea apreciação da sua instrumentalidade, da sua inserção no processo finalístico da vontade. E é também por isso, como veremos, que a representação de todos os elementos componentes do facto pode equivaler, na generalidade dos crimes, à consciência da ilicitude, só se exigindo o conhecimento da proibição legal quando do conhecimento do próprio facto, em todos os seus elementos, não resulte implicitamente essa consciência da ilicitude (cit. art. 16º, nº 1)”.

Também Germano Marques da Silva, “Direito Penal Português”, II, 164, alinha pelo mesmo diapasão: “Normalmente do conhecimento dos elementos de facto ou de direito do facto típico resultará a consciência da ilicitude, mas quando isso não resulte importa ainda que o agente tome conhecimento das proibições”.

E é esse o sentido geral da jurisprudência dos nossos tribunais superiores. Esta Relação de Évora, no seu Ac. de 11/7/2006 (rel. Orlando Afonso), www.dgsi.pt, decidiu já que “a consciência da ilicitude está implícita no próprio facto quando, no conhecimento geral, o facto é tido por proibido e punível”; a Relação de Guimarães, no seu Ac. de 22/11/2004 (rel. Francisco Marcolino), www.dgsi.pt. vai no mesmo sentido: «De resto, diz a Jurisprudência do nosso mais Alto Tribunal que a consciência da ilicitude fica implícita no próprio facto, desde que seja do conhecimento geral que ele é proibido e punível – Ac. de 14 de Outubro de 1992, tirado no processo 42.918, da Secção. Teresa Beleza in “Direito Penal”, 2.° vol., escreve: Na problemática do erro sobre a ilicitude, “o que está em causa é saber-se se, numa situação concreta, a pessoa tinha a obrigação de suspeitar que aquele acto realmente fosse ilícito ou lícito e, em consequência disso, intentar verificar se assim era ou não” (...), concretamente, informar-se (...). E isto porque (...) “haverá que evitar o «amolecimento ósseo» do Direito Criminal”. Por isso, “o agente não tem de conhecer a norma violada, bastando-lhe uma consciência da ilicitude material que, normalmente, se presume. E quando o facto, para além de ser uma infracção do Direito, constitui também uma violação da ordem moral e ética, o erro é normalmente evitável, já que a valoração normativa pode surgir do próprio sentimento jurídico com um maior ou menor esforço da consciência” – (mesma Autora in “Problemática do erro sobre a ilicitude”, a pg. 71)».

Ou ainda, como se afirma no Ac. RP de 29/4/2009 (rel. Jaime Valério), http://www.trp.pt/jurisprudenciacrime/crime_454/07.4gcsjm.html, “ter consciência da ilicitude é um estado de espírito que terá de resultar e resulta, segundo as fórmulas de normalidade, da compreensão de toda a acção criminosa, objectivada em outros factos de onde a mesma se retira, com a naturalidade que ela representa” [3].

O fenómeno da violência doméstica, a reprovação social que lhe está associada e o carácter proibido das condutas que o caracterizam, são algo que acompanha o dia a dia de qualquer cidadão minimamente informado, porquanto fazem títulos de jornais e preenchem parte substancial dos noticiários televisivos.

Qualquer cidadão médio sabe que agredir física e verbalmente a pessoa que jurou amar e respeitar e a quem o liga um contrato de casamento, é algo de profundamente censurável, ofensivo das regras que presidem à vida em sociedade e, por isso, não permitido por lei.

Daí que, nada sendo alegado e demonstrado em sentido contrário, se haja de concluir em conformidade com as regras da experiência de vida, isto é, que o arguido sabia ser proibido ofender física ou psiquicamente a assistente, a quem o ligava um contrato de casamento, cuja existência seguramente também não ignorava.

No que concerne ao elemento volitivo do dolo, cremos que existem no RAI em apreço factos suficientes em ordem a configurar a vontade do arguido de praticar os factos que lhe são imputados: expressões como “manifestou intenção de a agredir fisicamente”, “com propósitos de humilhação”, “determinado em continuar a agredir a queixosa”, “para (…) atingir a sua filha L” são reveladoras de uma vontade livre e esclarecida, de um querer, mesmo de uma intenção.

Daí que nos pareça pouco acertado afirmar que no RAI em apreço “não se vislumbra qualquer elemento subjectivo imputável ao agente, não se percepciona um único elemento quanto ao dolo do arguido”. No RAI rejeitado na decisão sob recurso existem factos alegados que são, em nossa óptica, suficientes em ordem a caracterizar o elemento volitivo do dolo, sendo que em relação ao elemento cognitivo ele resulta da própria conduta do agente, objectivamente considerada e analisada à luz das regras da experiência comum.

Se, porém, em sede de decisão instrutória, o Sr. juiz de instrução sentir necessidade de recorrer a uma formulação do elemento subjectivo da infracção mais conforme à tradição (e tecnicamente mais correcta, diga-se em abono da verdade), sempre a poderá incluir sem que, com isso, irregularidade alguma cometa – artº 303º, nº 1 do CPP – posto que, como é evidente, tal alteração de factos nunca teria por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso do imputado no RAI ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis [4].

No RAI formulado nestes autos existem, como se procurou demonstrar, factos suficientes em ordem a integrar o elemento subjectivo do crime imputado ao arguido. Saber se tais factos estão suficientemente indiciados, em ordem a justificar um despacho de pronúncia, é questão diversa, a apreciar em momento posterior.

O recurso tem, pois, que proceder.

IV. São termos em que, sem necessidade de mais considerações, acordam os juízes desta Relação em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido e ordenando que o mesmo seja substituído por outro que, na ausência de qualquer outro motivo impeditivo, declare aberta a instrução, seguindo-se os ulteriores termos processuais.

Sem tributação.

Évora, 11 de Julho de 2013 (processado e revisto pelo relator)
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Sénio Manuel dos Reis Alves

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Gilberto da Cunha
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[1] - Sumariado pelo relator

[2] Pela sua pertinência, permitimo-nos aqui transcrever o sumário desse acórdão: «1 - Sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objecto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa. II - Essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis. III - Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287º, nº 2, remeta para o artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução. IV - O assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. V - Não tendo sido deduzida acusação pública, o requerimento (do assistente) de abertura da instrução que não contenha os factos que se imputam ao arguido e pelos quais se pretende que este venha a ser pronunciado não será apto a possibilitar a prolação de uma decisão instrutória de pronúncia que seja válida. No mínimo (e dizemos “mínimo” porque, nessas condições, parece inexistir um verdadeiro objecto da instrução), tal decisão seria nula nos termos do artigo 309.º, n.º1».

[3] E aqui seguimos de perto o Ac. desta RE de 24/4/2012, proferido no Pr. 2156/11.8TASTB.E1, com os mesmos relator e adjunto, www.dgsi.pt .

[4] Neste sentido, cfr. Acs. RP de 24/10/2012, Pr. 291/10.9PAVFR.P1, RG de 16/1/2005, Pr. 2137/05-1, RE de 15/11/2011, Pr. 744/05.0TALLE.E1 e de 17/4/2012, Pr. 138/10.6PAETZ-E1 (neste último teve intervenção como adjunto o relator do presente acórdão), todos in www.dgsi.pt.