Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
389/17.2PBELV.E1
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: CONVERSAS INFORMAIS
DIREITOS DO SUSPEITO
DECLARAÇÕES DO ARGUIDO
DEPOIMENTO INDIRECTO
CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
Data do Acordão: 03/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. Quando o ainda não arguido não foi como tal constituído, podendo considerar-se que há motivo para tal, como mera decorrência do n.º 5 do artigo 58.º CPP, qualquer declaração daquele não poderá utilizar-se como prova.
2. Mas esta proibição de prova não abrange as declarações ouvidas pelos agentes policiais ao arguido, antes de este o ser ou haver obrigação de com tao o constituir, se não houver culpa das forças policiais no atrasar da formalização daquela constituição.
3. Como mera decorrência do n.º 5 do artigo 58.º CPP, a omissão ou violação das formalidades previstas nos números anteriores deste artigo implica que qualquer declaração daquele que já deveria ter sido constituído arguido não pode ser utilizada como prova.
4. Mas esta proibição de prova não abrange as declarações ouvidas pelos agentes policiais ao arguido - antes de o ser - se não houver culpa sua no atrasar da formalização daquela constituição.
5. A não constituição de alguém como arguido nos casos a que se refere o citado artigo 58.°, nomeadamente, a violação ou omissão das formalidades aí previstas implica que as declarações prestadas pela pessoa visada não possam ser utilizadas como prova contra ela (n.° 4).
6. Naturalmente que o argumento interpretativo a contrario sensu é falível mas aqui inevitável.
7. Face ao ordenamento português e no caso concreto parece indubitável que um simples cidadão ou cidadão suspeito não goza do direito ao silêncio e, como tal, a prova produzida pelas suas declarações, melhor, depoimento, é válido.
8. Se ainda não havia obrigação de constituição como arguido e as entidades policiais agem dentro dos poderes concedidos pelas normas reguladoras da aquisição e notícia do crime (artigos 241.º e 242.º) e de medidas cautelares e de policia (artigos 248.º e ss., designadamente o artigo 250.º do CPP), sem má-fé ou atraso propositado na constituição de arguido, e ouvem do cidadão ou suspeito a informação da prática de um crime, isso não constitui violação de lei ou fraude à lei, nem obtenção de prova proibida.
9. Por isso que a questão não se centra – como faz alguma jurisprudência – em saber se a proibição de “conversas informais” deve abranger afirmações anteriores ou posteriores à constituição de arguido, pois que que são proibidas após a constituição como arguido é do reino do óbvio; mas que nunca são antes da constituição como arguido também nos parece evidente, já que aí nem existem “conversas informais”, antes afirmações de um cidadão, que pode ser suspeito ou nem isso.
10. E o suspeito ou nem isso é, no ordenamento processual penal português, uma testemunha.
11. Exceto se a má-fé policial tiver ilegalmente atrasado essa constituição, sendo essa a razão de ser do n.º 5 do artigo 58.º CPP, que comina com a nulidade probatória uma conduta policial que conduza a um resultado não querido pelo legislador.
12. Assim, a questão centra-se, no caso de situações de fronteira, na distinção a fazer entre as figuras de “suspeito” e “arguido”. Este goza de direitos, aquele é testemunha. O arguido goza do direito ao silêncio, o suspeito não.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal da Relação de Évora:

A - Relatório

No Tribunal Judicial da Comarca ... - Juízo Local Criminal ... - correu termos o processo comum singular supra numerado no qual é arguido:

AA, filho de BB e de CC, natural da freguesia ..., em ..., nascido a .../.../1968, solteiro, residente no Bairro ..., em ...,

imputando-lhe a prática dos factos constantes da acusação e que consubstanciam a prática como autor material, e na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelos artigos 15.º al. a), 137.º, n.º 1, e art. 69.º n. º1 al. a) do Código Penal, em conjugação com os artigos 46.º, 47.º n.1 al. d) e 145.º n.º 1 al. f), todos do Decreto-Lei n.º 114/94, de 03 de Maio (Código da Estrada).

A demandante Unidade Local de saúde do Norte Alentejano, E.P.E. deduziu pedido de reembolso de despesas hospitalares contra a Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A., no montante de 215,82€, pela assistência médica que prestou à ofendida na sequência dos factos descritos na acusação.

Por despacho de 21-09-2021, foi verificada a inutilidade superveniente da lide, tendo a instância cível sido declarada extinta.


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Foi proferida sentença em 15-07-2022 que decidiu julgar a acusação procedente, por provada e, em consequência:

a) Condenou o arguido DD pela prática, em 14-08-2017, como autor material, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de um ano e dois meses de prisão, suspensa na sua a execução por dois anos, na condição do arguido frequentar programa ou acção de formação que venha a ser indicada pela DGRSP no âmbito da prevenção da sinistralidade rodoviária, de modo a permitir uma maior interiorização e reflexão relativamente a actos desta natureza (artigo 50.º e 52.º do Código Penal).
b) Condenou o arguido DD na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 10 (dez) meses, nos termos do artigo 69.º, n.º 1, al. a) do Código Penal.
c) Custas criminais pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC's, (artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal, e artigo 8.º, n.º 9, com referência à tabela III, do Regulamento das Custas Processuais).
Mais ficou o arguido notificado para, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da presente sentença, entregar a sua carta de condução na Secretaria deste Tribunal ou em qualquer posto policial, nos termos do artigo 500.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, sob pena de, não o fazendo, a mesma vir a ser apreendida e incorrer na prática de um crime de desobediência.

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Inconformado recorre o arguido com as seguintes conclusões:

1. No que à matéria de facto diz respeito, o recorrente entende que a decisão recorrida enferma do vício do erro notório na apreciação da prova, previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal;
2. Em concreto, na parte relativa à facticidade vertida nos pontos 10 a 13 - alegada violação de deveres de cuidado na realização da pretensa manobra de marcha-atrás por banda do recorrente;
3. Inexistem testemunhas presenciais;
4. O arguido foi julgado na sua ausência, ainda que por motivo atendível;
5. Ninguém efectuou uma descrição do embate;
6. Na ausência de qualquer depoimento de quem tenha presenciado a dinâmica do acidente, não será possível ao Tribunal, com recurso à prova indirecta e às regras da experiência, concluir pela prova das circunstâncias em que o embate ocorre,
7. E, por maioria de razão, pela prova de que o arguido violou deveres de cuidado na realização da manobra;
8. Não será, ainda, de atender às declarações prestadas pelo Agente da PSP EE, na parte em que relata declarações prestadas pelo arguido após o acidente, informalmente, antes de assumir tal qualidade processual;
9. O OPC sabia que tinha existido um acidente de viação, do qual resultara um ferido muito grave – que viria a falecer – e que o arguido seria o provável condutor, por isso, o autor dos factos;
10.A estrutura acusatória do processo penal, o direito ao silêncio, a presunção de inocência e o princípio da não obrigatoriedade de contribuir para a auto-incriminação levam-nos a concluir que o depoimento do Agente da PSP não poderá ser valorado nesta parte;
11.A demais prova é manifestamente insuficiente – porque ninguém presenciou o embate, insiste-se – para concluir que o arguido realizou uma manobra de marcha-atrás, violando deveres de cuidado e regras estradais,
12.Ficando por apurar o grau de contribuição que a idade da vítima e as características da via assumem na produção do embate;
13.Daqui decorre, a nosso ver, necessariamente, que se julgue não provada a matéria vertida nos pontos 10 a 13;
14.Se ninguém presenciou o embate, o erro na apreciação da prova é, a nosso ver, manifesto, verificando-se o vício previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal;
15.Daqui decorre, na procedência dos argumentos aduzidos, a necessária absolvição do arguido do crime de que veio condenado;
16.Semconceder, dir-se-ia sempre que merece censura a pena escolhida e a determinação do quantum da pena acessória, por manifestamente excessivas;
17.O arguido, sem prejuízo de reconhecer que as necessidades de prevenção geral são elevadas e que, afinal, está em causa a perda de uma vida humana, o certo é que o dano foi integralmente reparado, na medida do possível, através da seguradora;
18.De notar, ainda, que o arguido regista apenas dois antecedentes criminaisde reduzida gravidade, e já com alguma antiguidade, e que, após os factos, em 2017, não voltou a delinquir;
19.Razões pelas quais se afigura mais adequada a fixação de uma pena de multa, a fixar próximo, ou no limite máximo da moldura penal,
20.Justificando-se a redução da pena acessória dos 10 (dez) meses para os 5 (cinco) meses de inibição de conduzir.
Nestes termos, deverá, em face dos humildes argumentos invocados, ser revogada a decisão revidenda, e substituída por outra em conformidade com as Motivações que seguiram.

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O Ministério Público junto do Tribunal recorrido apresentou resposta ao recurso interposto, concluindo:

1. Nos presentes autos, por sentença, datada de 15 de Julho de 2022, o arguido DD foi condenado pela prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137.º nº 1 do Código Penal, na pena de um ano e dois meses de prisão, suspensa na sua execução por dois anos sujeita a regime de prova e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 10 meses, nos termos do artigo 69.º nº 1 alínea a) do Código Penal. O arguido, não se conformando com a douta decisão judicial, dela veio interpor recurso.
2. O recorrente alegou a existência, na sentença recorrida, do vício de erro notório de apreciação da prova, nos termos da alínea c), do n.º 2, do artigo 410.º do Código de Processo Penal, mas não tem razão, analisada a prova testemunhal produzida em julgamento, em conjugação com a prova pericial e documental junta aos autos, consideramos que a sentença recorrida não podia deixar de condenar o arguido nos precisos termos em que o fez.
3. O recorrente também alegou ser de impugnar a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida por “o tribunal a quo ter baseado a sua convicção exclusivamente com recurso à prova indirecta e às regras da experiência comum, uma vez que não existem testemunhas que tenham presenciado e descrito o atropelamento”, mas também não tem razão, porque a testemunha FF declarou à PSP ter visto o arguido a efectuar uma manobra de marcha atrás e por distração atropelou a ofendida. Também a testemunha GG descreveu de forma espontânea e circunstanciada que viu a ofendida com aface debaixo de um dos pneus do veículo automóvel que estava a ser conduzido pelo arguido e que viu as pessoas a tentar empurrar a viatura para frente, por forma a retirar a ofendida debaixo do carro, sendo tal relato consentâneo com a demais prova testemunhal produzida e com a prova documental e pericial junta aos autos, a qual constitui prova directa relativamente à forma como ocorreram os factos, a qual é clara e não deixa qualquer margem para dúvidas, pelo que, nenhum reparo há a fazer à sentença recorrida quando à matéria de facto dada como provada.
4. Mais alegou o arguido que“não podia o Tribunal a quo ter valorado o depoimento da testemunha policial EE na parte em que relata declarações prestadas pelo arguido após o acidente, informalmente, antes de assumir tal qualidade processual”, mas consideramos, uma vez mais, que não assiste razão ao recorrente. A testemunha policial estava no exercício das suas funções a tomar conta da ocorrência, como lhe era devido, lavrando o auto de notícia e a participação de acidente, recolhendo os depoimentos das testemunhas para apurar o que se tinha passado. No momento em que a testemunha policial recolheu as declarações do arguido, este era uma testemunha, tal como as demais pessoas presentes, não existindo nesse momento a obrigação de o constituir como arguido. Não é pelo facto de uma testemunha ter vindo posteriormente a ser constituída arguida, que invalida todos os actos em que interveio anteriormente, pelo que, nenhum reparo há a fazer ao tribunal a quo quando valorou o depoimento da testemunha policial, na sua totalidade.
5. Finalmente, alegou o recorrente que “o dano foi integralmente reparado, na medida do possível, através da seguradora e que tem apenas dois antecedentes criminais de reduzida gravidade e já com alguma antiguidade e que após os factos, em 2017 não voltou a delinquir, pelo que, se afigura mais adequada a fixação de uma pena de multa, a fixar próximo, ou no limite máximo da moldura penal, justificando-se a redução da pena acessória dos 10 (dez) meses para os 5 (cinco) meses de inibição de conduzir.” Não tem razão o recorrente quando refere que o dano morte foi integralmente reparado. Ora, a vida humana, pela sua natureza, é insubstituível, não havendo nenhuma indemnização que lhe faça jus. A segurança na circulação rodoviária, foi posta em causa pelo arguido quando optou por realizar a manobra de marcha-atrás sem olhar para trás, tendo essa abstenção sido a causa da morte da ofendida.
O alarme social causado pela conduta do arguido foi elevadíssimo, tendo causado pânico e ansiedade a todas as pessoas que assistiram à sua conduta e que gritaram quando viram o veículo automóvel do arguido a atropelar a ofendida, tendo corrido em seu auxílio, empurrando o veículo para o tirar de cima da ofendida.
O estado em que ficou o rosto e o corpo da ofendida é perturbante, como se constata nos fotogramas junto aos autos.
Das circunstâncias dos factos em concreto, a censurabilidade da conduta do arguido é elevada porque incumpriu o dever de cuidado de olhar para trás antes de efectuar a manobra de marcha-atrás. O tribunal a quo não pôde deixar de atender aos antecedentes criminais do arguido para aferir das razões de prevenção especial. Estas são medianas, porque o arguido tem antecedentes de natureza rodoviária e contra as pessoas, pelo que, não pode deixar de se concluir que necessita de uma advertência superior daqueloutro que não tivesse qualquer antecedente criminal.
Assim, não pode fazer-se um juízo de prognose favorável no sentido de que uma pena de multa, ou a redução da moldura penal da pena acessória seja adequada e suficiente a alcançar as finalidades da punição.
Tudo ponderado, nenhum reparo há a fazer pela escolha da pena de prisão em detrimento da pena de multa, nem pela moldura penal determinada para a pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor.
6. Sendo assim, não podia o Tribunal a quo ter tido outra decisão senão a que está plasmada na sentença recorrida.
III - Do pedido
Nestes termos, não deve ser dado provimento ao Recurso interposto pelo arguido, devendo ser mantida na íntegra a sentença recorrida.

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A Exmª. Procuradora-geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu parecer defendendo o provimento parcial do recurso.

Foi cumprido o disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal.


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B - Fundamentação:

B.1.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:

1. No dia 13 de Agosto de 2017, cerca das 16h15m, o arguido AA conduzia o veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula XV-..-.., da marca ..., modelo ..., de cor ..., no Bairro ..., na freguesia ..., ... e ..., em ... de marcha atrás.
2. Nessas circunstâncias de tempo e lugar a vítima HH, encontrava-se na via pública descrita em 1, apeada.
3. Trata-se de uma via dotada de dois sentidos de trânsito, sem separador central, e sem quaisquer marcações na via, sem travessia para peões, não existem passeios, nem existe sinalização, vertical e de velocidade.
4. É uma recta com inclinação, sendo o pavimento em terra batida, em estado irregular, com deformações de relevo, buracos e sem drenagem.
5. Devido ao perfil da via ser inclinada, e a parte da frente do veículo se encontrar virada para a parte mais alta da via, o arguido colocou o mesmo em funcionamento de marcha atrás, com a ajuda do motor do veículo.
6. Assim, o arguido iniciou a manobra de marcha atrás e, sem se certificar se a podia fazer em segurança, embateu na vítima que se encontrava a circular na traseira do referido veículo, atirando-a ao chão.
7. Sucede que, o arguido não se apercebeu da colisão, e continuou com a manobra de marcha atrás, arrastando a vítima no chão, em número de metros não apurados.
8. Como consequência directa do embate, a vítima foi transportada ao Hospital ..., em ..., apresentando esfacelo da face, e membros superiores, múltiplas fracturas cominutivas do maciço maxilofacial, envolvendo palato duro, paredes dos seios maxilar e arcos zigomáticos, o pavimento e paredes laterais orbitários, laminas papiráceas, o labirinto etmoidal, septo nasal apófises frontais da maxila, ossos próprios do nariz; fractura da apófise espinhosa de C6, com diástase dos topos ósseos fracturários, luxação de C6 sobre C7 com aumento da distância intersomática, associando-se a deslocações das facetas articulares C6/C7 bilateralmente, de predomínio direito, com marcado aumento da distância inter-articular e com posição anterior da apófise superior direita C7 quase alcançando a vertente somática inferior; fractura da 1ª costela à esquerda; na bacia fractura dos ramos ílio e ísquio púbicos, à esquerda, lesões que obrigaram à sua transferência no dia 13.08.2017 para o Hospital ..., em ..., onde ficou internada.
9. Assim, HH sofreu lesões traumáticas da face, raquimedulares cervicais, tóracicas e pélvicas, que foram causa adequada e necessária da sua morte, que veio a ocorrer no dia 15.08.2017, pelas 13h50m, no Hospital ....
10. O acidente ficou a dever-se exclusivamente ao arguido que iniciou a manobra de marcha atrás, sem tomar as devidas precauções, nomeadamente sem se assegurar previamente se tinha a visibilidade suficiente, tendo perfeito conhecimento, porque residia naquele bairro, que as características daquela via, eram inapropriadas à realização da manobra.
11. O arguido sabia que a marcha atrás só é permitida como manobra auxiliar ou de recurso e deve efetuar-se lentamente e no menor trajecto possível, e que é proibida onde quer que a visibilidade seja insuficiente ou que a via, pela sua largura ou outras características, seja inapropriada à realização da manobra.
12. Representou o arguido como possível que a sua conduta seria adequada e idónea a causar um acidente, do qual poderiam resultar lesões para outrem, o que o arguido podia, e devia ter previsto, mas ainda assim adoptou tal conduta, por não se ter conformado com o resultado que efectivamente veio a ocorrer.
13. O arguido agiu livremente, não tendo actuado com o cuidado e a prudência com que podia e devia ter agido, e que as características da via, concretamente impunham, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
14. O arguido foi condenado por decisão transitada em julgado 2011/05/16 das autoridades judiciárias de ..., pelo juízo de “instruccion n.2 de Logroño”, pela prática em 2011/05/14 do ilícito de condução de veículo em estado de embriaguez.
15. O arguido foi condenado por sentença transitada em julgado em 2016/03/14, no âmbito do processo n.º 38/14.... que correu termos no Juízo Local Criminal ..., pela prática em 2014/08/18, de um crime de injúria agravada, na pena de 140 dias de multa, à taxa diária de 5,00€.
16. Consta do relatório social elaborado pela DGRSP com referência ao arguido que: “O arguido cresceu num contexto sócio-familiar carenciado, balizado pelos valores da sua comunidade cigana de pertença. Do que nos foi dado a conhecer pelo próprio, terão existido, ao longo do seu crescimento, situações vivenciadas como traumáticas nomeadamente a perda de pai e um dos irmãos na sequência de homicídios e de outro irmão na sequência de doença associada a comportamento aditivo. O arguido é iletrado, por nunca ter frequentado a escola, e as poucas vezes que trabalhou foi na agricultura, tendo a sua sobrevivência sido garantida, desde o inicio da idade adulta por subsídios sociais, nomeadamente no âmbito do programa de Rendimento Social de Inserção. Quando o arguido tinha cerca 25 anos, passou a viver em união de facto com II, com quem teve 4 filhos, atualmente com idades compreendidas entre os 27 e os 16 anos. O único que permaneceu no agregado de AA foi o elemento mais velho da fratria, tendo o pai referido que este, apesar de autónomo ao nível dos cuidados pessoais, apresenta “problemas de fala” (sic) que não soube especificar. O arguido reside, na ..., cerca de 3 anos com a mulher e com o filho em casa, de tipologia T1, alegadamente cedida por um conhecido, o qual não soube identificar, no bairro da .... O arguido afirmou que a casa tem poucas condições de acomodação, mas que não efetua qualquer pagamento de renda, assumindo, apenas os encargos associados a gás, água e eletricidade, os quais não soube estimar. Anteriormente o agregado residia em ..., tendo o arguido referido que dispunham de melhores condições habitacionais. Em termos económicos, foi referido a existência de um orçamento mensal de cerca de cerca de 500 euros, 250 euros de rendimento social de inserção e 260 euros da reforma por invalidez do filho. A relação do arguido com a sua mulher foi descrita, pelo arguido e pela sua mulher, como próxima em termos afetivos, não tendo sido referidos conflitos significativos (…) O quotidiano do arguido é assente nas vivências de rua, em convívio com pares da sua zona de residência, a qual é referenciada pelas autoridades como enferma de patologias sociais, nomeadamente exclusão e marginalidade. AA afirmou manter relacionamentos cordiais com a vizinhança. Em termos de saúde, e de acordo com a descrição, pelo próprio, dos hábitos de consumo, existirão, por vezes, situações de ingestão excessiva de álcool, não perspetivadas pelo próprio como problema aditivo. O arguido referiu que diversos anos que não procura apoio médico, apesar de ter queixas de mialgias osteoarticulares e do aparelho digestivo. O arguido não apresentou, em entrevista, qualquer projeto para um enquadramento ocupacional, nem referiu qualquer área de interesse”.
17. É frequente a circulação de pessoas no lugar mencionado em 1 e 2.

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B.1.2 - Factos não provados.

a) No dia, hora e local supra referidos as condições climatéricas eram boas, encontrando-se o sol no sentido oposto ao da visão do arguido.
b) Que o arguido só tivesse parado a marcha do veículo quando ouviu gritos dos populares que se encontravam no local.
c) Que nas circunstâncias referidas em 1, a manobra tivesse sido realizada no sentido poente/nascente.
d) Que nas circunstâncias referidas em 2, HH estivesse no meio da faixa de rodagem.

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B.1.3 - E apresentou as seguintes razões para fundamentar a matéria de facto:

«De acordo com o artigo 205.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, as decisões dos Tribunais são fundamentadas na forma prevista na lei. Por sua vez, o Código de Processo Penal explicita, nos seus artigos 97.º, n.º4 e 374.º, n.º 2, que a sentença deve especificar os motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal.
A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade: deve o Tribunal lançar-se à procura do realmente acontecido conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o agarrar e, por outro, os limites que a ordem jurídica lhe marca, derivados da(s) finalidade (s) do processo.
Conforme decorre do Código de Processo Penal, um dos princípios que rege a audiência de discussão e julgamento, é o princípio da imediação que, como se afere do artigo 355.º, se traduz no facto de a convicção do Tribunal, em audiência, resultar da prova examinada ou que nela se produza.
Por seu turno, tal prova está sujeita ao princípio da livre apreciação, segundo o qual aquela é apreciada de acordo com as regras da experiência e da livre convicção da entidade julgadora (cf. art. 127.º do CPP). Quer isto significar que a prova deve ser apreciada na sua globalidade, não através do livre arbítrio, mas de acordo com as regras comuns da lógica, da experiência e dos conhecimentos científicos e vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório.
Importa, pois, desta forma, proceder a uma fundamentação de facto que permita alcançar o raciocínio seguido pelo Tribunal na sua decisão. Nesta conformidade, o Tribunal formou a sua convicção, sobre a factualidade provada e não provada, no conjunto da prova realizada em audiência de discussão e julgamento, analisada de forma crítica e recorrendo a juízos de experiência comum, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal.
O arguido não esteve presente em audiência, tendo sido patente, pela sua postura processual, plasmada no requerimento através do seu ilustre defensor, o seu receio em se deslocar a ..., na sequência dos acontecimentos ocorridos e que se encontram a ser apreciados no âmbito dos presentes autos. Por essa via, o tribunal não tem qualquer versão oferecida pelo arguido.
Por outro lado, há a considerar que foi patente por parte de certas testemunhas, designadamente de JJ e de KK, algum receio relatar os factos tal como aconteceram. Como exemplo da conclusão que se retira, foi o teor da inquirição de JJ quando o mesmo referiu “quem viu cala-se”.
É certo que não existem, assim, testemunhas que tivessem conhecimento directo no sentido de terem presenciado o arguido a conduzir e a “atropelar” HH, mas existem elementos de prova produzidos em julgamento que permitem imputar a autoria dos factos e o engenho do atropelamento pelo arguido.
Vejamos. Comecemos pelo auto de notícia de fls. 44-45 e aditamento a fls. 74, tendo por base que foi ouvida em audiência a testemunha autuante de tal auto de notícia. A testemunha EE, agente da PSP, e autor do auto de notícia descrito nos autos, num depoimento escorreito e sério, e em consonância com o já mencionado supra, não assistiu à condução pelo arguido. No entanto, como o mesmo asseverou em tribunal, referiu que no dia 14-08-2017 (data dos factos), se tinha deslocado ao Hospital ... em ..., em virtude do seu posto ter recebido uma chamada a comunicar a existência de um acidente rodoviário.
Com vista a confirmar tal informação, referiu a testemunha que quando tinha chegado ao hospital, tinha obtido a informação de que a ofendida HH tinha dado entrada no hospital, e confirmou que tinha falado com o aqui arguido nesse mesmo local. Em consonância com o que constou no auto de notícia que elaborou referiu que tinha conversado com aqui arguido e que este lhe tinha transmitido que por distracção tinha realizado uma manobra de marcha atrás, embatendo na vítima que, por sua vez, a transportou até ao hospital. Referiu também que não conseguiu realizar exames de despiste de álcool no sangue ao arguido, por nesse momento se ter criado uma grande concentração de pessoas no hospital, acabando o arguido por se ausentar, devido à pressão dessas mesmas pessoas sobre o arguido.
Repare-se que o órgão de polícia criminal no momento em que aborda o, na altura, “suspeito” não tinha elementos para concluir que se imporia a obrigatoriedade de constituição como arguido, quando nem ao local do alegado acidente a testemunha ainda se tinha deslocado (nem ainda seria conhecido o resultado “morte” da vítima), pelo que se entende que a actuação do agente policial agia dentro dos poderes concedidos pelas normas reguladoras da aquisição e notícia do crime (artigos 241.º e 242.º) e de medidas cautelares e de polícia (artigos 248.º e seguintes, designadamente o artigo 250.º do Código de Processo Penal), não estando tal relato no âmbito das chamadas “conversas informais”, mas no âmbito de afirmações de um cidadão, que pode ser suspeito ou nem isso.
Finalmente, pela testemunha EE foi referido que após sair do hospital, deslocou-se ao Bairro ... e constatou que o local onde alegadamente teria ocorrido o acidente, teria sido limpo com baldes de água, por residentes daquele bairro.
Como referido por esta testemunha, foi apurada uma testemunha que alegadamente teria presenciado os factos tal como fez consta do auto de notícia, que no caso foi FF.
A testemunha FF, num depoimento que o tribunal não atribuiu qualquer credibilidade, referiu não ter visto o acidente, não obstante do auto de notícia o órgão de polícia criminal ter mencionado que esta testemunha lhe teria transmitido que “momentos antes, quando se encontrava sentado na rua, visualizou o suspeito a efectuar uma manobra de marcha atrás e por distração atropelou a vítima”. Repare-se que é essa mesma testemunha que agora em tribunal decide, ainda que sob juramento, referir não ter visto nada. Note-se que tal incongruência é até esclarecida pela própria testemunha JJ quando disse que “quem viu cala-se”. Com efeito, o depoimento da testemunha EE foi esclarecedor (e repare-se, não tem qualquer elemento que permita retirar qualquer isenção cujo depoimento o caracterizou) ao referir que essa mesma testemunha lhe tinha contado o que vira.
Em suma, o depoimento de EE, em consonância com o auto de notícia, abalou a credibilidade da testemunha JJ.
E se ainda dúvidas houvessem quanto à autoria dos factos pelo arguido, lapidar foi o depoimento de GG que, num depoimento espontâneo e circunstanciado referiu que na data dos factos, se encontrava em casa, quando ouviu gritos da rua tendo nessa medida saído e ao chegar ao local, viu o arguido ao volante de uma viatura de marca ... com a sua avó (vítima HH), debaixo dessa mesma viatura. Esclareceu, por outro lado, que a havia cidadãos a tentar empurrar a viatura para frente, por forma a retirar a vítima debaixo do carro. O depoimento desta testemunha foi esclarecedor e em consonância com a demais prova produzida. Repare-se que chegou a ir ao pormenor de descrever que a sua avó tinha a face debaixo de um dos pneus da viatura.
A testemunha GG a qual foi de encontro à descrição mencionada pela testemunha EE, descreveu as características da via, e para o que importa para o esclarecimento dos factos, o posicionamento da viatura em relação à vítima. Referiu a testemunha que a viatura não estaria a trabalhar e que a via tinha uma ligeira inclinação. Ou seja, a viatura estaria direccionada “para cima” que por não estar a trabalhar e caso não operasse o travão, a viatura deslizaria para baixo.
Resultou, assim, do depoimento das testemunhas e das regras de experiência comum que o arguido estaria a tentar pôr em funcionamento da carrinha que conduzia, aproveitando a inclinação da via para impulsionar a ligação e carregando no acelerador e como a viatura estaria estacionada para em direcção acima e como não estaria ainda ligada, seria natural que a carrinha deslizasse para baixo.
Com efeito, o arguido no momento em que estaria a tentar pôr a viatura a “trabalhar” terá deslizado a carrinha para trás, fazendo marcha-atrás. E estando o arguido a realizar uma manobra de marcha-atrás, tinha obrigação de se certificar que a podia fazer em segurança. Mas não o fez. Repare-se que a vítima mortal, de acordo com o teor do relatório de urgência a fls. 89, nasceu em .../.../1925, e, por conseguinte, na data dos factos, teria 92 anos. É perceptível pela imagem aposta da vítima no relatório de urgência como alguém que, de acordo com a regras da experiência, teria já uma forma de locomoção lenta. Pelo que cogitar a possibilidade de a vítima ter atravessado a traseira da viatura de uma forma imediata, feriria de modo flagrante, as regras de experiência.
Por outro lado, em consonância com o depoimento de GG que viu a sua avó debaixo da carrinha que encontrava a ser conduzida pelo arguido, é o teor de fls. 102 (diário clínico), no qual refere que “após levantamento do penso, constata-se (…) feridas múltiplas da região orbitária, hemiface direita (com exposição óssea a este nível)”, sendo tais lesões compatíveis com a sua versão.
Também consonância com a valoração destes elementos é o teor do relatório de inspecção judiciária, onde através das imagens se alcança que foram encontrados vestígios biológicos humanos debaixo da carrinha e, bem assim, o teor do relatório de autópsia médico-legal onde aí se conclui que “as lesões traumáticas descritas resultaram de acção de natureza contundente podendo ter sido devidas a atropelamento”, as quais são visíveis considerando o teor das imagens a fls. 194-196.
Tal relatório de modo claro estabelece um nexo entre as lesões detectadas e a sua verificação por acção de natureza contundente compatível com um acidente de viação.
Refira-se que neste caso os juízos técnicos insertos em tal relatório (autópsia médico-legal) está nos termos do artigo 163.º do Código de Processo Penal subtraídos à livre convicção deste julgador por inexistir qualquer motivo para dos mesmos divergir.
Assim, para prova dos factos 1-7, o tribunal alicerçou a sua convicção com base no depoimento de EE em conjugação com teor do auto de notícia de fls. 44-45, aditamento de fls. 74, participação de acidente de fls. 75-78, relatório de inspecção judiciária de fls. 128-131, relatório técnico de acidente de viação a fls. 180-183 e reportagem fotográfica de fls. 193-196 e auto de apreensão de fls. 89-93 em conjugação com o depoimento de GG, por apelo às regras de experiência comum.
Quanto às características da via, o tribunal alicerçou a sua convicção com base no depoimento das testemunhas EE e GG em conjugação com o teor das imagens de fls. 77-77V.
Os factos 8 e 9 resultaram provados com base no teor do relatório de urgência, de fls. 89 a 93, registos clínicos do centro hospitalar de ... de fls. 95-126, boletim de informação clínica de fls. 149-150 em conjugação com teor do relatório de autópsia médico-legal de fls. 134-136.
Os factos 10 a 13 resultaram provados por apelo às regras de experiência comum em conjugação com o depoimento de GG e EE em conjugação com elementos documentais, mais concretamente, auto de notícia de fls. 44-45, participação de acidente de fls. 75-78, relatório técnico de acidente de viação de fls. 180-183 e reportagem fotográfica de fls. 193-196.
Particularmente quanto à prova do elemento subjectivo, considerando que o arguido circulava num local de boa visibilidade, resulta das regras de experiência comum e não tendo o arguido fornecido qualquer explicação lógica para o facto de ter realizado uma manobra de marcha-atrás sem se certificar que o podia fazer em segurança, aliada à circunstância da vítima aqui em causa dada a sua idade avançada, e inexistir qualquer explicação lógica para se ter colocado atrás da viatura (de repente, o que não se concebe por ferir as regras de experiência), tem de se extrair, de acordo com as regras da experiência comum, que tal manobra era evitável. Também, tendo o embate ocorrido no momento em que o arguido iniciava a manobra de marcha-atrás é evidente que o arguido não se certificou de que com essa manobra não criava perigo ou embaraço para os utentes da outra faixa, sendo certo que como condutor há praticamente seis anos (à data do acidente) estava necessariamente consciente das regras estradais que estava obrigado a acatar e aos deveres de cuidado que sobre si impendiam. Podia e devia, por isso, ter previsto o resultado que se veio a verificar.
Os factos 14 e 15 extraem-se do teor do certificado de registo criminal do arguido com a referência ...33.
O facto 16 resultou provado com base no teor do relatório social com a referência ...37. O facto 17 extraiu-se da produção de prova testemunhal em audiência, particularmente com base no depoimento de EE.
A materialidade factual subjacente aos pontos a) a d) resultou como não provada, uma vez que da prova testemunhal produzida, não foi possível extrair com segurança exigível. A testemunha GG referiu não se recordar das condições climatéricas e não foi possível apurar o sentido da manobra realizada (se poente/nascente ou nascente/poente).
Quanto ao ponto b), pese embora a testemunha tivesse relatado ter constatado a vítima debaixo da viatura que estava a ser conduzida pelo arguido, nesse momento, desconhece-se se o arguido teria só parado a viatura quando ouviu gritos dos populares que se encontravam no local ou que a vítima se encontrasse no meio da faixa de rodagem, mas resultou apurado que a vítima encontrava-se na faixa de rodagem atrás da viatura conduzida pelo arguido.
Com efeito, tal prova não permite concluir com grau de certeza necessário de onde provinha a vítima antes de estar na via pelo que na óptica do Tribunal tais factos apenas se podem dar como não provados».

***

Cumpre conhecer.

B.2 - O âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso, de acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções criminais do STJ de 19/10/95 in D.R., I-A de 28/12/95.

São questões suscitadas pelo recorrente nas suas conclusões:

- o erro notório na apreciação da prova do art. 410º, nº 2, al. c) do CPP – conclusões 1ª a 15ª;
- a natureza e medida da pena – conclusões 16ª a 19ª;
- a medida da pena acessória – conclusão 20ª.

Antes do mais haverá que esclarecer que o facto dado como provado em 16) refere: «16. Consta do relatório social elaborado pela DGRSP com referência ao arguido que:», seguindo-se factos factos relativos ao arguido e apurados por aquela Direcção-Geral.
Dada a inserção do trecho do Relatório nos factos provados consideramos que tal implicou uma tomada de posição do tribunal recorrido no sentido de considerar que tais factos transcritos estão provados.

*

B.2 - O recorrente invoca a existência de erro notório na apreciação da prova quanto aos factos 10) a 13), assente no princípio de “inexistência de prova” para a condenação, na medida em que ninguém testemunhou o acidente.

Designadamente (das suas conclusões):

3. Inexistem testemunhas presenciais;
4. (…);
5. Ninguém efectuou uma descrição do embate;
6. Na ausência de qualquer depoimento de quem tenha presenciado a dinâmica do acidente, não será possível ao Tribunal, com recurso à prova indirecta e às regras da experiência, concluir pela prova das circunstâncias em que o embate ocorre,
7. E, por maioria de razão, pela prova de que o arguido violou deveres de cuidado na realização da manobra;
8. Não será, ainda, de atender às declarações prestadas pelo Agente da PSP EE, na parte em que relata declarações prestadas pelo arguido após o acidente, informalmente, antes de assumir tal qualidade processual;

Em função da fundamentação factual do tribunal recorrido não é inteiramente correcta a posição expressa em 3) e 5) pois que existe uma testemunha que viu parte do acidente, o momento em que a vítima se encontrava debaixo da viatura, designadamente GG que «referiu que na data dos factos, se encontrava em casa, quando ouviu gritos da rua tendo nessa medida saído e ao chegar ao local, viu o arguido ao volante de uma viatura de marca ... com a sua avó (vítima HH), debaixo dessa mesma viatura. Esclareceu, por outro lado, que a havia cidadãos a tentar empurrar a viatura para frente, por forma a retirar a vítima debaixo do carro».

Temos, portanto, a afirmação de dois pontos essenciais na fixação da matéria de facto, a imputação da condução ao arguido no momento do atropelamento e a circunstância de a vítima se encontrar ainda, nesse momento fulcral, debaixo da viatura.

E é preciso ter presente que a referida testemunha presencial/ocular se apercebeu e esclareceu as condições da via que permitem uma explicação racional quanto à forma em que o atropelamento ocorreu, via inclinação da via, óbvio mau funcionamento da viatura que obrigou ao uso da gravidade para conseguir o seu “arranque”.

Apesar de ser a única testemunha presente na hora e local do embate e disponível para prestar depoimento – apesar de a mesma referir a presença de outras pessoas no local - o seu depoimento é corroborado por outros elementos probatórios, devidamente indicados pelo tribunal recorrido.

EE, agente da PSP que lavrou o auto de notícia, confirma que contactou o arguido no Hospital ... - para onde o arguido havia transportado a vítima – e que este lhe confirmou que havia atropelado a mesma numa manobra de marcha à ré.

E aqui impõe-se apurar se tais declarações do arguido são atendíveis, por terem sido prestadas a agente policial.

É nossa convicção que não estamos perante depoimento indirecto, nem “conversa informal” (com o significado habitual), sim perante declarações do ora arguido – antes de ser constituído formalmente como arguido - percepcionadas directamente pelos agentes policiais no momento da intercepção.

Visando a economia de esforços e a máxima sintetização do raciocínio, seguiremos de perto o já por nós relatado nos acórdãos desta Relação de Évora de 04 de Junho de 2013 (proc. nº 40/...) e de 21 de Outubro de 2014 (proc. nº 40/1...), no mesmo processo, portanto, a propósito de momento de constituição de arguido, de depoimento indirecto e de “conversas informais”.

No primeiro acórdão (de 06/04/2013) lavrado no primeiro recurso interposto nesse pocesso sumariámos:

1. Se os agentes policiais percepcionaram directamente os factos – mesmo que os “factos” sejam o declarado pelo ainda não arguido – não há depoimento indirecto.
2. O meio de prova “declarações de arguido” tem que ser veiculado através de um “interrogatório” previsto nos artigos 140-º- a 144-º do CPP. O meio de prova “declarações de arguido” não pode ser veiculado por “conversas informais”.
3. O formalismo dos interrogatórios de arguido é uma questão central no próprio valor do meio de prova, uma vinculação à forma querida pelo legislador, produto ou resultado de uma evolução histórica processual que concluiu ser este formalismo do interrogatório a melhor forma de acautelar direitos.
4. As “conversas informais” são um expediente para tornear direitos em nome de uma suposta verdade “descoberta” pelo investigador policial que, dessa forma, pretende determinar o resultado do julgamento. São, portanto, um expediente de má policia. Um abuso. Uma fraude à lei e ao Direito.
5. Se o meio de prova “declarações de arguido” não cumpre a regra da “tipicidade de interrogatório” de arguido e surge através, de “conversa informal” ocorre o vício processual da inexistência do meio de prova “declarações de arguido”.
6. Mas as forças policiais não estão proibidas de falar com os cidadãos que podem vir a ser arguidos ou com os suspeitos, ou com quem se encontra numa “cena de crime”, o que cria situações de facto de fronteira e de difícil solução.
7. Quando o ainda não arguido não foi constituído arguido, podendo considerar-que que há motivo para tal, como mera decorrência do nº 5 do artigo 58º do Código de Processo Penal qualquer declaração daquele não pode ser utilizada como prova.
8. Mas esta proibição de prova não abrange as declarações ouvidas pelos agentes policiais ao arguido, antes de este o ser ou haver obrigação de constituição, se não houver culpa das forças policiais no atrasar da formalização daquela constituição.
9. Face ao ordenamento português parece indubitável que o simples cidadão ou cidadão suspeito não goza do direito ao silêncio e, como tal, a prova produzida pelas suas declarações, melhor, depoimento, é válida se ainda não havia obrigação de constituição como arguido.
10. Se as entidades policiais agem dentro dos poderes concedidos pelas normas reguladoras da aquisição e notícia do crime (artigos 241º e 242º) e de medidas cautelares e de policia (artigos 248º e segs., designadamente o artigo 250º do C.P.P.) e, sem má fé ou atraso propositado na constituição de arguido, ouvem do cidadão ou suspeito a informação da prática de um crime, isso não constitui violação de lei ou fraude à lei, nem obtenção de prova proibida.
11. Por isso que a questão não se centra em saber se a proibição de “conversas informais” deve abranger afirmações anteriores ou posteriores à constituição de arguido, já que são sempre proibidas após a constituição como arguido. E nunca são antes da constituição como arguido, excepto se a má-fé policial tiver ilegalmente atrasado essa constituição.
12. Se o arguido é interceptado na prática de uma contra-ordenação (excesso de velocidade) e não de um crime, nem sequer há atraso na constituição de arguido em processo crime para os efeitos do artigo 58º, nº 5 C.P.P. no momento em que, interceptado, faz uma afirmação que revela um hipotético crime.
13. Nesse caso a declaração do ainda não arguido não passa de uma denúncia de um crime nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 241º e seguintes do Código de Processo Penal.
(…)
No segundo, de 21-10-2014, resumimos:

I - Se um arguido afirma a três agentes da GNR - quando interceptado por excesso de velocidade em 2011 – que no ano anterior havia praticado um crime e dado azo à prática de outro –, isso apenas prova que ele disse aquilo que as testemunhas lhe ouviram dizer nesse local e nesse momento, aceitando o tribunal como credíveis esses depoimentos.
II - Mas esses depoimentos das testemunhas da GNR não provam que o arguido tenha praticado em 2010 os factos que veio dizer ter praticado na “conversa” em 2011.
III - Assim se o arguido, antes de o ser, foi o denunciante do seu próprio e eventual crime, impunha-se investigar o afirmado pelo arguido na medida em que este afirmou a prática de um crime e denunciou outros suspeitos de outro crime.
IV - Tais “verbalizações”, sendo a notícia do crime, exigem um percurso probatório que não pode passar pela promoção do “dito” (conversa pré-processual que deu notícia do crime) a “confessado”, exercendo o arguido ou não o seu direito ao silêncio.
V - Bastarmo-nos com as palavras ditas pelo arguido e fazer operar sobre elas - e apenas sobre elas – regras de experiência comum, é elevá-las à categoria de “confissão” pré-processual. E isso está vedado ao tribunal.
VI - Desde logo pela natureza do dito, depois pelas cautelas de que o efeito confessório é rodeado pela ordem jurídica, por fim, porque aceitar o verbalizado como equiparado a “confissão” é inviabilizar direitos, designadamente o direito ao silêncio e, aliás, ao próprio direito a um julgamento em audiência pública, redundando em completa negação da imediação e da oralidade e, “máxime”, do acusatório.


Para este caso, parece-nos, vale o disposto no artigo 58º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Constituição de arguido”, norma que é o cerne da nossa questão concreta:

1 - Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, é obrigatória a constituição de arguido logo que:

d) For levantado auto de notícia que dê uma pessoa como agente de um crime e aquele lhe for comunicado, salvo se a notícia for manifestamente infundada.

2 - A constituição de arguido opera-se através da comunicação, oral ou por escrito, feita ao visado por uma autoridade judiciária ou um órgão de polícia criminal, de que a partir desse momento aquele deve considerar-se arguido num processo penal e da indicação e, se necessário, explicação dos direitos e deveres processuais referidos no artigo 61.º que por essa razão passam a caber-lhe.

3 - …

5 - A omissão ou violação das formalidades previstas nos números anteriores implica que as declarações prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova.

6 - A não validação da constituição de arguido pela autoridade judiciária não prejudica as provas anteriormente obtidas.

E, como mera decorrência do nº 5 do artigo 58º do Código de Processo Penal, a omissão ou violação das formalidades previstas nos números anteriores implica que qualquer declaração daquele que já deveria ter sido constituído como arguido não pode ser utilizada como prova. Tratar-se-ia de clara proibição de prova se tal tivesse ocorrido.

Mas esta proibição de prova não abrange as declarações ouvidas pelos agentes policiais ao arguido (antes de o ser) se não houver culpa sua no atrasar da formalização daquela constituição.

Como se fundamenta no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 11 Julho 2001: [1]

“Convém realçar que a não constituição de alguém como arguido nos casos a que se refere o citado artigo 58°, nomeadamente, a violação ou omissão das formalidades aí previstas "implica que as declarações prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova contra ela" (n.° 4).

Naturalmente que o argumento interpretativo a contrario sensu é falível mas aqui inevitável.

Face ao ordenamento português e no caso concreto parece-nos indubitável que simples cidadão ou cidadão suspeito não goza do direito ao silêncio e, como tal, a prova produzida pelas suas declarações, melhor, depoimento, é válido.

Se ainda não havia obrigação de constituição como arguido e as entidades policiais agiam dentro dos poderes concedidos pelas normas reguladoras da aquisição e notícia do crime (artigos 241º e 242º) e de medidas cautelares e de policia (artigos 248º e segs., designadamente o artigo 250º do C.P.P.) e, sem má-fé ou atraso propositado na constituição de arguido, ouvem do cidadão ou suspeito a informação da prática de um crime, isso não constitui violação de lei ou fraude à lei, nem obtenção de prova proibida.

Por isso que a questão não se centra – como faz alguma jurisprudência – em saber se a proibição de “conversas informais” deve abranger afirmações anteriores ou posteriores à constituição de arguido.

Que são proibidas após a constituição como arguido é do reino do óbvio.

Que nunca são antes da constituição como arguido também nos parece evidente, já que aí nem existem “conversas informais”, sim afirmações de um cidadão, que pode ser suspeito ou nem isso. E o suspeito ou nem isso é, no ordenamento processual penal português, uma testemunha.

Excepto se a má-fé policial tiver ilegalmente atrasado essa constituição. Por isso que o artigo 58º tenha um nº 5, que comina com a nulidade probatória uma conduta policial que conduza a um resultado não querido pelo legislador.

Assim, a questão centra-se, no caso de situações de fronteira, na distinção a fazer entre as figuras de “suspeito” e “arguido”. Este goza de direitos, aquele é testemunha. O arguido goza do direito ao silêncio, o suspeito não. [2]

Numa situação de facto duvidosa em que as forças policiais não constituem logo como arguido – que o pode ser verbalmente – um suspeito da prática de um crime é de reconhecer ao suspeito o direito ao silêncio (e seus benefícios em audiência – não admissão de depoimentos policiais)? Ou seja, podemos resolver a questão através da extensão de direitos do arguido ao suspeito? Ou fazer rectrotrair a condição de arguido a momento anterior independentemente de uma situação de nulidade (fora, portanto, da operatividade do nº 5 do artigo 58)? Ou estaremos limitados – o que parece o mais adequado – à clara delimitação da situação de facto, até em função da relevância do momento de constituição como arguido? [3]

O direito francês resolve o problema suscitado por estas questões de fronteira através da figura da “témoin assisté”, [4] reconhecendo a esta direitos análogos aos do arguido – Code de Prócedure Pénale, artigos 113-2 a 113-8 (48º Edition, 2007, Dalloz), principalmente o artigo 113-4, 1º §. [5]

O caso concreto permite-nos concluir que o sistema processual penal português é claro na distinção de figuras e efeitos e que a resolução das questões de fronteira passa pela clara delimitação da situação de facto e pela análise rigorosa da actuação policial, sendo a dúvida de facto resolvida a favor do arguido.

No caso presente, em que sequer se indicia deficiente conduta policial (muito menos má-fé na sua actuação), mas uma verbalização voluntária do arguido não estamos perante uma situação de fronteira.

No nosso caso o arguido não tinha que ser constituído como tal quando se concretiza a “conversa” e só depois de verbalizar a eventual prática de um crime é que pode surgir (se houver indícios) a obrigação de constituição como arguido em processo-crime e não antes.

Não há, pois, nulidade de meio de prova resultante da previsão do nº 5 do artigo 58º do Código de Processo Penal, única de que poderia beneficiar o arguido.

Considerando estes elementos probatórios e a existência de prova pericial elucidativa do atropelamento, não vemos razão para alterar a matéria de facto, o que consequencia a manutenção da decisão em sede de direito.

*

B.3 – Quanto à pena insurge-se o recorrente pela opção pela pena de prisão na medida em que – apesar de reconhecer nas suas conclusões (17, 18 e 20) que «as necessidades de prevenção geral são elevadas e que, afinal, está em causa a perda de uma vida humana, o certo é que o dano foi integralmente reparado, na medida do possível, através da seguradora» e que «regista apenas dois antecedentes criminais de reduzida gravidade, e já com alguma antiguidade, e que, após os factos, em 2017, não voltou a delinquir», acrescentando que se justifica a «redução da pena acessória dos 10 (dez) meses para os 5 (cinco) meses de inibição de conduzir».

Pugna, pois, pela aplicação de uma pena de multa e pela redução a metade da pena acessória.

Recordemos que o arguido foi condenado numa pena de um ano e dois meses de prisão, suspensa na sua execução por dois anos, na condição do arguido frequentar programa ou acção de formação que venha a ser indicada pela DGRSP no âmbito da prevenção da sinistralidade rodoviária e numa pena acessória de 10 meses de proibição de conduzir.

O arguido foi já condenado por decisão das autoridades judiciárias de ..., pela prática em 2011/05/14 do ilícito de condução de veículo em estado de embriaguez e, no âmbito do processo n.º 38/14.... do Juízo Local Criminal ..., pela prática em 2014/08/18, de um crime de injúria agravada, na pena de 140 dias de multa, à taxa diária de 5,00€.

Para o caso concreto revela gravidade em termos de prevenção geral e especial a condenação pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez.

A favor do arguido pode invocar-se o facto de ter transportado a vítima ao Hospital.

Tudo o resto desaconselha a aplicação de uma simples pena de multa. Desde logo a circunstância de o arguido não ter ocupação profissional. Depois, o facto de ter fugido do Hospital sem ser sujeito a teste de alcoolemia, levando consigo o veículo instrumento do crime. Por fim o facto de os vestígios do ocorrido terem sido lavados o que, não podendo ser pessoalmente imputado ao arguido, supõe naturalmente que ele deu notícia do facto a quem assim procedeu.

Ou seja, o reflexo da pena, para o arguido e quem o ajudou lavando os vestígios, não pode reduzir-se a uma pena de impossível aplicação e que sempre suscitaria o futuro pedido do seu incumprimento por ausência de réditos para tanto.

O mesmo se diga relativamente à pena acessória de proibição de conduzir – que não foi objecto de motivação esclarecedora mas de simples pedido – pois que no caso a única hipótese imaginável seria o seu agravamento, inviável por via da proibição da reformatio in peius.

O que tudo nos leva a concluir que as penas impostas estão longe de ser excessivas.

Face a tudo o que se expôs o recurso deve ser declarado improcedente.


***

C - Dispositivo:

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal de Relação de Évora em negar provimento ao recurso.

Custas pelo arguido com 4 (quatro) UCs de taxa de justiça.

Évora, 28 de Março de 2023.
(processado e revisto pelo relator).

João Gomes de Sousa
Carlos Campos Lobo
Ana Bacelar

________________________________________
[1] Colectânea de Jurisprudência (STJ), Tomo III/2001, Rel. Lourenço Martins, Processo: 1796/01.
[2] - Ver a questão colocada de forma clara e racional pelo Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” 5ª edição - Vol. I, pp. 291-293, Editorial VERBO, 2008.
[3] - V. g. o Prof. Germano Marques da Silva - na obra citada a fls. 291 – na referência à Lei nº 43/86, de 26-09 e a relevância da “definição rigorosa do momento e do modo de obtenção do estatuto de arguido”
[4] - Aut. E ob. cit.
[5] - “Lors de la première audition du témoin assisté, le juge d'instruction constate son identité, lui donne connaissance du réquisitoire introductif, de la plainte ou de la dénonciation, l'informe de ses droits et procède aux formalités prévues aux deux derniers alinéas de l'article 116. Mention de cette information est faite au procès-verbal” – redacção da Lei n° 2000-516 de 15 Junho 2000 (em vigor desde 1 de Janeiro de 2001).