Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
26005/16.1YIPRT-E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
Data do Acordão: 05/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A decisão a que se refere o nº 4 do artigo 17º-C do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas suspende, quanto à empresa que se encontra em situação económica difícil ou de insolvência meramente iminente, as acções declarativas destinadas à cobrança de dívidas, ao abrigo da disciplina precipitada no disposto no nº 1 do artigo 17º-E do mesmo diploma.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo nº 26005/16.1YIPRT-E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo Local Cível de Benavente – J1
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
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I – Relatório:
Na presente oposição ao requerimento de injunção proposto por “Grupo (…), SA” contra “Sociedade de Construções (…), SA”, o Tribunal «a quo» declarou cessada a suspensão da instância e a requerida não se conformou com essa decisão.
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A decisão recorrida tem o seguinte conteúdo: «Tendo sido recusada a homologação do plano de recuperação, declaro cessada a suspensão da instância – cf. art.º 17.º-E, n.º 1, art.º 17.º-G, n.º 2, aplicado ex vi do art.º 17.º-F, n.º 8, do CIRE».
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Inconformado com tal decisão, a recorrente apresentou recurso de apelação e formulou as seguintes conclusões:
1 – O Recorrido intentou em 10/03/2016 injunção que deu lugar aos presentes autos, peticionando a quantia de € 77.463,23, acrescida de juros de mora à taxa legal, ou seja, a acção configura uma típica acção de cobrança.
2 – Na sequência da decisão de recusa de homologação no Processo Especial de Revitalização (PER) nº 6628/16.0T8VNG, a Recorrente apresentou-se a um outro (e novo) Processo Especial de Revitalização que pende, sob o nº 4689/17.3T8VNG, pelo Tribunal da Comarca do Porto – Vila Nova de Gaia – Juízo do Comércio – Juiz 2, e se encontra a correr os seus normais trâmites.
3 – Disso deu a Recorrente conhecimento aos autos pugnando pela manutenção da suspensão dos mesmos nos termos do disposto no nº 1, do art. 17º-E do CIRE, conforme requerimento apresentado em 19/06/2017.
4 – Em 15/09/2017 foi proferido despacho que determinou: “…. Que se solicite ao processo 4689/17.3T8VNG, corre os seus termos pelo Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia Juiz 2, que informe qual o estado em que se encontra.
Solicite a mesma informação ao processo anteriormente identificado”.
5 – Na sequência de tal despacho, foi junto aos autos informação que o Processo nº 4689/17.3T8VNG se encontra a aguardar resposta às impugnações pelo Sr. Administrador de Insolvência, sendo certo que ainda não foi junto qualquer plano de recuperação.
6 – Não obstante, o Tribunal a quo declarou cessado a suspensão da instância, determinando, em consequência a prossecução dos autos, com fundamento na recusa de homologação do plano no âmbito do – o que, como se disse, não ocorreu no processo nº 4689/17.3T8VNG que se encontra pendente (mas sim no anterior processo nº 6628/16.0T8VNG).
7 – A presente instância não pode, assim, prosseguir por a tal obstar a norma consagrada no nº 1, do artigo 17º-E do CIRE, atenta a pendência do processo nº 4689/17.3T8VNG.
8 – Nestes termos, e com fundamento em todo o exposto, deve a acção continuar suspensa até ao termo do processo nº 4689/17.3T8VNG, que corre termos no Tribunal da Comarca do Porto – Vila Nova de Gaia – Juízo do Comércio – Juiz 2.
9 – O que, em revogação da decisão recorrida deverá ser declarado e se requer.
10 – Foi violado o disposto no nº 1, do art. 17º-E do CIRE.
Termos em que, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, deve substituir-se a decisão recorrida em conformidade com as conclusões supra.
Assim se fazendo Justiça».
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Não foram apresentadas contra-alegações. *
II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do NCPC).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação da existência de fundamento para suspender a presente acção ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 17º-E do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
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III – Dos factos apurados:
Dos elementos constantes dos autos e da análise do histórico do processo, com interesse para a decisão da apelação, deve ser considerada a seguinte factualidade:
1 – O Recorrido intentou em 10/03/2016 injunção que deu lugar aos presentes autos, peticionando a condenação da Recorrente na quantia de € 77.463,23, acrescida de juros de mora à taxa legal.
2 – A Recorrente apresentou-se ao Processo Especial de Revitalização (PER), que, sob o nº 6628/16.0T8VNG, correu termos pelo Tribunal da Comarca do Porto – Vila Nova de Gaia – Instância Central – 2ª Secção de Comércio – J2.
3 – Em 16/09/2016, foi proferido despacho que decretou a suspensão da instância, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 17º-E e alínea c) do nº 3 do artigo 17º-C, ambos do CIRE.
4 – No referido Processo Especial de Revitalização foi proferida sentença que recusou a sua homologação.
5 – Posteriormente, a Recorrente se apresentou a um outro Processo Especial de Revitalização que pende, sob o nº 4689/17.3T8VNG, no Tribunal da Comarca do Porto – Vila Nova de Gaia – Juízo do Comércio – Juiz 2.
6 – Disso deu conhecimento nos presentes autos, solicitando a manutenção da suspensão dos mesmos nos termos do disposto no nº 1 do artigo 17º-E do CIRE, conforme requerimento apresentado em 19/06/2017.
7 – Em 15/09/2017 foi proferido o despacho com o seguinte teor: «Atento o teor do requerimento que antecede, determino que, se solicite ao processo 4689/17.3T8VNG, corre os seus termos pelo Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia, Juiz 2, que informe qual o estado em que se encontra. Solicite a mesma informação ao processo anteriormente identificado».
8 – Na sequência de tal decisão, foi prestada informação sobre o estado de tais processos de revitalização. Em relação ao processo nº 6628/16.0T8VNG foi dada nota da recusa da sua homologação. Enquanto relativamente ao processo nº 4689/17.3T8VNG se informou que o mesmo se encontrava a aguardar resposta às impugnações pelo Sr. Administrador de Insolvência.
9 – Nessa sequência, o Tribunal «a quo» declarou cessada a suspensão da instância, determinando, em consequência, a prossecução dos autos, com fundamento na recusa de homologação do plano.
10 – No processo nº 4689/17.3T8VNG foi reconhecido à recorrida o crédito reclamado nos presentes autos e por decisão datada de 12/02/2018 foi homologado o plano de revitalização, decisões essas que foram impugnadas por via recursal, a que por despacho de 06/04/2018 foi atribuído efeito meramente devolutivo.
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IV – Fundamentação:
O processo especial de revitalização é um processo autónomo e pré-insolvencial que está regulado nos artigos 17º-A a 17º-I do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Esta medida tem a sua origem na revisão do Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa introduzida pela Lei nº 16/2012, de 20 de Abril, em cumprimento do acordado no “Portugal Memorandum of Understanding on Specific Economic Policy Conditions” celebrado entre a República Portuguesa e a União Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional.
Este mecanismo destina-se a permitir à empresa que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja susceptível de recuperação, estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização, tal como se extraí da simples leitura do nº 1 do artigo 17º-A do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Este processo traduz-se num instrumento processual, sobretudo de cariz negocial, que foi instituído pelo legislador com o objectivo específico de contribuir para a recuperação de uma empresa que seja ainda passível de viabilização económico-financeira. Daquela definição legal supra transcrita resulta que o processo especial de revitalização prossegue o objectivo imediato de negociação entre o devedor e os seus credores e tem como desiderato final a conclusão do acordo de revitalização.
A instituição deste processo especial representa uma verdadeira mudança de paradigma do regime da insolvência com vista à prossecução do interesse público, ligado ao funcionamento da economia e à satisfação dos interesses colectivos dos credores, de evitar a liquidação de patrimónios e o desaparecimento de agentes económicos.
A decisão a que se refere o nº 4 do artigo 17º-C[1] obsta à instauração de quaisquer acções para cobrança de dívidas contra a empresa e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto à empresa, as acções em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação [nº 1 do artigo 17º-E do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas].
É opinião maioritária da jurisprudência [2] [3] e da doutrina[4] [5] [6] [7] [8] [9] [10] [11] [12] [13] [14] que no conceito de acções para cobrança de dívidas estão abrangidas não apenas as acções executivas para pagamento de quantia certa, mas também as acções declarativas em que se pretenda obter a condenação do devedor no pagamento de um crédito que se pretende ver reconhecido.
Carvalho Fernandes e João Labareda comentam que o despacho em questão obsta à instauração de quaisquer novas acções dirigidas à cobrança de dívidas pelas quais responde o devedor; além disso, importa a suspensão das que estiverem em curso com idêntica finalidade, incluindo os processos em que tenha já sido proferida sentença declaratória[15].
Madalena Perestrelo de Oliveira advoga que o objectivo deste processo é facultar ao devedor o espaço necessário para levar a cabo a recuperação, com a consequente proibição da prossecução de outras acções, até das próprias acções executivas, como forma de protecção do devedor que fica com a faculdade de tentar a recuperação da empresa, liberto de outras tentativas de os credores se fazerem pagar e da pressão do mercado que os levou até aquela situação económica depauperada e de insolvibilidade[16] [17].
É também nosso entendimento que a expressão «acções para cobrança de dívidas» abrange não apenas as acções executivas para pagamento de quantia certa, mas contempla igualmente as causas declarativas em que se pretenda obter a condenação do devedor no pagamento de um crédito que se pretende ver reconhecido[18] [19].
Por tudo isto, a nosso ver, por força dos objectivos primários inscritos na legislação vigente, em coligação com a filosofia legal presente na introdução da medida especial de recuperação, a expressão acções para cobranças de dívidas engloba qualquer acção judicial – declarativa ou executiva – destinada a exigir o cumprimento de um direito de crédito resultante da actividade económica do devedor e que seja susceptível de afectar o seu património.
Feito este intróito, a questão decidenda reporta-se unicamente a averiguar os efeitos que o processo registado sob o nº 4689/17.3T8VNG poderá ter no regular andamento da presente causa.
No processo nº 4689/17.3T8VNG foi reconhecido à recorrida o crédito reclamado nos presentes autos e, além do mais, entretanto, foi homologado o plano de revitalização da “Sociedade de Construções (…), SA”. E, assim sendo, sem embargo do recurso interposto sobre estas decisões, actualmente, carece de utilidade a prossecução da instância no âmbito destes autos, sem prejuízo do disposto na parte final do nº 1 do artigo 17º-E do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Deste modo, atento o efeito suspensivo atribuído ope legis por força da pendência de um processo especial de revitalização, revoga-se a decisão recorrida, a qual é substituída por outra que declara a suspensão da instância.
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V – Sumário:
1. A expressão acções para cobranças de dívidas engloba qualquer acção judicial – declarativa ou executiva – destinada a exigir o cumprimento de um direito de crédito resultante da actividade económica do devedor e que seja susceptível de afectar o seu património.
2. A decisão a que se refere o nº 4 do artigo 17º-C do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas suspende, quanto à empresa que se encontra em situação económica difícil ou de insolvência meramente iminente, as acções declarativas destinadas à cobrança de dívidas, ao abrigo da disciplina precipitada no disposto no nº 1 do artigo 17-E do mesmo diploma. *
VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar procedente o recurso interposto, revogando-se a decisão recorrida, a qual é substituída por outra que declara a suspensão da instância.
Sem tributação nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 527º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138º, nº 5, do Código de Processo Civil).
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Évora, 10 de Maio de 2018
José Manuel Galo Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
Isabel Matos Peixoto Imaginário
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[1] (4) Recebido o requerimento referido no número anterior, o juiz nomeia de imediato, por despacho, administrador judicial provisório, aplicando-se o disposto nos artigos 32.º a 34.º com as devidas adaptações.
[2] Acórdão dos Supremo Tribunal de Justiça de 05/01/2016 e 17/03/2016, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[3] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27/02/2014, do Tribunal ad Relação de Évora de 16/01/2014, do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/11/2013 e 18/06/2014 e do Tribunal ad Relação do Porto de 30/09/2013 e 18/12/2013, in www.dgsi.pt.
[4] Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2015.
[5] João Aveiro Pereira, A Revitalização Económica dos Devedores, o Direito, ano 145, 2013, I/II, Almedina, Coimbra.
[6] Fátima Reis Silva, Processo Especial de Revitalização – Notas práticas e jurisprudência recente, Porto Editora, Porto, 2014.
[7] Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis, PER – O Processo Especial de revitalização – Comentários aos artigos 17ºA a 17-I do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Coimbra Editora, Coimbra, 2014.
[8] Menezes Leitão, Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2015.
[9] Ana Prata, Morais Carvalho e Jorge Simões, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado.
[10] Soveral Martins, Um curso de direito da insolvência, Almedina, Coimbra, 2015.
[11] Catarina Serra, Revitalização – a designação e o misterioso objecto designado. O Processo Homónimo (PER) e as suas ligações com a Insolvência (situação e processo), Almedina, Coimbra, 2013.
[12] Filipa Gonçalves, O Processo Especial de revitalização, in Estudos de direito da insolvência, Almedina, Coimbra, 2015.
[13] Em sentido contrário, pode ser consultada Maria do Rosário Epifânio, O Processo Especial de Revitalização, Almedina, Coimbra, 2016, pág. 33, onde afirma que: «no artigo 17-E, nº 1, estão abrangidas apenas as acções executivas, ou as diligências executivas e ainda as providências cautelares de natureza executiva, proposta contra o devedor, e respeitantes a quaisquer dívidas».
[14] Perfilha igualmente de uma visão restritiva, L. Miguel Pestana de Vasconcelos, Almedina, Coimbra, 2017, págs. 63-64.
[15] Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2015, pág. 160.
[16] O Processo Especial de Revitalização: o novo CIRE”, RDS III, 2012, págs. 707-726
[17] Limites da autonomia dos credores na recuperação da empresa insolvente, Almedina, Coimbra. 2013.
[18] De acordo com a jurisprudência uniformizada (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2014, publicada no DR nº 39, Série I, de 25/02/2014) «transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C».
[19] Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa Anotado, 3ª edição, Lisboa, 2015, pág. 160, assinalam que «... diferentemente do que ocorre em sede de processo de insolvência, a paralisação aqui determinada deve abranger todas as acções para cobrança de dívidas e não apenas as executivas, incluindo-se, assim, as acções declarativas condenatórias. Mas comunga com ele o facto de se abrangerem também acções com processo especial e procedimentos cautelares».