Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
136/15.3T8VRS.E1
Relator: SÍLVIO SOUSA
Descritores: HABILITAÇÃO
IMPULSO PROCESSUAL
DESERÇÃO
Data do Acordão: 09/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
1. Não dando o demandante nota no processo de dificuldades na obtenção dos elementos de facto indispensáveis à propositura do pertinente incidente de habilitação, devido ao falecimento de um co-Réu, antes se remetendo ao silêncio, esta sua conduta processual é suscetível de, só por si, ser rotulada de negligente.
2. Decretar, nestas circunstâncias, a cessação da instância, por deserção, “(….) não impõe uma prévia audição das partes, designadamente para funcionamento do princípio do contraditório”, uma vez que é uma consequência típica de uma realidade “(…) retratada ou espelhada objetivamente no processo”, do conhecimento dos sujeitos processuais.
3. Ainda que assim não seja, a sua inobservância era irrelevante, uma vez que a irregularidade não influiu “no exame ou na decisão da causa”, dado que, devido ao fim da instância, o processo não atingiu “ (…) a sua finalidade normal: a declaração, por ato jurisdicional, do direito controvertido”.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora:


Relatório

Na presente ação declarativa, intentada por BB contra CC e marido, DD, foi lavrado despacho, a 12 de maio de 2016, suspendendo a instância, com fundamento no óbito do demandado, “(….) até à notificação da decisão que julgue habilitados os sucessores do falecido”, seguido de um outro, a 24 de março de 2017, onde, nomeadamente, se julga “(….) deserta a instância, por o processo se encontrar, por negligência das partes dos presentes autos, há mais de seis meses, a aguardar impulso processual da mesma”.

Inconformada com esta última decisão[1], recorreu a demandante, com as seguintes conclusões[2]:

- Atendendo que estamos perante um caso de alienação ou oneração de imóveis e que entre a recorrida e o ex-marido vigorava o regime de separação de bens, o falecido não deveria estar em juízo;


- Não havia necessidade de citar o marido da recorrida e, por isso, não havia necessidade de qualquer impulso processual das partes;


- A decisão impugnada premiou a recorrida, porque seria desta a responsabilidade de dar a conhecer aos autos quem seriam os herdeiros do falecido e, por outro lado, sancionou a recorrente, que os desconhecia;


- O tribunal recorrido errou em declarar a deserção da instância, sem notificar as partes, sem apurar de quem era a responsabilidade pela falta de impulso processual e quem iria aproveitar, com a sua falta;


- Na verdade, as partes nem tiveram a oportunidade de se pronunciarem relativamente à deserção da instância, ou seja, não foram notificados para os seus efeitos;


- A deserção da instância não se verifica automaticamente, pelo decurso do prazo de seis meses, devendo o tribunal, antes de proferir o despacho, ouvir previamente as partes, de forma a aquilatar se a falta de impulso processual é ou não, devida a negligência e, só após, esta audição, emitirá despacho tido por adequado, que é sindicável;


- A não observância do princípio do contraditório, no sentido de ser concedida às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre questões que importe conhecer, na medida em que possa influir no exame ou na decisão da causa, constitui uma nulidade processual;


- Como decorrência do princípio do contraditório, é proibida decisão-surpresa, isto é, a decisão baseada em fundamento que não tenha sido, previamente, considerado pelas partes, salvo nos casos de manifesta desnecessidade;


- A violação do contraditório gera nulidade processual se aquela for suscetível de influenciar, decisivamente, na decisão da causa, o que é o caso dos autos;


- Nestes termos, deve a decisão de deserção da instância ser anulada e as partes notificadas, no âmbito do princípio do contraditório, quanto ao impulso processual, ocasionado pela suspensão da instância.


Inexistem contra-alegações.


O recurso tem por objeto a seguinte questão: saber se é ou não de manter a extinção da instância, por deserção.



Foram colhidos os vistos legais.




Fundamentação

A- Os factos

A.a - Despacho de 12 de maio de 2016

“Atento o teor do aludido requerimento do qual resulta a junção aos autos do Assento de Óbito de DD, ora réu, ao abrigo do disposto nos artigos 269º, nº 1, al. a) e 270º, do Código de Processo Civil, declara-se suspensa a instância, com fundamento no referido óbito, até à notificação da decisão que julgue habilitados os sucessores do falecido.

Notifique.

Vila Real de Santo António, 12-5-2016 (8 Domingo)”.

A.b

A recorrente BB foi notificada deste despacho, em 28 de julho de 2016.

A.c - Despacho de 24 de março de 2017

“Na sequência do despacho proferido com a referência 101476870 de 12-5-2016 (cfr. fls. 81), notificado às partes em 28-7-2016 (cfr. fls. 82 e 83), sem que nada tenha sido dito ou requerido, desde então, nos termos do artigo 281º, nº 1 do C.P.C., julga-se deserta a instância, por o processo se encontrar, por negligência das partes dos presentes autos, há mais de seis meses, a aguardar impulso processual da mesma.

Notifique.

Vila Real de Santo António, 24-3-2017.”




B - O direito/doutrina/jurisprudência


- “A crise da extinção define-se assim: ocorre, na pendência do processo, certo evento que faz cessar a instância sem que ela tenha atingido a sua finalidade normal: a declaração, por ato jurisdicional, do direito controvertido. A instância finda em consequência dum facto anormal; termina, por assim dizer, abruptamente, intempestivamente. É o caso, por exemplo, de (…) deserção (…)”[3];


- Com o novo Código de Processo Civil, “o prazo para que ocorra a deserção da instância foi significativamente reduzido de dois anos (…) para seis meses”, o qual deixou de ser antecedido da interrupção da instância [4];


- A razão de ser da deserção da instância “(…) está em não ser conveniente para a boa ordem dos serviços que no tribunal existam processos sem solução alguma e por espaço tão longo” [5];


- “Uma vez que sobre as partes impende o ónus de impulso processual (…) não podem elas queixar-se da extinção da instância por virtude da deserção: sofrem as consequências da sua inércia ou da falta de cumprimento do ónus” [6];


- “Por três modos se pode violar a lei processual reguladora dos atos: 1º - Praticando-se um ato que a lei não admita (…); 2º- Omitindo-se um ato que a lei prescreva (…); 3º - Omitindo-se uma formalidade que a lei exija (…)”[7];


- “Praticando-se um ato que a lei não admite, omitindo-se um ato ou formalidade que a lei prescreve, comete-se uma infração: mas nem sempre esta infração é relevante, quer dizer, nem sempre produz nulidade. A nulidade só aparece quando se verifica um destes casos: a) Quando a lei expressamente a decreta; b) Quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa” [8];


- “ (…) a nulidade do ato processual repercute-se nos atos subsequentes da sequência que dele dependam absolutamente. Assim, sempre que a prática de um ato da sequência pressuponha a prática de um ato anterior, a invalidade deste tem como efeito, indireto mas necessário, a invalidade do primeiro, se entretanto tiver sido praticado, pelo que a invalidade do ato processual é mais uma invalidade do ato enquanto elemento da sequência do que do ato em si mesmo considerado” [9];


“A arguição da nulidade só é admissível quando a infração processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou omissão do ato ou da formalidade, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade é a impugnação do respetivo despacho pela interposição do recurso competente. Eis o que a jurisprudência consagrou nos postulados: dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se” [10].


- O princípio da cooperação - que visa, nomeadamente, assegurar que “ (…) o processo realize a sua função em prazo razoável”[11]- deve ser observado por parte de cada um dos “ (…) intervenientes processuais em relação aos outros e deve ser exigida pelo juiz em relação a todos, a começar por si próprio, o que tem desde logo a vantagem da pedagogia” [12];


- A cooperação entre o juiz e o mandatário judicial visa “ (…) obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio” [13];


- O princípio do contraditório garante, atualmente, “ (…) a participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”[14];


- “Antes de decidir com base em questão (de direito material ou de direito processual) de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado, o juiz deve convidá-las a sobre ela se pronunciarem, seja qual for a fase do processo em que tal ocorra (despacho -saneador, sentença, instância de recurso)”, salvo caso de manifesta desnecessidade[15];


- “Não obstante poder afirmar-se que, em tese, ambas as partes têm interesse na resolução do seu litígio, o certo é que, na prática, quem aciona o meio judicial de composição desse litigio tem um interesse acrescido na sua resolução” [16];


-“I - Não configura uma decisão-surpresa o despacho que, ao declarar a extinção da instância por deserção, se baseia em fundamentos e enquadramento jurídico indicados em despacho anterior, notificado às partes, as quais sobre o mesmo se não pronunciaram; II - Apesar de não ter praticado o ato em falta, a atuação do autor não se carateriza pela inércia se justificou tal omissão e requereu a realização de diligências destinadas à remoção do obstáculo que o tem impedido de praticar tal ato. III - Tendo o autor justificado atempadamente a respetiva impossibilidade em dar impulso ao processo, diligenciado no sentido da obtenção de elementos que lhe permitam deduzir o incidente em falta, não poderá a respetiva conduta ser qualificada como negligente” [17];


- “ A decisão judicial, que culmine com a deserção da instância, importa em si mesma um juízo acerca da existência de negligência da parte em termos de impulso processual, retratada ou espelhada objetivamente no processo. V- Assim, a mesma não impõe uma prévia audição das partes, designadamente para funcionamento do princípio do contraditório” [18];


-“I - Embora o incidente de habilitação de herdeiros de parte ou comparte falecida na pendência da causa, possa ser promovida por qualquer das partes sobrevivas ou pelos herdeiros da parte falecida, é inequívoco que, em princípio, na ação, o principal interessado no andamento dos autos é o autor, na reconvenção é o reconvinte e no recurso é o recorrente, aos quais (ou respetivos herdeiros), por isso, compete, em 1ª linha, impulsionar os autos, isto é, requerer a habilitação de herdeiros. II - A partir do momento em que o Tribunal “a quo” suspendeu a instância, por falecimento da Ré (…), as partes consideram-se notificadas para, querendo, requererem a habilitação de herdeiros da parte ou comparte falecida, não constituindo justificação da inércia da autora o ter ficado a aguardar que o co-réu o fizesse, ainda que tivesse melhores condições para tal, nomeadamente, o conhecimento de quem seriam os herdeiros da falecida”[19].



C - Aplicação do direito aos factos


Ainda que a habilitação dos sucessores da parte falecida, na pendência da causa, possa ser requerida por qualquer dos sujeitos processuais que sobreviverem, não é razoável pensar que, inexistindo pedido reconvencional, seja o demandado sobrevivo a o fazer. A prática processual assim o diz.


Como tal, não tinha a recorrente BB razões para acreditar que a habilitação do marido da demandada CC fosse por esta desencadeada.


Competia, pois, à dita recorrente promover o incidente de habilitação, com a achega do Tribunal, em caso de dificuldade na obtenção dos indispensáveis elementos de facto, chamando, para o efeito, à colação o princípio da cooperação.


Acontece que a recorrente BB não fez chegar aos autos qualquer nota de dificuldade na propositura do incidente. Pura e simplesmente, optou pelo silêncio durante mais de seis meses.


Esta conduta processual da referenciada é, só por si, suscetível de um juízo de valor negativo, uma vez que, como se aludiu, podia e devia ter agido de outro modo. É, pois, um comportamento negligente.


Equivale isto a dizer que a responsabilidade pela falta de impulso deve ser imputada à dita recorrente.


De referir, ainda, que decretar, como no caso dos autos, a cessação da instância, por deserção, “(….) não impõe uma prévia audição das partes, designadamente para funcionamento do princípio do contraditório”, uma vez que é uma consequência típica de uma realidade “(…) retratada ou espelhada objetivamente no processo”, do conhecimento dos sujeitos processuais.


Mesmo que assim não seja, a sua inobservância era irrelevante, uma vez que a eventual irregularidade não influiu, direta ou indiretamente, “no exame ou na decisão da causa”, dado que, devido ao fim da instância, o processo não atingiu “ (…) a sua finalidade normal: a declaração, por ato jurisdicional, do direito controvertido”.


Deste modo, não é de ratificar, a pretensão da recorrente BB, veiculada através do recurso, relativamente à cessação da instância, por deserção.


Em síntese[20]: não dando o demandante nota no processo de dificuldades na obtenção dos elementos de facto indispensáveis à propositura do pertinente incidente de habilitação, devido ao falecimento de um co-Réu, antes se remetendo ao silêncio, esta sua conduta processual é suscetível de, só por si, ser rotulada de negligente; decretar, nestas circunstâncias, a cessação da instância, por deserção, “(….) não impõe uma prévia audição das partes, designadamente para funcionamento do princípio do contraditório”, uma vez que é uma consequência típica de uma realidade “(…) retratada ou espelhada objetivamente no processo”, do conhecimento dos sujeitos processuais; ainda que assim não seja, a sua inobservância era irrelevante, uma vez que a irregularidade não influiu “no exame ou na decisão da causa”, dado que, devido ao fim da instância, o processo não atingiu “ (…) a sua finalidade normal: a declaração, por ato jurisdicional, do direito controvertido”.


Decisão


Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação, julgando a apelação improcedente, manter ao despacho recorrido, na parte referente à cessação da instância, por deserção.


Custas pela recorrente.


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Évora, 13 de setembro de 2018


Sílvio José Teixeira de Sousa


Manuel António do Carmo Bargado


Albertina Maria Gomes Pedroso


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[1] Relativamente ao despacho que suspendeu a instância, proferiu esta Relação decisão a rejeitar a sua impugnação, através do presente recurso, por o mesmo, entretanto, ter transitado em julgado.
[2] Conclusões elaboradas por esta Relação, a partir das prolixas “conclusões” da recorrente.
[3] Prof. Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, vol. III, pág. 226.
[4] António Martins, in Código de Processo Civil, Comentários e Anotações Práticas, 2013, pág. 142, e artigos 277º., c) e 281º., nº 1 do Código de Processo Civil.
[5] Prof. Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, vol. III, 1946, pág. 439.
[6] Prof. Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, vol. III, 1946, pág. 439.
[7] Prof. Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, vol. III, Coimbra 1946, pág. 483.
[8] Prof. Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, vol. III, Coimbra 1946, pág. 484, e artigo 195º., nº 1 do Código de Processo Civil
[9] José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2 ª edição, pág. 370, e artigo 195º., nº 2 do Código de Processo Civil.
[10] Prof. Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, 1945, pág. 507.
[11] José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2ª edição, pág. 514.
[12] Artigo 7º., nº 1 do Código de Processo Civil e António Martins, in Código de Processo Civil, Comentários e Anotações Práticas, 2103, pág. 21. [13] Artigo 7º., nº 1 do Código de Processo Civil.
[14] José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2ª edição, págs. 7 e 8 e artigo 3º., nº 3 do Código de Processo Civil.
[15] José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2ª edição, pág. 9.
[16] Acórdão da Relação de Évora de 28 de junho de 2017 (processo nº 252/12.3 TMSTB-C.E1), in www.dgsi.pt..
[17] Acórdão da Relação de Évora de 10 de maio de 2018 (processo nº 276/14.6 T8STR.E1), in www.dgsi.pt..
[18] Acórdão da Relação de Guimarães de 1 de março de 2018 (processo nº1218/14.4 T8VCT.G11), in www.dgsi.pt..
[19] Acórdão da Relação de Guimarães de 9 de novembro de 2017 (processo nº 275/05.9 TBMTR.G1), in www.dgsi.pt..
[20] Artigo 713º., nº7 do Código de Processo Civil.