Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
284/14.7TBRMR-A.E1
Relator: MÁRIO SERRANO
Descritores: RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS EM INSOLVÊNCIA
PENHOR
Data do Acordão: 11/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Impõe-se, no caso presente, a seguinte graduação: em 1º lugar, os créditos garantidos por penhor; em 2º lugar, os créditos privilegiados dos trabalhadores da insolvente; em 3º lugar, os créditos privilegiados da Segurança Social (e depois, sucessivamente, os créditos comuns e os créditos subordinados).
Decisão Texto Integral: Proc. nº 284/14.7TBRMR-A.E1-2ª (2015)
Apelação-1ª (2013 – NCPC)
(Acto processado e revisto pelo relator signatário: artº 131º, nº 5 – NCPC)
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ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


I – RELATÓRIO:

No âmbito do processo de insolvência, que corre termos na Secção de Comércio da Instância Central da Comarca de Santarém, em que foi declarada insolvente «(…) – Divisórias, Móveis e Decorações, Lda.», foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos, ao abrigo do artº 130º, nº 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18/3. Nessa sentença, julgaram-se verificados os créditos constantes da lista de credores reconhecidos elaborada por administrador da insolvência e graduaram-se os créditos constantes dessa lista, estabelecendo três ordens de graduação, as duas primeiras quanto ao produto da venda de acções da empresa «(…)» apreendidas nos autos e garantidas por penhores constituídos a favor dessa mesma empresa (verbas nos 6 e 7) e a terceira quanto ao produto da venda dos demais bens apreendidos.

Quanto às duas primeiras graduações, mostra-se exactamente idêntica a respectiva ordem dos créditos, definida nos seguintes termos: em 1º lugar, créditos reclamados pela «(…)», no valor de 3.353,72 €, garantidos por penhor; em 2º lugar, créditos privilegiados reclamados pelos trabalhadores da insolvente; em 3º lugar, créditos privilegiados reclamados pela «Segurança Social», no valor de 21.621,08 €; em 4º lugar, créditos comuns, na proporção desses créditos; em 5º lugar, créditos subordinados. Para fundamentação dessa ordem de graduação, argumentou o tribunal de 1ª instância, essencialmente, o seguinte: o Decreto-Lei nº 103/80, de 9/5, que rege sobre os créditos por contribuições para a previdência, confere privilégio mobiliário geral às dívidas de contribuições à segurança social; o Código do Trabalho (artº 333º) confere aos créditos dos trabalhadores emergentes de contrato de trabalho privilégio mobiliário geral, que deve ser graduado antes de qualquer dos créditos referidos no artº 747º, nº 1, do C.Civil; o penhor, de acordo com o artº 666º do C.Civil, confere ao credor pignoratício direito a, de forma preferencial, satisfazer o seu crédito pelo valor dos bens objecto dessa garantia; os créditos garantidos prevalecem sobre os créditos privilegiados.

Inconformado com tal decisão, dela apelou o reclamante «Instituto de Segurança Social, I.P. – Centro Distrital de Santarém», formulando as seguintes conclusões:

«1. O artigo 10º do Dec-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, e o artigo 204º do Código Contributivo dispõem que os créditos da Segurança Social gozam de privilégio mobiliário geral, prevalecendo sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior.

2. Contudo, a douta sentença não fez a correcta aplicação e interpretação destes preceitos, que são os aplicáveis à situação sub judice.

3. Em face do disposto nestes preceitos tem de se concluir que os créditos da Segurança Social gozam de privilégios creditórios e prevalecem sobre os créditos garantidos por penhor.

4. Desta forma, enferma de erro a douta decisão judicial, devendo ser corrigida no sentido do crédito reclamado pelo CDS que goza de privilégio creditório mobiliário ser graduado à frente dos créditos garantidos por penhor.

5. A douta decisão violou, além do mais, o disposto nos artigos 10º do Decreto-Lei 103/80, de 9 de Maio, e 204º do Código Contributivo.»


Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artº 608º, nº 2, ex vi do artº 663º, nº 2, do NCPC).

Do teor das alegações do recorrente resulta que a matéria a decidir se resume a apurar se, na sentença recorrida, houve erro de julgamento ao graduar-se créditos garantidos por penhor (da «…») com preferência sobre créditos da segurança social garantidos por privilégio creditório mobiliário geral – sendo que é pretensão do apelante obter nova graduação que coloque os créditos reclamados pelo recorrente, por força de privilégio creditório mobiliário geral conferido por lei, com primazia sobre créditos garantidos por penhor.

Cumpre apreciar e decidir.

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II – FUNDAMENTAÇÃO:

No relatório supra ficaram já enunciados os elementos que relevam para a apreciação do recurso.

Comece-se por salientar que o recorrente, nas suas alegações de recurso, reduz a questão em discussão a um mero confronto, para efeitos de graduação de créditos, entre créditos garantidos por penhor e créditos da segurança social – sem referir que, para além desses créditos (graduados na decisão recorrida, respectivamente, em 1º e 3º lugar na correspondente ordenação, e cuja ordem a recorrente pretende inverter), haverá ainda que considerar a posição relativa dos créditos dos trabalhadores da insolvente, graduados em 2º lugar, e cujo posicionamento tem de ser equacionado de forma combinada com as outras duas modalidades de créditos.

E, como veremos, não terão o mesmo resultado exercícios de graduação em que, numa primeira situação, estejam apenas presentes aqueles dois primeiros tipos de créditos, e, numa segunda hipótese, já se tenham de considerar as três estirpes creditícias referenciadas.

Atente-se, pois, na caracterização legal das garantias em presença.

Em relação ao penhor, estabelece o artº 666º, nº 1, do C.Civil que «O penhor confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não susceptíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro». Desta norma emerge uma regra geral «no sentido de que o credor que goze do direito de penhor sobre certa coisa móvel (…) beneficia de preferência na realização do respectivo direito de crédito pelo produto do concernente objecto sobre qualquer outro credor» (assim, SALVADOR DA COSTA, Concurso de Credores, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2015, p. 41). Em coerência com este enquadramento, e na sua concretização a propósito dos privilégios creditórios, estipula o artº 749º, nº 1, do C.Civil que «O privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente». Daqui se extrai a conclusão de que, «em regra, em caso de conflito entre o referido privilégio [mobiliário geral] e o direito real de gozo ou de garantia de terceiro oponível ao exequente, é o último que prevalece» (ob. cit., p. 242). Mas esta regra apresenta uma excepção em matéria de créditos devidos a instituições de segurança social, como se verá de seguida.

Quanto a créditos da segurança social, o Decreto-Lei nº 103/80, de 9/5 (que continha o regime especial das contribuições devidas às instituições de previdência – ou de «segurança social», em designação actualizada), dispunha, no seu artº 10º, nº 1, que «Os créditos das caixas de previdência pelas contribuições e os respectivos juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se logo após os créditos referidos na alínea a) do nº 1 do artigo 747º do Código Civil». E acrescentava o nº 2 dessa disposição legal que «Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior». Esse regime, entretanto substituído pelo Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (CRCSPSS, também designado de Código Contributivo), aprovado pela Lei nº 110/2009, de 16/9 (cujo artº 5º, nº 1, al. b), revogou o Decreto-Lei nº 103/80), afigura-se semelhante ao actual (designadamente quanto à relação do privilégio mobiliário dos créditos da segurança social com o penhor), atento o teor do artº 204º desse Código: «1 – Os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respectivos juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se nos termos referidos na alínea a) do nº 1 do artigo 747º do Código Civil.»; «2 – Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior.».

A normação em apreço vem consagrando, pois, um regime excepcional em que o privilégio mobiliário geral conferido aos créditos da segurança social prevalece sobre o direito de penhor. Neste quadro não oferecerá dúvida que, quando estiverem em confronto, para efeitos de graduação, créditos garantidos por penhor e créditos da segurança social com privilégio mobiliário geral, estes terão primazia sobre aqueles. Esta orientação foi, aliás, acolhida em vários arestos deste Tribunal, de que se salienta o Ac. RE de 30/4/2015 (Proc. 1277/13.7TBCTX-B.E1, in www.dgsi.pt), em que intervieram dois membros deste colectivo: «(…) os créditos da Segurança Social têm prevalência sobre os créditos garantidos por penhor (…)».

A solução descrita coincide com a posição sustentada pelo recorrente no presente recurso, pelo que pareceria dever julgar-se o mesmo procedente. E seria esse o sentido da decisão a proferir se, no caso presente, estivessem em confronto exclusivo as duas estirpes de créditos em referência. Porém, a existência, em paralelo, de créditos dos trabalhadores da insolvente, cuja graduação tem também de ser efectuada, gera um conflito entre as normas que estabelecem os respectivos critérios de graduação.

Com efeito, o artº 333º, nº 1, al. a), do Código do Trabalho (aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12/2) estabelece que «os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação gozam d[e] (…) privilégio mobiliário geral» e diz o nº 2, al. a), dessa disposição legal que, para efeitos de graduação desses créditos, «o crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes de crédito referido no nº 1 do artigo 747º do Código Civil». Isto significa, pois, que temos aqui indicações legais em contradição aparentemente insanável: por um lado, os créditos laborais devem ser graduados a seguir a créditos garantidos por penhor (por via dos citados artos 666º, nº 1, e 749º, nº 1, do C.Civil – e como também refere SALVADOR DA COSTA, ob. cit., p. 253) e com prevalência sobre os créditos por impostos do Estado e das autarquias locais a que se refere o artº 747º, nº 1, al. a), do C.Civil (por via do artº 333º, nº 2, al. a), do Código do Trabalho); mas, por outro lado, os créditos da Segurança Social devem ser graduados depois dos créditos por impostos referidos no artº 747º, nº 1, al. a), do C.Civil (por via do artº 204º, nº 1, do CRCSPSS) e dos créditos laborais (por via da prevalência destes sobre os créditos por impostos, conforme artº 333º, nº 2, al. a), do Código do Trabalho), mas com prevalência sobre os créditos garantidos por penhor (por via do artº 204º, nº 2, do CRCSPSS).

Cremos que a única forma razoável de harmonizar as normas em conflito, com sustentabilidade legal, passa por extrair da natureza excepcional já reconhecida ao regime que vimos constar dos artos 10º, nº 1, do Decreto-Lei nº 103/80 e 204º, nº 2, do CRCSPSS, a possibilidade de uma interpretação restritiva da sua estatuição, de modo a entender que a sua aplicabilidade apenas se mostra viável quando, para efeitos de graduação, estejam em confronto, exclusivamente, créditos garantidos por penhor e créditos da segurança social. Trata-se de solução coincidente com a sustentada por SALVADOR DA COSTA, a propósito de situação similar de conflito de normas, em que estava em causa o «concurso entre o direito de crédito de particulares garantido por penhor, o direito de crédito derivado de impostos da titularidade do Estado ou das autarquias locais [garantido por privilégio mobiliário geral] e o direito de crédito da titularidade de instituições de segurança social [garantido por privilégio mobiliário geral]», caso em que a graduação se faria pela ordem descrita – obedecendo assim a um critério de interpretação restritiva do regime dos créditos da Segurança Social, defendido por aquele autor, segundo o qual «o direito de crédito garantido por penhor só é preterido pelo direito de crédito das instituições de segurança social garantido por privilégio mobiliário geral no caso do exclusivo confronto entre eles no concurso» (ob. cit., pp. 243-244). Assim se discorda da solução divergente aceite por MIGUEL LUCAS PIRES, que consentiria a graduação dos créditos da segurança social sempre à frente dos créditos pignoratícios (e, acima de ambos, dos créditos do Estado por impostos), para garantir o cumprimento integral do regime de privilégios creditórios da segurança social constante dos nos 1 e 2 do artº 10º do Decreto-Lei nº 103/80, mas com «um desvio ao regime plasmado no artº 749º do C.C.», sendo certo que o próprio autor considerava o nº 2 do artº 10º do Decreto-Lei nº 103/80 uma «norma manifestamente criticável», a merecer a sua eliminação de iure condendo – entendimento que o autor mantém perante as normas paralelas dos nos 1 e 2 do artº 204º do Código Contributivo (Dos Privilégios Creditórios: Regime Jurídico e sua Influência no Concurso de Credores, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2015, pp. 274-287, em especial pp. 280-285 e 287). Nesse entendimento de SALVADOR DA COSTA, aliás, se tem louvado, para resolver hipóteses de graduação de créditos idênticas à que se configura nos presentes autos, a jurisprudência mais recente publicada sobre a matéria, designadamente os Acs. RP de 6/5/2010 e RG de 11/1/2011 (respectivamente, Procs. 744/08.9TBVFR-E.P1 e 881/07.7TBVCT-M.G1, in www.dgsi.pt).

Consequentemente, a solução a que aderimos impõe, no caso presente, a seguinte graduação: em 1º lugar, os créditos garantidos por penhor; em 2º lugar, os créditos privilegiados dos trabalhadores da insolvente; em 3º lugar, os créditos privilegiados da Segurança Social (e depois, sucessivamente, os créditos comuns e os créditos subordinados).

Conclui-se, pois, por solução concordante com as graduações impugnadas no recurso e efectuadas pelo tribunal a quo (quanto ao produto da venda de acções da empresa «…» apreendidas nos autos e garantidas por penhores constituídos a favor dessa mesma empresa – verbas nos 6 e 7), mas com fundamentação parcialmente diversa da expendida na decisão recorrida. E assim deverá improceder integralmente a presente apelação.

Em suma: concorda-se com o juízo decisório formulado pelo tribunal a quo, pelo que não merece censura a sentença de graduação de créditos sob recurso.
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III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a presente apelação, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelo apelante.
Évora, 05 / 11 / 2015
Mário António Mendes Serrano
Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes (dispensei o visto)
Mário João Canelas Brás (dispensei o visto)