Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1442/09.1TBLGS.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: UNIÃO DE FACTO
Data do Acordão: 10/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: CONFIRMADA
Sumário:
Impede a atribuição de direitos ou benefícios fundados na união de facto o casamento de um dos respectivos membros mesmo que, à data do seu óbito, estivesse pendente uma acção de divórcio, dados os termos do art.º 1789.º, n.º 3, Cód. Civil.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora

AA instaurou a presente acção contra a Herança Indivisa de BB e contra o Instituto CC alegando, em suma, que viveu por mais de vinte e oito anos em condições análogas às dos cônjuges com o de cujus BB, que este faleceu em 27 de Dezembro de 2007, que após a morte daquele, ficou sem condições de sustento, carecendo assim de alimentos da ré Herança Indivisa, não podendo exigi-los de mais nenhuma das pessoas elencadas no artigo 2009.º do Código Civil.
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O réu DD contestou a acção invocando, em suma, que o direito da autora caducou, a ilegitimidade passiva e impugnando a demais factualidade alegada pela autora.
O Instituto CC contestou também a presente acção, impugnando genericamente a factualidade alegada pela autora, sustentando ainda que a autora não poderá ver reconhecida a qualidade de titular das prestações por morte pelo facto de, à data da morte do de cujus, este ser ainda casado com EE.
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Realizado o julgamento, foi proferida sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu os RR. do pedido.
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Desta sentença recorre a A. concluindo as suas alegações nestes termos:
I - BB faleceu no dia 27 de Dezembro de 2007.
II - Na data do óbito, corria termos no Tribunal de Família e Menores um processo de divórcio litigioso que BB instaurou contra EE, processo 3869/06.1TBPTM, que deu entrada em 24 de Novembro de 2006.
III - O divórcio veio a ser decretado em 6 de Junho de 2009, tendo a sentença transitada em julgado em 22 de Junho de 2009.
IV - A presente acção deu entrada em juízo em 17 de Dezembro de 2009.
V - Os efeitos do divórcio retrotraem-se à data da propositura da acção de divórcio - 24 de Novembro de 2006 - quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges.
VI - Entre os efeitos patrimoniais do divórcio encontra-se o direito a exigir alimentos da herança.
VII - O beneficiário BB encontra-se divorciado.
VIII - A Autora vivia em união de facto, há mais de dois anos, com o falecido BB.
IX - A Autora apenas tem de fazer prova relativa ao estado civil do beneficiário e ao facto de ter vivido em união de facto, há mais de dois anos, com o mesmo, para ter acesso às prestações sociais ou a uma pensão de alimentos da herança.
X - A Autora preenche os requisitos legais que lhe permitem beneficiar das disposições legais que tutelam a união de facto.
XI - Disposições violadas: Artigo 1789.º e 2020.º do Código Civil e Artigo 1.º da Lei nº 7/2001 de 11 de Maio.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Foram colhidos os vistos.
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No início das suas alegações, a recorrente afirma que sentença em apreço não fez boa apreciação da matéria de facto provada referindo-se, com isto, à data do óbito de BB. A sentença dá por provado que a data é a de 6 de Outubro de 2007 quando o que consta da respectiva certidão é o dia 27 de Dezembro do mesmo ano.
Cremos que não se trata de impugnar a matéria de facto, nos termos do art.º 640.º, Cód. Proc. Civil, mas antes de um simples lapso de escrita que se detecta pela leitura do documento e da sentença (art.º 249.º, Cód. Civil).
E que é um lapso evidente resulta desta passagem da sentença a propósito da fundamentação da matéria de facto: «cópia do assento de óbito de BB, a qual certifica a morte deste em 27 de Dezembro de 2007, de fls. 14 e ss.».
Ou seja, o tribunal teve presente a data correcta mas escreveu outra.
Assim, apenas se corrigirá este lapso.
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1- No dia 27 de Dezembro de 2007, faleceu BB.
2- BB foi casado com EE.
3- À data do óbito do referido BB, corria termos pelo Tribunal de Família e Menores, um processo de divórcio litigioso que o mesmo tinha instaurado contra EE, processo esse com o número 3869/06.1TBPTM, que deu entrada em juízo em 24 de Novembro de 2006.
4- Após o óbito do referido BB foi a instância suspensa até que se mostraram habilitados os seus herdeiros, o que veio a suceder por sentença que transitou em julgado.
5- Após a realização da audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença, que já transitou em julgado e na qual foi a acção julgada procedente por provada e decretado o divórcio litigioso entre o referido BB e EE.
6- Os referidos BB e EE, casados entre si no regime de comunhão geral de bens, estavam separados há cerca de 20 anos, relativamente à data da propositura da dita acção de divórcio (24.11.2006) e, desde então, não mais viveram juntos, na mesma casa, e, desde tal data, não mais dormiram ou comeram juntos, nem o referido BB queria refazer a sua vida com a EE.
7- A Autora nasceu em 02 de Abril de 1954 e é solteira.
8- Do relacionamento da Autora com o BB nasceu em 09 de Setembro de 1981, um filho de nome FF.
9- A Autora adquiriu casa própria, com recurso a empréstimo bancário, em 6 de Dezembro de 1994.
10- Em 6 de Dezembro de 2009, no âmbito do empréstimo mencionado, a Autora ainda devia ao Banco a quantia de € 26 593,42.
11- BB era contribuinte da Segurança Social.
12- Desde o início do ano de 1980 que a Autora vivia com o falecido BB e até à data da sua morte, na mesma habitação.
13- Desde o referido ano de 1980, a Autora e o falecido partilhavam a mesma cama e se relacionavam afectiva e sexualmente.
14- Tomando as refeições em conjunto.
15- Passeando e saindo juntos.
16- A Autora e o falecido viviam como se de marido e mulher se tratassem e assim eram tratados por todas as pessoas que com eles se relacionavam.
17- A autora cuidava do falecido quando este se encontrava doente e ele dela.
18- E auxiliavam-se mutuamente no dia a dia, designadamente nos cuidados e educação do referido filho de ambos.
19- Quando o BB ficou doente, a Autora levou-o ao médico, administrou-lhe os medicamentos e prestou-lhe os demais cuidados necessários.
20- O falecido era dono do restaurante XX, do qual auferia rendimentos superiores a 3 500,00 por mês, em média.
21- A Autora reside na casa própria que adquiriu com recurso ao crédito bancário.
22- Pelo empréstimo assente em I), a Autora paga ao Banco a quantia de € 259,12 por mês.
23- A herança do falecido BB é composta pelos bens (activo e passivo) que constam da relação que foi apresentada pelo cabeça de casal nos autos de processo de inventário que correm termos sob o numero 477/08.6TBLGS do 2º Juízo do Tribunal Judicial, constante a fls. 60-70, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
24- O falecido BB e a referida EE não chegaram a fazer partilhas.
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A sentença coloca o problema nestes termos (com que concordamos):
«É nesta última condição [estado de casado ou divorciado] que divergem, autora e réus, quanto ao entendimento a seguir, considerando que à data da morte de BB já se encontrava instaurada e pendente acção de divórcio com vista ao decretamento do divórcio entre aquele e EE, mas o mesmo só veio a ser decretado posteriormente.
«A autora entende que, face à previsão do artigo 1789.º n.º 1 do Código Civil, o qual dispõe que os efeitos do divórcio se produzem a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, mas retrotraem-se à data da proposição da acção quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges, o falecido BB deve ter-se por divorciado para os efeitos desta acção à datada da morte.
«Os réus entendem que não, que o divórcio apenas ocorreu depois da morte, pelo que à data da morte o de cujus tem que se considerar casado, pelo que a autora não pode, nessas condições ser beneficiária de alimentos».
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Cremos que convém, logo no início, arredar um argumento exposto nas alegações.
A recorrente alega que entre os efeitos patrimoniais do divórcio encontra-se o direito a exigir alimentos da herança. Salvo o devido respeito, não podemos concordar e cremos, mesmo, que tal afirmação altera o objecto do que se discute aqui. O art.º 2020.º, Cód. Civil, desinteressa-se completamente do estado civil do autor da herança; o que a lei exige, neste texto, é que tenha existido uma situação de união de facto. Não pode, um dos unidos de facto, estar casado; mas pode ser solteiro, viúvo ou divorciado. Qualquer um destes, independentemente do seu concreto estado civil (salvo o de casado, como logo se dirá), tem o direito conferido por aquele preceito legal.
Assim, o argumento, além de deslocar o objecto da acção, não é correcto.
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Mas que é impeditivo da atribuição de direitos ou benefícios fundados na união de facto o estado de casado de um dos seus membros, não há qualquer dúvida. O art.º 2, al. c), da Lei n.º 7/2001, é claro a este respeito.
No nosso caso, estava o falecido, à data do seu óbito, casado ou divorciado?
Se estava casado, o outro membro da união de facto não tem direito às prestações previstas na lei; se não estava, tem.
A resposta só pode ser uma: o BB morreu no estado de casado. E morreu nesta condição porque ainda não tinha sido decretada a dissolução do seu casamento.
Mas podem os efeitos patrimoniais do divórcio retroagir para a data da propositura da acção e, assim, ficcionar o estado civil do falecido (divorciado em vez de casado)?
Cremos que não pois que a lei dá resposta clara ao problema e nos termos em que a sentença decidiu.
A retroactividade dos efeitos patrimoniais do divórcio cinge-se às relações entre os próprios cônjuges (melhor dizendo, ex-cônjuges), nos termos do art.º 1789.º, n.º 1, Cód. Civil; eles são tratados como divorciados a partir da data da propositura da acção no que aos bens diz respeito. A retroactividade pode ir mais longe para o momento da separação de facto mas (1.º) tem isto que constar da sentença e (2.º) e, ainda assim, o seu âmbito de eficácia é o mesmo: as relações patrimoniais entre os cônjuges. Ou seja, em termos pessoais, em termos de estado civil, os ex-cônjuges não se consideram divorciados desde a data da propositura da acção (um deles não pode casar com um terceiro na pendência da acção).
Mas no nosso caso não estamos perante um problema atinente apenas aos ex-cônjuges. O problema tem que ver com uma terceira pessoa (a A.) que, obviamente, nada tem que ver com o casamento que foi dissolvido.
A A. invoca, para seu benefício, um determinado estado civil da pessoa com quem vivia em união de facto; a A. quer, como é natural, que os efeitos do divórcio se produzam a partir da propositura da competente acção de forma a que não se verifique o impedimento do vínculo conjugal indicado no art.º 2.º atrás citado.
Mas a lei é clara a este respeito: «Os efeitos patrimoniais do divórcio só podem ser opostos a terceiros a partir da data do registo da sentença» (art.º 1789.º, n.º 3). Esta oponibilidade tem dois sentidos, naturalmente: os efeitos não podem ser opostos a terceiro e o terceiro não os pode invocar contra algum dos ex-cônjuges.
O divórcio só vale, perante terceiros, depois de registada a respectiva sentença.
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Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pela recorrente.
Évora, 6 de Outubro de 2016

Paulo Amaral

Francisco Matos

Tomé Ramião