Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3608/11.5TBFAR.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: SERVIDÃO ADMINISTRATIVA
DIREITO DE PROPRIEDADE
INTERESSE PÚBLICO
ENERGIA ELÉCTRICA
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 04/27/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - A propriedade de imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície com tudo o que nele se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico.
II - A ocupação do espaço aéreo de um prédio rústico por linhas aéreas de alta tensão instaladas pela ré configura uma servidão administrativa imposta por lei, de cariz duradouro e de manifesta utilidade pública.
III - O artigo 37º do Decreto nº 43335, de 19.11.1960, prevê um direito de indemnização geral decorrente não só dos prejuízos diretos advindos do ato de construção de linhas elétricas, mas também de todos os prejuízos decorrentes da diminuição atual do valor do imóvel pela construção ou pela passagem dessas linhas e independentemente do destino que os seus titulares lhe pretendam dar.
IV – Tal indemnização deve ser calculada, com as necessárias adaptações e salvo o disposto em legislação especial, de acordo com as normas do Código das Expropriações.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
AA e BB instauraram ação declarativa de condenação, com processo ordinário, contra CC..., S.A., pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia de € 65.000,00, acrescida de juros de mora, desde a citação até integral pagamento.
Alegaram, em síntese, que no exercício da atividade de operadora da rede nacional de distribuição e exploração em regime de concessão de serviço público, a ré procedeu à instalação de uma linha aérea a 60Kv, LA 60-172 Estoi, cujo traçado atravessa o prédio misto de que são proprietários, sito em ..., freguesia de Estói, concelho de Faro, sendo que antes da construção da dita linha aérea, o referido prédio tinha o valor de mercado de € 80.000,00 – correspondente àquele pelo qual tinham acordado a sua prometida venda – e que, após a instalação dessa linha, o prédio não vale mais que € 15.000,00, tendo assim sofrido uma desvalorização no montante de € 65.000,00, que a ré deve ressarcir.
A ré contestou, aludindo a vários diplomas que definem o enquadramento legal da sua atividade enquanto concessionária operadora da rede nacional de distribuição de eletricidade, considerada de utilidade pública e cuja exploração é exercida em regime de concessão de serviço público, invocando, ainda, que a infraestrutura elétrica em causa não provocou danos que sejam suscetíveis de indemnização
Foi proferido despacho saneador-sentença que declarou a incompetência, em razão da matéria, do Tribunal Judicial de Faro, para conhecer da causa e, em consequência, absolveu a ré da instância.
Inconformados, os autores apelaram do assim decidido, mas sem êxito, pois este Tribunal da Relação de Évora, por acórdão proferido em 12.09.2013, a fls. 151 a 155 dos autos, confirmou a decisão recorrida.
Os autores interpuseram recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, não tendo o Exm.º Conselheiro Relator conhecido do objeto do recurso e ordenado a remessa dos autos ao Tribunal de Conflitos que, concedendo provimento ao recurso, considerou competente, em razão da matéria, a jurisdição comum para o conhecimento da presente ação e determinou a remessa dos autos ao 1º Juízo Cível de Faro para aí prosseguir os seus termos.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova, sem reclamação.
Realizada a audiência de julgamento foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e condenou a ré a pagar aos autores uma indemnização no montante de € 25.809,09, acrescida de juros de mora, contados desde a citação até integral pagamento, absolvendo-a do demais peticionado.
Inconformada, a ré apelou do assim decidido, finalizando a respetiva alegação com as conclusões que a seguir se transcrevem:
«A) Merece censura a decisão do tribunal a quo, devendo ser julgado procedente o presente recurso de Apelação interposto, e por conseguinte, revogada a decisão recorrida que condenou a Recorrente.
B) O tribunal a quo sustentou errada e insuficientemente a convicção sobre a (alegada) responsabilidade da Recorrente;
C) A Meritíssima Juiz do Tribunal a quo deu como não provado, e bem, os pontos a) a f), excetuando o ponto d), e fê-lo porque efetivamente, os Autores não lograram provar os factos ai constantes e que fundamentava o seu pedido de indemnização.
D) O ponto d) da matéria não provada foi provado quer pelos Autores, quer pelo Relatório de Peritagem,
E) Ou seja, o prédio foi adquirido posteriormente à implantação da linha e, na presente data, conforme confirma o Relatório de Peritagem, o terreno está ocupado em termos de produção agrícola e de projeto de construção em curso.
F) Pelo exposto, onde se deu por não provado (fls. 8/20 do Sentença, facto não provado d)), deve antes dar-se por provado o seguinte:
«Após a instalação da linha aérea referida nos autos, o prédio referido em 1. foi adquirido por terceiro, conforme cópia da escritura de compra e venda a fls.xx dos autos.”
G) Crê a ora Recorrente que o tribunal a quo, fez uma errada apreciação e valoração da prova produzida, porquanto, (i) deu por não provados factos para os quais tinha sustento probatório para dar por provados, bem como, (ii) sustentou a condenação em factos que deu por provados, que no entanto apenas poderiam sustentar a absolvição da Recorrente!
H) O ponto 2., 4. e 5. dos factos provados na sentença (fls. 3/12) deveriam ter levado a Meritíssima Juiz a quo a decidir de forma diversa, nomeadamente, porque conjugados esses factos com os restantes e os não provados não conduzem, na opinião da Recorrente, à responsabilidade de atribuição de indemnização.
I) Resulta claramente o seguinte:
i. O contrato promessa de compra e venda (cfr. Doc. De fls 8/22) invocado pelos Autores foi celebrado após a receção da carta da Recorrente constante do doc. a fls.27;
ii. Os autores no primeiro contacto que tiveram com a Recorrente não referiram o referido contrato (cfr. Doc. a fls.28/30);
iii. Era do conhecimento do promitente comprador a existência da linha aérea no terreno, uma vez que foi ao local conforme comprovado pelo depoimento da testemunha CB.
J) O Tribunal a quo não considerou relevante, mas deveria ter feito, que no terreno em questão já existia uma outra linha aérea paralela à em questão nos autos.
K) E este facto é deveras importante, porque o ónus da “linha aérea” já existia no mesmo quando foi celebrado o contrato promessa, logo o valor de mercado alegadamente indicado já teria em conta que o terreno era ocupado aereamente por uma linha aérea.
L) A bem dizer, o terreno em questão já estava onerado por uma servidão administrativa em tudo igual à que agora o Tribunal a quo decidiu que havia uma desvalorização,
M) O Tribunal a quo deveria ter dado com provado a existência no terreno de uma linha aérea anterior à aqui em causa, e não fê-lo apesar da prova testemunhal e documental serem claras quanto a este ponto.
N) Por outro lado, a interpretação que a Meritíssima Juiz efetua do artigo 37º do Decreto-Lei n.º 43.335, de 30 Novembro de 1960 não, salvo o devido respeito que é muito, o mais unânime na nossa Jurisprudência.
O) Mais, atenta a altura dos apoios (cuja altura excede as distâncias regulamentares exigíveis) e o local onde a linha sobrevoa a propriedade dos Autores (paralela à linha já existente), dificilmente a capacidade construtiva é afetada ou restringida e o mesmo desvalorizado, em termos de valor de mercado.
P) Mais, o impacto da presença da (segunda) linha na alegada desvalorização da propriedade é um dano eventual, imprevisível e hipotético, pelo que a sua consideração sempre conduziria a uma análise subjetiva dos danos futuros.
Q) O prejuízo, quer inerente à desvalorização do imóvel, quer a danos hipotéticos e futuros, não pode ser quantificável pelo mero estabelecimento da servidão administrativa por não se revelar um dano certo nem atual (Conforme jurisprudência do Acórdão do STJ – processo 064081, de 6 de Outubro de 1972).
R) Na Douta Opinião do Senhor Professor Doutor Sérvulo Correia, “… a mera desvalorização patrimonial do imóvel, causada pela passagem das linhas elétricas, não parece, por si só e à margem da aplicação do critério de afetação do gozo standard do imóvel, corresponder a um critério indemnizável” (também) pelo Código das Expropriações.
S) Resulta da prova produzida e da aplicação adequada das normas supra referidas à matéria de facto dada como provada e não provada que a ação devia ser improcedente e consequentemente determinar a absolvição da Recorrente.
Neste termos e nos demais de direito, que V. Exa. doutamente suprirá, deverá a presente apelação ser julgada totalmente procedente, por provada e assim ser revogada a decisão proferida em 1ª instância, devendo a Recorrente ser absolvida dos pedidos formulados pelos Autores, só assim se FAZENDO JUSTIÇA!»

Os autores contra-alegaram, defendendo a manutenção do julgado.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Como é sabido, o objeto do recurso é definido em função das conclusões formuladas pelo recorrente, nos termos dos artigos 635º, nº 3 a 5 e 639º, n.º 1, do CPC.
Assim, das conclusões da recorrente retira-se que as questões a decidir são as seguintes:
- se deve ser alterada a decisão da matéria de facto;
- se é ou não indemnizável a sujeição do prédio que foi dos autores à servidão administrativa estabelecida em favor da recorrente CC.

III - FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1 - Mostrava-se inscrito a favor dos autores o direito de propriedade sobre o prédio misto sito em ..., freguesia de Estói, concelho de Faro, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo nº …, da Secção AQ (parte rústica) e … (parte urbana) composto de terra de cultura com amendoeiras e alfarrobeiras, morada de 1 piso com 3 divisões, destinada a habitação, com a superfície coberta de 52,40m2 e descoberta de 4.027,60m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o n.° …/20060605, registado a seu favor pela ap.33 de 1997/05/13 (cfr. doc. de fls.16/17, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
2 - Por escrito datado de 23.11.2009, denominado “contrato promessa de compra e venda”, os autores declararam prometer vender a “A..., Lda.”, que declarou prometer comprar, o referido prédio e o prédio rústico sito em ..., freguesia de Estói, concelho de Faro, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo nº …, da Secção AQ, com a área total de 2.860m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o n.º …/20060605, pelo preço de €105.000,00 (cfr. doc. de fls.18/22, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
3 - Os autores solicitaram informação à Camara Municipal de Faro acerca da viabilidade de realização de obras de alteração na parte urbana do prédio referido em 1., por forma a distanciá-la da linha aérea de alta tensão ali construída desde 1978 (cfr. doc. de fls.23, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
4 - Por carta registada com aviso de receção, datada de 16 de Novembro de 2009, a ré informou os autores que iria levar a cabo a instalação de linha aérea a 60Kv, LA 60- 172 Estói, que no seu traçado atravessaria o prédio referido em 1., concretamente entre os seus apoios nº 12º e 13º (cfr. doc. de fls.27, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
5 - Por carta registada com aviso de receção, datada de 11.12.2009, os autores solicitaram à ré que, caso fosse estritamente necessária essa instalação, a mesma tivesse lugar na extrema do terreno, de forma a evitar maiores danos (cfr. doc. de fls.28/30, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
6 - Em 13.01.2010 a ré contactou com um terceiro, acordando a colocação do apoio nº13 da instalação, pensando que estaria a contactar com o autor, na sequência da carta que este lhe havia dirigido.
7 - Por carta registada com aviso de receção, datada de 06.07.2010, os autores reiteraram à ré a posição manifestada e informaram a existência de um contrato promessa de compra e venda, relativo ao prédio, bem como da possibilidade do promitente-comprador resolver o acordo, com fundamento na desvalorização decorrente da instalação da linha aérea (cfr. doc. de fls.31, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
8 - Em face do silêncio da ré, os autores voltaram a enviar-lhe cartas registadas com aviso de receção, datadas de 27.07.2010 e 25.08.2010, reiterando a sua posição (cfr. doc. de fls.32/33, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
9 - Por carta datada de 10.09.2010 a ré respondeu aos autores, informando que a sua pretensão se encontrava a ser objeto de análise e que seria dada uma resposta até ao fim daquele mês (cfr. doc. de fls.34, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
10 - Em 30.09.2010 os autores deslocaram-se ao prédio identificado em 1., na companhia de representantes da ré e do gerente da promitente compradora, identificada em 2., onde constataram que a alteração do traçado da linha aérea pretendida não traria benefício para o prédio.
11 - A promitente compradora declarou resolver o contrato promessa celebrado com os autores, fundamentando-se na desvalorização dos prédios prometidos comprar. (cfr. doc. de fls.37/38, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
12 - A ré é titular de uma licença vinculada de distribuição de energia elétrica em A.T., M.T. e B.T..
13 - À ré foi concedida licença de estabelecimento da linha elétrica em causa por despacho de 2009.09.16, proferido pelo Sr. Diretor da Direção Regional da Economia do Algarve Regional (cfr. doc. de fls.60/107, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
14 - A instalação desta linha foi autorizada pelo Órgão do Governo com competência para o respetivo licenciamento, por despacho do Diretor da Direção Regional da Economia do Algarve, do Ministério da Economia e Inovação, sendo que o processo de licenciamento correu a sua tramitação normal, com processos de consulta e divulgação, nomeadamente publicitação de éditos (cfr. doc. de fls.60/107, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
15 - A linha elétrica em causa nos autos é uma linha de alta tensão, à tensão de 60 kV, dispõe de dois condutores e de um cabo de guarda, e foi projectada e construída tendo como objetivo garantir a melhoria no fornecimento de energia elétrica em alta tensão à zona central do Algarve, servida pelas Suestações (SE) de Estói e Almancil, em face da crescente necessidade de alimentação (cfr. doc. de fls.60/107, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
16 - O projeto da linha foi apreciado e aprovado pela entidade do Governo competente - a Direção Regional do Algarve do Ministério da Economia, sob o n° de processo EPU/3024 (cfr. doc. de fls.60/107, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
17 - Previamente o Departamento de Projeto e Construção da ré e tendo em conta as informações disponibilizadas pela administração do território, efetuou estudos, visando a pesquisa de condicionantes locais de âmbito social e ambiental; minimização dos impactes sobre as infraestruturas existentes e o meio ambiente; aproveitamento de corredores existentes de outras linhas de distribuição de energia; necessidade de ligação entre as SE de Estói e Almancil.
18 - No projeto da linha foram ponderadas questões de natureza ambiental, técnica e económica, sendo o traçado aprovado o mais adequado na perspetival da ré, encontrando-se estabelecido em traçado paralelo à LI60-118 Estoi-Braciais.
19 - Sobre o prédio referido em 1. a linha aérea desenvolve-se no sentido Este-Oeste, a partir da SE de Estói, sendo os últimos quilómetros de aproximação à SE de Almancil caracterizada pelas seguintes condicionantes principais: aglomerado urbano de Estói; aglomerado urbano junto à estrada municipal 516; linha aérea em Alta Tensão, a 60Kv, LA 60-118 Estoi-Braciais; construções dispersas de caracter residencial (cfr. doc. de fls.60/107, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
20 - No âmbito do processo de licenciamento da linha foram publicados Éditos publicitando o despectivo projeto, para efeito de apresentação de eventuais reclamações contra a sua aprovação junto da Direção Regional da Economia do Algarve (cfr. doc. de fls.60/107, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
21 - Em meados de Agosto de 2010 a ré concluiu a instalação da linha aérea, a qual dista 14 metros do solo do prédio referido em 1., não se encontrando instalado qualquer apoio (poste) neste prédio.
22 - Com a instalação da referida linha aérea foi ocupado o espaço aéreo do prédio dos autores, em comprimento e largura não determinados.
23 - Antes da instalação da linha aérea o prédio identificado em 1., tinha um valor médio de mercado de €77.723,01.
24 - Após a instalação da linha aérea o prédio identificado em 1. sofreu uma desvalorização de 33,21%.
25 - O preço, por m2, na região em que o prédio se situa, de terreno apto para a construção, é de €18,49m2.
26 - A ocupação do espaço aéreo não impede a utilização da habitação e do terreno que compõem o prédio referido em 1..
27 - A existência de campos elétricos e magnéticos afasta potenciais compradores, independentemente da sua magnitude, e desvaloriza o prédio.

E foram considerados não provados os seguintes factos:
a) o prédio misto referido em 1. encontrava-se à venda pelo preço de € 80.000,00.
b) estava projetada construção para os prédios referidos em 2. com destino a futura comercialização.
c) nenhuma pessoa está disposta a viver no prédio referido em 1. após a instalação da linha aérea.
d) após a instalação da linha aérea mais nenhuma pessoa entrou em contacto com os autores manifestando interesse em adquirir o prédio referido em 1..
e) a proximidade dos campos eletromagnéticos, que são gerados pelos cabos de alta tensão, pode constituir perigo para a saúde das pessoas que aí residam, designadamente o aumento de doenças do foro oncológico nas populações, aumento da taxa de stress, depressões, alterações do sono, cefaleias e crises epiléticas.
f) os autores não apresentaram qualquer reclamação contra o projeto de instalação da linha aérea.

Da impugnação da matéria de facto
Como resulta do art. 662º, nº 1, do CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes e a prova produzida impuserem decisão diversa.
Do processo constam os elementos em que se baseou a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto – documentos, declarações das partes e depoimentos testemunhais, registados em suporte digital.
Considerando o corpo das alegações e as suas conclusões, pode dizer-se que a recorrente cumpriu formalmente os ónus impostos pelo art. 640º, nºs 1 e 2, do CPC, já que: i) referiu os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados; ii) indicou os elementos probatórios que conduziriam à alteração daqueles pontos nos termos por ela propugnados; iii) a decisão que no seu entender deveria sobre eles ter sido proferida.
É certo que a recorrente não indicou as passagens da gravação relativamente ao depoimento da única testemunha em que fundamenta parte da impugnação da matéria de facto, mas percebe-se perfeitamente o que está em causa com esse depoimento, pelo que não ocorrem significativos escolhos capazes de obstar a que se prossiga na apreciação do alegado erro sobre o julgamento da matéria de facto.
No que respeita à questão da alteração da matéria de facto face à incorreta avaliação da prova produzida, cabe a esta Relação, ao abrigo dos poderes conferidos pelo art. 662º do CPC, e enquanto tribunal de 2ª instância, avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objeto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento da matéria de facto.
Infere-se da alegação da recorrente que esta está em desacordo com a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo, relativamente à matéria da alínea d) dos factos não provados, devendo ao invés dar-se como como provada a factualidade que indica, e também por não ter sido considerado, devendo sê-lo, que no terreno em causa existia já uma outra linha aérea paralela à que está em discussão nos autos.
Vejamos.
No caso em apreço, é seguro que não pode dar-se como provado que após a instalação da linha aérea mais nenhuma pessoa entrou em contacto com os autores manifestando interesse em adquirir o prédio dos autos, pois resultou precisamente o contrário da prova produzida, nomeadamente da escritura de compra e venda documentada a fls. 299-304 dos autos, que comprova ter o prédio dos autores sido transacionado após a instalação da dita linha aérea.
Ora, ao considerar-se aquele facto como não provado, tudo se passa como se o mesmo não existisse, não podendo, designadamente, partir-se dessa ausência de prova para concluir no sentido de estar provado o contrário.
Independentemente disso, é bom ter presente que o objeto do presente litígio se centra em saber qual o montante indemnizatório devido aos autores pela constituição de uma servidão administrativa aérea para passagem de energia elétrica de alta tensão.
Ora, à constituição das servidões administrativas e à determinação da sua indemnização, é aplicável o disposto no Código das Expropriações, com as necessárias adaptações, salvo o disposto em legislação especial (cfr. art. 8º, nº 3, do Código das Expropriações, aprovado pela Lei nº 168/99, de 18 de Setembro)[1].
Quer isto dizer «que, como regra geral, a indemnização pelas servidões deve ser calculada de acordo com as normas respeitantes à indemnização por expropriação. Tal como a indemnização por expropriação, também a indemnização pela “servidão administrativa” deve ser justa (cfr. o art. 62º, nº 2, da Constituição)[2]».
E prossegue o mesmo autor:
«(…), tendo em conta que o critério geral da indemnização por expropriação é o do prejuízo que para o expropriado advém da expropriação, correspondente ao valor real e corrente do bem, de acordo com o seu destino efectivo ou possível numa utilização económica normal, à data da publicação da declaração de utilidade pública, tendo em consideração as circunstâncias e condições de facto existentes naquela data (cfr. o art. 23º, nº 1, do Código das Expropriações) - critério este que é o do valor de mercado (Verkehrswert), também denominado valor venal. Valor comum ou valor de compra e venda do bem expropriado, entendido não em sentido estrito, mas em sentido normativo, isto é “o valor de mercado normal ou habitual”, despido dos elementos especulativos -, deverá a indemnização pela “servidão administrativa” corresponder à diminuição do valor de mercado do prédio serviente, tendo em conta as circunstâncias e as condições de facto existentes à data da constituição da servidão».
Sendo, pois, facto incontroverso que a justa indemnização deve corresponder à diminuição do valor do mercado do prédio serviente, tendo por referência as circunstâncias e as condições de facto existentes à data da constituição dessa mesma servidão, são irrelevantes possíveis valorizações resultantes de uma qualquer circunstância posterior àquela constituição, como sejam as negociações efetuadas mais tarde pelos autores ou as benfeitorias úteis ou voluptuárias realizadas.
É por isso totalmente irrelevante para o desfecho do pleito que «após a instalação da linha aérea referida nos autos, o prédio referido em 1. foi adquirido por terceiro», mais concretamente, em 28 de Maio de 2015 (cfr. escritura de compra e venda de fls. 299 a 304), mais de 5 anos e meio sobre a concessão da licença de estabelecimento da mencionada linha aérea, datada de 16 de Setembro de 2009 (cfr. ponto 13 dos factos provados).
Assim não há que fazer constar do elenco dos factos provados a referida matéria factual.

Pretende outrossim a recorrente que seja dado como provado que no terreno em causa «já existia uma outra linha aérea paralela à em questão nos autos».
Diz a recorrente que este facto é muito importante, porque o ónus da “linha aérea” já existia no terreno quando foi celebrado o contrato promessa, pelo que «o valor de mercado alegadamente indicado já teria em conta que o terreno era ocupado aereamente por uma linha aérea».
O facto instrumental em causa[3], embora não conste do elenco dos factos provados, não deixou de ser considerado pela Mm.ª Juíza a quo nos termos do art. 5º, nº 2, al. a), do CPC.
Na verdade, escreveu-se na fundamentação da decisão de facto da sentença:
«No que respeita ao relatório pericial junto a fls.276/304, o qual não foi objeto de reclamação, encontrando-se devidamente fundamentado, foi o mesmo valorado não só para apurar a ocupação aérea efectuada do prédio e ausência de impedimento na utilização do mesmo (na qual as partes estão de acordo) mas também para considerar como provado o valor médio de mercado do prédio, desvalorização consequente da instalação da linha e preço do m2 – factos referidos em 22 a 27.
Aliás, na perícia teve o Sr. perito em consideração as condições de facto existentes no prédio e zona em que se encontra inserido, contrato promessa firmado e escritura de compra e venda realizada, posteriormente, sendo que o mesmo se encontra dotado de conhecimento específico, que só por si lhe conferem um cariz de maior isenção e indicador mais seguro para a fixação dos valores em questão, pelo que será razoável e até imperioso que se tome esse relatório por base de cálculo, quando o mesmo nem sequer é contraditado por qualquer meio de prova.»
Ora, consta do ponto 15 do relatório pericial, que «na proximidade e paralelamente à Linha Aérea LA60 Estoi-Almancil (em questão) já existia uma outra linha de distribuição de energia elétrica (concretamente, a linha aérea em Alta Tensão, a 60 Kv, LA 60-18 Estoi-Braciais), cf. identificação constante no 19º da contestação da R.)».
Significa isto que a Mm.ª Juíza teve em consideração todos os factos e circunstâncias existentes ao tempo da constituição da nova servidão referidos no relatório pericial, para concluir que a constituição daquela servidão implicava para o prédio serviente dos autores uma desvalorização de 33,21% [ponto 24 dos factos provados].
Não houve, assim, desconsideração por parte da Mm.ª Juíza relativamente à existência de uma linha área anterior no prédio, improcedendo também nesta parte a impugnação da matéria de facto.
Resulta, pois, do exposto, que não se vislumbra uma desconsideração da prova produzida, mas sim uma correta apreciação da mesma, não se patenteando a inobservância de regras de experiência ou lógica, que imponham entendimento diverso do acolhido. Ou seja, no processo da formação livre da prudente convicção do Tribunal a quo não se evidencia nenhum erro que justifique a alteração da decisão sobre a matéria de facto, designadamente ao abrigo do disposto no art. 662º do CPC.
Assim, teremos de concluir que, perante a prova produzida, bem andou a Mm.ª Juíza a quo na decisão sobre a matéria de facto, a qual, por isso, permanece intacta.

Do mérito da decisão
Permanecendo incólume a decisão do tribunal a quo quanto à matéria de facto dada como provada e não provada, nenhuma censura há a fazer à decisão recorrida, onde foi feita uma correta subsunção dos factos ao direito, com pertinentes citações doutrinárias e jurisprudenciais.
Insurge-se, porém, a recorrente quanto à interpretação dada pela Mmª Juíza ao artigo 37º do Decreto-Lei nº 43.335, de 30 de Novembro de 1960, defendendo que a indemnização devida pela existência de servidões administrativas deverá ter apenas em conta “a perda de rendimento” e “a diminuição da propriedade”.
Está, pois, em discussão saber se é devida indemnização aos autores/recorridos pela ocupação do espaço aéreo do prédio que lhes pertencia com a passagem de uma linha elétrica de alta tensão a cerca de 14 metros do solo.
Estipula o art. 1344º, nº 1 do Código Civil que «[a] propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico».
E o nº 2 do mesmo artigo dispõe que o proprietário não pode, todavia, proibir os atos de terceiro que, pela altura ou profundidade a que têm lugar, não haja interesse impedir, mas não é esta a questão a considerar, pois nem a altura a que se encontram os cabos de alta tensão está em causa, nem a perigosidade que lhes é imanente é irrelevante.
Assim, no que ora releva, preceitua o art. 37º do Decreto-Lei nº 43335 de 19 de Novembro de 1960 que «[o]s proprietários dos terrenos ou edifícios utilizados para o estabelecimento de linhas eléctricas serão indemnizados pelo concessionário ou proprietário dessas linhas sempre que daquela utilização resultem redução de rendimento, diminuição da área das propriedades ou quaisquer prejuízos provenientes da construção das linhas».
A recorrente faz uma interpretação restritiva deste preceito, citando o acórdão do STJ de 06.10.1972, proc. 064081 e o Prof. Sérvulo Correia, no sentido de que os prejuízos previstos na lei são tão-somente os resultantes diretamente das obras de edificação da linha (como v.g. sejam os advenientes da destruição de culturas ou de partes de um imóvel por virtude das obras de construção).
Entendemos, tal como a sentença recorrida, na esteira do acórdão do STJ de 03.07.2014[4], que uma tal interpretação restritiva não se coaduna nem com a letra nem com o espírito da lei.
Em primeiro lugar o artigo em causa fala de quaisquer prejuízos provenientes da construção sejam eles diretos e imediatos sejam quaisquer outros que possam advir do simples facto da sua existência.
Em segundo lugar, o mesmo artigo prevê um direito a indemnização sempre que daquela utilização resulte diminuição de rendimento.
Isto leva a que se considere, como se escreveu no citado acórdão do STJ de 03.07.2014, «que o citado art. 37º do Decreto-Lei nº43335 de 19 de Novembro de 1960, ao prever quaisquer prejuízos provenientes da construção das linhas quis estabelecer um direito indemnizatório geral decorrente não só do facto de existirem prejuízos diretos advindos do acto de construção mas de todos os prejuízos atuais ou futuros decorrentes de uma diminuição do valor do imóvel pela construção ou passagem de linhas, in casu, de alta tensão».
Deste modo, tendo ficado provado que após a instalação da linha de alta tensão o prédio ficou depreciado em 33,21% não se vê como aos autores não lhes assista o direito de serem indemnizados pelo valor de uma tal depreciação, sendo irrelevante que tenham alienado o imóvel.
Como bem se observa na sentença recorrida, a desvalorização é atual independentemente do destino que os autores deram ou pretendiam dar ao prédio. Ou seja, trata-se de dano real e não hipotético.
Tem por isso aqui perfeita aplicação o ensinamento de Pires de Lima e Antunes Varela[5], segundo o qual, «[n]os casos em que a lei permite a ocupação do espaço aéreo correspondente ao prédio para a satisfação de certos interesses de carácter colectivo (passagem de linhas de alta tensão para transporte de electricidade, instalação de fios telegráficos ou telefónicos, etc.) há, em regra, a atribuição de um direito de indemnização ao proprietário pelo prejuízo que ele sofre. É mais um tipo de caso em que a licitude do acto não impede a obrigação de reparar o dano, pela injustiça que constituiria o sacrifício de uns tantos em proveito de muitos outros».
Pelo quanto se disse o recurso soçobra.

Sumário:
I - A propriedade de imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície com tudo o que nele se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico.
II - A ocupação do espaço aéreo de um prédio rústico por linhas aéreas de alta tensão instaladas pela ré configura uma servidão administrativa imposta por lei, de cariz duradouro e de manifesta utilidade pública.
III - O artigo 37º do Decreto nº 43335, de 19.11.1960, prevê um direito de indemnização geral decorrente não só dos prejuízos diretos advindos do ato de construção de linhas elétricas, mas também de todos os prejuízos decorrentes da diminuição atual do valor do imóvel pela construção ou pela passagem dessas linhas e independentemente do destino que os seus titulares lhe pretendam dar.
IV – Tal indemnização deve ser calculada, com as necessárias adaptações e salvo o disposto em legislação especial, de acordo com as normas do Código das Expropriações.

IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a douta sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
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Évora, 27 de Abril de 2017
Manuel Bargado
Albertina Pedroso
Tomé Ramião
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[1] Cfr. Ac. do STJ de 04.10.2011, CJ/Acórdãos do STJ, nº 235, Ano XIX, Tomo III/2011, p. 58.
[2] Fernando Alves Correia, Manual do Direito do Urbanismo, volume I, 4ª ed., p. 338, citado no mencionado acórdão do STJ de 04.10.2011.
[3] Os factos instrumentais, não preenchendo a fatispécie de qualquer norma de direito substantivo que confira um direito ou tutele um interesse das partes, permitem, mediante presunção, chegar à demonstração de factos principais, tendo pois uma função probatória (cfr. Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, p. 253.
[4] Proc. 421/10.0TBAVV.G1.S1., in www.dgsi.pt.
[5] In Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª Edição Revista e Atualizada, Coimbra Editora, 1984, p.175.