Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
122/19.4T8LAG.E1.
Relator: FLORBELA MOREIRA LANÇA
Descritores: FORMA DE PROCESSO
PEDIDO
CAUSA DE PEDIR
PETIÇÃO INICIAL
Data do Acordão: 09/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I.A forma de processo afere-se em função da pretensão formulada pelo autor e não em referência à pretensão que deveria ser por ele deduzida.
II. A determinação da forma de processo legalmente adequada deve ocorrer face ao pedido formulado pelo autor na petição inicial, não relevando para aquele efeito a defesa do R., seja por impugnação, seja por excepção
III. A inadequação da pretensão deduzida em relação ao fundamento invocado consubstancia uma situação de improcedência da acção e não de nulidade processual por erro na forma do processo. (sumário da relatora)
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NA 1.ª SECCÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
I. Relatório
P… instaurou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra E…, pedindo que seja: a) “reconhecido o crédito do A. sobre a R. de € 29.396,04, correspondentes à liquidação de metade das prestações do contrato de mútuo celebrado com a Caixa …, S.A. (capital, prestações, despesas e juros) contratado por ambos, a título de direito de regresso; a R. condenada no pagamento ao A. do montante de € 29.396,04 correspondentes à liquidação de metade das prestações do contrato de mútuo celebrado com a Caixa…, S.A. (capital, prestações, despesas e juros) contratado por ambos, a título de direito de regresso; e c) Ser a R. condenada no pagamento ao A. de juros de mora desde a citação para a presente acção e até efectivo e integral pagamento (…)”
Para tanto alegou, em síntese, que:
-. O A. e a R. contraíram casamento em 01.10.2005, sob o regime de comunhão de adquiridos, sem convenção antenupcial;
- Em 18.04.2007, o A. e a R. celebraram um mútuo com hipoteca, destinado a facultar recursos para financiamentos de investimentos múltiplos, no montante de € 67.000,00 (sessenta e sete mil euros), junto da Caixa …, S.A.;
- Montante pecuniário efectivamente empregue por A. e R.,
- Confessando-se o A. e a R. ambos devedores da supra mencionada quantia;
- No âmbito do mencionado mútuo, o A. constituiu hipoteca sobre a fracção autónoma designada pela letra “D”, correspondente ao 1.º andar Esq., que faz parte do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua D. … freguesia de Linda-a-Velha, concelho de Oeiras, sob o n.º …, da freguesia de Linda-a-Velha, afecto ao regime de propriedade horizontal nos termos da inscrição F apresentação 5, de 17.04.1961, inscrito na matriz predial urbana da referida freguesia sob o artigo …, com o valor patrimonial correspondente à fracção de € 25.757,15;
- Porquanto a fracção autónoma designada pela letra “D” se encontrava registada a favor do A. pela inscrição G – apresentação 10, de 12.01.1999, tendo a R. consentido na constituição da referida hipoteca;
- A hipoteca visou garantir (i) o capital mutuado; (ii) os respectivos juros até à taxa anual de oito vírgula duzentos e quarenta e seis por cento, acrescida, em caso de mora, de uma sobretaxa até quatro por cento, ao ano, a título de cláusula penal; e (iii) as despesas extrajudiciais que a parte credora fizer, incluindo as despesas para a segurança ou reembolso dos seus créditos e as emergentes do mútuo celebrado, as quais para efeitos de registo, se fixaram em € 2.680,00 (dois mil seiscentos e oitenta euros) – cfr. o doc n.º supra.
- Juntamente com a escritura foi assinado pelas partes o Documento Complementar, segundo o qual, o prazo para amortização do empréstimo era de 29 (vinte e nove) anos, a contar de 18.04.2007;
- Sendo o mútuo amortizado “em prestações mensais constantes de capital e juros, vencendo-se a primeira no correspondente dia do mês seguinte ao da celebração do contrato e as restantes em igual dia dos meses seguintes”;
- E os pagamentos efectuados através de débitos na conta de depósito à ordem n.º 005470/000, conta bancária em que eram co-titulares A. e R.;
- O contrato de mútuo com hipoteca foi alterado em 05.06.2014, porquanto o A. e a R. pretenderam que a data de cobrança das prestações do mútuo passasse a coincidir com o dia 21 de cada mês, tendo, ainda sido alteradas a ditadas outras cláusulas;
- Inexistiu qualquer alteração contratual ao mútuo com hipoteca posterior à realizada em 05.06.2014.
Sucede porém que,
- Em 06.10.2014 o casal deixou de coabitar no mesmo espaço;
- Momento em que a R. deixou de contribuir para a liquidação das prestações a pagar à Caixa … decorrentes do contrato de mútuo celebrado;
- Permanecendo naquele momento por liquidar capital no valor de € 53.984,13 (cinquenta e três mil novecentos e oitenta e quatro euros e treze cêntimos);
- O divórcio judicial por mútuo consentimento entre o A. e a R. foi decretado em 25.11.2015;
- Tendo o A. liquidado, em 10.08.2017, ou seja, após a cessação da relação conjugal com a R., a totalidade das prestações bancárias vencidas desde 06.10.2014, incluindo a liquidação da totalidade do capital em dívida;.
Assim,
- O A., com sérias dificuldades, foi procedendo sozinho aos pagamentos das prestações em dívida dos anos civis de 2014, 2015, 2016 e 2017, tendo liquidado o montante de € 54.049,09 (cinquenta e quatro mil e quarenta e nove euros e nove cêntimos) relativo ao capital em dívida, € 891,33 (oitocentos e noventa e um euros e trinta e três cêntimos) de juros, € 254,56 (duzentos e cinquenta e quatro euros e seis cêntimos) de juros de mora, € 663,60 (seiscentos e sessenta e três euros e sessenta cêntimos) de comissões e € 72,27 (setenta e dois euros e vinte e sete cêntimos) de impostos,
- Liquidando assim o A., desde 06.10.2014 e até 10.08.2017, o A. a quantia global de € 55.930,85 (cinquenta e cinco mil novecentos e trinta euros e oitenta e cinco cêntimos);
- Dos quais metade, ou seja, € 28.938,26 (vinte e oito mil novecentos e trinta e oito euros), correspondem ao cumprimento da obrigação contratual assumida pela R. perante a Caixa …,
- Como é, aliás, do seu conhecimento.
- Por essa razão, em 24.01.2017, pelas 20:55, a R. dirigiu ao A. um correio electrónico com o seguinte teor: “(…) temos também que resolver definitivamente a questão do apartamento onde moras. Aconselhei-me na C… e também com o meu advogado, a boa solução não é a que tu e a tua mãe propõem à C… e a mim. A boa solução é eu transmitir a minha parte da casa para ti ou para a tua mãe, não querendo eu receber nada para vos entregar/vender a minha parte, mas em contrapartida tu e a tua mãe assumem que a dívida é da vossa exclusiva responsabilidade e o Banco nessa escritura exonera-me de qualquer responsabilidade pelos empréstimos em dívida.
Vou enviar a carta à C… como me aconselharam e depois envio-vos cópia para que possam tratar de eu vos transmitir a minha parte na casa contra a minha exoneração de qualquer responsabilidade”;
- A R. nunca transmitiu a “sua parte na casa”, uma vez que a mesma nunca lhe pertenceu,
- Não tendo em momento algum sido exonerada da responsabilidade decorrente do contrato celebrado perante a Caixa …,
- E recusando-se, apesar das interpelações do A. nesse sentido, a assumir a responsabilidade pela sua parte do crédito.
- Para mais, a conta bancária que suportava o mútuo bancário apresentava à data da separação (06.10.2014) um saldo negativo no valor € 630,55 (seiscentos e trinta euros e cinquenta e cinco cêntimos), tendo ainda o A. pago, desde a data da separação até ao integral pagamento da dívida, despesas com manutenção de conta no valor total € 154,50 (cento e cinquenta e quatro euros e cinquenta cêntimos) e juros por descoberto da conta € 130,50 (cento e trinta euros e cinquenta cêntimos), perfazendo um total de € 915,55 (novecentos e quinze euros e cinquenta e cinco cêntimos);
- Dos quais metade, ou seja € 457,78 (quatrocentos e cinquenta e sete euros e setenta e oito cêntimos), correspondem ao cumprimento da obrigação contratual assumida pela R..
Pessoal e regularmente citada, a Ré contestou e reconveio, tendo suscitado a excepção da incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria, e a nulidade do processo, por erro na forma processo, pugnando, pela verificação das suscitadas excepção e nulidade e na eventualidade da procedência da acção pugnou pela procedência da reconvenção, que a título subsidiário deduziu, reconhecendo-se o crédito da R. de pelo menos 40.050,00 (a liquidar após realização da prova pericial) em resultado do que, beneficiando a Ré do efeito extinto da obrigação que a compensação encerra, deve o autor ser condenado no pagamento do valor que excede a compensação de pelo menos € 10.653,96.
Replicou o A., sustentando, no essencial, que não existem quaisquer bens a partilhar, pugnando pela improcedência da reconvenção.
Notificado o A. para, querendo se pronunciar sobre “a matéria exceptiva” suscitada na contestação, o mesmo emitiu pronúncia no sentido da não verificação da excepção dilatória da incompetência e nulidade invocadas.
No dia 10 de Fevereiro p.p. foi, então, proferido o seguinte despacho:
“P… instaurou a presente Acção de Processo Comum contra E….
As partes contraíram casamento, o qual veio a ser dissolvido por divórcio.
O autor pede o reconhecimento do seu crédito sobre a ré, correspondente à liquidação de metade das prestações de mútuo celebrado com a Caixa … e a condenação da ré no respectivo pagamento (mútuo contraído na constância do casamento).
Compulsados os presentes autos, verifica-se, atenta a documentação junta após convite que, pelo menos, um bem (veículo automóvel, registado em 2013) é bem comum do casal, porque adquirido na constância do casamento celebrado em 2012, sem convecção antenupcial.
Face ao exposto, as partes terão de recorrer, para partilha de bens – caso não alcancem acordo extrajudicial – ao processo de inventário – artigo 1133º do Código Civil.
Verifica-se, desta forma, que ocorreu erro na forma de processo, o qual não pode ser corrigido, uma vez que, além do mais, para o processo de inventário este Tribunal é materialmente incompetente, uma vez que o divórcio foi decretado no Tribunal de Família e Menores.
Decisão:
Atentos os fundamentos expostos, este Juízo Central Cível, absolve a ré da presente instância – artigo 278º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil.
Custas pelo autor, enquanto parte vencida – artigo 527º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Registe e notifique.”
O A., P…, não se conformando com a decisão prolatada, dela interpôs recurso, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:
A. O Recorrente peticionou na presente acção judicial a condenação da Recorrida no pagamento de metade das prestações de mútuo celebrado com a Caixa …, acrescidas dos respectivos juros de mora, porquanto as mesmas foram integralmente pagas pelo Recorrente em data posterior à declaração de divórcio.
B. O Tribunal a quo, por Sentença datada de 10.02.2020, considerou que “compulsados os presentes autos, verifica-se, atenta a documentação junta após convite que, pelo menos, um bem (veículo automóvel, registado em 2013) é bem comum do casal, porque adquirido na constância do casamento celebrado em 2012, sem convenção antenupcial”, bem como que “as partes terão de recorrer, para partilha de bens – caso não alcancem acordo extrajudicial – ao processo de inventário – artigo 1133.º do Código Civil”, concluindo existir erro na forma de processo, com consequente absolvição da Recorrida da instância.
C. Consoante alegado pelo Recorrente, inexistem quaisquer bens comuns do casal que se encontrem por partilhar, uma vez que (i) o veículo automóvel é da titularidade exclusiva do Recorrente; e (i) o Recorrente é o único titular do seu registo automóvel.
D. O Tribunal a quo considerou o veículo automóvel como bem comum apesar de não ter sido realizada qualquer prova para o efeito, olvidando desde logo que existem bens adquiridos na constância de casamento que não são bens próprios – cfr. os arts. 1722.º, n.º 1 e 2 e 1723.º, alínea c), do Código Civil – como sucede na presente situação jurídica.
E. Inexistindo bens comuns a serem partilhados é inaplicável o processo de inventário - cfr. os arts. 2.º, n.º 3, e 79.º, n.º 1, do RJPI, aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 5 de março (aplicável aquando da instauração do processo), bem como os arts. 1082.º, alínea d), e 1133.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (introduzido pela Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro); e, na Jurisprudência: o ac. da Relação de Lisboa de 07.07.2011 (Relator: MARIA JOSÉ MOURO), pelo que se não verifica a excepção de erro na forma de processo decretada pelo Tribunal a quo.
F. Ainda que existissem bens por partilhar, o que não apenas se admite por dever de patrocínio e como hipótese de raciocínio, deveria ocorrer remissão das partes para os meios judiciais comuns – cfr. o art. 16.º, n.º 1, da Lei n.º 23/2013, aplicável ex vi o disposto no art. 79.º, n.º 3, bem como, no novo processo de inventário o art. 1092.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, do Código de Processo Civil e na Doutrina, LOPES CARDOSO, CÂMARA / CASTELO BRANCO / CORREIA / CASTANHEIRA, SOUSA PAIVA / CABRITA, inexistindo, nesse caso igualmente qualquer fundamento de absolvição da Recorrida da instância.
G. O crédito do Recorrente sobre a Recorrida surge aquando da liquidação das prestações em dívida, a qual foi realizada após o decretamento do divórcio, sendo “obrigações que já não respeitam a cônjuges”, motivo pelo qual só podem ser considerados em acção autónoma – cfr. o ac. da Relação de Lisboa de 27.02.2016 (Relator: ONDINA CARMO ALVES).
H. Por fim, e subsidiariamente, a condenação de restituição do montante de crédito bancário pago a mais por um ex-cônjuges é pacificamente aceite pela jurisprudência como objecto de uma acção comum, no ac. da Relação de Lisboa de 15.12.2011 (Relator: RUI VOUGA), bem no ac. da Relação de Lisboa de 12.01.2017 (Relator: JORGE VILAÇA).
I. A presente acção judicial é, no limite, admissível atento o disposto no art. 610.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, inexistindo qualquer fundamento para a absolvição da Recorrida da instância.
J. A Sentença proferida violou o disposto:
a) Nos arts. 1697.º, n.º 1, 1722.º, n.º 1 e 2, e 1723.º, alínea c), do Código Civil;
b) Nos arts. 278.º, n.º 1, alínea a), 610.º, n.º 1, 1082.º, alínea d), 1092.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, e 1133.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, bem como
c) Nos arts. 2.º, n.º 3, 16.º, n.º 1, e 79.º, n.º 1, da Lei n.º 23/2013, de 5 de março.
Nestes termos, e nos demais de Direito julgados aplicáveis, deverá ser concedido provimento ao presente recurso de Apelação, com revogação da Sentença proferida pelo Tribunal, e seguindo os autos os seus termos, como é de JUSTIÇA!”.
A recorrida contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. O veículo automóvel de Opel Astra, com a matrícula …29LF foi adquirido em 2013, ou seja na constância do casamento, tendo sido registado a favor do autor em 31.12.2013 – cfr. certidão de registo automóvel junta aos autos em 15.01.2020.
2. O referido automóvel é bem comum cfr. artigos 1724.º, al. b) e 1725.º do Código Civil assim tendo sido relacionado pelos cônjuges no acordo a que chegaram quanto aos bens que identificaram como sendo do casal, acordo esse homologado por sentença.
3. Improcedem assim as conclusões A., B., C. e D. do recurso interposto;
4. A competência para o inventário em consequência de divórcio, que à data da interposição da acção era dos cartórios notariais (cfr. n.º 3 do artigo 2.º da Lei n.º 23/2013, de 5 de Março que aprova o regime jurídico do processo de inventário, ex vi artigo 79.º, n.º 3 do mesmo diploma), cabe agora aos Juízos de Família e Menores, aos quais compete preparar e julgar os processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges (cfr. artigo 1133.º do Código de Processo Civil e artigo 122.º, n.º 1, al. a) da Lei da Organização do Sistema Judiciário aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto);
5. Improcedem assim as conclusões E., F., G., H. e I. do recurso interposto;
6. Bem andou o tribunal a quo ao julgarse materialmente incompetente para tramitar os presentes autos artigos 96.º, al. a), 278.º, n.º 1, al. a), 576.º, nºs 1 e 2, e 577.º, al. a), e 578.º CPC.
NESTES TERMOS
e melhores de direito cujo douto suprimento se invoca, e por soçobrarem as conclusões do recorrente, deve o recurso ser julgado improcedente, mantendo-se in totum a sentença recorrida, tudo com as legais consequências, para se fazer a habitual Justiça!”
Dispensados os vistos e nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.
II. Objecto do recurso
Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões (art.ºs 608.º, nº 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º e 663.º, n.º 2 do CPC), integrado também pelas questões que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, a questão a decidir resume-se a saber se se verifica erro na forma de processo, que importe a nulidade de todo o processo.
III. Fundamentação
O quadro factual a atender para a decisão é o que consta do antecedente relatório.
2. O Direito
“O erro na forma de processo é um vício que se encontra definido e regulado na secção das nulidades processuais. Enquanto nulidade possui um regime próprio consagrado no art.º 193.º do CPC, nos termos do qual o erro na forma de processo importa unicamente a anulação dos actos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei.
Trata-se, portanto, em primeiro lugar, de um vício sanável através da prática dos actos necessários à recondução do processo à forma adequada, sanação essa que só será inviável nos casos em que face às especificidades da forma adequada e da forma até aí seguida não seja possível aproveitar os actos já praticados, caso em que determinará a nulidade de todo o processo, consubstanciando, assim uma exepção dilatória que importa a absolvição do R. da instância (art.º 577.º, al. b) do CPC)”[1].
A forma de processo é o modo específico como o legislador definiu o modelo e os termos dos actos a praticar e dos trâmites a observar pelas partes e pelo tribunal com vista à aquisição adequada dos elementos de facto e de direito que permitem decidir uma determinada pretensão, podendo assim definir-se como a configuração da estrutura de actos e procedimentos a que deve obedecer a preparação e julgamento de determinado litígio.
O n.º 1 do art.º 546.º do CPC distingue duas formas para o processo: o comum e o especial. Por seu turno, no processo declarativo, existe a forma do processo comum, que é única (art.º 548.º do CPC) e existem formas de processo especial, que são diversas (art.º 549.º do CPC).
De acordo com o n.º 2 do art.º 546.º do CPC, “o processo especial aplica-se aos casos expressamente designados na lei; o processo comum é aplicável a todos os casos a que não corresponda processo especial”, a significar que quem demanda não pode escolher livremente a forma de processo através do qual faz valer judicialmente a sua pretensão. Terá, ao invés, de escolher a forma de processo que se adeque, de acordo com os critérios legais pré-definidos, á pretensão que deduz, em função do pedido que formula.
O processo especial aplica-se aos casos expressamente designados na lei, enquanto o processo comum se aplica a todos os casos a que não corresponda processo especial (art.º 546.º, n.º 2 do CPC). “Consagra-se deste modo o princípio da especialidade das formas processuais. Por esse motivo, para saber qual é a forma do processo adequada à pretensão a deduzir, o caminho passa por determinar se esta se ajusta ao objecto de algum dos processos especiais previstos na lei, cabendo-lhe a forma de processo especial cuja finalidade seja precisamente essa pretensão ou a forma do processo comum se a pretensão não estiver compreendida nas finalidades específicas de nenhum processo especial”[2].
Vele isto por dizer que o processo especial aplica-se aos casos expressamente designados na lei; o processo comum aplica-se a todos os casos a que não corresponda processo especial (art.º 546.º n.º 2 do CPC).
Assim, o elemento da acção fundamental para determinar a forma do processo é o pedido - efeito jurídico pretendido pelo peticionante, como forma de tutela do seu interesse -, devendo o processo seguir a forma em cuja finalidade se integre o pedido formulado pelo autor.
Efectivamente, comete-se a nulidade de erro na forma do processo quando se apura que para o caso vertente foi utilizado o processo comum quendo a lei estabeleceu para ele um processo especial. O caso ou casos para que o processo especial foi criado pela lei estão designados pelo fim; o fim a que se destina qualquer processo é-nos dado pela respectiva petição inicial, dado que é neste articulado que o A. ou requerente marca a finalidade que se propõe atingir – e marca-a, formulando o pedido que pretende ver acolhido pelo tribunal. Assim, o processo comum considera-se erradamente utilizado quando o pedido formulado na petição inicial corresponde precisamente ao fim para o qual a lei estabeleceu um processo especial.
“É em face da pretensão deduzida que se deve apreciar a propriedade ou inadequação da forma da providência solicitada. É o pedido formulado pelo autor ou requerente e não a causa de pedir que determina a forma de processo a utilizar em cada caso, conforme jurisprudência dominante ou até uniforme (cfr., entre outros, Ac. do STJ de 14/11/94)”[3]
“Quando a lei define o campo de aplicação do processo especial respectivo pela simples indicação do fim a que o processo se destina, a solução do problema da determinação dos casos a que o processo é aplicável, está à vista: o processo aplicar-se-á correctamente quando se use dele para o fim designado pela lei. E como o fim para que, em cada caso concreto, se faz uso do processo se conhece através da petição inicial, pois que nesta é que o autor formula o seu pedido e o pedido enunciado pelo autor é que designa o fim a que o processo se destina, chega-se à conclusão seguinte: a questão da propriedade ou impropriedade do processo especial é uma questão, pura e simples, de ajustamento do pedido da acção à finalidade para a qual a lei criou o respectivo processo especial. Vê-se, por um lado, para que fim criou a lei o processo especial; verifica-se, por outro, para que fim o utilizou o autor. Há coincidência entre os dois fins? O processo especial está bem empregado. Há discordância entre os dois fins? Houve erro na aplicação do processo especial[4].
“O que caracteriza o erro na forma do processo é que ao pedido formulado corresponda forma de processo diversa do empregue e não se mostre possível, através da adequação formal, fazer com que, pela forma de processo efectivamente adoptada, se venha a conseguir o efeito jurídico pretendido pelo autor”[5]
Exactamente porque é o pedido que determina a forma do processo e esta deve ser indicada pelo autor logo na petição inicial para permitir a correcta distribuição do processo, a forma do processo não depende da defesa que o réu venha a apresentar, das excepções que venha a alegar.
Em suma: A forma de processo afere-se em função da pretensão formulada pelo A. Se a forma de processa empregue não for apropriada ao tipo de pretensão formulada, ocorre o vício processual de erro na forma de processo; se a forma de processo seguida se adequar à pretensão formulada, mas esta não for conforme aos fundamentos invocados estaremos perante uma questão de mérito conducente à improcedência da acção.
Na espécie, o A. especifica a prestação em que a Ré deve ser condenada (pagamento de uma quantia por parte da R., em virtude daquele ter procedido ao pagamento integral de uma divida que era da responsabilidade de A. e R.), enuncia o tipo de prestação judiciária (declaração condenatória) e indica a forma de processo declarativo comum.
No despacho recorrido sustentou-se:
“P… instaurou a presente Acção de Processo Comum contra E….
As partes contraíram casamento, o qual veio a ser dissolvido por divórcio.
O autor pede o reconhecimento do seu crédito sobre a ré, correspondente à liquidação de metade das prestações de mútuo celebrado com a Caixa … e a condenação da ré no respectivo pagamento (mútuo contraído na constância do casamento).
Compulsados os presentes autos, verifica-se, atenta a documentação junta após convite que, pelo menos, um bem (veículo automóvel, registado em 2013) é bem comum do casal, porque adquirido na constância do casamento celebrado em 2012, sem convecção antenupcial.
Face ao exposto, as partes terão de recorrer, para partilha de bens – caso não alcancem acordo extrajudicial – ao processo de inventário – artigo 1133º do Código Civil.
Verifica-se, desta forma, que ocorreu erro na forma de processo, o qual não pode ser corrigido, uma vez que, além do mais, para o processo de inventário este Tribunal é materialmente incompetente, uma vez que o divórcio foi decretado no Tribunal de Família e Menores.
Decisão:
Atentos os fundamentos expostos, este Juízo Central Cível, absolve a ré da presente instância – artigo 278º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil.
Custas pelo autor, enquanto parte vencida – artigo 527º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Registe e notifique.”
Importa, assim, averiguar se existe alguma forma especial de processo para o tipo de pretensão em apreço.
A decisão recorrida declarou a nulidade por erro na forma de processo, insanável, porquanto o alegado crédito só pode apurar-se na partilha, em processo de inventário, que é o adequado, sendo o tribunal recorrido materialmente incompetente para a tramitação do processo de inventário, não apreciando, assim, o mérito da pretensão, absolvendo a R. da instância.
O apelante sustenta que não obstante o disposto no art.º 1697.º n.º 2 do Cod. Civil remeter para o “momento da partilha”, tal não é impeditivo de o reclamar nos meios comuns, tanto mais que não existem bens comuns a partilhar e o pagamento por ele feito ocorreu já após o divórcio entre A. e R. ter sido decretado.
Como vimos, a adequação do meio processual não depende do mérito, mas da pretensão deduzida, tal como a configura o A..
Ora, resolvendo-se a questão do erro na forma do processo em face do pedido formulado na acção em confronto com o fim a que, segundo a lei, o processo especial se destina, averiguemos do objectivo do processo especial de inventário, reiterando-se que a pretensão do A. é da condenação da R. a pagar-lhe uma determinada quantia pecuniária.
Face aos pedidos que o A. formula na acção parece claro que a sua pretensão não se ajusta ao objecto daquela forma de processo especial.
Vejamos:
As relações patrimoniais entre os cônjuges cessam com a dissolução do casamento, designadamente através do divórcio (art.º 1688.º e 1788.º do Cod. Civil), produzindo-se, neste caso, os seus efeitos entre eles a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, fazendo a lei retroagir os efeitos do divórcio, no tocante às relações patrimoniais entre os cônjuges, à data da propositura da acção (art.ºs.1688.º e 1789.º, n.º 1 do Cod. Civil).
Cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges, procede-se, havendo património, à partilha dos bens do casal (art.º 1689.º do Cod. Civil), por acordo ou através do processo especial de inventário (arat.º 1133.º do CPC), que pode ser requerido por qualquer um deles.
Na partilha, cada cônjuge receberá os seus bens próprios e a sua meação nos bens comuns, conferindo previamente o que dever a este património.
Havendo passivo a liquidar, são pagas em primeiro lugar as dívidas comunicáveis até ao valor do património comum, e só depois as restantes (art.º 1689.º n.º 2 do Cod. Civil). Não havendo património comum suficiente para o pagamento das dívidas comunicáveis, poderão estas ser pagas pelo produto dos bens próprios de cada um dos cônjuges, consoante o regime de bens (art.º 1695.º do Cod. Civil).
Na liquidação do passivo entram ainda as dívidas dos cônjuges entre si, as quais são pagas pela meação do cônjuge devedor no património comum, mas na ausência ou insuficiência de bens comuns respondem os bens próprios de cada um deles (art.º 1689.º, n.º 3 do Cod. Civil).
O inventário subsequente ao divórcio destina-se, pois, a pôr termo à comunhão de bens resultante do casamento, a relacionar os bens que integram o património conjugal bem como os créditos de terceiros, cujo pagamento seja garantido pelo referido património, e, se for caso disso, os direitos de crédito de um dos cônjuges contra o outro (art.º 1133.º do CPC e art.ºs 1689.º e 1697.º do Cód. Civil), servindo de base à respectiva liquidação e considerando à data em que cessaram as relações patrimoniais entre os cônjuges (art.ºs 1133.º, n.º 1 e art.ºs 1688.º, 1689.º, n.º 1 e 1789.º Cód. Civil).
A partilha, numa acepção ampla, compõe-se de três operações básicas: a separação dos bens próprios, como operação ideal preliminar; a liquidação do património comum, destinada a apurar o valor do activo, através das compensações e da contabilização das dívidas a terceiros (n.º 2 do art.º 1689.º do Cod. Civil) e entre os cônjuges (n.º 3 do art.º 1689.º do Cod. Civil); e a partilha propriamente dita[6].
Destarte, na partilha, após a separação dos bens próprios, segue-se outra operação que se traduz na liquidação do património comum, destinada a apurar o valor do activo líquido, através do cálculo das compensações e da contabilização das dívidas a terceiros e entre os cônjuges.
Com efeito, no tocante à responsabilidade por dívidas, nos termos gerais, pode dizer-se que são devidas compensações quando as dívidas comuns dos cônjuges forem pagas com bens próprios de um dos cônjuges ou quando as dívidas de um só dos cônjuges sejam pagas com bens comuns (n.º 1 e 2 do art.º 1697.º do Cod. Civil), sendo que, de acordo com o n.º 1 do referido normativo essas compensações só são exigíveis no momento da partilha dos bens do casal, ou seja, a exigibilidade do crédito conferido ao cônjuge que pagou mais do que devia é diferida para o momento da partilha dos bens do casal. São duas as razões que explicam que as compensações apenas sejam exigíveis no momento da partilha dos bens do casal. Ponderou-se, por um lado, ser de toda a vantagem adiar para esse momento a exigibilidade das dívidas entre cônjuges, por poder ser fonte de dissensões ou desentendimentos conjugais quando admitida antes disso; observou-se, por outro, que a atribuição imediata de exigibilidade a essas dívidas entre os cônjuges equivaleria a atribuir-lhes uma exigibilidade a todo o tempo, já que entre os cônjuges não pode correr prescrição (art.º 318.º al. a) do Cod. Civil) e dessa maneira colocar-se-ia nas mãos do cônjuge credor um meio fácil de tutelar economicamente a actividade do cônjuge devedor[7].
Procedendo ao aludido confronto do pedido formulado pelo A. com o fim para que, segundo a lei, o processo especial de inventário foi estabelecido, concluímos que não há correspondência entre o pedido do A. e tal fim: o A. não pediu na petição inicial a partilha da comunhão de bens, na sequência do divórcio decretado entre ele e a recorrida. Em momento algum, a afirmação volitiva do efeito jurídico material pretendido pelo A. pressupõe a partilha de bens comuns e, logo, a operação de uma eventual compensação.
Com efeito, na esteira do entendimento da Mm.ª juíza a quo, que advogará estar-se perante um crédito de compensação - embora não o tenha expresso no despacho recorrido de muito parca fundamentação – e, por isso, exigível só no momento da partilha, já que, só nesse momento o apelante poderia fazer operar a compensação entre o seu património próprio e o património comum, então, em nosso entendimento, estaríamos perante uma situação de inexigibilidade do crédito que o A. reclama fora do momento da partilha (n.º 1 do art.º 1671.º do Cod. Civil), que relevaria para efeitos do conhecimento do mérito da acção e não da sua forma processual[8]. Tudo a significar que na espécie não se verifica erro da forma de processo, ao contrário do que decidiu a Mm.ª juíza a quo que, seguindo a argumentação da R. a absolveu da instância.
É, pois, evidente, tendo em conta a pretensão formulada pelo A., que não se verifica a nulidade processual do erro na forma do processo, apresentando-se adequado o processo comum.
Mas há mais:
Na verdade, independentemente de se propugnar o entendimento da Mm.ª juíza a quo, no sentido de que se trata de um crédito de compensação e que independentemente de tal crédito ter sido pago por um dos ex-cônjuges em momento posterior ao divórcio, com bens próprios, só poderá ser exigido no momento da partilha, devendo ser relacionado no processo de inventário, operando-se a compensação na fase da liquidação e procedendo-se, então à partilha propriamente dita[9], a verdade é que sempre se imporia ao tribunal, como se impõe, considerar os concretos contornos do caso em análise e não proferir uma decisão meramente formal.
Na espécie, o A. pretende o pagamento de metade do valor que pagou, após ter sido decretado o divórcio entre A. e R., relativo a um crédito bancário, contraído na constância do casamento, da responsabilidade de ambos, então cônjuges, já que peticionou “o reconhecimento do seu crédito sobre a ré, correspondente à liquidação de metade das prestações de mútuo celebrado com a Caixa … e a condenação da ré no respectivo pagamento (mútuo contraído na constância do casamento).
A verdade, porém, pressuposto necessário para que seja requerido o inventário é o da existência de um património comum, já que subjacente ao processo de inventário está o interesse em dar destino a um conjunto de bens, os bens comuns do casal.
Revertendo ao caso concreto, na espécie, verifica-se que o A. alega que inexistem bens comuns a partilhar. Ao invés, a R. alega que existem os bens comuns relacionados aquando do pedido de divórcio[10], relaciona-os, atribui-lhes o valor total “nunca inferior a 73.500,00” e conclui: “Para a eventualidade de a acção proceder, deve igualmente proceder a reconvenção que a título subsidiário se deduz, reconhecendo-se o crédito da R. de pelo menos € 40.500,00 (a liquidar após realização da prova pericial) em resultado do que beneficiando a é do efeito extintivo de obrigação que a compensação encerra, deve o autor ser condenado no pagamento do valor que excede a compensação de pelo menos € 10.653,96 (…)”.
É certo que pelas diligências oficiosamente ordenadas, com a finalidade de se decidir a nulidade processual do erro na forma do processo (!), se apurou que o veículo automóvel com a matrícula …-29-LF foi inscrito registralmente em nome do A. na constância do casamento com a R., celebrado sob o regime da comunhão de adquiridos, entretanto dissolvido por divórcio, pelo que esse veículo, nos termos do disposto na al. b) do art.º 1724.º do Cod. Civil faz parte da comunhão. Contudo, o A. alega que não existem bens comuns, que tal veículo é bem próprio, cabendo, assim, ao A., em sede própria, demonstrar que a aquisição foi por virtude de um direito próprio anterior ou com dinheiro próprio (art.º 1717.º, 1721.º e 1724.º, al. b) do Cod. Civil), podendo propor a competente acção, com processo comum, para que se reconheça que tal viatura, adquirida na constância do casamento, é da sua exclusividade, porque o preço foi integralmente pago com dinheiro que lhe pertencia e/ou com o produto da venda de outros bens próprios[11] -
Ora, é de meridiana clareza que, entendendo o A. que não existem bens comuns a partilhar e porque “Numa situação em que não existem bens comuns do casal, o processo de inventário não é adequado a que um dos cônjuges exija do outro um crédito correspondente ao pagamento de metade das prestações emergentes de um contrato de mútuo que ambos celebraram”[12], estará dependente da vontade da R. no recurso ao processo de inventário, sendo certo que decorrido mais de cinco anos sobre a dissolução do casamento entre A. e R. esta não requereu, em todos estes anos, porque não quis, o inventário para partilha dos alegados bens comuns, estando, assim, o A. inibido de reclamar judicialmente o seu direito até que a R. decida requerer a partilha dos bens comuns, o que poderá, até, nunca acontecer, ou seja, o A. estaria dependente de um evento futuro e incerto, quando, até, a razão de ser do diferimento da exigibilidade do crédito para o momento da partilha (perturbação do casamento) deixou aqui de verificar-se, tanto mais que A. e R. estão divorciados, por sentença transitada em julgado, desde 2015.
Ora, o A. não pode estar confinado ao processo de inventário, que pode nem sequer existir, para exercer o seu direito contra a R., não podendo o A. ser obrigado a aguardar que seja requerida a partilha – o que, reitera-se, pode até nunca acontecer, atendendo a que está apenas na disponibilidade da R., que neste conspecto se tem remetido a uma postura de total inércia, pois se até ao momento não diligenciou pela liquidação e partilha do alegado património comum do casal que constituiu com o apelante foi porque não quis – para reclamar o seu crédito.
Embora tirado em situação diferente da dos presentes autos tem aqui aplicação o que doutamente se escreveu no Ac. da RL de 01.03.2011[13]“:
“(…)
De modo mais incisivo, a definição de conflitos entre os cônjuges não pode estar condicionada pela instauração, pela pendência ou pela finalização de uma acção de divórcio. Também não tem que aguardar pela futura e eventual instauração de processo de inventário para efeitos de partilha dos bens comuns do casal, podendo verificar-se a necessidade de obter uma antecipada clarificação da situação.
Um entendimento contrário constituiria a negação ilegítima do direito de acção genérica e amplamente consagrado no art. 2º, nº 2, do CPC, nos termos do qual, detectado um direito material, o respectivo titular pode obter o seu reconhecimento judicial, não existindo apoio algum para se concluir que o direito fique a aguardar a ocorrência de um evento futuro e incerto.
3. A identificação da forma processual que deve ser empregue para veicular qualquer pretensão está sujeita à metodologia prevista no art. 460º, nº 2, do CPC [actualmente art.º 546.º do CPC): o processo especial - qualquer processo especial, maxime o de inventário - tem o seu campo de aplicação delimitado pelos “casos expressamente designados na lei”; o processo comum é aplicável “a todos os casos a que não corresponda processo especial”.
(…)
4. Existem ainda outros argumentos que podemos elencar:
a) (…).
Destinando-se este [o processo de inventário] fundamentalmente a partilhar bens comuns do casal, a resolução antecipada de questões prejudiciais como a suscitada pela A. permite simplificar e abreviar a tramitação do processo de inventário. Evita ainda que, mais tarde, os interessados sejam remetidos para os meios comuns, ao abrigo do art. 1350º, nº 1, do CPC, como provavelmente aconteceria se uma questão com os contornos da que foi explanada pela A. fosse introduzida em tal processo.
Assim, ainda que o processo de inventário também tenha potencialidades para integrar a discussão da natureza jurídica dos bens (art. 1689º, nº 1, do CC), podem existir ganhos de celeridade quando a delimitação entre os bens comuns e os bens próprios seja antecipadamente feita em acção declarativa com processo comum.
b) A apreciação da questão no âmbito de uma acção com processo comum dá a ambos os cônjuges maiores garantias de segurança, atenta a maior solenidade que rodeia o processo comum, em comparação com o processo especial de inventário.
Conseguida, por essa via, uma sentença com trânsito em julgado, a mesma produz efeitos vinculativos para ambas as partes que não podem ser questionados no processo de inventário.
c) Ocorrem também ganhos ao nível da justiça material, pois que a imediata discussão da questão, sem aguardar (…) pela eventual instauração do processo de inventário permite atenuar os efeitos erosivos que o decurso do tempo provoca ao nível de determinados meios probatórios, como ocorre com os depoimentos testemunhais que porventura intervenham para dilucidar a questão.
d) A afirmação de que a delimitação dos bens comuns e dos bens próprios deve ser feita exclusivamente no âmbito do processo de inventário ignora que uma questão de contornos semelhantes poder ser despoletada também, por exemplo, no âmbito de uma execução movida apenas contra um dos cônjuges, em sede de embargos de terceiro deduzidos pelo outro cônjuge contra uma penhora que alegadamente tenha atingido um bem próprio (art. 352º do CPC) [actualmente art.º 343.º do CPC].
Negada é ainda pelo facto de que, no âmbito do processo de inventário, os interessados são frequentemente remetidos para os meios comuns em face das dificuldades ou da morosidade da apreciação de questões litigiosas como as que se suscitam em redor da natureza jurídica dos bens (art.º 1350º, nº 1, do CPC) [actualmente 1092.º do CPC].
(…)”.
Assim, ainda que a R. venha a requerer a partilha, a decisão que seja proferida nos presentes autos em nada a prejudicará. Antes ficará desde já solucionada uma questão, e com maiores garantias processuais para ambas as partes, que certamente surgiria no processo de inventário, afigurando-se até, dada a defesa da R., que a questão sempre seria decidida nos meios comuns.
Destarte, não se verificando a nulidade processual do erro na forma do processo, por um lado, e, por outro, atentos os concretos contornos da espécie sujeita, só havia uma forma de exercer o mencionado direito de acção: recorrendo ao processo declarativo comum, pelo que a acção terá de prosseguir.
Por todas estas razões, resulta a procedência das alegações e, consequentemente, da apelação, concluindo-se merecer o recurso provimento.
As custas serão suportadas, porque vencida, pela apelada. (n.ºs 1 e 2 do art.º 527.º do CPC)

IV. Dispositivo
Pelo exposto, acordam as juízas deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogam a decisão recorrida e determinam o prosseguimento dos autos, segundo a forma de processo que lhe foi atribuída pelo apelante, se outras razões a tal não obstarem.
Custas pela apelada.
Registe.
Notifique.
Évora, 24 de Setembro de 2020
Florbela Moreira Lança (Relatora) *
Elisabete Valente (1.ª Adjunta) **
Ana Margarida Leite (2.ª Adjunta) *
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- Sessão e conferência realizadas por meio de plataforma de comunicação remota, nos termos do aditamento ao ponto 4.1. do Plano de Contingência do Tribunal da Relação de Évora, de 16 de Março p.p., e da Divulgação n.º 3/20, de 18 de Março p.p., da Presidência deste Tribunal da Relação da Évora.
* Acórdão assinado electronicamente
** Atesto o voto de conformidade da Senhora Juíza Desembargadora Elisabete Valente, nos termos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, Florbela Moreira Lança
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[1] Ac. da RP de 08.03.2019, proferido no proc. n.º 7829/17.9T8PRT.P1 , acessível em www.dgsi.pt
[2] Ac. da RP de 08.03.2019 citado na anterior nota
[3] Ac. da RP de 20.01.2004, proferido no processo n.º 0326458, acessível em www.dgsi.pt
[4] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, II, pp. 288,
[5] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado I, pp. 232
[6] Assim, Pereira Coelho, Curso de Direito da Família, pp. 429 e Cristina Araújo Dias, Do Regime da responsabilidade por dividas dos cônjuges, Problemas, Criticas e Sugestões, Coimbra Ed., 2009, pp. 769-931
[7] Assim, Braga da Cruz, BMJ nº 69, pp. 413.

[8] Vide, entre outros, o Ac. da RL de 08.07.1999, CJ, IV, pp. 94.
[9] Nesse sentido, Cristina M. Araújo Dias, op cit., pp. 585 e 929-930, nota 1592; Ac. da RC de 15./02.2005, proferido no proc. n.º 4018/04, Ac. da RG de 17.12.2013, proferido no proc. n.º 1385/10.6TBBCL-C.G1 e Ac. da RL de 09.03.2017, proferido no proc. n.º 5208/14.9T8ALM-B.L1, todo acessíveis em www.dgsi.pt; contra, vide, entre outros Lopes Cardoso. Partilhas Judiciais, III, 4.ª ed., Almedina, 1991, pp. 392, Ac. do STJ de 06.02.2007, Agravo n.º 4445/06 e Anotação de Guilherme de Oliveira ao Ac. da RL de 08.07.1999, RLJ 133, pp. 953-954.
[10] “A relação de bens que acompanha o requerimento para a separação por mútuo consentimento não visa determinar a forma de proceder à partilha, não tendo também a natureza de negócio jurídico, cuja validade se possa discutir” - Ac. do S.T.J de 18.02.1988, BMJ nº 374, pp. 472. Por isso, como a relação de bens comuns mencionada no art.º 994.º, n.º 1, al. b) do CPC não tem por finalidade a determinação dos bens que devam ser objecto de posterior partilha. “A relação de bens no divórcio por mútuo consentimento funciona como um pressuposto processual para apreciação do requerimento de divórcio, não fazendo parte dos interesses a que o tribunal tenha de atender, com vista a viabilizar ou não o divórcio», pelo que «a confissão judicial expressa na relação de bens apenas vincula as partes no processo (artigo 355º n.º 1 e 3 primeira parte do C.Civil) e não pode valer como documento com força probatória plena no processo de inventário, que é diferente do divórcio», o que consequência que aquela relação «não poderá substituir a relação de bens apresentada pelo cabeça de casal no processo de inventário» - Ac. da RG de 28.06.2007, proferido no Proc. nº 879/07-1. Vide, ainda, Ac. da RP 19.04.2007, proferido no proc. nº 0731631, Ac. da RC de 13.03.2007, proferido no proc. nº 473/03.0TMCBR-A.C1, Ac. da RG de 28.06.2007 proferido no proc. n.º 879/07-1 e Ac. da RE de 08.07.2008, proferido no proc. nº 1587/08-2, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
E, na doutrina, também LOPES CARDOSO sustenta que, apesar de a lei processual exigir que se junte à petição do divórcio ou separação por mútuo consentimento a relação especificada dos bens comuns, com indicação dos respectivos valores (art. 994.º, n.º 1, al. b) do CPC) – o mesmo ocorrendo quando os cônjuges acordem, na tentativa de conciliação de processo de divórcio litigioso, em que a dissolução do casamento se faça por aquela forma (art.º 931.º, n.º 3 do CPC), os efeitos do caso julgado da sentença que decrete a dissolução do casamento, por divórcio, não se estendem a essa relação, “pois, é seguro, não se verifica a identidade de pedidos nem tem de haver entendimento prévio quanto à partilha dos bens do casal, que só os acordos quanto à prestação de alimentos e destino da casa de morada de família e exercício do poder paternal foram sujeitos a apreciação na mesma sentença (art.º 1776.º, n.º 2, com referência ao art.º 1775.º, n.º 2, ambos do Cod. Civil)”.
[11] Assim, Ac. da RL de 01.03.2011,proferido no proc. n.º 899/10.2TVLSB.L1-7, acessível em www.dgsi.pt
[12] Ac. da RL de 07.07.2011, proferido no proc. n.º 9172/08.5TMSNT-A.L1-2, acessível em www.dgsi.pt
[13] referido na nota 1