Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
177/14.8TTTMR.E1
Relator: BAPTISTA COELHO
Descritores: RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO
FALTA DE PAGAMENTO PONTUAL DA RETRIBUIÇÃO
JUSTA CAUSA
Data do Acordão: 06/09/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1. A falta de pagamento de retribuições, que se prolongue por mais de 60 dias, presume-se culposa, não sendo ilidível essa presunção de culpa.
2. Ao invés do que sucede com o despedimento, promovido pelo empregador com alegação de justa causa, que se insere num leque de sanções disciplinares, a aplicar de forma proporcionada à infração, a resolução do contrato, promovida pelo trabalhador por comportamento culposo do empregador, é a única reação contratual que ao mesmo a lei lhe permite.
3. Nestas circunstâncias, só em casos de reduzida gravidade e diminutas consequências deverá ter-se por afastada a justa causa invocada para a resolução do contrato.
(Sumário do relator)
Decisão Texto Integral: Proc. nº 177/14.8TTTMR.E1


Acordam os juízes que compõem a Secção Social deste Tribunal da Relação de Évora:

No Tribunal do Trabalho de Tomar, e em ação com processo comum, instaurada a 19/6/2014, BB, identificado nos autos, demandou CC, Lda., com sede em Ferreira do Zêzere, pedindo a condenação da R. no pagamento da quantia total de € 23.904,34, acrescida de juros até integral pagamento, e relativa a indemnização pela resolução do contrato com justa causa (€ 21.710,21), a férias vencidas e respetivo subsídio (€ 2.107,00), a diferença de subsídio de Natal proporcional (€ 15,49), e a férias e respetivo subsídio (€ 71,64). Para o efeito, alegou em resumo ter sido admitido em 1/2/1992, como instrutor, no estabelecimento de ensino de condução de automóveis e motociclos que a R. passou a explorar desde Abril de 2005; nos últimos meses a demandada começou a atrasar-se no pagamento dos salários, o que levou o A. a comunicar-lhe a resolução do contrato, com efeitos imediatos, por carta enviada a 21/4/2014.
Gorada a tentativa de conciliação efetuada no âmbito da audiência de partes prevista no art.º 55º do Código de Processo do Trabalho (C.P.T.), e tendo entretanto os autos transitado para a 2ª Secção do Trabalho da Instância Central do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, também localizada em Tomar, a R veio contestar de seguida, impugnando a matéria alegada na p.i., e referindo que algum eventual atraso havido no pagamento de remunerações se deveu apenas a mora do A., não lhe assistindo por isso a justa causa invocada.
Considerando dispor já de todos os elementos necessários ao conhecimento dos pedidos e a uma decisão de mérito, o Ex.º Juiz a quo proferiu de seguida saneador-sentença, julgando a ação parcialmente procedente, na qual absolveu a R. do pedido de indemnização pela resolução do contrato, condenando-a porém no pagamento dos demais valores reclamados na p.i..
Inconformado com o assim decidido, dessa decisão veio então apelar o A.. Na respetiva alegação de recurso formulou as seguintes conclusões:
- Ao resolver o contrato por falta de pagamento das retribuições auferidas nos 21 dias de Janeiro de 2014, nos 60 dias posteriores ao seu vencimento, o A. preencheu os 3 requisitos necessários à existência de justa causa, a saber: 1) O não pagamento pontual da retribuição; 2) a culpa da R. na falta de pagamento; 3) Que a conduta da R. tornou imediata e praticamente impossível a manutenção da relação laboral.
- Assim, e em consequência, a R. deveria ter sido condenada a pagar-lhe a indemnização pela antiguidade;
- Não o fazendo, e absolvendo a R. desse pagamento, violou o M.º Juiz a quo o disposto nos arts.º 394º, nº 2, al. a), com referência ao nº 5 e nº 3 desse normativo, e 396º, nsº 1 e 2, ambos do Código do Trabalho (Lei 7/09, de 12/02).
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Notificada da interposição da apelação, a R. não contra-alegou.
Admitido o recurso, e subidos os autos a esta Relação, a Ex.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, pronunciando-se no sentido de a decisão recorrida ser anulada, e ordenada a realização de audiência de julgamento.
A tal parecer respondeu ainda a R., aí afirmando que a sentença recorrida deverá ser confirmada na totalidade.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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Sendo o objeto de um recurso delimitado pelas conclusões da respetiva alegação (cfr. arts.º 635º, nº 3, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil – C.P.C.), coloca-se no caso dos autos, tão só a questão de saber se ocorreu, ou não, a justa causa invocada pelo recorrente para resolver, nos termos em que o fez, o contrato de trabalho que o vinculava à R..
Vejamos então, e em primeiro lugar, qual a matéria de facto considerada como provada na decisão recorrida, que não foi diretamente questionada no recurso, e que foi a seguinte:
1 - BB iniciou a actividade de instrutor no dia 1 de Fevereiro de 1992, inicialmente por conta de DD.
2 - Em 22 de Abril de 2005, a CC, Lda., passou a explorar o estabelecimento onde o BB, continuando este a exercer tais funções por conta daquela.
3 - BB exercia tais funções para a CC, Lda, mediante o pagamento da remuneração mensal de € 975,89.
4 - Com data de 18/7/2013, a CC, Lda., dirigiu aos seus funcionários a carta cuja cópia se encontra a fls. 34, comunicando que estes deveriam entregar o respectivo NIB da conta bancária até ao final do mês de Julho, pelo que, a partir do mês seguinte, os respetivos vencimentos seriam efetuados através de conta bancária.
5 - Com data de 24 de Julho de 2013, BB comunicou à CC, Lda., o respectivo NIB, conforme carta cuja cópia se encontra a fls. 35.
6 - Com data de 21 de Abril de 2014, BB comunicou à CC, Lda., a sua pretensão de resolver o contrato de trabalho com justa causa por falta de pagamento pontual das quantias indicadas no documento cuja cópia se encontra a fls. 44.
7 - A CC, Lda., não pagou a BB as seguintes quantias (remanescentes):
Subsídio de Férias vencido a 1/1/2014: € 2.017;
Subsídio de Natal: € 15,49; e,
Subsídio de Férias: € 71,64.
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O sentido absolutório da decisão recorrida, no que toca à peticionada indemnização pela resolução do contrato, foi justificado pelo Ex.º Juiz a quo porque em seu entender não ficou suficientemente demonstrada a justa causa necessária para o efeito, tendo designadamente em atenção o disposto nos arts.º 394º, nº 4, e 351º, nº 3, ambos do Código do Trabalho (C.T.).
Escreveu a propósito, para além do mais, aquele magistrado:
‘… quanto às principais circunstâncias conhecidas destacam-se as seguintes:
a) A longa duração da relação laboral em causa, cujo início remonta ao dia 1 de Fevereiro de 1992: o que pressupõe uma maior confiança entre as partes, consolidada ao longo do tempo;
b) A presumível falta de uma prévia comunicação admonitória: a qual não sendo uma exigência absoluta, constituiria uma razoável advertência à entidade patronal, particularmente quando apenas estariam em dívida alguns pagamentos e de modesto valor;
c) A omissão da quantificação dos valores em falta: o A. nem sequer quantificou os montantes em dívida na carta que enviou à sua entidade patronal a resolver o contrato; e,
d) O montante apurado das remunerações em dívida: o qual é relativamente modesto (aproximadamente € 2.100 em face de um vencimento mensal de cerca de € 975,89) e diz apenas respeito a subsídios;
e) O período de mora (obrigações vencidas em Janeiro e a resolução foi comunicada logo em 21/4/2014).
Em face destas circunstâncias conhecidas e das que se podem razoavelmente presumir, entende-se que o A. tinha causa para interpelar a R. e exigir o pagamento do que estava em falta. Mas, em face da importância social e económica da subsistência do vínculo laboral (factor de estabilidade para a vida do trabalhador, mas também para a vida da empresa), entende-se que tal incumprimento da R. não era o bastante para se concluir pela impossibilidade da subsistência dessa relação e para a pronta e energética resolução que o A. precipitadamente empreendeu’.
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Com todo o respeito que é devido a opinião diversa, não podemos no entanto acompanhar o entendimento acolhido na sentença recorrida.
Senão vejamos:
O conceito de justa causa para resolução do contrato de trabalho, pelo trabalhador, é objeto de tratamento no art.º 394º do C.T., cujo nº 2 enumera, ainda que a título exemplificativo, diversos comportamentos do empregador suscetíveis de o integrar, o primeiro dos quais, na respetiva al. a), é precisamente a ‘falta culposa de pagamento pontual da retribuição’.
O nº 5 do mesmo art.º 394º vem no entanto esclarecer que se considera culposa a falta de pagamento pontual da retribuição que se prolongue por mais de 60 dias. E esta disposição tem sido uniformemente entendida como configurando uma presunção juris et de jure, em face daquela outra que, em termos gerais, vinha já acolhida no art.º 799º, nº 1, do Código Civil, e que admite prova em contrário.
Sendo portanto necessariamente culposo o comportamento da recorrida a que se refere, na hipótese dos autos, o ponto nº 7 da decisão de facto, daí não pode concluir-se, de imediato, estar configurada a justa causa invocada pelo trabalhador recorrente para operar a sua desvinculação contratual. Importa com efeito avaliar se, no caso concreto, o comportamento culposo da parte empregadora é de tal modo grave e danoso que torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.
É isso que resulta do nº 4 do referido art.º 394º, quando aí se determina a apreciação da justa causa, com as necessárias adaptações, à luz dos critérios definidos no art.º 351º, nº 3, também do C.T., a propósito da justa causa para despedimento, por facto imputável ao trabalhador.
Não pode todavia deixar de sublinhar-se, no que toca à apreciação da justa causa, que as ‘necessárias adpatações’, a que se refere aquele nº 4, implicam obviamente que seja de rejeitar uma transposição linear e redutora da maneira como deve fazer-se a ponderação dos factos relevantes, quando está em causa um despedimento, promovido pela empregador com alegação de justa causa. Basta atentar que este se insere num leque de sanções disciplinares à disposição da parte empregadora, a aplicar de forma proporcionada à gravidade e consequências da conduta culposa do trabalhador, enquanto à parte trabalhadora, em face dum comportamento culposo do empregador, e no âmbito estritamente contratual, apenas restará a possibilidade de promover a imediata rutura do vínculo laboral.
Não há portanto aqui um absoluto paralelismo de situações, que permita fazer uma valoração semelhante dos factos pertinentes à verificação da justa causa.
Entendemos por isso que, nomeadamente quando está em causa a falta de pagamento atempado de retribuições, apenas em casos de culpa reduzida do empregador, com danos que sejam também relativamente diminutos, poderá ter-se por afastada a justa causa para a resolução do contrato.
E essa não parece ser a hipótese dos autos.
Com efeito, está aqui em causa uma importância remuneratória, em dívida há mais de 60 dias, cujo montante excedia o valor acumulado de dois salários mensais do recorrente. Sendo certo que o pagamento pontual e regular da retribuição contratada é porventura a mais importante das obrigações da parte empregadora numa relação laboral subordinada, por na generalidade dos casos ser esse o único ou o mais importante meio de subsistência do trabalhador, não podemos obviamente subscrever o entendimento do tribunal a quo, quando afirmou ser ‘relativamente modesto’ o montante das retribuições em dívida, e dizer ‘apenas’ respeito a subsídios.
É que para a generalidade das pessoas, que vive dos rendimentos do seu trabalho, será de somenos importância qual é o título da prestação remuneratória que possam receber, mas é de particular relevância qual é o montante total da retribuição que possam auferir. E para a generalidade das famílias portuguesas o valor de dois meses de salário de um dos seus membros não é obviamente despiciendo.
Consideramos por isso, ao invés do decidido na sentença recorrida, estar configurada a justa causa invocada pelo apelante para operar a resolução do contrato que o vinculava à R..
Tendo assim o recorrente direito à indemnização prevista no art.º 396º, nsº 1 e 2, do C.T., entendemos todavia dever referenciá-la a 15 dias de retribuição base e diuturnidades, por cada ano completo de antiguidade. É que sendo esta relativamente longa (22 anos, 2 meses e 21 dias), a consideração duma mais elevada referência indemnizatória implicaria também uma mais acentuada desproporção entre a retribuição em dívida, que valeu a resolução do contrato, e o montante a atribuir àquele título.
Ascende assim a € 10.841,73[2] o montante da indemnização que o recorrente tem direito a receber, pela resolução do contrato de trabalho que o ligava à apelada.
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Nesta conformidade, e pelos motivos expostos, acordam os juízes desta Secção Social em julgar a apelação parcialmente procedente, e em consequência:
a) Condenam a R. CC, Lda., a pagar ao A. BB, a título de indemnização pela resolução do contrato de trabalho, a quantia de € 10.841,73, acrescida de juros, à taxa legal, vencidos desde 21/4/2014, e vincendos até efetivo pagamento, nessa medida revogando a sentença recorrida.
b) Em tudo o mais, mantêm o decidido na mesma sentença.

Custas por recorrente e recorrida, na proporção de metade para cada uma das partes.

Évora, 09-06-2016
Alexandre Ferreira Baptista Coelho (relator)
Joaquim António Chambel Mourisco
José António Santos Feteira

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[1] (…)
[2] (€975,89 X 22/2) + ((€975,89 X 80/365) : 2)