Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2895/18.2T8LLE-C.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: VENDA EXECUTIVA
DIREITO DE PREFERÊNCIA
REMIÇÃO
Data do Acordão: 03/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. A lei não prevê que os titulares do direito de remição sejam notificados da prática dos actos atinentes à venda executiva, antes presumindo que o executado, seu familiar directo, lhe vai dando conhecimento da tramitação processual, de modo a assegurar que aqueles possam exercer o seu direito.
II. Notificada a executada da decisão do Sr. AE de aceitação da proposta mais elevada, encontrava-se esta familiar, desde então, em condições de informar o recorrente, seu filho, das condições de exercício do direito a remir, direito que podia exercer até à emissão do título que documenta a venda (cfr. artigo 853.º, n.º 1, alínea a)).
III. Este termo final não se altera ainda quando, como é o caso, o titular de direito legal de preferência se apresenta a exercê-lo na sequência da interpelação a que se refere o artigo 823.º do CPC.
IV. Atento o que dispõe o artigo 827.º do CPC, em venda mediante leilão electrónico, pago o preço pelo preferente e verificado o cumprimento das obrigações fiscais, podia/devia o Sr. AE emitir o título de transmissão, nada impondo que aguardasse o prazo de 10 dias após a notificação às partes do requerimento apresentado pelo preferente, acompanhado de comprovativo de ter procedido ao pagamento do preço, não havendo lugar à anulação do acto da venda por preterição de formalidade essencial.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 2895/18.2T8LLE-C.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro
Juízo de Execução de Loulé – Juiz 1


I. Relatório
Nos autos de acção executiva em que é exequente o (…) Banco e executada (…), foi penhorado o prédio urbano sito na Rua (…), freguesia de Moncarapacho, concelho de Olhão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o n.º …/19920806 e inscrito na matriz respectiva sob o artigo (…), da União das Freguesias de Moncarapacho e Fuzeta.
Determinada a venda por leilão electrónico, o qual foi declarado encerrado em 12/06/2019, foi apresentada proposta no valor de € 59.034,50, a qual foi aceite pelo Sr. AE, decisão notificada também à executada em 17/6/2019.
Mediante carta enviada nesse mesmo dia 17/6/2019 (doc. 7zOERwLFEVn), o Sr. AE notificou ainda (…) para, na sua qualidade de arrendatária do imóvel penhorado, vir exercer, querendo, no prazo de 30 dias, o direito de preferência que a lei lhe faculta.
Em 28 de Junho de 2019, (…) apresentou requerimento ao Sr. AE, no qual manifestava a intenção de exercer o seu direito de preferência na venda do prédio urbano penhorado na execução, tendo procedido à junção do talão comprovativo do depósito no montante de € 59.284,50 e solicitado o envio da documentação necessária para o pagamento das obrigações fiscais.
Em 01 de Julho de 2019 o Sr. AE notificou os intervenientes processuais, nomeadamente a executada (…), da pretensão da arrendatária Maria Graciete de exercer o direito de preferência.
Por requerimento entrado em juízo em 29/7/2019 (…), invocando a qualidade de filho da executada, veio exercer o direito de remição, tendo então declarado que procederia ao depósito do preço no prazo de 5 dias (fls. 9 a 12 dos presentes autos).
Tendo verificado que a preferente (…) havia cumprido as obrigações fiscais decorrentes da aquisição, o Sr. AE emitira título de transmissão a favor desta no dia 5 de Julho.
O requerimento apresentado pelo remidor (…) veio a ser objecto do despacho de indeferimento proferido em 4 de Outubro de 2019 (Ref.114133019).

Inconformado com o ali decidido, interpôs o requerente o presente recurso e, tendo desenvolvido nas alegações as razões da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:
“1.ª Refere o despacho aqui recorrido que: “A nosso ver, salvo o devido respeito por opinião contrária, que é muito, o Tribunal não pode reconhecer o direito de remição invocado pelo requerente (...), por um lado, porque o mesmo foi exercido após a emissão do título de transmissão do prédio a favor da preferente (…), e por outro lado, porque o requerente não juntou logo com o seu requerimento o comprovativo do depósito do preço.”
2.ª Ora, o aqui recorrente não se pode conformar com o despacho que não reconheceu ao requerente o direito de remir o prédio urbano sito na Rua (…), em Moncarapacho, descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o n.º …/19920806 e inscrito na matriz sob o artigo (…).
3.ª Nos presentes autos, verifica-se que o agente de Execução não aguardou o prazo para os intervenientes se pronunciarem, previsto no art.º 3º/3 do CPC já que, conforme refere o douto despacho, em 1 de Julho de 2019 o senhor Agente de Execução notificou os intervenientes processuais da pretensão da arrendatária (…) de exercer o direito de preferência, mas não aguardou o prazo de 10 dias para estes se pronunciarem, já que emitiu o título de transmissão em 05 de julho de 2019, ou seja, apenas 4 dias após ter notificado as partes da pretensão da arrendatária.
4.ª Porque a questão em apreciação se prende ainda com o direito de remição, recusado, a decisão proferida está ferida de nulidade, pois a omissão que se verifica é passível de influir no exame ou decisão da causa, nos termos do artigo 195.º CPC, que se invoca para todos os efeitos legais.
5.ª Com efeito, o título de transmissão emitido a 5 de Julho de 2019 é nulo, por não terem sido cumpridas as formalidades legalmente impostas na lei, nos termos do artigo 195.º CPC, já que é manifesto que a irregularidade cometida influiu, diretamente, na decisão da causa, porque, caso tivesse sido cumprida a lei e respeitado o prazo que é concedido pelo legislador para arguição de desconformidades do documento, o remidor teria exercido o seu direito bem antes da emissão do título.
6.ª O título de transmissão também foi emitido antes de decorrido o prazo de 10 dias previsto no artigo 149.º do CPC, para que sejam requeridos atos ou diligências, arguidas nulidades, deduzidos incidentes ou exercido qualquer poder processual, estando por isso ferido de nulidade, nos termos do artigo 195.º CPC.
7.ª Além disso, o aqui recorrente é de entendimento que o requerimento para exercício do direito de remição não é extemporâneo, quer pelo facto de o direito de remição existir para o propósito de defender o património familiar e de obstar a que os bens saiam da família do executado para as mãos de pessoas estranhas, é necessário que para que tal aconteça que o remidor de tal tenha conhecimento efetivo para proceder em conformidade, o que fez assim que tomou conhecimento da venda, quer ainda pela verificação das nulidades acima referidas, que conduzem à nulidade de todo o processado”.
Termina requerendo a revogação do despacho recorrido e sua substituição por outro que julgue verificadas as nulidades arguidas e anule todo o processado.
Tanto quanto resulta destes autos apensos, não foram apresentadas contra-alegações.
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Constitui única questão a decidir saber se foi cometida nulidade no processo por omissão de acto prescrito na lei que importa a anulação de todo o processado subsequente à notificação da intenção da arrendatária de exercer o direito de preferência, incluindo o título emitido, daqui decorrendo a tempestividade do exercício, por banda do recorrente, do direito de remição.
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II. Fundamentação
Interessando à decisão os factos relatados em I., importa destacar que na decisão recorrida foram invocados dois distintos fundamentos para indeferir a pretensão do remidor ora recorrente: considerou-se, por um lado, que o pedido não era tempestivo, uma vez que, aquando da sua formulação, havia sido já emitido título de transmissão a favor da arrendatária preferente; e, por outro, que não poderia ser atendido, dado que o requerente não tinha feito prova do pagamento do preço - o que, aliás, não fez até ao presente.
Não tendo refutado no recurso apresentado o apontado segundo fundamento -falta de pagamento do preço- defende, no entanto, o apelante que, tendo sido omitida formalidade exigida pela lei, nulidade processual com reflexo na decisão da causa, nulos são todos os actos subsequentemente praticados no processo, incluindo a emissão do título de transmissão. Ficando a venda sem efeito, já não seria válido o fundamento da intempestividade.
Dito de outro modo, pretende o recorrente que seja anulado o acto da venda, com fundamento no facto de não ter sido observado o prazo de 10 dias de que as partes alegadamente dispunham para se pronunciarem sobre o requerimento apresentado pela preferente, formalidade assim tida por essencial, e sem o que não poderia ser emitido o título de transmissão; anulada a venda, ser-lhe-ia permitido exercer ainda em tempo o seu direito de remição.
Mas será assim?
Estando em causa a venda em leilão electrónico – modalidade de venda preferencial, conforme expressa o n.º 1 do artigo 837.º – é aplicável o disposto nos artigos 827.º, n.º 2, 828.º e ainda, no que respeita ao exercício de eventual direito de preferência, o regime consagrado nos artigos 819.º e 823.º, ex vi do n.º 2 do artigo 811.º, pertencendo todos os preceitos ao CPC[1].
No caso vertente, e conforme resulta dos factos relatados em I), encerrado o leilão electrónico, foi pelo Sr. AE aceite a proposta de maior valor dentre as apresentadas, decisão que notificou às partes no processo, incluindo, portanto, a executada. Em estrito cumprimento do disposto no artigo 823.º, procedeu depois o Sr. AE à interpelação da arrendatária nos termos e para os efeitos aqui previstos e, finalmente, tendo-se esta apresentado a exercer o direito de preferência que a lei lhe confere, tendo junto comprovativo do pagamento do preço, foram as partes novamente notificadas por carta enviada no dia 1 de Julho, vindo aquele a emitir título de transmissão no dia 5 imediato, verificado que foi o cumprimento pela preferente das obrigações fiscais.
À luz do que dispõe o artigo 839.º, n.º 1, alínea c), a venda executiva fica sem efeito se for anulado o acto da venda nos termos do artigo 195.º, n.º 1, ou seja, no caso de ter sido praticado acto que a lei não admita ou omitido acto que a lei prescreva, mas apenas se a irregularidade cometida tiver tido influência no exame e decisão da causa. Nos termos do n.º 2 deste último preceito, quando um acto tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam. O prazo de arguição das nulidades é o previsto no artigo 149.º.
Preliminarmente, importa esclarecer que, em nosso entender, a lei não prevê que os titulares do direito de remição sejam notificados da prática dos actos atinentes à venda executiva. A este propósito, afirmou com clareza o STJ em acórdão de 13 de Setembro de 2012 (processo 4595/10.2TBBRG.G1.S1, em www.dgsi.pt), que “Do estatuto processual do interessado na remição, como terceiro relativamente à execução, decorre que não tem o mesmo de ser pessoalmente notificado dos actos e diligências que vão ocorrendo na tramitação da causa, presumindo a lei que o executado – ele sim notificado nos termos gerais – lhe dará conhecimento atempado das vicissitudes relevantes para o eventual exercício do seu direito”. E acrescentou: “Sendo o interesse tutelado com o instituto da remição o interesse do círculo familiar do executado, por ele encabeçado – e não propriamente qualquer interesse endógeno e típico da acção executiva – considerou o legislador dispensar a normal tramitação da execução da averiguação da possível existência de familiares próximos do executado, bem como de diligências tendentes à sua localização e notificação pessoal para efeitos de exercício de tal direito” (cfr., neste mesmo sentido, acórdãos do STA de 5/2/2015, processo 0748/14; do TRC de 22 de Maio de 2015, processo 386/12.4TBSRE-B.C1; do TRL de 19/2/2019, processo 104/09.4 TCSNT-C.L1-7; e deste mesmo TRE de 18/10/2018, processo 263/09.6TBCUB.E1, todos acessíveis em www.dgsi.pt).
Não vindo questionado no recurso o entendimento que se deixou expresso, notificada a executada da decisão do Sr. AE de aceitação da proposta mais elevada, encontrava-se esta familiar, desde então, em condições de informar o ora recorrente das condições de exercício do direito a remir, direito que podia exercer até à emissão do título que documenta a venda (cfr. artigo 853.º, n.º 1, alínea a)). Este termo final não se altera quando, como é o caso, o titular de direito legal de preferência se apresenta a exercê-lo na sequência da interpelação a que se refere o artigo 823.º, sendo certo ainda que nada na lei obriga a aguardar pelo prazo de 10 dias que as partes deduzam eventual oposição ao seu exercício antes da passagem do título, dispondo o artigo 827.º, a este respeito, muito simplesmente, que “Mostrando-se integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, os bens são adjudicados e entregues ao proponente ou preferente, emitindo o agente de execução o título de transmissão a seu favor (…)” vide n.º 1.
Conforme alerta o Prof. Lebre de Freitas[2] “(…) circunscrito ao processo executivo, o exercício do direito de remição só pode ter lugar num prazo apertado, que varia consoante a modalidade de venda e a formalização (ou não) desta por escrito: até à emissão do título de transmissão ou ao termo do prazo para a preferência, no caso do artigo 825.º-3, quando a venda se faz por propostas em carta fechada (artigo 843.º-1-a); até à assinatura do título de venda, se o houver (…) nas outras modalidades de venda (artigo 843.º-1-b)”.
Ora, na medida em que a lei não impõe ao AE, como se deixou já referido, que dê conhecimento aos titulares do direito de remição da prática dos actos relativos à concretização da venda, designadamente da iminente emissão do título de transmissão, verificado que o preço se encontrava totalmente pago e a preferente tinha satisfeito as obrigações fiscais, nada obstava à respectiva emissão, ainda que as partes se presumam notificadas do requerimento por esta apresentada apenas no dia anterior. Note-se que há muito eram conhecidas as condições do exercício do direito de remição, cabendo, “(…) deste modo, ao executado e respectivos familiares um ónus de acompanhamento atento e diligente da execução que afecte o património familiar, com vista a exercerem tempestivamente o direito de remição, sem, com isso, porem em causa a legítima confiança que o adquirente dos bens em processo executivo depositou na estabilidade da aquisição patrimonial que realizou.” (citado acórdão do STJ 4595/10.2).
Acresce que, tendo as partes sido notificadas de que a arrendatária se apresentara a exercer o seu direito de preferência, o prazo de 10 dias para deduzir qualquer eventual oposição terminou a 15 de Julho, pelo que eventual irregularidade, ainda a admitir a sua existência, estaria sanada.
Em suma, não tendo sido preterida qualquer formalidade imposta por lei, inexiste fundamento para anular o acto da venda e subsequentes.
Por outro lado, e concordando-se com o recorrente quando alerta ser a remição um “(…) mecanismo de protecção do património do executado, na medida em que permite que o mesmo se conserve na esfera jurídica dos seus familiares diretos em caso de adjudicação ou venda, sem prejudicar a satisfação do crédito exequendo, nem as legítimas expetativas dos credores (…), «benefício de caráter familiar (…) funcionando como um direito de preferência a favor da família no confronto com estranhos»”[3], daqui não decorre que possa ser exercido a todo o tempo, antes fixando a lei um termo final que no caso vertente não foi observado.
Acrescenta-se, por último que, tal como invocado no despacho recorrido, o remidor e ora recorrente não fez acompanhar a sua declaração de comprovativo do depósito do preço, que é condição de eficácia da mesma declaração (cfr., em sentido idêntico, o Ac. do TRG de 4/10/2018, processo 458/04.9TBVLN.G1, em www.dgsi.pt), pelo que, também com este fundamento, não poderia a pretensão do recorrente ser atendida.
Improcedentes os fundamentos do recurso, impõe-se manter a decisão recorrida.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas a cargo do recorrente (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
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Sumário:
(…)
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Évora, 11 de Março de 2021
Maria Domingas Alves Simões
Vítor Sequinho dos Santos
Mário Rodrigues da Silva
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[1] Diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.
[2] “A acção executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013”, 7.ª edição, página 492.
[3] Marco Gonçalves Carvalho, “Lições de Processo Executivo”, 3.ª edição, pág. 503 e em citação o Ac. STJ de 13/9/2012, processo n.º 4595/10.2TBBRG.G1.S1.