Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1353/15.1T8STR.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: SEGURO DE VIDA
CLÁUSULA
OMISSÃO CONTRATUAL
Data do Acordão: 11/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A omissão ou a reticência pressupõem a existência do dever de revelação e para que este exista, na ausência de qualquer indicação por parte da seguradora sobre os factos que considera relevantes conhecer, é necessário que estejamos perante facto ou circunstância cuja relevância não possa deixar de ser reconhecida pelo tomador do seguro, sendo a sua revelação um imperativo da boa-fé.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1353/15.1T8STR.E1

Tribunal Judicial da Comarca de Santarém
Instância Local – Secção Cível - Juiz 2


I - Relatório
(…), casada, residente em Comenda, Casével, Vale do Aires, instaurou contra (…) Limited, Sucursal em Portugal, com sede na Av. da (…), n.º 36, 4.º, em Lisboa, a presente acção declarativa de condenação, pedindo a final a condenação da ré no pagamento da quantia de € 22.500,00 (vinte e dois mil e quinhentos euros) correspondente ao capital seguro fixado para o caso de invalidez total e permanente no âmbito de contrato de seguro com esta celebrado, acrescido de juros à taxa legal desde a data de citação até efectivo e integral pagamento.
Subsidiariamente, e para o caso de não proceder o pedido formulado em via principal, pediu a condenação da Ré na entrega da quantia de € 1.832,12 (mil oitocentos e trinta e dois euros e doze cêntimos), correspondente aos prémios pagos entre os anos de 2004 a 2014.
Citada a ré, contestou por excepção, tendo invocado a anulabilidade do contrato celebrado com a autora com fundamento no facto desta ter deliberadamente omitido que à data da celebração do mesmo padecia de três patologias, para cujo tratamento se encontrava medicada, respondendo de forma falsa ao questionário que lhe foi apresentado. As referidas circunstâncias, a terem sido conhecidas da contestante, determinariam a sua não-aceitação da proposta ou, a ter aceitado celebrar o contrato, tê-lo-ia feito em diferentes condições, nomeadamente quanto ao valor do prémio, dado o sensível agravamento do risco, invalidade que a desobriga de proceder ao pagamento do capital seguro.
Impugnou ainda que a autora se encontre em situação de invalidez total para efeitos da cobertura complementar contratada termos em que, também por essa via, se imporia a sua absolvição do pedido.
Juntou a proposta alegadamente subscrita pela ré, da qual consta o referido questionário, documento que a autora impugnou e, admitindo embora que a assinatura aposta na última página seja sua, negou ter respondido às questões ali formuladas ou a quaisquer perguntas sobre o seu estado de saúde, que afirmou nunca lhe terem sido colocadas.
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Teve lugar audiência prévia e nela, tabelarmente saneado o processo, foi determinado o prosseguimento dos autos, tendo-se procedido à identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova, sem reclamação das partes (cfr. acta de fls. 116 a 124).
Realizou-se audiência de discussão e julgamento após o que foi proferida sentença que decretou a total procedência da acção, condenando consequentemente a ré a pagar à autora a quantia de € 22.500,00 (vinte e dois mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data da citação e até integral pagamento.

Inconformada, interpôs a ré o presente recurso e, tendo desenvolvido nas alegações os fundamentos da sua divergência com a decisão, formulou a final as seguintes conclusões:
“1. O Tribunal a quo julgou provado que “A autora assinou a proposta de seguro de fls. 74 e segs” – cfr. alínea T) da matéria de facto provada.
2. Contudo, o que resultou da prova produzida, mais concretamente das próprias declarações de parte da autora, foi não só que a autora assinou a proposta de seguro junta aos autos, como também, que assinou a referida sem a ler – As declarações de parte foram gravadas através da aplicação Habilus Média Studio, com início às 15:00 horas e fim às 15:31 horas.
3. Das declarações de parte da autora decorre ainda que esta assinou a proposta sem ler porque não quis.
4. Assim, deverá a redacção da alínea T) da matéria de facto ser alterada da seguinte forma: “A autora assinou a proposta de seguro de fls. 74 e segs. sem a ler previamente”.
5. Concomitantemente, deverá ser aditado à matéria de facto provada um novo facto, com a seguinte redacção: “A autora não leu a proposta de seguro antes de a assinar porque assim não quis”.
6. Nos artigos 18.º e seguintes da contestação, a ré, ora apelante, alegou, em suma, que:
- Quando subscreveu a proposta de seguro, a autora, ora apelada, conhecia as patologias de que era portadora;
- Quando subscreveu a proposta de seguro, a autora, ora apelada, omitiu as referidas patologias;
- Quando omitiu as referidas patologias, a autora, ora apelada, fê-lo de forma consciente e deliberada, ou seja, fê-lo dolosamente;
- Caso a ré, ora apelante, tivesse tido conhecimento das referidas patologias, o contrato de seguro não teria sido celebrado, pelo menos, não certamente nos termos em que o foi.
7. Ou seja, a ré defendeu-se por excepção – a anulabilidade por falsas declarações – e alegou todos os factos que integram e concretizam o conceito de falsas declarações.
8. Todos os referidos factos resultaram da prova produzida, mas o Tribunal a quo não os incluiu nos factos provados.
9. O facto de a autora conhecer as patologias de que sofria no momento da subscrição do contrato de seguro foi provado por confissão, designadamente nos artigos 41.º e seguintes da petição inicial.
10. O mesmo facto resultou provado do documento nº 6 da petição inicial, o qual constitui um atestado emitido pela médica de família da autora, a Dr.ª (…).
11. Esta médica, por sua vez, corroborou estes factos em sede de audiência de julgamento, ou seja, que a autora sabia perfeitamente o seu estado de saúde, tanto mais que estava medicada para as 3 patologias – O depoimento da testemunha foi prestado por videoconferência e gravado através da aplicação Habilus Média Studio, com início às 14:18 horas e fim às 14:38 horas.
12. Ora, no caso dos autos, estando em causa um contrato de seguro de vida, com cobertura complementar de invalidez, em que a ré, seguradora, invocou causas determinantes da respectiva anulabilidade – especificamente, as falsas declarações – é absolutamente essencial para a decisão da causa que este facto – que, mais uma vez, resultou cabalmente demonstrado – seja ponderado.
13. E que, face ao que se acaba de expor, seja julgado provado.
14. Assim deverá ser aditada a matéria de facto provada um facto com a seguinte redacção: “Quando subscreveu a proposta de seguro, a autora conhecia as patologias de que era portadora”.
15. Deve igualmente ser aditado à matéria de facto provada um facto com a seguinte redacção: “Quando subscreveu a proposta de seguro, a autora omitiu as patologias de que sofria à data, designadamente, colite ulcerosa, hipertensão arterial e bócio multinodular”.
16. Com efeito, no documento n.º 1 da contestação consta um questionário médico onde é perguntado o seguinte:
“4. Sofre ou sofreu de alguma(s) doença(s) relacionada(s) com:
(…)
b) Diabetes ou doenças da tiroide;
c) Aparelho cardiovascular;
(…)
e) Aparelho digestivo;
f) Sangue;
(…)”
17. A todas estas questões foi dada resposta negativa, não sendo relevante, para o efeito, quem preencheu o referido questionário.
18. O que releva é, apenas e só, que a autora assinou aquele documento e que, como tal, assumiu a paternidade do seu conteúdo.
19. Da prova produzida resultou igualmente provado que “Quando omitiu as referidas patologias, a autora, ora apelada, fê-lo de forma consciente e deliberada”.
20. Pelo que, deve o referido facto ser aditado à matéria de facto provada.
21. Com efeito, cumpre atentar, mais uma vez, nas declarações de parte da autora, das quais resultou inequívoco que esta sabia perfeitamente o que é um contrato de seguro, tanto mais que tinha o desejo de subscrever um contrato desta natureza – As declarações de parte foram gravadas através da aplicação Habilus Média Studio, com início às 15:00 horas e fim às 15:31 horas.
22. Ora, um cidadão, medianamente informado, sabe perfeitamente que na celebração de um contrato de seguro de vida, tem que declarar qualquer patologia de que tenha conhecimento, bem como qualquer medicação que esteja a tomar.
23. Acresce que, conforme esclarecido através do depoimento da já referida Dr.ª (...), a autora sabia as patologias que tinha, e estava medicada diariamente – e para sempre – para todas elas – O depoimento da testemunha foi prestado por videoconferência e gravado através da aplicação Habilus Média Studio, com início às 14:18 horas e fim às 14:38 horas.
24. Daqui decorre que, ao decidir não revelar espontaneamente as patologias de que sofria, e ao decidir não ler o contrato que estava a subscrever a autora teve um comportamento doloso, não fazendo qualquer caso do impacto que aquele comportamento poderia ter para a ré.
25. Note-se, aliás, que o questionário clínico é uma faculdade que assiste ao segurador e não uma obrigação – vide art.º 24.º da Lei do Contrato de Seguro – pelo que ainda que a proposta não tivesse qualquer questionário, a autora estava obrigada a declarar o seu verdadeiro estado de saúde.
26. Por fim, deve ainda ser aditado à matéria de facto provada um facto com a seguinte redacção: “Caso a ré tivesse tido conhecimento das referidas patologias, o contrato de seguro não teria sido celebrado, pelo menos, não certamente nos termos em que o foi.”
27. Com efeito, a prova deste facto resultou mais do que evidente do depoimento da testemunha Dr. (...), que explicou inclusivamente, de forma clara e isenta, o impacto que cada uma das patologias omitidas tem para na fase da avaliação do risco – O depoimento foi gravado através da aplicação Habilus Média Studio, com início às 14:45 horas e fim às 15:06 horas.
28. Saliente-se, por fim, que ao contrário do que parece ter entendido o Tribunal a quo, a circunstância de as informações omitidas em nada estarem relacionadas com a causa da invalidez, de nada releva.
29. Com efeito, os pressupostos da validade de um contrato aferem-se no momento da sua celebração.
30. Ora, de todo o exposto resulta inequívoco que no momento em que aceitou celebrar o contrato de seguro em causa nestes autos, a vontade da ré, ora apelante, estava inquinada, pois que desconhecia em absoluto o verdadeiro estado de saúde da segurada.
31. Pelo que, tendo o referido facto resultado provado, e sendo um facto essencial para a defesa da ré e, acima de tudo, para a decisão da causa, deverá ser aditado à matéria de facto provada.
32. Em face do exposto, a ré provou todos os factos constitutivos da excepção invocada, ou seja, que aquando da celebração do contrato de seguro a autora proferiu falsas declarações e, como tal, o referido contrato é anulável.
33. Assim, não se alcança o sentido da douta decisão recorrida.
34. O momento relevante a atender nos presentes autos é o momento da celebração do contrato.
35. Ora, nesse momento, a vontade da ré estava evidentemente inquinada pois não sabia – nem tinha como saber – o verdadeiro estado de saúde da autora.
36. Assim, tendo a segurada omitido e declarado inexactamente, e de forma consciente, circunstâncias relevantes para a ré, ora apelante, fazer uma correcta avaliação do risco coberto pelo contrato de seguro, a ré não está obrigada a cobrir o sinistro.
37. A anulabilidade do contrato de seguro importa a absolvição da ré, ora apelante, do pedido nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 576.º, n.º 3, do CPC.
38. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto nos art.ºs 405º e 406º do CC, e ainda os art.ºs 24º e 25º da Lei do Contrato de Seguro”.
Concluiu a minuta recursiva requerendo que seja dado provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e substituindo-se por outra que absolva a apelante.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões a apreciar:
i. determinar se ocorreu erro de julgamento quanto à matéria da excepção invocada pela recorrente, devendo ser aditada a factualidade por esta indicada;
ii. decidir se o contrato celebrado é anulável por força das declarações falsas prestadas pela segurada.
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A recorrente, conforme resulta das transcritas conclusões, pretende seja aditada a factualidade por si alegada nos art.ºs 18.º e seguintes da contestação, que constituem matéria de excepção, indicando terem todos eles resultado provados por confissão da própria autora, sendo certo que, quando assim não fosse entendido, sempre seria prova suficiente o atestado médico junto aos autos e o testemunho prestado pela médica de família que o subscreveu, impondo-se ainda a consideração das declarações prestadas pela testemunha Dr. (…).
Propõe assim o aditamento da seguinte factualidade:
"Quando subscreveu a proposta de seguro, a autora conhecia as patologias de que era portadora”.
“Quando subscreveu a proposta de seguro, a autora omitiu as patologias de que sofria à data, designadamente, colite ulcerosa, hipertensão arterial e bócio multinodular”.
“Quando omitiu as referidas patologias, a autora, ora apelada, fê-lo de forma consciente e deliberada”.
“Caso a ré tivesse tido conhecimento das referidas patologias, o contrato de seguro não teria sido celebrado, pelo menos, não certamente nos termos em que o foi.”
Sustenta ainda que, tratando-se de matéria com relevo para a decisão e tendo igualmente resultado demonstrada, devem ser considerados os factos de a autora não ter lido a proposta que assinou e não a ter lido porque não quis, o que teria igualmente resultado das declarações da própria.
Apreciando:
A propósito do ónus de alegação das partes e poderes de cognição do Tribunal, dispõe o art.º 5.º do CPC que “Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas” (vide n.º 1).
No caso em apreço, e tal como a recorrente bem faz notar, defendeu-se por excepção, no caso peremptória, invocando a anulabilidade do contrato de seguro celebrado por erro dolosamente provocado pela autora, quando prestou informações inexactas ou mesmo falsas ao responder negativamente ao questionário que acompanhava a proposta, uma vez que à data, conforme bem sabia, padecia das três patologias identificadas, para as quais há muito se encontrava medicada.
A matéria controvertida atinente à excepção não integrou os temas da prova, nada se perguntando quanto ao conhecimento que, à data da celebração do contrato, a autora teria das doenças de que padecia e repercussão da errada informação na formação da vontade da ré. A sentença é assim omissa quanto a factos relevantes para a decisão da excepção, omissão que, a não ser possível supri-la, determinaria a anulação da decisão para ampliação da matéria de facto nos termos consentidos pelo art.º 662.º n.º 2, al. c), na sua parte final. No entanto, e como se vê das alegações, tal factualidade foi objecto de instrução, cabendo portanto determinar se, face à prova produzida e convocada pela recorrente, devem ou não ser aditados à factualidade apurada.
No que respeita ao conhecimento que a autora tinha ao tempo da celebração do contrato de que padecia já das três patologias referidas em S), resultou comprovado não só das declarações que pela própria foram prestadas, como do testemunho da médica de família e subscritora do atestado que faz fls. 58 dos autos, Dr.ª (…), encontrando-se inclusivamente medicada para todas elas.
Identicamente, assiste razão à recorrente quando defende ter resultado igualmente demonstrado que, a serem tais patologias conhecidas e o contrato não teria sido celebrado nas mesmas condições, conforme explicou o Dr. (…), uma vez que se tratava de patologias com risco de complicações graves, quer no caso da colite ulcerosa, quer da hipertensão arterial, ainda que controladas pela medicação.
Todavia, a prova produzida e convocada pela recorrente já não permite que se dê como assente que a autora omitiu de forma deliberada e consciente tais informações. Com efeito, das declarações pela própria prestadas, corroboradas pelo resultado do relatório pericial, resultou que nenhuma das menções escritas constantes do documento é do seu punho, tendo a testemunha (…), agente da (…) entre 1996/1997 e 2002/2003, assumido a sua autoria, com excepção dos elementos constantes do quadro “dados da primeira cobrança”, sendo, no entanto, seus os algarismos referentes ao “prémio provisório”.
Por outro lado, tendo em consideração o testemunho prestado por (…), marido da autora que à época contratou igualmente um seguro, descreveu este o momento da subscrição em termos perfeitamente idênticos aos daquela, convencendo que, efectivamente, e tal como foi pela demandante relatado, apenas a última folha lhe foi presente pela testemunha (…), para que assinasse no lugar da “cruzinha” (sinal que consta efectivamente da proposta cujo original se encontra a fls. 175 dos autos), nenhuma pergunta tendo sido feita a respeito das suas condições de saúde. E a versão assim relatada é tanto mais credível quando se considere que na proposta a autora é dada como “empregada de balcão num café”, actividade que, segundo a própria declarou – no que foi corroborada pelos testemunhos de (…), sua amiga há mais de 30 anos, e de seu referido marido, (…) –, nunca exerceu, antes tendo sempre trabalhado na fábrica dos curtumes, bem como a menção de que pesava 73Kg quando à data, conforme o marido asseverou, pesaria mais de 80Kg ou até 90Kg, no dizer da própria. Como parece evidente, a autora não tinha qualquer interesse em mentir quanto à profissão que exercia, tanto mais que, segundo referiu, era facto conhecido da testemunha (…).
Acresce que, pese embora a amnésia de que a testemunha (…) foi acometida – declarou não reconhecer sequer a autora apesar desta o ter relembrado presencialmente que se conheciam da Cooperativa, supermercado que frequentava –, não deixou de confirmar que, tal como esta referiu, ali mantinha um pequeno escritório onde angariava seguros, sendo o referido (…) seu conhecido. Aliás, a este respeito, juízo que se estende à totalidade das declarações que prestou, a autora foi muito credível, tendo fornecido pormenores que conferiram verosimilhança e consistência ao relato feito, corroborado, como se referiu, pelo testemunho prestado pelo seu marido, presente aquando da assinatura da proposta. Acresce que, conforme se fez notar, só o facto de a proposta ter sido preenchida à sua revelia explica a menção a elementos falsos, que a própria nenhum interesse tinha em falsear, sinal evidente que não se encontrava presente quando o documento foi completado pela testemunha (…), depois de lhe ter sido entregue pelo mencionado (…).
No descrito contexto não há a mínima evidência que a autora tivesse consciência de que estava a omitir o que quer que fosse e muito menos que o estivesse a fazer deliberadamente, improcedendo a pretendida alteração da factualidade a este respeito dada como assente.
No que respeita à pretensão da recorrente no sentido de se dever considerar provado que a autora não leu a proposta e não o fez porque não quis, trata-se de uma ilação que os factos não suportam, atendendo ao modo como se deu a subscrição. Com efeito, conforme se acreditou ter ocorrido face às declarações da própria, corroboradas, ainda que indirectamente, pelo resultado da prova pericial à letra e testemunho de seu marido, não infirmados, à autora foi presente apenas a última página da proposta, para que “assinasse na cruzinha”, segundo instruções da testemunha (…). E embora dessa página conste no seu topo a menção “Continuação” e uma parte do questionário que, conforme referiu e se acredita, estava então em branco, mesmo para um destinatário médio, colocado no lugar do destinatário real, não vemos que lhe fosse exigível que depreendesse que a proposta estava incompleta, e muito menos que lhe caberia preencher, ou que alguém fosse preencher por si, as menções que se encontravam em branco.
Atento o que vem de se expor, tendo resultado efectivamente provado que a autora não leu a proposta, terá que ficar igualmente a constar da factualidade assente, em respeito à prova produzida, que lhe foi presente apenas a página onde deveria apor a sua assinatura no local assinalado.
Procede assim parcialmente, nos termos que se deixaram exposto, a impugnação deduzida pela recorrente contra a decisão de facto.
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II. Fundamentação
De facto
Estabilizada, é a seguinte a factualidade a atender:
A) A autora celebrou contrato de seguro de vida individual, temporário, anual renovável, com a Seguradora (…) – American Life Company, ao qual foi atribuído a Apólice n.º (…).
B) A seguradora (…) – American Life Insurance Company, encerrou a sua representação em Portugal, tendo transmitido a carteira de seguros e respectivas responsabilidade associadas para a Ré (…), que é a representante em Portugal e está autorizada a aceitar a transmissão de parte da carteira.
C) O objecto social da Ré (…) é “…aceitar a transmissão da carteira da sucursal portuguesa da American Life Insurance Company ("…"), que está autorizada a comercializar seguros de vida, seguros de acidentes pessoais e de saúde e a gerir fundos de pensões.
D) A sucursal exerce a actividade seguradora no âmbito das classes 1, 3 e 7 do ramo vida e das classes 1 e 2 do ramo não-vida, tendo aceitado a transmissão da carteira de seguros.
E) A Autora, no dia 19/01/2004, celebrou contrato de seguro de vida individual, temporário, anual e renovável, ao qual foi atribuído a Apólice n.º (…).
F) O contrato de seguro celebrado tinha como pessoa segura a aqui autora e visava protegê-la ou os seus herdeiros em caso de invalidez permanente ou morte.
G) Nas condições particulares do seguro efectuado constavam as seguintes menções:
- Apólice n.º (…);
- Data de início: 01 de Janeiro de 2004;
- Produto: temporário anual renovável;
- Segurado: (…);
- Pessoa segura: (…);
- Beneficiários: cônjuge e na falta deste, os filhos;
- Cobertura principal: Morte;
- Cobertura complementar: Invalidez Total Permanente;
- Capital Seguro: € 22.500,00.
H) A Autora figura no seguro como beneficiária do mesmo, em caso de invalidez total e permanente.
I) O contrato de seguro foi anual e sucessivamente renovado, tendo a autora pago atempadamente os respectivos prémios.
J) Foi emitido pelo Ministério da Saúde, Junta Médica tendo como Presidente a Sr.ª Dr.ª (…), através da ARS Lisboa e Vale do Tejo Lezíria, em 18/09/2014, atestado médico de incapacidade multiuso, atribuindo à Autora um grau de incapacidade permanente global de 68% (sessenta e oito por cento) cuja avaliação de incapacidade resulta da TNI anexo I aprovada pelo DL n.º 352/2007 de 23.10, conforme se extrai do teor de fls. 61 dos autos.
K) A Autora comunicou à Ré o facto referido na al. anterior, visando o pagamento da indemnização pela invalidez total e permanente de que sofre.
L) O pedido de pagamento de indemnização foi feito em impressos próprios elaborados e fornecidos à Autora pela mediadora da Ré, Sr.ª D.ª (…), nos escritórios da (…) na Rua Dr. (…), Lote 3, Loja A, Quinta da (…), 2350 - 565 Torres Novas, e que assinou a solicitação desta funcionária, deles não tendo cópia e desconhecendo o respectivo conteúdo.
M) Após o pedido de pagamento da indemnização a Autora foi convocada para realização de exame médico nos serviços clínicos da Ré no dia 17/11/2014, pelas 11 horas, ao qual compareceu acompanhada de todos os elementos clínicos.
N) Por meio de comunicação datada de 16/12/2014 a Ré informou declinar o pagamento da indemnização, invocando que: “De facto, aquando da subscrição do contrato de seguro, a pessoa segura não informou a (…) sobre o verdadeiro estado de saúde, a qual por essa razão não teve capacidade de avaliar devidamente o risco correspondente ao verdadeiro estado de saúde da Pessoa Segura que, com base nas informações agora na sua posse, teria recusado.”
O) Mais foi invocado pela Ré que “De acordo com o Artigo 7.º.1 – Agravamento do Risco das Condições Gerais da Apólice, “o Tomador do Seguro e a Pessoa Segura obrigam-se a declarar à Seguradora quaisquer factos ou circunstâncias que, face à declaração de subscrição completada antes da celebração do contrato, agravem o risco, sendo esse agravamento de natureza tal que se fosse conhecido aquando da celebração teria levado a Seguradora a recusar o contrato ou a concluir o seguro em condições mais onerosas”.
P) Após o pedido de pagamento da indemnização a autora disponibilizou todas as informações clínicas e exames médicos realizados, os quais deu a conhecer à Ré, e autorizou a sua consulta junto dos hospitais onde recebeu tratamentos.
Q) A autora pagou a quantia de € 1.832,12 (mil e oitocentos e trinta e dois euros e doze cêntimos) correspondentes aos prémios relativos aos anos de 2004 a 2014.
R) A Autora sofre de colite ulcerosa desde 2007 e sofre de hipertensão arterial (HTA) há cerca de 25 anos e é, ainda, portadora de bócio multinodular (hipotiroidismo), há cerca de 16 anos.
S) Em 9 de Dezembro de 2003 a A. já era portadora de colite ulcerosa (doença inflamatória no intestino), de hipertensão arterial (HTA) segundo dados clínicos medicada desde 2007 (embora conste do registo clínico do centro de saúde Alcanena há mais de 25 anos), e de bócio multinodular (doença na tiroide) desde 1998.
S1) Aquando da subscrição da proposta a autora sabia ser portadora das patologias referidas em S), para as quais se encontrava medicada.
S2) Caso a ré tivesse tido conhecimento das referidas patologias, não teria aceitado celebrar o contrato de seguro nas condições em que o fez.
T) A autora assinou a proposta de seguro de fls. 74 e segs, que não leu, tendo-lhe sido presente apenas a última folha para que assinasse.
U) Em 2009, mais de cinco anos após a celebração do contrato de seguro, foram detectados à Autora fibromiomas uterinos.
V) Em Janeiro de 2013, cerca de dez anos após a celebração do contrato de seguro, a Autora detectou nódulo mamário, sendo submetida a intervenção cirúrgica, na qual foi feita excisão de um nódulo da mama esquerda, histerectomia total com anexotomia direita, exérese de verruga do grande lábio esquerdo e eletrocoagulação de outra à direita.
W) Em 2013, foi detectado à Autora aguçamento osteofitário do contorno posterior do olecrânio em relação com bursite cronica, fenómenos de enteropatia degenerativa bilateral mais acentuada à direita, Gonartrose Bilateral, esporões do calcâneo, uncodiscartrose com compressão das raízes nervosas de C6.
X) A autora teve conhecimento do que padecia de fibromiomas uterinos em 2009 e que em 2013 se tonou necessária a intervenção cirúrgica.
Y) Aquando da formalização do contrato de seguro de vida a autora apenas foi questionada quanto ao seu posto e local de trabalho, nenhuma questão tendo sido colocada quanto ao seu estado de saúde pelos funcionários da Ré.
Z) A Autora desconhece quem respondeu ao questionário constante da proposta de seguro de vida.
AA) Toda a documentação referente à proposta foi tratada pelos funcionários da Ré.
BB) A Autora não foi informada da necessidade de preencher o questionário médico ou sequer da existência do mesmo na proposta de seguro que lhe foi entregue para assinar.
CC) A autora, à data da celebração do contrato, exercia a sua actividade profissional sem qualquer limitação, actividade que requeria grande esforço físico.
DD) A colite ulcerosa é uma doença que pode ser tratada como se fosse uma doença auto imune embora não exista consenso relativamente a este aspecto.
EE) A colite ulcerosa foi tratada sem necessidade de intervenção cirúrgica e pode ser tratada sem necessidade de intervenção cirúrgica.
FF) A colite ulcerosa é ou pode vir a ser, por alguma forma, incapacitante para o trabalho em geral dependendo do grau, exacerbações ou sintomas associados.
GG) A colite ulcerosa contribuiu para a fixação da incapacidade atribuída à Autora pela junta médica na percentagem de 4, 97%.
HH) A Hipertensão arterial é incapacitante para o trabalho em geral dependendo do grau.
II) A Hipertensão arterial contribuiu para a fixação da incapacidade atribuída à Autora pela junta médica à razão de 2, 62%.
JJ) O bócio multinodular só é tratado com intervenção cirúrgica quando existam critérios de suspeição de malignidade associados aos nódulos ou quando existam sintomas compressivos.
KK) A autora teve necessidade de intervenção cirúrgica em 2009 porque o bócio apresentou sintomas compressivos.
LL) O bócio multinodular pode ser tratado sem necessidade de intervenção cirúrgica caso não exista suspeição de malignidade associados aos nódulos ou sintomas compressivos.
MM) O bócio multinodular não é incapacitante para o trabalho em geral.
NN) O bócio multimodelar não contribuiu para a fixação da incapacidade atribuída à Autora pela junta médica.
OO) A Autora encontra-se total e definitivamente incapacitada para o exercício de qualquer actividade profissional, uma vez que foi operária de curtumes, actividade que implica esforço físico acentuado sobretudo por força das limitações a nível osteoarticular acrescido das restantes patologias de que padece.
PP) Os fibromiomas uterinos podem ser causa de invalidez e/ou de morte quando associada a complicações pós operatórias.
QQ) O nódulo mamário pode ser causa de invalidez e/ou de morte, dependendo da sua etilogia: se for maligno.
RR) A autora revelou resultado anátomo-patológico benigno.
SS) A enteropatia degenerativa não é causa de invalidez de forma directa; no entanto, se acentuada, é incapacitante dependendo das articulações afectadas.
TT) A colite ulcerosa pode contribuir ou ser causa de invalidez dependendo do grau e da necessidade de tratamento, sendo que no caso da autora a colite manteve-se estável com sintomatologia ligeira face à terapêutica com messalazina.
UU) O bócio multinodular pode contribuir ou ser causa de invalidez e/ou de morte quando cresce até ao tórax e cria um conflito de espaço no orifício torácico superior, podendo ocorrer problemas respiratórios que ponham em risco a vida do paciente.
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Não se provou que:
- a autora preencheu com o seu punho o questionário médico da proposta de seguro de fls. 74 e seguintes;
- aquando da aposição da sua assinatura na proposta a autora tivesse omitido de forma deliberada as patologias de que sabia ser portadora.
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Do direito
Da (in)validade do contrato celebrado
Adquirido nos autos que a autora/apelada sofre de invalidez permanente para efeitos da cobertura contratada – a questão, suscitada na contestação, foi pela apelante excluída do objecto do recurso, encontrando-se, portanto, definitivamente assente – insiste a recorrente na invalidade do contrato, por erro vício na formação da vontade, determinado pelas falsas informações prestadas pela tomadora e, simultaneamente, pessoa segura.
Antes de mais, cumpre esclarecer que, conforme a recorrente bem refere, o momento relevante para se aferir da validade do contrato é o da sua celebração, daqui decorrendo que é ainda aplicável ao caso dos autos o art.º 429.º do Comercial, em vigor ao tempo. Com efeito, e apesar do artigo 2.º, n.º 1, do DL n.º 72/2008, de 16/4 (Lei do Contrato de seguro), que entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2009, mandar aplicar o novo regime aos contratos de seguro celebrados após a sua entrada em vigor e, bem assim, “ao conteúdo dos contratos de seguro celebrados anteriormente que subsistam à data da sua entrada em vigor, com as especificidades constantes dos artigos seguintes", a lei nova, conforme ao que se crê sem divergência vem sendo entendido, não se aplica à formação do contrato, mas tão-somente às questões relacionadas com o seu conteúdo, ou seja, com a execução do vínculo (cfr. o acórdão do STJ de 12/7/2018, no processo 2016/15.9 T8CSC.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt)[1].
Sob a epígrafe “Nulidade do seguro por inexactidões ou omissões” estatuía-se no corpo do art.º 429.º do Código Comercial que “Toda a declaração inexacta, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tornam o seguro nulo”.
Pese embora o “nomen iuris”, consolidou-se na doutrina e jurisprudência o entendimento de que o vício aqui previsto era o da anulabilidade[2], por ser a sanção geralmente estabelecida para a tutela dos interesses particulares de uma das partes contratantes.
Previa-se assim no preceito sob apreciação um regime distinto do regime comum dos vícios da vontade, consagrando a invalidade do contrato “(…) desde que se verificasse ter havido qualquer declaração inexacta ou reticente de factos conhecidos do tomador do seguro que tivessem podido influenciar a existência ou as condições do seguro, independentemente do tomador estar de boa ou de má-fé (…), e não se exigindo qualquer nexo de causalidade entre o facto ou circunstância omitido(a) ou inexactamente declarado(a) e o facto ou circunstância que determinou o sinistro”[3].
Exigia assim a lei que a inexactidão ou ocultação incidissem sobre factos ou circunstâncias susceptíveis de influenciar a existência e condições do contrato, de sorte que, sendo conhecidos do segurador, este, ou não contrataria de todo, ou celebraria o contrato em diversas condições, encargo probatório da seguradora[4]. Estão, pois, em causa factos e/ou circunstâncias capazes de influenciar a avaliação do risco, sendo de reconhecer como tal todos aqueles relativamente aos quais existiam no questionário proposto perguntas específicas[5].
No caso dos autos, e conforme o acervo factual dá conta, estamos perante uma situação peculiar, uma vez que a autora, tomadora do seguro (e simultaneamente a pessoa segura), não só não respondeu ao questionário, como não foi informada da necessidade do seu preenchimento ou sequer da existência do mesmo na proposta de seguro que lhe foi presente para que assinasse, e que assinou. Não podemos assim considerar, neste caso, que o mediador se limitou a prestar auxílio material a um acto praticado pelo segurado, sendo este por ele responsável (cf. o caso apreciado pelo TRL 15/12/2011, processo 575/08.6 TCFUN.L1-7 em www.dgsi.pt), nem tão pouco parece aplicável a solução encontrada no acórdão do STJ de 14/2/2017, no processo 2294/12.0 TVLSB.L1.S1, no indicado sítio, que, num caso em que o questionário de saúde, pese embora tenha sido assinado pelo A. e sua mulher, não foi por eles preenchido, considerou, ainda assim, que “(…) ao assinar o questionário, devidamente preenchido, a falecida EE subscreveu o conteúdo das respostas dadas, assumindo toda a responsabilidade daí resultante, independentemente de não ter sido ela a proceder ao seu (prévio) preenchimento”.
No caso que nos ocupa, tendo-se a autora limitado a assinar a folha que lhe foi presente, no local indicado, ciente embora de que assim expressava a sua vontade em celebrar um contrato de seguro do ramo vida, cobrindo os riscos de morte ou invalidez permanente, não se afigura poderem ser-lhe imputadas as respostas ao questionário posteriormente inseridas no documento sem o seu conhecimento. Prefigurando-se uma situação em tudo idêntica à da falta de consciência da declaração prevista no art.º 246.º do Código, e não permitindo a factualidade apurada que se conclua pela culpa da declarante, a solução será a ali estatuída, não produzindo as respostas dadas ao questionário quaisquer efeitos.
Sustenta, no entanto, a recorrente que, não estando vinculada a elaborar um questionário, mesmo a admitir que a autora não tivesse dado conta da sua formulação, ainda assim estava obrigada a revelar as patologias de que padecia e para as quais estava medicada, pois bem sabia serem relevantes para a seguradora formar esclarecidamente a sua vontade de contratar ou não contratar e em que condições, o que decorre do princípio da boa-fé.
A este respeito, e tal como faz notar o Sr. C.º Abrantes Geraldes[6] reportando-se à lei nova mas em termos perfeitamente transponíveis para a lei em vigor ao tempo da celebração do contrato aqui ajuizado, compreende-se a obrigação de uma declaração exacta e integral quando se reporte a circunstâncias susceptíveis de agravar o risco concretamente transferido para a seguradora cujo conhecimento, de acordo com as regras da experiência comum, e é este o ponto, seja exigível a cada proponente.
“Tal ocorre com frequência nos seguros de saúde ou nos seguros de vida, quando o segurado ou o tomador, oculta ou disfarça o facto de ter sofrido certas doenças ou de ser portador de determinados factores de risco cujo relevo não ignora ou não poderia ignorar (…)” (é nosso o destaque).
No entanto, e conforme justamente igualmente adverte, “Sem embargo de situações excepcionais em que o desequilíbrio informativo pode prejudicar as seguradoras, os segurados e tomadores de seguro não são, em regra, conhecedores dos aspectos ligados ao regime jurídico do contrato de seguro, designadamente mo que concerne aos critérios que as seguradoras usam para aceitação dos contratos ou fixação das respectivas condições. Em cada modalidade de seguro existem circunstâncias que, embora sendo inequivocamente relevantes para as seguradoras, podem escapar ao controlo ou ao conhecimento do segurado ou do tomador, ainda que este seja pessoa medianamente informada e diligente.”. E acrescenta, também aqui com plena pertinência, “Acresce que uma parte substancial da contratação dos seguros é feita através de mediadores, que naturalmente estão mais interessados na angariação de novos clientes ou na conclusão de novos contratos do que na exaustiva informação das circunstâncias que, na perspectiva das seguradoras, podem ser relevantes (…)”.
Revertendo ao caso dos autos, apurou-se que à data da celebração do contrato a autora era portadora de colite ulcerosa (doença inflamatória no intestino), de hipertensão arterial (HTA) segundo dados clínicos medicada desde 2007, embora conste do registo clínico do centro de saúde de Alcanena há mais de 25 anos, e de bócio multinodular (doença na tiroide) desde 1998, para o que se encontrava igualmente medicada.
Com relevância apurou-se ainda que “a colite ulcerosa pode contribuir ou ser causa de invalidez, dependendo do gau e da necessidade de tratamento, sendo que no caso da autora manteve-se estável com sintomatologia ligeira face à terapêutica com messalazina”, tendo contribuído “para a fixação da incapacidade atribuída pela junta médica na percentagem de 4,97%”; “a hipertensão arterial é incapacitante para o trabalho em geral, dependendo do grau”, tendo contribuído “para a fixação da incapacidade atribuída à autora pela junta médica à razão de 2,62%”, e “o bócio multinodular só é tratado com intervenção cirúrgica quando existam critérios de suspeição de malignidade associados aos nódulos ou quando existam sintomas compressivos”, “a autora teve necessidade de intervenção cirúrgica em 2009 porque o bócio apresentou sintomas compressivos”, não tendo no entanto contribuído para a fixação da incapacidade que lhe foi atribuída. Está finalmente provado que à data da celebração do contrato exercia a sua actividade profissional de trabalhadora de curtumes sem qualquer limitação, actividade que requeria grande esforço físico.
À luz do factualismo descrito cabe questionar se à autora era exigível, na ausência de questionário e sem que lhe tivesse sido colocada qualquer questão sobre o seu estado de saúde e doenças de que eventualmente padecia, que, de forma espontânea, tivesse relatado ao colaborador do mediador, pessoa que lhe apresentou a última folha da proposta para que a assinasse, que padecia das mencionadas patologias – as quais, como se provou, apresentavam evolução benigna, em nada a impedindo de exercer um trabalho duro e exigente –, prevendo a sua relevância para a tomada pela seguradora da decisão de contratar e em que condições.
A resposta é, a nosso ver, negativa, ainda que se reconheça que qualquer uma das referidas patologias é susceptível de apresentar complicações o que, felizmente, não se confirmou no caso da apelada. E assim é porque a exigibilidade da comunicação é aferida tendo por referência o momento da celebração do contrato, com os conhecimentos que o declarante tinha ao tempo, e o que a autora sabia ao tempo era que há muito lidava com as referidas doenças, não sofrendo qualquer limitação.
Admite-se que em casos similares aos já apreciados nos nossos tribunais -o tomador de seguro omitiu que padecia de cirrose hepática, num outro caso que havia sido submetido a intervenção cirúrgica para extirpação parcial do estômago[7], ou ainda que tinha sofrido transplante de um rim, o que implicava a toma diária de imuno supressores[8] – não seja possível sustentar que o tomador e/ou segurado não tivesse consciência do dever de revelar as patologias de que padecia, ainda que nenhuma pergunta lhe tivesse sido feita, estando em causa um seguro de vida e/ou incapacidade; já não assim, em nosso entender, na situação dos autos, em que a autora/apelada, sendo embora portadora há vários anos de doenças com potencial para provocar incapacidade, estas em nada a limitavam, como referido. Não estando em causa situações como as acima identificadas, em que a sua revelação se impõe pela evidência de que relevam para a decisão a tomar pela companhia de seguros[9], atenta a natureza do seguro a contratar, não se pode afirmar que a autora tenha violado o dever de informação, omitindo informação que sabia ser relevante.
Em suma: a omissão ou a reticência pressupõem a existência do dever de revelação e para que este exista, na ausência de qualquer indicação por parte da seguradora sobre os factos que considera relevantes conhecer, é necessário que estejamos perante facto ou circunstância cuja relevância não possa deixar de ser reconhecida pelo tomador do seguro, sendo a sua revelação um imperativo da boa-fé. Não era, como vimos, o caso, pelo que a omissão verificada não é de molde a permitir a anulação do contrato celebrado nos termos do mencionado art.º 429.º do Código Comercial.
Improcedendo os argumentos recursivos, impõe-se confirmar o julgado.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Évora, 21 de Novembro de 2019
Maria Domingas Alves Simões
Vítor Sequinho dos Santos
Mário Rodrigues da Silva
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[1] Neste mesmo sentido, Helena Tapp Barroso, “Aplicação da lei no tempo”, em “Temas de Direito dos Seguros”, Almedina, pág. 43. [2] Cf. Abrantes Geraldes, “O novo regime do contrato de seguro – antigas e novas questões”, acessível em http://www.trl.mj.pt/PDF/REGIME.pdf.
[3] Joana Galvão Teles, “Deveres de Informação das partes”, em “Temas de Direito dos Seguros”, pág. 365-366.“
[4] José Vasques, “Contrato de seguro”, pág. 225.
[5] José Vasques, ob. e loc. citados.
[6] “O novo regime do contrato de seguro…” cit.
[7] Exemplos, a par de outros, referidos pelo C.º Abrantes Geraldes em “O Novo regime do contrato de seguro…”
[8] Caso apreciado pelo TRL de 23/9/2010, processo 1295/04.6 TBMFR-6, em www.dgsi.pt.
[9] Mesmo a hipertensão, embora perigosa, é infelizmente ignorada por largo número de portugueses, que tendem a desconsiderá-la, tardando em reconhecer a sua perigosidade.