Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1050/13.2GCFAR.E1
Relator: MARIA LEONOR ESTEVES
Descritores: CONDUÇÃO SOB A INFLUÊNCIA DE SUBSTÂNCIAS PSICOTRÓPICAS
EXAME PRÉVIO DE RASTREIO
EXAME DE CONFIRMAÇÃO
Data do Acordão: 01/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I – Não obstante o n.º 5 do art. 81.º do Código da Estrada se limite a dispor que “É proibido conduzir sob influência de (…) substâncias psicotrópicas”, sem prever um valor mínimo a partir do qual a condução sob o efeito dessas substâncias constitua contraordenação, essa norma não pode deixar de ser conjugada com as normas que regulam os procedimentos a seguir em ordem a detetar o estado de influenciado por tais substâncias,o que logo inculca a ideia de que o consumo das mesmas tenha sido em quantidade tal que ainda esteja, no momento, a causar alterações na perceção do mundo exterior, com os reflexos que esse estado de consciência alterado possa ter no comportamento estradal.


II - Assim, o art. 10.º da Lei nº 18/2007, de 17/5, (que aprova o regulamento de fiscalização da condução sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas) estabelece que “A detecção de substâncias psicotrópicas inclui um exame prévio de rastreio e, caso o seu resultado seja positivo, um exame de confirmação, definidos em regulamentação”. Quanto ao primeiro, que se destina apenas a indicar a presença de substâncias daquela natureza, é efectuado “através de testes rápidos a realizar em amostras biológicas de urina, saliva, suor ou sangue”(n.º 1 do art. 11º do referido diploma), “sendo os resultados considerados positivos quando os valores obtidos forem iguais ou superiores às concentrações indicadas no quadro n.º 2 do anexo V” (art. 16º da Portaria nº 902-B/2007 de 13/8, que veio regulamentar, nomeadamente, “os tipos de exames médicos a efectuar para detecção dos estados de influenciado por álcool ou substâncias psicotrópicas”), ou seja, de 50 ng/ml para o grupo dos canabinóides.

III - Só no caso de o exame de rastreio acusar um resultado superior a este valor é que haverá lugar ao exame de confirmação, que se destina “a identificar a substância ou substâncias e ou seus metabolitos que, em exame de rastreio, apresentarem resultados positivos” (art. 22º da aludida Portaria), só podendo ser – excepção feita ao caso especial, previsto no art. 13º da Lei nº 18/2007, de impossibilidade de colheita de amostra de sangue após repetidas tentativas - declarado influenciado por tais substâncias “o examinado que apresente resultado positivo no exame de confirmação” (nº 5 do art. 12º da referida Lei), considerando-se que este exame “é positivo sempre que revele a presença de qualquer das substâncias psicotrópicas previstas no quadro n.º 1 do anexo V ou outra substância ou produto, com efeito análogo, capaz de perturbar a capacidade física, mental ou psicológica do examinado para o exercício da condução de veículo a motor com segurança” (art. 23º da Portaria acima aludida).

IV – Não se considera como exercendo a condução sob influência de substâncias psicotrópicas aquele que, sem ser submetido a prévio exame de rastreio, revelou no exame realizado uma concentração estimada de THC-COOH de 22 ng/ml”.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1.Relatório

Na secção criminal – J1 da instância local de Faro, da comarca de Faro, em processo comum com intervenção de tribunal singular, foi submetido a julgamento o arguido C., devidamente identificado nos autos, tendo no final sido proferida sentença, na qual se decidiu absolvê-lo do crime de condução perigosa de veículo rodoviário cuja prática lhe vinha imputada, e, operada a convolação desse crime para a contra-ordenação p. e p. pelos arts. 81º nºs 1, 5 e 6 al. b), 146º al. m) e 147º, todos do C. Estrada, condená-lo, pela prática da mesma, na coima de 500€ e na sanção acessória de proibição de conduzir pelo período de 2 meses.

Inconformado com a sentença, dela interpôs recurso o arguido, pretendendo que seja revogada e substituída por decisão que o absolva ou, assim se não entendendo, que atenue especialmente a sanção acessória, reduzindo-a a metade, para o que formulou as seguintes conclusões:

a)Conclui-se que não pode ser dado como provado que "O arguido exercia a condução depois de ter consumido estupefaciente, tendo acusado a concentração de canabinoides de 22 ng por mililitro de sangue de THC-COOH.

b) Conclui-se que, a concentração de 22ng por mililitro de sangue de THC-COOH é insuficiente, face ao quadro 2 da Portaria 190-6/2007, de 13 de Agosto, para considerar a prática de contra-ordenação considerada grave, face ao código da estrada.

c) Conclui-se também que a pena acessória aplicada ao arguido deverá ser especialmente atenuada, devido a todos os fatores atenuantes descritos na douta decisão recorrida.

O recurso foi admitido.
Na resposta, o MºPº defendeu a manutenção da sentença recorrida e a improcedência do recurso, concluindo como segue:

1 - O arguido foi absolvido prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário previsto e punido pelo artigo 291, n° l, al. a) e b), n° 3, do Código Penal.

2- Operada a convolação foi o arguido condenado pela prática como autor material de uma contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 81°, n°s 1,5 e 6, alínea b), 146°, alínea m) e artigo 147°, do Código da Estrada, na coima de quinhentos euros e na sanção acessória de inibição de conduzir, pelo período de dois meses.

3- A contra-ordenação pela qual o arguido foi condenado, basta-se, para a cometer, que o agente exerça a condução sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas, ou seja, independente do valor provado, que no caso foi uma concentração de canabinóides de 22 ng por mililitro de sangue de THC-COOH, estão preenchidos os elementos objectivos do tipo.

4- Assim, nos termos do artigo 23 da portaria 902-B/2007 o exame de confirmação é positivo sempre que revele a presença de quaisquer substâncias psicotrópicas ou outras.

5- Ora, consta da fundamentação de facto que o arguido foi sujeito a exame de sangue que por sua vez revelou a presença de canabinóides, substância que consta do quadro l, anexo V, da referida portaria.

6- Irrelevante se torna saber com exactidão o resultado do referido exame, pois que consta do mesmo, junto a fls. 23, que o resultado foi positivo.

7- A pena acessória de inibição de conduzir foi aplicada no mínimo legal, pelo que nesta parte também a sentença não merece censura.

Nesta Relação, o Exmº Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no qual - considerando[1] que é necessário conjugar o estatuído nos nºs 1 e 6 do art. 81º do C. Estrada com as normas constantes da Portaria nº 902-B/2007 de 13/8, havendo, à semelhança dos procedimentos estabelecidos para a condução sob o efeito do álcool, que efectuar em primeiro lugar um exame de rastreio e só no caso de o mesmo acusar uma concentração de urina igual ou superior aos valores constantes do quadro 2 do anexo V da referida Portaria, ou seja, a existência de, pelo menos, 50 ng/ml na urina, é que haverá que proceder a um exame de confirmação por análise ao sangue, e que no caso tal exame de rastreio não foi efectuado, tendo o recorrente sido conduzido directamente ao hospital, onde lhe foi feita a colheita de sangue de cujo exame resultou a existência de canabinóides na proporção de 22 ng/ml – se pronunciou no sentido da procedência do recurso.

Foi cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do C.P.P. sem que tenha sido apresentada resposta.

Colhidos os vistos, foram os autos submetidos à conferência.

Cumpre decidir.

2. Fundamentação
Na sentença recorrida foram considerados como provados, para o que aqui interessa, os seguintes factos:

1.No dia 14 de Agosto de 2014, pelas 19h40, o arguido C. circulava ao volante do veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ---HF, na Estrada Nacional n.º2, no sentido Faro- São Brás de Alportel.

2. Na mesma via e sentido de marcha referido em 1., circulava Luís Filipe Simões, ao volante de um motociclo.

3. Ao deparar-se com um abrandamento intercalado de paragens de circulação rodoviária, devido à ocorrência de um acidente na via referida em 1., o arguido decidiu inverter o sentido da sua marcha.

4. Para o efeito iniciou a manobra para mudança de direcção à esquerda.

5. Os veículos automóveis que circulavam na retaguarda do veículo do arguido, de número não inferior a três, pararam a sua marcha para que aquele realizasse a manobra que tinha encetado.

6. Quando a parte frontal esquerda do veículo do arguido, ao executar a manobra referida em 4., ocupou a faixa de rodagem do sentido contrário (São Brás de Alportel-Faro), foi embatido pela parte frontal do motociclo referido em 2..

7. A via referida em 1., no local onde o arguido e o condutor do motociclo circulavam, é composta por uma recta sinalizada com marca longitudinal contínua numa extensão de, pelo menos, 30 metros de comprimento, no espaço que antecede o ponto onde ocorreu o embate referido em 6.

8. O arguido iniciou a manobra referida em 4., no local onde a marca longitudinal contínua referida em 7. terminava e dava lugar a marca longitudinal descontínua.

9. O condutor do motociclo referido em 2., havia, momentos antes do embate, iniciado manobra de ultrapassagem dos veículos referidos em 5., imprimindo velocidade ao motociclo e transpondo a linha contínua referida em 7.

10. Como consequência directa e necessária do embate referido em 6., o condutor do motociclo ficou com lesões traumáticas pulmonares e lombares, tendo sido assistido no Hospital de Faro.

11. O arguido exercia a condução depois de ter consumido estupefaciente, tendo acusado uma concentração de canabinóides de 22 ng por mililitro de sangue de THC – COOH.

12. O arguido sabia que tinha consumido substâncias estupefacientes e voluntariamente conduziu o veículo nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 1, não representando que pudesse acusar a concentração referida em 11.
(…)

3. O Direito

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[2], sem prejuízo das de conhecimento oficioso.

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso, as questões suscitadas são as seguintes:

- se a concentração de canabinóides acusada pelo recorrente, de 22 ng por mililitro, permitia, ou não, concluir que o recorrente conduzia sob o efeito de estupefacientes;

- atenuação especial da pena acessória.

3.1. O recorrente sustenta que não foi produzida qualquer prova testemunhal de que conduzisse sob o efeito de estupefacientes, não bastando para extrair essa conclusão o facto de ele ter confessado que consumiu, no dia anterior ao do acidente, um cigarro de canábis. Além disso, defende que o resultado da análise ao sangue a que foi submetido, que confirma a simples permanência de resíduos no organismo, sendo inferior ao limite mínimo a partir do qual o resultado seria considerado positivo, não é suficiente para o condenar pela prática da contra-ordenação, não tendo sido realizado relatório pericial, nos termos da Lei nº 18/2007 de 17/5 e da Portaria nº 906-6/2007 de 13/8, nem perícia médico-legal que permitisse afirmar que ele estava, no momento da condução, sob o efeito de substâncias psicotrópicas.

Adiantamos desde já que, tal como explanado pelo Exmº PGA no parecer que emitiu, também nós consideramos que assiste inteira razão ao recorrente, além do mais porque o entendimento seguido na decisão recorrida se traduziria na punição do mero consumo de estupefacientes, quando a norma cuja violação lhe foi imputada não tem subjacentes razões de saúde pública mas sim a prevenção e punição de comportamentos que envolvem riscos para a segurança rodoviária.

De facto, e não obstante o nº 5 do art. 81º do C. Estrada se limite a dispor que “É proibido conduzir sob influência de (…) substâncias psicotrópicas”, sem prever um valor mínimo a partir do qual a condução sob o efeito dessas substâncias constitua contra-ordenação, essa norma não pode deixar de ser conjugada com as normas que regulam os procedimentos a seguir em ordem a detectar o estado de influenciado por tais substâncias, o que logo inculca a ideia de que o consumo das mesmas tenha sido em quantidade tal que esteja, melhor dizendo ainda esteja no momento, a causar alterações na percepção do mundo exterior, com os reflexos que esse estado de consciência alterado possa ter no comportamento estradal.

Desde logo, o art. 157º do C. Estrada, de cuja disciplina resulta nomeadamente, para o que aqui interessa, que os condutores que intervenham em acidente de trânsito de que resultem mortos ou feridos graves devem ser submetidos aos exames legalmente estabelecidos para detecção de substâncias psicotrópicas, em concreto a um exame de rastreio que, no caso de apresentar resultado positivo, implica a obrigação de submissão “aos exames complementares necessários”.

Assim, o art. 10º da Lei nº 18/2007 de 17/5 (que aprova o regulamento de fiscalização da condução sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas) estabelece que “A detecção de substâncias psicotrópicas inclui um exame prévio de rastreio e, caso o seu resultado seja positivo, um exame de confirmação, definidos em regulamentação”. Quanto ao primeiro, que se destina apenas a indicar a presença de substâncias daquela natureza, é efectuado “através de testes rápidos a realizar em amostras biológicas de urina, saliva, suor ou sangue” (nº 1 do art. 11º do referido diploma), “sendo os resultados considerados positivos quando os valores obtidos forem iguais ou superiores às concentrações indicadas no quadro n.º 2 do anexo V” (art. 16º da Portaria nº 902-B/2007 de 13/8, que veio regulamentar, nomeadamente, “os tipos de exames médicos a efectuar para detecção dos estados de influenciado por álcool ou substâncias psicotrópicas”), ou seja, de 50 ng/ml para o grupo dos canabinóides. Só no caso de o exame de rastreio acusar um resultado superior a este valor é que haverá lugar ao exame de confirmação, que se destina “a identificar a substância ou substâncias e ou seus metabolitos que, em exame de rastreio, apresentarem resultados positivos” (art. 22º da aludida Portaria), só podendo ser – excepção feita ao caso especial, previsto no art. 13º da Lei nº 18/2007, de impossibilidade de colheita de amostra de sangue após repetidas tentativas - declarado influenciado por tais substâncias “o examinado que apresente resultado positivo no exame de confirmação” (nº 5 do art. 12º da referida Lei), considerando-se que este exame “é positivo sempre que revele a presença de qualquer das substâncias psicotrópicas previstas no quadro n.º 1 do anexo V ou outra substância ou produto, com efeito análogo, capaz de perturbar a capacidade física, mental ou psicológica do examinado para o exercício da condução de veículo a motor com segurança” (art. 23º da Portaria acima aludida).

Ora, no caso dos autos, o recorrente não foi submetido a exame de rastreio, tendo sido conduzido directamente ao hospital onde lhe foi feita a colheita de sangue, cujo exame deu como resultado, singelo, a “concentração estimada de THC-COOH 22 ng/ml”, vindo ali também referido que “O ácido 11-nor-delta-9-tetrahidrocanabional (THC-COOH) é um metabolito sem acção farmacológica cujo período de eliminação se pode prolongar por vários dias após o consumo de canabis”.

Assim, e para além de não terem sido observados os procedimentos estabelecidos na lei relativamente à metodologia a seguir na realização dos exames para a detecção do estado de influenciado por substâncias psicotrópicas, e de o valor acusado no exame a que o recorrente foi submetido ser inferior àquele a partir do qual a lei considera o resultado como positivo, é forçoso concluir que não está minimamente demonstrado que ele exercia a condução sob a influência de substâncias psicotrópicas.

Não se mostrando, pois, preenchida a previsão legal, não se pode manter a condenação do recorrente, devendo o mesmo ser absolvido e ficando prejudicada a outra questão que, a título subsidiário, trouxe para o recurso.

4. Decisão

Nos termos e pelos fundamentos expostos, julgam o recurso procedente, revogando a sentença recorrida e substituindo-a por decisão que absolve o recorrente da contra-ordenação p. e p. pelos arts. 81º nºs 1, 5 e 6 , 146º al. m) e 147º, todos do C. Estrada, por cuja prática havia sido condenado.

Sem custas.

Évora, 7 de Janeiro de 2016

Maria Leonor Esteves
António João Latas
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[1] Com apoio no Ac. RP 9/4/14, proc. nº 1328/10.7TASTS.P1.

[2] (cf. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cf. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).