Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
47/15.2IDBJA.E1
Relator: ANTÓNIO JOÃO LATAS
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
RECEBIMENTO DA PRESTAÇÃO TRIBUTÁRIA
Data do Acordão: 01/24/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I - Contrariamente à obrigação fiscal de entrega das quantias correspondentes a IVA liquidado e não dedutível, o preenchimento do tipo legal de Abuso de confiança fiscal p. e p. pelos nºs 1 e 2 do art. 105.º do RGIT, por falta de entrega de IVA liquidado, depende do efetivo recebimento de prestação tributária de valor superior a € 7.500 relativa a quantias derivadas do Imposto sobre o Valor Acrescentado em relação às quais haja obrigação de liquidação, e que tenham sido liquidadas (cfr. AFJ do STJ nº 8/2015), até à data de entrega de tais quantias, juntamente com a declaração periódica a que se reportam os arts 29.º e 41.º, do CIVA.
Decisão Texto Integral:
Em conferência, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

I. Relatório

1. – Nos presentes autos de processo comum com intervenção do tribunal singular que correm termos na Secção Criminal da Instância local de Beja, da Comarca de Beja, foi sujeito a julgamento A., natural de Beja, nascido em 09.06.1963, divorciado, empresário, a quem o MP imputara a autoria material de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos art. 105.º, n.ºs 1 e 4 e 8.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5/6.

2. - Realizada a Audiência de discussão e julgamento, o tribunal a quo decidiu condenar o arguido, A, pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal (p. e p. pelos art. 105.º, n.ºs 1 e 4 e 6.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5/6 e artigo 30.º, n.º 2 do Código Penal) na pena de 275 (duzentos e setenta e cinco) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz o montante de € 1.650,00 (mil seiscentos e cinquenta euros);

3. – Inconformado, recorreu o arguido, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«1.ª — O Tribunal recorrido condenou o arguido A. pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos art. 105º nº 1 e 4 e 6 do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5/6, e artigo 30.º, n.º2 do Código Penal, na pena de 275 dias de multa à taxa diária de € 6,00

2.ª— No caso do IVA, só comete o crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105º do RGIT, aquele sujeito passivo que tendo efectivamente recebido o montante devido pela cobrança do imposto e esteja por isso obrigado à sua entrega ao Estado, o não faça no prazo legalmente fixado para tal — neste sentido a jurisprudência uniforme firmada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2015, de 29/04/2015 – publicado no Diário da República nº 106/2015, Série I DE 2015-06-02, (Processo: 85/14.2YFLSB /Relator: Santos Cabral), disponível em http://www.dgsi.pt.

3.ª — Não resulta do depoimento do arguido qualquer confissão deste ter recebido o IVA em apreciação nos presentes autos.

4.ª — Na douta sentença ficou como provado que o arguido/recorrente recebeu e não entregou à Administração Tributária o IVA devido, relativamente ao período de 2013/12T, pela importância de 11.291,16 € (onze mil, duzentos e noventa e um euros e dezasseis cêntimos) no prazo legalmente estabelecido (17.02.2014), nem nos 90 dias seguintes ao termo daquele prazo, nem nos 30 dias concedidos após notificação para o efeito.

5.ª — Desde logo convém dizer que, quer a Acusação pública, quer a Douta Sentença recorrida omitem a identificação dos clientes a quem foi liquidado o IVA em causa, as facturas a que respeita o mesmo IVA, os preços e mercadorias facturadas, o imposto deduzido devido ao arguido, etc...

6.ª — De todo o modo, sucede que, aquele valor está em contradição com a prova documental recolhida, em sede de inquérito, e junta aos autos pela Administração Tributária e Aduaneira.

7.ª — Segundo esses documentos, designadamente os de fls. 131 a fls. 145, que são extractos da conta bancária D.O., aberta na Caixa Geral de Depósitos, da firma A. UNIPESSOAL, firma que é a cliente a quem foi liquidado o IVA em causa (e de que o arguido é o único sócio-gerente), verifica-se que não foram feitos quaisquer pagamentos ao arguido dos montantes em causa nos meses de Abril a Setembro de 2014, ao contrário do sustentado pela (única) testemunha de acusação JC.

8.ª — Dos extractos referentes aos meses de Abril a Setembro de 2014, os saldos apurados não ultrapassam os montantes de + € 23.063,72 (mês de Abril de 2014), + € 9.930,82 (no mês de Maio de 2014), + € 18.872,81 (saldo transitado para o mês de Junho de 2014), e outras verbas inferiores, mas sempre inferiores aos € 60.270,00 que sempre teriam que ter sido pagos ao arguido A. para neles se poder considerar incluído o IVA de 23%.

9.ª— O arguido deu em juízo uma explicação cabal, e perfeitamente aceitável, dentro dos parâmetros da normalidade e do razoável, justificando não ter recebido duma sua empresa, de que é o único sócio-gerente, o IVA que teve que liquidar-lhe, e os preços constantes das facturas que foi constrangido pela AT a ter de emitir, por equipamentos, existências e obras que transmitiu/transferiu àquela sua empresa.

10.ª — Cabia à acusação provar que o arguido A. recebeu da A., Unipessoal Lda, a firma a quem foi liquidado o IVA no valor constante da Douta Acusação, montantes superiores a € 60.000,00, pois só assim se pode considerar incluído neles o valor de € 11.291,16 do IVA correspondente (à taxa de 23%).

11.ª — Não tendo tal prova sido feita, designadamente através dos documentos juntos aos autos (de fls. 46 a 51, 71 a 103, 111 a 128, 131 a 146), as declarações da testemunha JC prestadas no dia 08-06-2016, das 10:38:01 às 11:06:53, designadamente, as passagens a 17:58 a 20:00 (transcritas na motivação), no sentido de que nos autos há prova documental dos recebimentos do IVA em causa por parte do arguido, estão infirmadas, não podendo as mesmas ser valoradas positivamente neste ponto.

12.ª — Razões estas porque, deverão V.Exas alterar o julgamento da matéria de facto, julgando não provados os pontos 6, 7 e 8 dos factos provados

13.ª — Circunstância que, dita que V.Exas julguem a Douta Acusação pública improcedente, por não provada, e absolvem o arguido do crime por que vem acusado.»

4. – Notificado para o efeito, o MP junto do tribunal a quo apresentou a sua resposta, concluindo pela improcedência do recurso.

5.- Nesta Relação, o senhor Procurador-Geral Adjunto apresentou o seu parecer, concluindo nos mesmos termos.

6. – Notificado daquele parecer, o arguido nada acrescentou.

7. – Decisão recorrida (transcrição parcial):

«III. 1. Matéria De Facto Provada

Produzida a prova e discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:

1. O arguido tem o NIF---- e dedica-se à panificação, comercio a retalho outros estabelecimentos, com predominância produtos alimentares, bebidas tabaco e construção de edifícios residenciais e não residenciais, com início de actividade em 15 de Janeiro de 2004 e com domicílio fiscal na Rua …, em Trigaches.

2. Com o início da aludida actividade, ficou o arguido vinculado ao cumprimento das obrigações fiscais que, na qualidade de contribuinte, lhe cabe perante a administração fiscal.

3. Em relação ao Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), estava enquadrado no regime simplificado, com periodicidade trimestral desde o ano de 2013.

4. No exercício normal da sua actividade, o arguido prestou serviços a título oneroso, sujeitos a IVA, cujo montante foi calculado aquando da facturação da prestação de serviços em questão e incluído no preço global dos mesmos, a pagar pelos seus adquirentes, o que foi feito nos termos da lei.

5. Cabia ao arguido, enquanto sujeito passivo de IVA liquidar trimestralmente o imposto devido ao Estado, deduzindo ao imposto por si facturado, o imposto por si suportado nas aquisições efectuadas.

6. Porém, o arguido decidiu, no período de 2013/12T referente ao quarto trimestre de 2013 deixar de cumprir as obrigações de entregar ao Fisco os montantes resultantes da liquidação efectuada em sede de IVA, como imposto devido ao Estado.

7. Assim, o arguido liquidou, recebeu e não entregou o IVA devido, relativamente ao período de 2013/12T pela importância de 11.291,16 € (onze mil, duzentos e noventa e um euros e dezasseis cêntimos), no prazo legalmente estabelecido (17.02.2014), nem nos 90 dias seguintes ao termo daquele prazo, nem nos 30 dias concedidos após notificação para o efeito.

8. Foi assim apurada em sede de IVA uma vantagem patrimonial indevida no valor total de 11.291,16 € por IVA liquidado e não entregue, quantia que o arguido não entregou nos Cofres do Estado.

9. O arguido agiu de forma livre, consciente e voluntariamente, bem sabendo de que era sua obrigação entregar à Administração Fiscal as quantias de IVA que liquidou e recebeu, determinando-se de acordo com o mesmo desígnio inicial, ao não cumprir com as referidas obrigações fiscais, lesando os interesses e o património colectivo do Estado Português.

10. O arguido estava inteirado do modo de funcionamento do IVA, tendo-se servido da sua relação Contribuinte/Estado para a obtenção de um enriquecimento indevido ou para causar um prejuízo ao Estado/Fisco, determinando-se e persistindo nesse inicial desígnio, através da retenção ilegal do imposto cobrado.

11. O arguido agiu livre, voluntário e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

12. O arguido é sócio-gerente da “A. Unipessoal, Lda.”, donde retira um rendimento mensal de 560,00 euros. No ano transacto tal sociedade apresentou um lucro de 3.000,00 euros, valor que o arguido fez seu.

13. O arguido encontra-se divorciado e vive só, em casa que lhe foi cedida, a título gratuito, pelos pais.

14. Tem duas filhas, com 22 e 16 anos de idade. Contribui com cerca de 100,00 a 150,00 euros mensais para as despesas de alojamento e de educação da sua filha mais velha, estudante universitária em Lisboa. Tem a guarda conjunta da sua filha de 16 anos que passa as semanas em regime de alternância na casa dos seus progenitores.

15. O arguido tem o 9.º ano de escolaridade.

16. O arguido foi julgado, no âmbito do Processo n.º ---/11.9TABJA que correu termos nesta Instância Local de Beja – Secção Criminal – Juiz 1), sendo condenado pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal à segurança social, p. e p. pelos arts.º 105.º e 107.º do RGIT, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, no montante de € 750,00 – factos de 2008.

III. 2. MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA

Inexistem factos não provados com relevo para a decisão da causa.

III. 3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
Saliente-se, em primeiro lugar, que toda a prova produzida na audiência de discussão e julgamento encontra-se integralmente gravada em suporte digital, o que permite a ulterior reprodução de toda a referida prova e um rigoroso controlo do modo como o Tribunal formou a sua convicção sobre a matéria de facto. Por esse motivo proceder-se-á a uma mais sucinta fundamentação desta convicção, sendo dado maior destaque aos aspectos essenciais em matéria de prova, tornando desnecessário tudo o que vá para além disso.

Fechado este parêntesis inicial cumpre, pois, expor os meios de prova produzidos em julgamento ou submetidos à sua discussão nessa sede em que a convicção do tribunal foi alicerçada.

Em primeiro lugar, foram criticamente analisadas as declarações prestadas pelo arguido que, admitindo ter procedido à facturação de serviços no período referente ao 4.º trimestre de 2013, sustentou que os mesmos foram prestados a uma empresa de que era igualmente sócio-gerente, sem que tivessem sido realizados os correspondentes pagamentos. De todo o modo, cumpre notar que o arguido, nessas declarações que prestou mostrou inúmeras contradições e grande dificuldade em explicar o motivo pelo qual tal facturação foi realizada, sendo antes perceptível que tal fora efectuado com o intuito de lograr obter, por parte da segunda sociedade, o acesso a fundos e, bem assim, de incentivos fiscais, de forma menos legítima.

De todo o modo, determinantes foram as declarações prestadas pela testemunha de acusação JC, inspector tributário, que assegurou que os montantes apurados a título de IVA, resultaram de uma declaração apresentada pelo arguido, não deixando de enunciar que, no âmbito do inquérito do qual foi instrutor, procedeu ao cruzamento dos valores constantes das facturas com a identidade das entidades a quem as mesmas foram emitidas, donde foi igualmente possível apurar o efectivo recebimento dos valores facturados (e consequentemente das importâncias correspondentes ao IVA).

Foi igualmente relevante a demais prova documental, a saber:

- Situação cadastral de fls. 29 a 40;
- Comprovativo da entrega da declaração periódica de IVA referente ao 4.º trimestre de 2013 (de fls. 46 a 51);
- Extractos de conta e cópia das facturas com liquidação de IVA e comprovativos de pagamento de fls. 71 a 103, 111 a 128;
- certificado de registo criminal junto ao processo de fls. 196 a 198.

Quanto à intenção do arguido, ou seja, o dolo, este está demonstrado pela análise dos factos objectivos que resultaram provados, sendo que o modo de actuação demonstra o carácter desejado da conduta.

Os factos referentes às condições pessoais, familiares, económicas e sociais do arguido decorrem das declarações que este prestou, parte em que, não sendo infirmadas por outros elementos de prova, merecem suficiente credibilidade para conduzir à sua prova.

IV. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL
Apurados os factos, cumpre efectuar o seu enquadramento jurídico, com o fito de determinar se o arguido veio a cometer (ou não) o ilícito pelo qual se encontra acusado - crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos art. 105.º, n.ºs 1 e 4 e 8.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5/6.

De acordo com o disposto no citado art.º 105.º n.º 1, “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido (…)”.

São elementos do tipo objectivo: a não entrega à Administração Tributária, total ou parcial, da prestação tributária deduzida nos termos da lei, constituindo condições objectivas de punibilidade as constantes do n.º 4 do supra citado preceito, a saber, “a) os factos descritos nos números anteriores são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; b) a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito”.

No que concerne à alínea b), embora tal questão tenha sido controversa na jurisprudência, esta foi objecto de Acórdão de Fixação de Jurisprudência, no sentido de se tratar efectivamente de uma condição objectiva de punibilidade – cfr. AC do STJ, de 09.04.2008.

Nos presentes autos está em causa a prestação relativa ao imposto sobre o valor acrescentado (IVA) do 4.º Trimestre de 2013.

Os art.º 40.º n.º 1 al. b) e 26.º n.º 1 do Código do IVA obrigam os sujeitos passivos a entregar a declaração periódica e a efectuar, simultaneamente, o respectivo pagamento. Também por força do art.º 98.º do CIRS, os arguidos são constituídos fiéis depositários de valores que passam a pertencer ao credor tributário.

Como referem Tolda Pinto e Reis Bravo, in “Regime Geral das Infracções Tributárias e Regimes Sancionatórios Especiais”, pág. 336: “Neste tipo de crime, é pressuposta uma relação em que intercedam três sujeitos. Dois deles, potencialmente lesados e outro, lesante ou agente da infracção. O Estado-Administração Fiscal, titular do crédito do imposto; o contribuinte propriamente dito, que é o sujeito substituído; o terceiro, que virtualmente é o único em posição de cometer a infracção, é o substituto, que se encontra ligado por uma relação subjacente ao contribuinte, sendo a este devedor de uma prestação de rendimentos, permitido por lei e por razões de eficácia e de comodidade de cobrança de receitas fiscais, que ocupe a posição daquele, devedor no âmbito da relação jurídica fiscal. Tal ocorrerá exclusivamente nas situações de substituição tributária, em que estão predominantemente em causa rendimentos tributáveis das categorias A, B,E, e F”.

Conforme resulta dos factos provados, o arguido é sujeito passivo de IVA e está enquadrado no regime normal, com periodicidade trimensal, sendo que nos serviços prestados e facturados foi liquidado o IVA, o qual, todavia, não foi entregue nos cofres do estado no prazo para o efeito, o que sucedeu no quarto trimestre de 2013, no valor de 11.291,16 euros, que deveria ter sido entregue nos cofres do Estado até 17/2/2014.

Por conseguinte, conclui-se pelo preenchimento dos elementos do tipo objectivo de ilícito.

Tendo decorrido um prazo superior a 90 dias sobre a data em que a entrega do IVA deveria ser efectuada, estará igualmente preenchida tal condição objectiva de punibilidade, bem como a prevista no n.º 4 do art. 105.º do RGIT.

No que concerne ao tipo subjectivo, estamos perante um crime doloso, podendo revestir qualquer uma das modalidades previstas no art.º 14.º do Código Penal. E, neste capítulo, atenta a factualidade provada, dúvidas não há de que mesmo se encontrará de igual modo preenchido, perante a demonstrada conduta dolosa assumida pelo arguido.

Por conseguinte, conclui-se pelo preenchimento dos elementos do tipo objectivo e subjectivo do crime em causa, pelo que, inexistindo qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa demonstrada, deverá o arguido ser condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal.

Determinação da medida concreta da pena a aplicar:
(…) »
Cumpre agora apreciar e decidir o presente recurso.

II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso e poderes de cognição do tribunal ad quem.

Como é entendimento consensual, são as conclusões de recurso que definem o seu objeto, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

O arguido vem impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos do art. 412º nº 3 CPP, relativamente aos pontos nºs 6, 7 e 8 da factualidade provada, que entende deverem ser julgados não provados com a consequente absolvição do crime de abuso de confiança fiscal (p. e p. pelos art. 105.º, n.ºs 1 e 4 e 6.º do Regime Geral das Infracções Tributárias pelo qual vem condenado.

2. Decidindo.

2.1. Os pontos de facto impugnados respeitam aos elementos objetivos e subjetivos do tipo de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo art. 105º do RGIT, pelo qual o arguido vem condenado, e são, lembremo-lo, do seguinte teor:

- «6. Porém, o arguido decidiu, no período de 2013/12T referente ao quarto trimestre de 2013 deixar de cumprir as obrigações de entregar ao Fisco os montantes resultantes da liquidação efectuada em sede de IVA, como imposto devido ao Estado.

7. Assim, o arguido liquidou, recebeu e não entregou o IVA devido, relativamente ao período de 2013/12T pela importância de 11.291,16 € (onze mil, duzentos e noventa e um euros e dezasseis cêntimos), no prazo legalmente estabelecido (17.02.2014), nem nos 90 dias seguintes ao termo daquele prazo, nem nos 30 dias concedidos após notificação para o efeito.

8. Foi assim apurada em sede de IVA uma vantagem patrimonial indevida no valor total de 11.291,16 € por IVA liquidado e não entregue, quantia que o arguido não entregou nos Cofres do Estado. »

2.1.1. No entanto, como resulta do conjunto da motivação de recurso e é aí explicitado, o arguido não põe em causa toda aquela factualidade, mas apenas que tenha recebido a importância de 11.291,16 € (onze mil, duzentos e noventa e um euros e dezasseis cêntimos), correspondente ao IVA liquidado e não entregue, relativo ao período de 2013/12T. Como diz no texto da sua motivação de recurso, «… a convicção do recorrente é a de que o Tribunal “a quo” cometeu uma profunda injustiça e um grave erro de julgamento, ao dar por provado o recebimento, por parte do arguido, do IVA liquidado naquele período, quando, ao invés, dada a total ausência de prova no sentido do decidido, deveria tal facto ter sido dado como não provado !».

No entender do arguido e recorrente as provas que impõem que se julguem não provados aqueles factos são as declarações do arguido, de que resulta não ter o mesmo confessado os factos que lhe foram imputados na Acusação pública, as declarações da testemunha JC prestadas no dia 08-06-2016, os documentos de fls. 131 a fls. 145 e os extratos da conta bancária aberta na Caixa Geral de Depósitos da firma A. UNIPESSOAL, firma que é a Cliente a quem foi liquidado o IVA em causa (e da qual o arguido é o seu único sócio-gerente), de onde se verifica que não foram feitos quaisquer pagamentos ao arguido, no período em questão.

2.1.2. Por sua vez, consta da apreciação crítica da prova que o tribunal julgou provados aqueles factos, nomeadamente na dimensão impugnada (i.e., quanto ao recebimento do IVA liquidado), com base no depoimento da testemunha de acusação JC, inspetor tributário, que assegurou que “… procedeu ao cruzamento dos valores constantes das facturas com a identidade das entidades a quem as mesmas foram emitidas, donde foi igualmente possível apurar o efectivo recebimento dos valores facturados (e consequentemente das importâncias correspondentes ao IVA)” e em prova documental, a saber:

(…)
- Comprovativo da entrega da declaração periódica de IVA referente ao 4.º trimestre de 2013 (de fls. 46 a 51);

- Extractos de conta e cópia das facturas com liquidação de IVA e comprovativos de pagamento de fls. 71 a 103, 111 a 128”.

2.1.3. Vejamos

Conforme entendimento que se crê pacífico e que tem sido reafirmado pela jurisprudência dos tribunais superiores, com destaque para o STJ, “… o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento não existisse, tratando-se de um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento (…)”, nomeadamente por ser julgado provado facto sem prova que o fundamente ou que o não fundamente de modo a permitir decidir além de toda a dúvida razoável (designadamente por desconsiderar prova essencial à decisão), violação de regra científica ou técnica, regra da experiência comum ou da lógica, ou com violação de norma específica de direito probatório, como é o caso do disposto nos arts 151º e 163º, do CPP, relativamente à prova pericial.

A procedência da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto depende, pois, de resultar da reapreciação da prova especificada pelo recorrente (e outra considerada relevante pelo tribunal de recurso), que o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento relativamente à matéria de facto impugnada, por violação de alguma das regras ou parâmetros supra enunciados, o que no caso presente se traduzirá – de acordo com a motivação de recurso do arguido - na falta de prova do recebimento pelo arguido da importância de 11.291,16 € correspondente a IVA liquidado e não entregue, por serviços prestados a A. Unipessoal, Lda, de que o arguido é o único sócio, entre 1.10.2013 e 31.12.2013, último trimestre desse mesmo ano.

2.1.3.1. Para melhor enquadramento da questão a decidir, importa ter presente alguns aspetos essenciais do regime substantivo do crime de abuso de confiança fiscal em causa nos autos.

Em primeiro lugar, importa ter em conta que a factualidade julgada provada nos autos integra os elementos constitutivos de um crime de Abuso de Confiança Fiscal previsto pelos nºs 1 e 2 do art. 105º do RGIT e não unicamente pelo seu nº1, o que tem implicações ao nível do preenchimento típico e punibilidade da conduta aqui em causa, que depende do efetivo recebimento da prestação de IVA liquidada e não entregue.

Na verdade, conforme entendimento que seguíamos e que foi afirmado pelo AFJ do STJ nº 8/2015, “A omissão de entrega total ou parcial, à administração tributária de prestação tributária de valor superior a € 7.500 relativa a quantias derivadas do Imposto sobre o Valor Acrescentado em relação às quais haja obrigação de liquidação, e que tenham sido liquidadas, só́ integra o tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal, previsto no artigo 105 n.º 1 e 2 do RGIT, se o agente as tiver, efectivamente, recebido.

Em segundo lugar, quanto ao momento até ao qual deve ter ocorrido o recebimento do IVA em causa, torna-se imprescindível saber qual o valor da quantia devida a título de IVA por faturação emitida em cada um dos trimestres, que o arguido efetivamente recebeu até ao 15.º dia do 2º mês seguinte àquele a que disserem respeito as operações respetivas (cfr. artigos 27.º e 41º, n.º1, alínea b), do CIVA). Com efeito, tanto a entrega das declarações relativas ao IVA, como a entrega do imposto devido, devem ser feitas até aquele momento, visto que em face do disposto no art. 105º nº2 do RGIT é também esse o momento até ao qual deve ter-se verificado o recebimento do imposto a entregar para que possa considerar-se preenchido o respetivo tipo de ilícito, pois, como vimos, o recebimento das quantias em causa é elemento do tipo legal de crime e não mera condição de punibilidade – cfr fundamentação mais desenvolvida, entre outros, no Ac RG de 22.04.2013 (relator-Cruz Bucho), Ac TRE de 26.11.2013 (relator, A. Latas), e Ac TRE de 25.03.2014, relator Carlos Jorge Berguete, ora adjunto), todos acessíveis em www.dgsi.pt).

2.1.3.2. Assim sendo, o tipo legal de Abuso de Confiança Fiscal p. e pelos nºs 1 e 2 do art. 105º do RGIT pelo qual o arguido vem condenado, apenas se mostrará preenchido se do total de 11.292,16 € de IVA referente ao último trimestre de 2013, o arguido recebera pelo menos a importância de 7 500 euros de IVA até 17.02.2014, pelo que é decisivo saber se a prova produzida permitia ao tribunal a quo julgar provado que o arguido recebeu (para além de não ter entregue) a importância de 11 291,16€ (ou, pelo menos, 7 500€) até 17.02.2014, tal como pode ler-se do nº7 da factualidade provada, ora impugnado.

Ora, da apreciação crítica da prova e das declarações prestadas em audiência pela testemunha JC (instrutor do processo), que ouvimos integralmente, concluiu-se que o tribunal a quo julgou provado o recebimento do IVA relativo às faturas datadas de 31.12.2013 por fornecimentos e prestação de serviços a A. Unipessoal, Lda, com base nas declarações daquela testemunha e no teor dos extratos de conta bancária juntos de fls 129 a 142, pois as declarações do arguido são de sentido oposto ao julgado provado e os demais elementos de prova são irrelevantes para ajuizar sobre o efetivo recebimento do IVA liquidado e o momento em que o eventual recebimento terá ocorrido.

No entanto, conjugando as declarações prestadas em audiência pela testemunha JC com os elementos documentais de fls 129 a 142, já referidos, apenas pode deduzir-se que o arguido recebeu daquela sociedade Unipessoal o IVA liquidado por serviços prestados no último trimestre de 2013, somente a partir de 1.04.2014, uma vez que os extratos bancários de fls 129 e sgs reportam-se a movimentos operados a débito na conta de A. Unipessoal, Lda. e a crédito do arguido unicamente entre 1.04.2014 e 4.09.2014, não constando daqueles extratos qualquer movimento a favor do arguido até 17.02.2014.

Ora, ficando claro do depoimento da testemunha JC que as suas declarações sobre os recebimentos que o arguido obtivera da parte da A. Unipessoal, assentavam unicamente no teor dos extratos bancários juntos pelo TOC RR no âmbito da colaboração que lhe solicitara enquanto instrutor do processo (cfr fls 104 a 111 e sgs), não pode deixar de concluir-se que o tribunal a quo julgou provado no ponto 7 da factualidade provada, que “… o arguido … recebeu …. o IVA devido, relativamente ao período de 2013/12T pela importância de 11.291,16 € (onze mil, duzentos e noventa e um euros e dezasseis cêntimos), no prazo legalmente estabelecido (17.02.2014)”, sem prova que o sustentasse, pelo que se impõe julgar não provado tal facto.

2.1.3.3. Assim, procede a impugnação relativamente ao ponto nº 7 da factualidade provada e também quanto à matéria de facto descrita sob os pontos nº 6 (que se julga não provado) e nº 8, que dependiam daquela, impondo-se modificar a decisão proferida sobre a matéria de factos (cfr art. 431º b) do CPP) nos seguintes termos:

I. Os pontos 7 e 8 e da factualidade provada passam a ter a seguinte redação:

- «7. Assim, o arguido liquidou e não entregou o IVA devido, relativamente ao período de 2013/12T pela importância de 11.291,16 € (onze mil, duzentos e noventa e um euros e dezasseis cêntimos), no prazo legalmente estabelecido (17.02.2014), nem nos 90 dias seguintes ao termo daquele prazo, nem nos 30 dias concedidos após notificação para o efeito.

8. Foi assim apurado o valor total de 11.291,16 € por IVA liquidado e não entregue, quantia que o arguido não entregou nos Cofres do Estado.

II. A decisão proferida sobre a matéria de facto passa a integrar os seguintes factos não provados:

- «III. Matéria de facto não provada

Não se provou que:

- 1. Porém, o arguido decidiu, no período de 2013/12T referente ao quarto trimestre de 2013 deixar de cumprir as obrigações de entregar ao Fisco os montantes resultantes da liquidação efectuada em sede de IVA, como imposto devido ao Estado.

2. O arguido recebeu o IVA devido, relativamente ao período de 2013/12T pela importância de 11.291,16 € (onze mil, duzentos e noventa e um euros e dezasseis cêntimos), no prazo legalmente estabelecido (17.02.2014.

-3. Foi apurada em sede de IVA uma vantagem patrimonial indevida no valor total de 11.291,16€ por IVA liquidado e não entregue”.

2.2. Ora - contrariamente à obrigação fiscal de entrega das quantias correspondente a IVA liquidado e não dedutível – o preenchimento do tipo legal de Abuso de confiança fiscal p. e p. pelos nºs 1 e 2 do art. 105º do RGIT, por falta de entrega de IVA liquidado, depende do efetivo recebimento de prestação tributária de valor superior a € 7.500 relativa a quantias derivadas do Imposto sobre o Valor Acrescentado em relação às quais haja obrigação de liquidação, e que tenham sido liquidadas (cfr, por todos o citado AFJ do STJ nº 8/2015), até à data de entrega de tais quantias, juntamente com a declaração periódica a que se reportam os arts 29º e 41º, do CIVA, como vimos.

Assim sendo e uma vez que resulta da procedência da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto que não se encontram preenchidos todos os elementos típicos daquele tipo de crime, por não se encontrar provado que o arguido recebeu da A. Unipesssoal, Lda as quantias liquidadas a título de IVA até 17.02.2014, contrariamente ao que era imputado na acusação pública e foi julgado provada na sentença recorrida, impõe-se revogar a sentença condenatória e, em substituição, absolver o arguido da prática daquele mesmo crime.

III. Dispositivo

Nesta conformidade, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder total provimento ao recurso interposto pelo arguido e - julgando procedente a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos expostos – decidem revogar a sentença condenatória recorrida e, em substituição, absolver o arguido A. do crime de abuso de confiança fiscal (p. e p. pelos art. 105.º, n.ºs 1 e 4 e 6.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5/6 e artigo 30.º, n.º 2 do Código Penal), pelo qual vinha condenado na pena de 275 (duzentos e setenta e cinco) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros), com as legais consequências.

Sem custas

Évora, 24.01.2017

(Processado em computador. Revisto pelo relator.)

António João Latas

Carlos Jorge Berguete