Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
300/15.5T9TVR.E1
Relator: ANTÓNIO CONDESSO
Descritores: REGIME GERAL DAS INFRACÇÕES TRIBUTÁRIAS
NOTIFICAÇÃO
COIMA
Data do Acordão: 12/17/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
A omissão do valor da coima a pagar na notificação a que alude a al. b) do nº 4 do artº 105º do R.G.I.T. não invalida tal notificação.
Decisão Texto Integral:

I- Relatório

Os arguidos (…), Ld.ª, (…) e (…) foram absolvidos da prática, em co-autoria, de um crime de Abuso de Confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelo art. 107º, nºs 1 e 2 do RGIT, com referência ao art. 105º, nº 1 do mesmo diploma.

Em sede cível foi julgada extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos do disposto no artigo 277º, al. e), do CPC por o ISS, IP já se encontrar ressarcido da totalidade do crédito peticionado.


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Inconformado recorre o MP, suscitando, em síntese, as seguintes questões:

- impugnação da matéria de facto (em exclusivo matéria relativa à arguida (...));

- relevância jurídica das notificações previstas no art. 105º, nº4, al. b) RGIT.


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Os arguidos responderam ao recurso pugnando pela respectiva improcedência.

Nesta Relação a Exª PGA emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

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II- Fundamentação

A- Factos provados

“1. A “…, Ld.ª” é uma sociedade comercial por quotas, com sede social na (…), que se dedica à instalação, manutenção, reparação e assistência de infra-estruturas de telecomunicações, electricidade, redes de gás e redes estruturadas. Movimentação de terras.

2. Os arguidos (…) são sócios e gerentes da sociedade arguida, obrigando-se a sociedade com a assinatura dos dois gerentes.

3. A gerência da sociedade arguida tem sido exercida desde a constituição da sociedade até à presente data unicamente pelo arguido (…).

4. A sociedade arguida encontra-se inscrita como contribuinte na Segurança Social nos regimes contributivos “000”, correspondente ao Regime Geral dos Trabalhadores por conta de outrem e “ 669”, correspondente ao regime dos membros dos órgãos estatutários.

5. A sociedade arguida, no exercício da sua actividade, entre os meses de Outubro e Dezembro de 2008, Janeiro a Março e Setembro de 2009, Abril, Maio e Julho a Dezembro de 2010, Janeiro a Dezembro de 2011, Janeiro a Dezembro de 2012, Janeiro a Março e Maio a Agosto de 2013, procedeu ao desconto das contribuições devidas à Segurança Social nos salários dos seus trabalhadores, num total global de retenções no valor de € 4 332,76 (quatro mil trezentos e trinta e dois euros e setenta e seis cêntimos).

6. A sociedade arguida, no exercício da sua actividade, entre os meses de Janeiro a Junho, Agosto, Outubro e Dezembro de 2008, Janeiro a Março e Setembro de 2009, Abril, Maio e Julho a Dezembro de 2010 e Janeiro de 2011 a Agosto de 2013, procedeu ao desconto das contribuições devidas à Segurança Social referentes às remunerações pagas ao seu gerente (...) Correia, num total global de retenções no valor de € 2 176,83 ( dois mil, cento e setenta e seis euros e oitenta e três cêntimos);

7. A sociedade arguida procedeu à entrega das declarações de remunerações dos trabalhadores ao seu serviço e do gerente, dentro do prazo legal, nos períodos indicados.

8. Porém, após ter descontado e retido as referidas contribuições/ cotizações relativas ao regime geral dos trabalhadores por conta de outrem e aos órgãos estatutários, a sociedade arguida não procedeu à entrega dos montantes devidos à Segurança Social, no valor total de € 6 509, 59 (seis mil, quinhentos e nove euros e cinquenta e nove cêntimos), nem até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitavam, nem nos 90 dias imediatos após o decurso daquelas datas, nem no prazo de 30 dias após notificação para o efeito, notificações essas efectuadas quer a ambos os arguidos quer à sociedade.

9. A arguida (…), Ld.ª, efectuou pagamentos por conta do valor supra aludido, mantendo em dívida em 25 de Janeiro de 2016 à Segurança Social o montante global de € 5 737,66 (cinco mil setecentos e trinta e sete euros e sessenta e seis cêntimos), conforme documento de fls. 237, que se dá por integralmente reproduzido.

10. A sociedade arguida apropriou-se, fazendo seus, os montantes devidos à Segurança Social relativos aos salários efectivamente pagos e recebidos pelos seus trabalhadores e sócio gerente, bem sabendo o arguido (...) que tais valores não lhe pertenciam, e que deviam ser entregues à Segurança Social.

11. Nos períodos temporais supra aludidos, o arguido (…) actuou em representação, por conta e no interesse da sociedade arguida.

12. O arguido (...), agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

13. A arguida (...) sabia que a falta de entrega das referidas deduções à segurança social era proibida e punida por lei.

14. Nos períodos referidos em 5. e 6. a sociedade arguida atravessou dificuldades económicas e financeiras relacionadas com a falta de pagamento dos clientes, tendo o arguido (...) optado por utilizar as quantias devidas à segurança social no pagamento de outras despesas da sociedade, nomeadamente, no pagamento dos salários aos trabalhadores na expectativa de melhores dias.

15. Os valores referidos em 5. e 6. e respectivos juros de mora encontram-se integralmente pagos pela arguida (…) desde 31-03-2018.

16. Os arguidos não têm antecedentes criminais.

17. Os arguidos (...) e (...) são casados entre si.

18. Vivem em casa arrendada e pagam de renda 600 euros mensais.

19. Têm uma despesa mensal fixa com gás, água, Meo e luz de cerca de 350 euros.

20. Têm 3 filhos de 15, 17 e 22 anos de idade, todos estudantes.

21. Despendem com habitação da filha de 22 anos, a estudar psicologia, a quantia de 100 euros mês.

22. O arguido (...) trabalha e exerce as funções de gerente na sociedade (…), auferindo um vencimento líquido de 800 euros.

23. A arguida (...) trabalha como empregada de escritório numa empresa de contabilidade e aufere um vencimento líquido de 695 euros mensais”.


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B- Factos não provados

“24. A arguida (...) é gerente de facto da sociedade arguida desde a constituição da sociedade até à presente data.

25. Os arguidos (...) e (…) apropriaram-se, fazendo seus, dos montantes devidos à Segurança Social relativos aos salários efectivamente pagos e recebidos pelos seus trabalhadores e sócio gerente.

26. Nos períodos temporais aludidos em 4. e 5. , os arguidos (...) e (...) actuaram em representação, por conta e no interesse da sociedade arguida de acordo com um plano que haviam gizado entre si, em comunhão de esforços e desígnios e com o intuito concretizado de não procederem à entrega dos montantes devidos em sede de contribuições para a Segurança Social, nos meses em que a sociedade não dispusesse de valores monetários suficientes às suas necessidades de tesouraria, designadamente ao pagamento dos salários dos seus trabalhadores e dívidas de outros credores”.

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C- Motivação da decisão de facto

“A convicção do tribunal quanto a matéria de facto provada e não provada baseou-se na análise conjugada à luz do princípio da normalidade e das regras da experiência comum de toda a prova produzida e examinada em audiência de julgamento, designadamente:

. nas declarações dos arguidos (…);

. no depoimento da testemunha (…), técnica superior da Segurança Social;

. no depoimento das testemunhas (…), trabalhadores da sociedade arguida nos períodos referidos em 5. e 6. dos factos provados;

. nos mapas de apuramento de divida de fls. 40 a 41;

. na certidão da sociedade arguida de fls. 51 a 58;

. nos extractos de remunerações de fls. 66 a 167, donde resulta que a arguida (...) nunca recebeu ordenado de gerência;

. nos recibos de remunerações de (…) a fls. 176 e 211, donde resultam os valores retidos nos vencimentos de trabalhadores;

. nas notificações de fls. 184 a 186, donde resulta a notificação dos arguidos para pagamento das contribuições/quotizações no montante de € 6.509,59 e dos juros de mora respectivos, nos termos e para os efeitos do artigo 105º n.º 4, al. b), do RGIT;

. na informação a fls. 237.

. nos CRC dos arguidos a fls. 466, 467 e 468;

. nas declarações prestadas pelos Arguidos (...) e (...) sobre as suas condições pessoais e económicas que mereceram credibilidade.

Concretizando: A resposta à matéria descrita em 1. e 2 dos factos provados fundou-se na análise da certidão do registo comercial da sociedade arguida.

Relativamente à matéria descrita em 3. e 11. fundou-se na análise conjugada das declarações dos arguidos (...) e (...), dos depoimentos das testemunhas (…), dos mapas de apuramento de divida e dos extractos de remunerações, donde resultou , sem sombra de dúvidas, que a gerência da sociedade, desde a sua constituição até à presente data, foi sempre exercida unicamente pelo arguido (...), nunca tendo a arguida (...) actuado em representação, por conta ou no interesse da sociedade.

A matéria descrita em 4., 5. e 6. resultou das declarações prestadas pelo arguido (...) que confirmou ter procedido ao desconto das contribuições/quotizações, nos valores e períodos aí descritos, dos depoimentos da testemunhas (...), da análise dos extractos de remunerações respectivos e dos recibos de vencimento a fls. 176 e 211.

A matéria descrita em 7. resultou dos extractos das remunerações a fls. 66 a 167.

Quanto à matéria descrita em 8., 10. e 14., resultou das declarações do arguido (...) que confirmou não ter entregue tais valores à Segurança Social nos prazos mencionados em virtude das dificuldades económicas e financeiras que a sociedade atravessou (dificuldades corroboradas pelas testemunhas (...) motivadas pela falta de pagamentos dos clientes, tendo optado por dar prioridade ao pagamento dos salários aos trabalhadores e de outras despesas na expectativa da situação da empresa vir a melhorar.

A matéria descrita em 9. resultou da análise do documento de fls. 237 como aí se refere.

Relativamente à matéria constante do ponto 12. resultou das declarações do arguido (...) e do exercício da própria gerência.

A matéria constante do ponto 13. das declarações prestadas pela arguida (...) que confirmou ter conhecimento da falta de entrega das deduções em causa no âmbito das funções que exercia e exerce por conta da empresa de contabilidade que presta serviços à sociedade arguida, sendo do seu conhecimento que a falta de entrega era proibida e punida por lei.

No que se refere à matéria do ponto 15. teve-se em conta a informação prestada a fls. 237.

A matéria relativa aos antecedentes criminais e à situação pessoal e económica dos arguidos fundou-se na análise dos respectivos CRC e nas declarações prestadas pelos arguidos (...).

Relativamente à matéria de facto não provada, resultou da ausência de prova sobre a mesma (ponto 25.) e da prova produzida em sentido contrário (pontos 24 e 26)”.


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Apreciando

1- Impugnação da matéria de facto

Entende o MP que foi mal julgada a matéria de facto no tocante à arguida (…), nomeadamente o constante dos pontos 24 e 26 dos factos não provados, impondo-se, igualmente, a correcção dos pontos 3 e 11 a 14 dos factos provados por forma a incluírem a arguida.

Invoca, de seguida, as concretas provas em que estriba o recurso nesta sede: desde logo as declarações da própria arguida nos trechos consignados, donde entende que se extrai que a arguida tomou parte decisiva na decisão de não efectuar a entrega dos montantes devidos à Segurança Social e que tinha conhecimento dos destinos da gestão da sociedade e depois no conteúdo da certidão do registo comercial junta a fls. 9 a 11, da qual resulta que são indicados como gerentes ambos os arguidos (…), a que acresce o facto de a sociedade se obrigar com a intervenção de dois gerentes.

Propugna, por isso, pela eliminação do ponto 24 dado como não provado por consubstanciar matéria conclusiva ou de direito.

Pela consideração como provado da matéria do ponto 26.

Pela alteração do ponto 3 dos provados do qual passaria a constar «Desde o início da sociedade, o arguido (...) tem sido o gerente que tem tomado decisões quanto aos trabalhadores a contratar, clientes a angariar e serviços a prestar, cabendo à arguida (…) a gestão da sociedade no que diz respeito aos aspectos administrativos da mesma, nomeadamente processamento de salários, lançamento de dados na contabilidade, inserção de facturas na contabilidade para efeitos de preenchimento da declaração de IRC e de IVA, indicação dos descontos a realizar à Segurança Social relativos aos salários dos trabalhadores e membros de órgãos sociais».

E com a correcção dos pontos 11 a 14 dos factos provados nos seguintes termos:

11. Nos períodos temporais supra aludidos, o arguido (…) e a arguida (...) actuaram em representação, por conta e no interesse da sociedade arguida.

12. Os arguidos (...) e (...) agiram livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

13. A arguida (...) e o arguido (...) sabiam que a falta de entrega das referidas deduções à segurança social era proibida e punida por lei.

14. Nos períodos referidos em 5. e 6. a sociedade arguida atravessou dificuldades económicas e financeiras relacionadas com a falta de pagamento dos clientes, tendo o arguido (...) e a arguida (...) optado por utilizar as quantias devidas à segurança social no pagamento de outras despesas da sociedade, nomeadamente, no pagamento dos salários aos trabalhadores na expectativa de melhores dias.

Supletivamente, no tocante a esta questão, mais alega que acaso se entenda dar apenas como provado que a arguida (…) sabia que as contribuições não foram entregues à Segurança Social e que, não obstante sabê-lo, omitiu o seu dever de vigilância (factualidade que resulta desde logo das declarações da mesma). Neste caso, sempre poderíamos mobilizar o entendimento plasmado no Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 12-10-2016 (processo 664/13.5TAPRD.P1, relator Manuel Soares, disponível em www.dgsi.pt), no qual se concluiu que «A omissão dolosa (artº 14º CP) reside na vontade consciente de abstenção da actividade devida, no conhecimento da possibilidade de verificação do resultado típico e na aceitação intencional ou necessária desse resultado ou na mera conformação com a sua produção. IV- Comete tal crime também o gerente da sociedade se o ilícito criminal (não entrega da contribuição à Segurança Social) for praticado por outra pessoa a quem ele permitiu que tomasse a decisão (de entrega ou não entrega), por omissão do seu dever de vigilância ou controlo (artº 11º 1 CP)».

Assim, caso não se concorde com o entendimento do Ministério Público supra exposto no ponto C.1 de que a decisão de não entrega foi decidida por ambos os arguidos em conjunção de intentos, sempre terá a Relação de dar como provado que a arguida (…) - sabendo que os montantes não eram pagos (aliás como a própria assumiu em sede de declarações em audiência de discussão e julgamento acima transcritas no ponto C.1), omitiu o seu dever de vigilância e permitiu que tal não entrega fosse concretizada, pelo que deverá - nessa hipótese que agora se equaciona - a arguida sempre ser condenada pela prática do crime em apreço.

Ora, perante o invocado, procedemos à audição integral da gravação do julgamento, com especial acuidade nas declarações prestadas pela arguida e afigura-se-nos indubitável que o MP tem inteira razão na generalidade do que invoca, afrontando claramente a lógica e as regras da experiência o decidido pelo Tribunal a quo em matéria de facto relativamente ao envolvimento da arguida na sociedade, impondo-se, por conseguinte, a alteração da matéria de facto.

O que se apreende das declarações da arguida, como bem refere o recorrente, é que o negócio da sociedade relativamente aos aspectos técnicos (contratação de trabalhadores, contacto com clientes, prestação de serviços) era da responsabilidade do arguido (…), mas que na parte administrativa a arguida (…) também tinha conhecimento de tudo o que se passava, tendo igualmente uma palavra a dizer. Não estamos perante uma daquelas situações em que a cônjuge do gerente apenas é indicada para tal cargo com efeitos meramente decorativos. No presente caso, a arguida (...) era mais do que “uma mera peça decorativa” na certidão permanente do registo comercial: era ela que tratava e lidava com toda a contabilidade da empresa, que verificava a existência de dívidas à Autoridade Tributária e Aduaneira e à Segurança Social, informando o marido de tal facto, assinando todos os cheques em conjunto com o marido enquanto os poderam utilizar e decidindo ambos em conjunto pelo não pagamento à Segurança Social das quantias aqui em causa.

Acresce que da mesma forma teria razão o MP, acaso se impusesse recorrer ao seu argumento supletivo, estribado na correcta jurisprudência do Ac. TRP de 12-10-2016 (pr. 664/13.5TAPRD.P1).

Daí que proceda integralmente o recurso nesta sede alterando-se a matéria de facto no sentido muito correctamente propugnado pelo recorrente, explanado acima, a que urge somente acrescentar a correcção do ponto 10 dos factos provados, substituindo “o arguido (...)” por “os arguidos (...) e (...)”.


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2- Relevância jurídica das notificações previstas no art. 105º, nº4, al. b) RGIT e medida das penas

O Tribunal a quo, para além de absolver a arguida na decorrência da factologia que apurou, acabou por absolver igualmente o arguido e a sociedade mediante a seguinte ponderação:

“… Cometeram, assim, os arguidos (…), Lda. e (...), em autoria material, um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 30º, nº 2, do Código Penal e 6.º, 7.º, n.ºs 1 e 3, 107.º e 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias.

Consumado o crime, vejamos agora se se verificam as condições objectivas de punibilidade prevista no artigo 105º n.º 4, do RGIT.

Conforme se provou a sociedade arguida não procedeu à entrega dos montantes devidos à Segurança Social, no valor total de € 6.509,59 (seis mil, quinhentos e nove euros e cinquenta e nove cêntimos), nem até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitavam, nem nos 90 dias imediatos após o decurso daquelas datas, nem no prazo de 30 dias após notificação para o efeito, bem sabendo que tais valores não pertenciam a sociedade arguida e que deveriam ser entregues à Segurança Social.

Não se provou, no entanto, nem consta elencado na acusação, que os arguidos tenham sido notificados para, no prazo de 30 dias, procederem ao pagamento das prestações comunicadas, “acrescidas dos juros respectivos e do valor da coima aplicável”, nos termos do artigo 105º, 4º, b) do RGIT. Como resulta da análise das notificações de fls. 184 e 185, os arguidos foram notificados unicamente para, no prazo de 30 dias, procederem ao pagamento da divida à Segurança Social relativa às cotizações retidas e respectivos juros de mora, omitindo as notificações o pagamento da coima aplicável.

E visando tal notificação dar ao devedor uma nova ou última oportunidade para pagar (agora com os juros de mora respectivos e o valor da coima aplicável), permitindo-lhe escapar à punição criminal, não tendo os arguidos sido devidamente notificados, nos termos e para os efeitos da al. b), do nº 4, do artigo 105º, do RGIT, não lhes foi dada a possibilidade de poderem vir a optar, de forma esclarecida, livre e consciente, pelo cumprimento, ou não, daquela notificação…

Pelo que a consequência a extrair sempre seria a absolvição dos arguidos, pela não verificação de tal condição de punibilidade como decidiu o citado Acórdão da Relação do Porto de 1-6-2011...”.

O MP insurge-se contra tal decisão, invocando, em síntese, o seguinte:

“No que diz respeito ao preenchimento da condição objectiva de punibilidade, entendemos que também deve ser revogada a parte da sentença que decidiu que as notificações efectuadas não respeitaram o disposto no art.º 105.º, n.º4, al. b) do RGIT.

Não concordamos com o teor de tal decisão, uma vez que em nosso entender as notificações realizadas nos dias 16-01-2014 (fls. 42) e 20-07-2015 (cfr. fls. 184, 185 e 186) respeitaram a finalidade prevista na norma citada.

Com efeito, a condição objectiva de punibilidade ínsita no citado art.º 105.º, n.º4, al. b) do RGIT foi plasmada em norma com o objectivo de impelir o agente faltoso e omissivo a agir e a ter uma atitude activa, diligenciando junto dos Serviços da Segurança Social para proceder ao pagamento das quantias em dívida e regularização da sua situação.

Tal norma visa dar a conhecer ao arguido faltoso omissivo de que existe uma norma legal que lhe permite conceder uma oportunidade de cumprir com as suas obrigações e de não incorrer dessa forma na prática de um crime.

Acresce que as notificações efectuadas contêm os elementos essenciais para que se cumpra a finalidade da norma em apreço:

a. Indicação da norma legal aplicável – art. 105º, nº4, al. b) do RGIT;

b. Indicação do tipo de crime em causa;

c. Indicação dos períodos a que diz respeito a quantia em dívida;

d. Quantias em dívidas à Segurança Social;

e. Informação do prazo concedido - 30 dias - para regularizar a situação;

f. Indicação do que o agente deverá fazer para regularizar a situação, ou seja, deslocar-se aos Serviços da Segurança Social.

Considerando o texto das notificações, temos de concluir que a finalidade pretendida pelo art. 105º, nº4, al. b) do RGIT foi atingida, fornecendo aos arguidos (notificando-os em nome pessoal e enquanto representantes da sociedade arguida) todas as informações indispensáveis para que os mesmos regularizassem a sua situação”.

Ora, analisando a questão afigura-se-nos, mais uma vez, ter inteira razão o MP, encontrando-se o por si defendido de acordo com a grande maioria da jurisprudência sobre a matéria.

Aliás, esta mesma questão concreta já foi analisada nesta Relação de Évora, por exemplo, no Ac. TRE de 12-7-2018, pr. 646/12.4 TATVR.E1, no qual pode ler-se:

“IV. Porém, a falta de referência à coima aplicável, bem como a omissão de outros dados, não torna inexistente ou inválida a notificação dos obrigados fiscais enquanto pressuposto da condição de punibilidade prevista na al. b) do nº4 do art. 105.º do RGIT, desde que nela se identifique suficientemente a obrigação fiscal incumprida, bem como o prazo para a regularização e que esta regularização impedirá a instauração ou o prosseguimento do procedimento criminal respetivo.

V. Assim, a notificação prevista na al. b) do nº4 do art. 105.º do RGIT tem-se por realizada, enquanto ato instrumentalizado à verificação da condição de punibilidade ali estabelecida, apesar de incompleta, se o obrigado nada fizer com vista à regularização da obrigação incumprida, como sucedeu in casu.

No caso concreto, o tribunal a quo considerou que faltando à notificação de fls. 167 a menção do valor de coima aplicável, não lhes foi dada [aos arguidos] a possibilidade de poderem vir a optar, de forma esclarecida, livre e consciente, pelo cumprimento, ou não, daquela notificação, não se mostra[ndo]preenchida aquela condição de punibilidade relativamente a ambos os arguidos, o que se traduz na não punibilidade das condutas apuradas.

Daquela notificação consta o valor total dos montantes declarados e não entregues, bem como a referência genérica aos juros legais, pelo que apenas se omite totalmente a referência à coima aplicável.

Pode, então, afirmar-se com o tribunal recorrido, que aquela omissão corresponde à omissão da notificação dos obrigados a que se refere a al. b) do nº4 do art. 105º ex vi do art. 107º, do RGIT?

… entendemos que não, pois a falta de referência à coima aplicável, bem como a omissão de outros dados, não torna inexistente ou inválida a notificação dos obrigados fiscais, enquanto pressuposto da condição de punibilidade prevista na al. b) do nº4 do art. 105º do RGIT, desde que nela se identifique suficientemente a obrigação fiscal incumprida, bem como o prazo para a regularização e que esta regularização impedirá a instauração ou o prosseguimento do procedimento criminal respetivo.

É este o sentido e alcance da notificação enquanto ato instrumentalizado à verificação da condição de punibilidade prevista naquele mesmo preceito, pelo que a mesma tem-se por verificada se o obrigado nada fizer com vista à regularização da obrigação incumprida, como sucedeu in casu. A incompletude da notificação pode implicar a necessidade de completar ou complementar a notificação com outros atos da administração ou do titular da ação penal, para que o obrigado possa regularizar a situação nos termos fixados na al. b) do nº4 do art. 105º do C. Penal, com eventuais reflexos na contagem do prazo, mas não equivale de modo algum ao comportamento cumpridor incompatível com a condição de punibilidade legalmente prevista.

Com efeito, não está em causa liberdade de opção, livre e consciente pelo cumprimento ou o incumprimento das obrigações já vencidas ou da sanção administrativa daí decorrente, bem como dos juros de mora respetivos, como se diz na sentença recorrida, mas antes uma “última” oportunidade de o obrigado regularizar a sua situação perante a segurança social (ou o fisco) sem incorrer na aplicação da pena correspondente ao ilícito penal já consumado, pelo que, na essência, é o conhecimento dos termos nucleares dessa faculdade legal que a notificação deve dar-lhe a conhecer.

Tão pouco pode dizer-se que a incompletude da notificação influi negativamente na sua motivação para cumprir, pois se o obrigado não procurou regularizar a sua situação sem contar, à partida, com a coima omitida, nada permite inferir que o teria feito se da notificação resultasse o “pagamento” de uma quantia mais elevada. Antes pelo contrário.

Em todo o caso, seria insustentável do ponto de vista da política criminal que a mera omissão ou incompletude de algum dos elementos da notificação, equivalesse, para efeitos penais, à entrega das prestações descontadas e não entregues à segurança social, acrescida da coima aplicável e dos juros de mora correspondentes, máxime quando os arguidos nada fazem junto da segurança social ou no processo criminal já instaurado para efetuar as prestações a que se reporta a al. b) do nº do art. 105º do RGIT como se verifica in casu.

Concluímos, assim, que ao absolver os arguidos, o tribunal a quo violou o disposto na al. b) do nº4 do art. 105º do RGIT pelo que se impõe revogar aquela decisão e, em substituição, proceder à determinação das penas a aplicar, por força da jurisprudência fixada no AFJ 4/2016, uma vez que apesar de ser absolutória, a sentença recorrida menciona os factos indispensáveis a estas operações”.

Subscrevendo-se tal jurisprudência, importa aqui, também, proceder à determinação das penas, uma vez que os factos apurados revelam o preenchimento do tipo de crime constante da acusação por parte de todos os arguidos, encontrando-se da mesma forma elencados os elementos indispensáveis para o efeito.

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Propugna o MP pela aplicação de penas de 80 dias de multa aos arguidos (...) e (...) e de 180 dias à sociedade arguida, alegando que:

“… tendo os arguidos procedido ao pagamento da quantia em dívida, não tendo os mesmos nunca sido condenados pela prática de crime da mesma natureza, cremos que a aplicação de pena de multa será suficiente para satisfazer as exigências de prevenção especial, que no caso são reduzidas face às razões aludidas. Pese embora as razões de prevenção geral sejam elevadas, face aos inúmeros casos de incumprimento, entendemos que a pena de multa ainda satisfará tais exigências, tanto mais que a norma em apreço prevê a possibilidade de aplicação de pena de multa.

No que diz respeito à medida concreta da pena aplicável aos arguidos (...) e (...), sendo aplicável uma moldura penal de 10 até 360 dias de multa, deverá ser aplicada uma pena inferior a um terço do máximo aplicável, no caso de 80 dias de multa, a cada um dos arguidos singulares.

Relativamente à sociedade comercial arguida, considerando o disposto no art. 105º, nº1, art. 107º e art. 12º, nº3 do RGIT, sendo a moldura penal aplicável ao caso de 20 a 720 dias, deverá ser aplicada a pena concreta de 180 dias de multa”.

Mostrando-se tal ponderação efectivamente adequada e equilibrada ante a factologia apurada, subscreve-se a mesma, restando somente fixar, ainda, o quantitativo diário das multas, o que deverá ser feito em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais, entre € 1 e € 500 para as pessoas singulares e € 5 e € 5000 para pessoas coletivas, de acordo com o art. 15º, nº1 do RGIT.

E perante a matéria apurada em 18 a 23, fixa-se a diária em € 3,00 relativamente aos arguidos (...) e (...) e no mínimo de € 5,00 no tocante à sociedade arguida uma vez não ter antecedentes criminais e mostrar-se já paga a totalidade da dívida à segurança social.

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III- Decisão

Nos termos expostos, acordam os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar procedente o recurso interposto pelo MP, revogando a sentença absolutória recorrida, e decidindo:

- alterar a matéria de facto nos termos indicados acima;

- Condenar os arguidos, (...) e (...) , pela prática de um crime continuado de abuso de confiança contra a segurança social p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 107º e 105º nº1 do RGIT, nas penas de 80 dias de multa, à razão diária de € 3,00, a cada um;

- Condenar, igualmente, a sociedade arguida, (…), Ld.ª, pela prática de um crime continuado de abuso de confiança contra a segurança social p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 107º e 105º nº1 do RGIT, na pena de 180 dias de multa, à razão diária de € 5,00.

Sem tributação.

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Évora, 17/12/2020


António Condesso

Ana Bacelar