Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2261/17.7T8PTM
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: TESTAMENTO
INSTITUIÇÃO DE HERDEIRO
CONDIÇÃO RESOLUTIVA
ASSISTÊNCIA À FAMÍLIA
ALIMENTOS
INCUMPRIMENTO
Data do Acordão: 05/07/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I- Tendo o testador dito que “institui única e universal herdeira, de todos os seus bens, móveis e imóveis, incluindo contas bancárias, F. , instituição esta que ficará dependente da instituída ter cuidado do testador, prestando-lhe assistência médica e medicamentosa e alimentos, se necessário, tendo carácter resolutivo caso tais cuidados não lhe sejam prestados ou não o sejam ate à sua morte “ é de considerar que tal “ encargo” foi imposto como condição resolutiva e com efeitos próprios deste elemento acidental;

II- Tal interpretação é de resto a mais consentânea com disposto no art.º 2187º do Cód. Civil e que tem correspondência no contexto do testamento: Se F. não cuidasse dele, testador, até à sua morte não se verificaria (ou deixaria de se verificar) relativamente a ela a instituição de herdeiro.

III) Não se tendo provado que a instituída tivesse acompanhado com efectividade o testador ao longo do seu período de doença e até à sua morte, nem tendo sequer estado presente quando o agravamento do seu estado de saúde demandou que fosse internado, a conclusão alcançada é que a mesma não cumpriu a condição estabelecida para se manter relativamente a ela a instituição de herdeira. (sumário da relatora)

Decisão Texto Integral:

I- RELATÓRIO

1. A…, J…, P…, JO…, L…, M… e marido JU…, JOS…, AM…, N…, MA…, V…, S…, MAR…, NA… e marido G… e VA… e mulher MM…, intentaram acção declarativa com processo comum contra:

GE…

Pedindo para:
“a) Serem os Autores identificados nos artigos 8º, 9º e 10º da petição inicial, judicialmente reconhecidos como sucessores e declarados como herdeiros do falecido JV…, identificado no artigo 1º da referida peça processual;
b) Ser judicialmente declarada a anulação do testamento outorgado pelo falecido em 22 de dezembro de 2010 e que constitui o documento nº 3 junto com a petição inicial;
c) Serem restituídos à Herança do falecido todos os bens imóveis, móveis e saldos das contas bancárias, nomeadamente, quanto a estes, os que existissem à data do óbito;
d) Ser ordenado o cancelamento de todos os registos que houverem sido lavrados, a favor da Ré, com base no testamento e por força da sua anulação.”

Alegaram para o efeito que o falecido JV… celebrou o referido testamento, fazendo constar do mesmo o encargo de que a R., sua herdeira então instituída, lhe prestasse assistência médica e medicamentosa e alimentos, se necessário, sendo que a R. não prestou quaisquer cuidados ao testador, tendo mantido uma vida independente da deste e apenas se apresentando na residência do mesmo ocasionalmente e, em geral, com o intuito de se lhe apoderar da reforma.
Afirmaram ainda os AA. serem os herdeiros do falecido.
Mais referiram que o mesmo foi quem sempre tratou de si próprio, sendo que na fase terminal da sua vida, quando se encontrava doente, não teve quaisquer cuidados da parte da ré, não tendo comida para se alimentar, não tendo dinheiro para comprar fósforos para acender a sua lareira e aquecer-se e tendo morrido sozinho em sua casa, quando um tumor de que padecia “rebentou”.
Como tal, afirmam dever ser anulados todos os efeitos decorrentes do referido testamento, passando os autores a serem reconhecidos como sucessores do falecido JV….
A R., depois de ter arguido a excepção de caducidade do direito dos autores, em sede de contestação, alegou serem falsas as imputações levadas a efeito pelos mesmos, sendo que, segundo alegou, manteve uma relação com o falecido JV…, desde há mais de 10 anos, iniciada ainda este vivia na sua residência na companhia de sua mãe. A R. passou posteriormente a viver com o falecido e a mãe deste e, quando a mãe faleceu, permaneceu a viver com o falecido JV….
Mais referiu que os autores nunca se interessaram pelo estado de saúde do falecido e que foi a R. que foi a sua companhia nos últimos anos de vida deste. Manifestou ter sempre acompanhado o falecido a todas as consultas, quer no Hospital do Barlavento Algarvio, quer no IPO, em Lisboa, quando este recebeu tratamentos para o problema de saúde de que padecia.
No dia em que “rebentou” o tumor que acometia JV… (cerca de uma semana antes da data em que este veio a falecer), a R. tinha-se ausentado para Portimão para tratar de assuntos na loja da operadora telefónica MEO, sendo que, ao telefonar para casa sem que JV… atendesse, pediu a um taxista que ali se deslocasse, para confirmar se tudo estava bem e, como não tivesse tido essa informação, e sendo subsequentemente informada de que JV… havia sido transportado para o Hospital do Barlavento Algarvio, em Portimão, para ali se deslocou, tendo permanecido com o mesmo. Foi, aliás, a R., segundo alega, que permaneceu com o falecido até à sua morte, no Hospital do Barlavento Algarvio.
Considerou, em suma, não ter incumprido as obrigações decorrentes do testamento, pelo que não existe razão para o mesmo ser dado sem efeito.
Concluiu pela improcedência da ação.
Os autores responderam à matéria de excepção, pugnando pela improcedência da invocada caducidade e mantendo o por si alegado na petição inicial.
A excepção de caducidade veio a ser julgada improcedente em sede de despacho saneador.
Realizou-se audiência final vindo, subsequentemente, ser proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a Ré do pedido.

2. É desta sentença que os Autores recorrem formulando, na sua apelação, as seguintes conclusões:

“I - Através do presente recurso, pretendem os Apelantes, ao abrigo do disposto no art.º640º do CPC impugnar a matéria de facto.
II - A douta sentença errou ao dar como provado que a Ré tivesse ido “viver” com JV… e que a Mãe deste tivesse falecido em Abril de 2010 – cfr. ponto 10 dos factos provados e, por outro lado, ao não dar como provado que a Ré não habitava de forma permanente, mas sim intermitente, com José Varela, autor do testamento.
III - Viver com alguém, pode assumir diferentes alcances ou significados. Pode significar partilhar uma habitação, em economia comum, pode constituir uma união de facto, ou até uma simples partilha de custos entre duas ou mais pessoas para suprir necessidades habitacionais, com diferentes níveis de confiança, maior ou menor grau de intercolaboração, geradoras de relacionamentos de curta ou longa duração, com carácter de permanência ou de frequência transitória ou circunstancial.
IV - Sobre esta matéria de facto, na respectiva motivação patente na sentença recorrida, resulta que:
a) A testemunha António Nunes “manifestou a sua convicção, pela percepção que teve das visitas, que relatou serem frequentes, que fazia a casa do falecido, que a R. não moraria ali”, sendo certo que outras testemunhas como MC… CM…, confirmaram que a testemunha AN…unes era visita da casa do falecido e que até chegou durante algum tempo a semear no terreno do mesmo e a manter lá animais.
b) Por seu turno, testemunha MC declarou que o falecido JV…“tinha uma brasileira lá”. Às vezes ela estava lá outras vezes não.
c) A testemunha NV…, cujo marido era visita de casa do falecido, declarou também que a R. vivia lá, ou pelo menos ia para lá – fica a dúvida, tratando-se de realidades totalmente diferentes – e que do seu depoimento poder ser colhido que efectivamente a R., pelo menos nalgumas ocasiões, se apresentava como alguém que vivia na casa do falecido JV…. – neste concreto ponto, salvo devido respeito, parece até contraditória a douta fundamentação.
d) A testemunha JL…, professor aposentado e que morava próximo de casa do falecido JV…, que todavia admitiu não frequentar, declarou nunca ter visto a ré em casa do falecido.
e) A testemunha MD…, manifestou afigurar-se-lhe, por convicção resultante de conversa com o falecido JV…, que a R. estaria lá algumas vezes e depois, de quando em vez, se ausentaria, regressando posteriormente.
f) A testemunha AM, que esteve presente aquando do já mencionado episódio de urgência, por ter acompanhado outra pessoa que se deslocou a casa do JV…, manifestou que o mesmo estava sozinho, corroborando assim o demais depoimentos produzidos nesse sentido.
V - Não resulta, assim, suficientemente claro e, por conseguinte, fundamentado, sob que forma e com que frequência a Ré vivia com o falecido.
VI - Por conseguinte, neste particular, “viver” apenas se pode dar como certo no sentido de a Ré “ter residência” na mesma morada que JV….
VII - Parece-nos assim existir na douta sentença recorrida uma contradição entre a fundamentação e os factos provados se o sentido a atribuir ao termo “viver” significar uma coabitação de caracter permanente.
VIII – Deve, portanto, ser alterada a matéria de facto, no sentido de melhor concretizar e definir o tipo e a frequência da coabitação entre ambos, dando-se como provada não ser permanente.
IX - Em reforço e em conjugação com o quanto foi supra considerado a este propósito e em cumprimento do ónus estabelecido no citado art.º640º n.º1, al. a), b) e c) e do n.º2, al. a) da mesma disposição processual do C.P.C., especificam-se, em concreto, os meios de prova consubstanciados nas declarações de parte prestadas por P…, ML… e S…, assim como o depoimento da testemunha Ant… que constam da gravação da sessão de audiência de julgamento que teve lugar do dia 19 de Junho de 2019, em relação aos quais se transcreveram, no corpo das alegações do presente recurso, determinadas passagens.
X - O Tribunal recorrido andou mal ao não ter dado qualquer relevo ou colhido qualquer contributo, no processo da formação da sua convicção, às declarações que foram prestadas pelos Autores e, para além disso, não atribuiu a devida relevância ao depoimento da testemunha Ant… sobre esta matéria de facto ora impugnada.
XI - Ainda em relação a este ponto 10 da matéria dada como provada, existe um outro pormenor que deve ser suprimido, designadamente, a menção à data do óbito da Mãe de JV…, tendo em conta que tal facto carecia de prova documental que não foi exibida nem consta dos autos, nomeadamente, o respectivo Assento de Óbito, devendo, assim, ser suprimida na parte onde se lê: “em Abril de 2010”
XII - Deve o ponto 10 dos factos provados ser alterado, passando a ter a seguinte redacção:
- “10- A ré e o falecido JV… conheceram-se em Portimão, tendo o falecido convidado a R. a visitar a sua habitação em Monchique, onde vivia com a sua mãe, e, posteriormente, os dois desenvolveram uma relação de amizade, sendo que, a pedido do falecido JV…, a ré aceitou aí residir com aquele em data em que a mãe deste ainda era viva”
XIII - E deve ser aditada à matéria de facto um ponto adicional, nomeadamente:
- “A coabitação entre JV… e a Ré não era permanente, pois que esta se ausentava da residência durante certos e variados períodos de tempo”, ou qualquer redacção alternativa que traduza o sentido pugnado.
XIV - A apreciação da causa, radicada no invocado (in)cumprimento do encargo imposto no testamento e que constituiu o tema de prova enunciado em sede de Audiência Prévia, deve ser feita num contexto e com o sentido de uma “coabitação intermitente” entre JVe a Ré.
XV - Atendendo ao facto de JV… ser solteiro e sempre ter vivido com os seus pais, tendo presente a sua idade à data do testamento, que era de 68 anos, resulta de todo esse contexto que a vontade do testador foi a de beneficiar com o imóvel que era sua habitação e instituir sua herdeira, a pessoa que o acompanhasse e lhe prestasse os últimos cuidados de alojamento, de higiene, médicos, vestuário e alimentação e convívio permanente, até à sua morte.
XVI - O encargo imposto pelo testador no seu interesse à beneficiária foi o de “cuidar” dele, no sentido que lhe fosse prestada toda a assistência de que viesse a necessitar, no período referido no testamento, enquanto fosse vivo.
XVII - Tendo em consideração que a Ré não permanecia sempre no local onde passou a residir com JV…, dele se ausentando por períodos variados de tempo – inclusive chegou a ir ao Brasil – fica seriamente comprometido concluir-se cumpriu tal encargo conforme lhe era exigido pelo testador.
XVIII - Ainda para mais porque, nos tempos que antecederam a sua morte, o referido JV… vinha sofrendo com o agravamento dos seus problemas de saúde, nomeadamente, a partir de julho de 2016 – cfr. ponto 13 dos factos provados.
XIX - Teve, inclusivamente, necessidade de ser transportado por várias ocasiões, pelos Bombeiros Voluntários de Monchique para receber tratamentos no Hospital de Portimão, onde também era acompanhado na sua doença – cfr. ponto 14 dos factos provados.
XX – JV… ostentava, ultimamente, um inchaço na zona do abdómen, em virtude do crescimento de um tumor localizado nas partes moles do ventre, que acabou por rebentar – cfr. ponto 15 dos factos provados.
XXI - Com o agravamento do seu estado de saúde, sofreu dores e mal-estar físico, angústia e tristeza – cfr. ponto 16 dos factos provados.
XXII - Neste quadro factual, em que o testador já tinha uma idade avançada e padecia de graves dificuldades e problemas de saúde, parece-nos ser pacífico que o seu interesse – e é apenas este que deve ser considerado na apreciação do eventual incumprimento – era de beneficiar de um acompanhamento e prestação de cuidados de alojamento, de higiene, médicos, vestuário e alimentação e convívio de forma contínua e permanente.
XXIII - Contudo, não foi isso que, seguramente, sucedeu, na justa medida em que a Ré – ainda que se tenha demonstrado que com ele coabitava e, nessa medida, se possa admitir que dele cuidasse – se ausentava periodicamente da residência.
XXIV - Estas considerações são ainda reforçadas se nos ativermos aos últimos acontecimentos da vida de JV…, seguramente marcados pelo sofrimento de dores físicas, angústia e tristeza pelo agravamento da sua doença, que exigia um especial redobrado cuidado, atenção e dedicação por parte da Ré.
XXV - No entanto, ao invés, no dia em que o tumor rebentou, cerca de uma semana antes do seu falecimento, JV… estava sozinho em casa, tendo sido encontrado por terceiros seus conhecidos que, de quando em vez, o iam visitar, em estado grave, sendo visíveis nalgumas divisões da sua casa os sinais da hemorragia que estava a sofrer – cfr. ponto 17 dos factos provados, vindo a falecer poucos dias depois.
XXVI - Pelo que, é de concluir que a Ré incumpriu o encargo que lhe foi imposto pelo testador, não acautelando, conforme este pretendera, o seu verdadeiro interesse.
XXVII - Não parece ser suficientemente relevante para refutar o incumprimento da Ré, o facto de JV… não ter revogado o testamento por si outorgado, que o Tribunal a quo relevou de forma importante na sua douta motivação sobre os factos, uma vez que, nos últimos dias da sua vida – durante os quais ainda poderia fazê-lo – encontrava-se bastante debilitado pela doença, sendo de admitir que ser-lhe-ia bastante difícil concretizar essa hipotética intenção
XXVIII - Não estando cumprido o dever jurídico imposto pelo testamento, não pode a Ré, que não prestou estes cuidados de forma contínua, mas antes intermitente, ser a beneficiária que o testador quis instituir no seu testamento, como sua herdeira, por não constituir a sua vontade.
XXIX – A douta sentença recorrida violou os arts. 2229º, 2244º, 2248º, n.º1, do Cód. Civil.
Nestes termos e nos demais de direito, com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso ser julgado provado e procedente e, em consequência, ser a sentença recorrida revogada e em sua substituição ser judicialmente declarada a anulação do testamento outorgado pelo falecido em 22 de dezembro de 2010 em causa nos presentes autos, com todas as legais consequências, assim sendo feita acostumada Justiça.

3. A Autora contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso.

4. Sendo certo que o objecto do recurso se delimita pelas conclusões das alegações do apelante (cfr. artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil), as questões cuja apreciação as mesmas convocam são as seguintes:

- Impugnação da matéria de facto: se o facto vertido no ponto 10 dos factos “Provados” deve ter a redacção propugnada pelos apelantes e se deve ser aditado à matéria de facto um outro com o teor sugerido pelos mesmos;

- Reapreciação jurídica da causa: Natureza da cláusula inserta no testamento; da sua (in) verificação.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. É o seguinte o teor da decisão da matéria de facto consignada na sentença recorrida e que é, no ponto assinalado, objecto de impugnação:

“a) Factos provados

1- No dia 22 de junho de 2017, na freguesia e concelho de Portimão, faleceu JV…, natural da freguesia e concelho de Monchique, no estado de solteiro, com a idade de 74 anos, com última residência em Montinhos da Serra, freguesia e concelho de Monchique (resposta aos artºs 1º da p.i. e 5º da réplica).

2- O falecido não tinha descendentes nem ascendentes à data do óbito (resposta ao artº 2º da p.i.).

3- O falecido nasceu no dia 26 de outubro de 1942 e era filho de AS…, natural da freguesia e concelho de Monchique e de ME…, natural da freguesia de Alferce, concelho de Monchique, e neto de AV… e MJ… (seus avós paternos) e de JD… e MR… (seus avós maternos), todos pré-falecidos (resposta ao artº 3º da p.i.).

4- O falecido, então já com 68 anos de idade, deixou testamento público, lavrado em 22 de dezembro de 2010, de folhas trinta e seis a folhas trinta e seis verso, do Livro número Dois-T para testamentos públicos e escrituras de revogação de testamentos, no Cartório Notarial de Portimão, sito na Rua Dom Carlos I, n.º37, rés-do-chão, na freguesia e concelho de Portimão, perante a Notária Dra. Bruna Almeida Santos, através do qual instituiu como única e universal herdeira, de todos os seus bens, móveis e imóveis, incluindo contas bancárias, a Ré Ge…, supra identificada, constituindo tal testamento o documento que se encontra junto com a petição inicial com o nº 3 (a fls. 28 e seguintes), o qual aqui se dá como integralmente reproduzido (resposta aos artºs 4º e 15º a 18º da p.i., 29º e 33º da contestação e 3º da réplica).

5- No testamento deixado pela falecido JV… pode ler-se: “institui única e universal herdeira, de todos os seus bens, móveis e imóveis, incluindo contas bancárias Ge…, casada, natural de Uruaçu, Brasil, de nacionalidade brasileira, residente em … freguesia e concelho de Monchique, instituição esta que ficará dependente da instituída ter cuidado do testador, prestando-lhe assistência médica e medicamentosa e alimentos, se necessário, tendo carácter resolutivo caso tais cuidados não lhe sejam prestados ou não o sejam ate à sua morte” (resposta aos artºs 5º, 15º a 18º, 42º, 46º, 48º e 49º da p.i., 65º e 67º da contestação e 4º da réplica).

6- Os Autores…, são parentes, por consanguinidade, no quarto grau da linha colateral relativamente ao falecido JV…, uma vez que os avós paternos daqueles eram JE… e MR… (resposta ao artº 8º da p.i.).

7- Por sua vez, os Autores … são parentes, por consanguinidade, no quarto grau da linha colateral relativamente ao falecido JV…, uma vez que os avós paternos daqueles eram AV… e MJ… – que eram, também, os avós paternos deste (resposta ao artº 9º da p.i.).

8- E ainda os Autores … são parentes, por consanguinidade, no quarto grau da linha colateral relativamente ao falecido JV…, uma vez que, neste caso, os avós maternos daquela eram AV… e MJ… – que eram, também, os avós paternos deste (resposta ao artº 10º da p.i.).

9- O falecido JV… sempre viveu no Sítio de …, freguesia e concelho de Monchique, na casa em que começou por viver em conjunto com os seus progenitores e que, após o óbito destes, passou a ser sua propriedade exclusiva (resposta ao artº 13º da p.i.).

10- A ré e o falecido JV… conheceram-se em Portimão, tendo o falecido convidado a R. a visitar a sua habitação em Monchique, onde vivia com a sua mãe, e, posteriormente, os dois desenvolveram uma relação de amizade, sendo que, a pedido do falecido JV…, a ré aceitou ir viver com aquele em data em que a mãe deste, que faleceu em abril de 2010, ainda era viva (resposta aos artºs 14º da p.i., 15º a 22º e 24º da contestação).

11- À data do testamento, 22/12/2010, o falecido já tinha com a Ré um relacionamento (resposta ao artº 15º da p.i.).

12- O falecido sabia cozinhar e era capaz de cozinhar para si próprio, lavar e engomar a sua roupa, o que por vezes fazia (resposta ao artº 26º da p.i.).

13- Ultimamente, nos tempos que antecederam a sua morte, o referido JV… vinha sofrendo com o agravamento dos seus problemas de saúde, nomeadamente, a partir de julho de 2016 (resposta aos artºs 31º da p.i. e 14º da réplica).

14- Teve, inclusivamente, necessidade de ser transportado por várias ocasiões, pelos Bombeiros Voluntários de Monchique (nomeadamente, as referidas nos documentos de fls. 62 e 242 a 245), para receber tratamentos no Hospital de Portimão, onde também era acompanhado na sua doença (resposta aos artºs 32º da p.i. e 50º da contestação).

15- Ostentava, ultimamente, um inchaço na zona do abdómen, em virtude do crescimento de um tumor localizado nas partes moles do ventre, que acabou por rebentar (resposta ao artº 33º da p.i.)

16- O falecido, com o agravamento do seu estado de saúde, sofreu dores e mal-estar físico, angústia e tristeza (resposta ao artº 34º da p.i.).

17- No dia em que o tumor rebentou, cerca de uma semana antes do seu falecimento, JV… estava sozinho em casa, tendo sido encontrado por terceiros seus conhecidos que, de quando em vez, o iam visitar, em estado grave, sendo visíveis nalgumas divisões da sua casa os sinais da hemorragia que estava a sofrer (resposta aos artºs 36º e 37º da p.i.).

18- Foi internado e acabou por falecer, pouco tempo depois, no dia 22 de junho de 2017 no Hospital do Barlavento Algarvio (resposta ao artº 38º da p.i.).

19- O falecido deixou bens imóveis, bens móveis e contas bancárias, nomeadamente, os seguintes imóveis, que a Ré, entretanto, inscreveu, matricialmente, no seu nome:

- Prédio urbano, sito no lugar de … freguesia e concelho de Monchique, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo … da dita freguesia;

- Prédio rústico, sito no lugar de …, freguesia e concelho de Monchique, inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o artigo …da Secção AM da dita freguesia;

- Prédio rústico, sito no lugar de …, freguesia e concelho de Monchique, inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o artigo … da Secção AM da dita freguesia, e, bem assim, os bens móveis que compunham o recheio da sua residência (resposta aos artºs 39º a 41º da p.i.).

20- A junta de freguesia de Monchique elaborou o documento de fls. 96v., de onde consta que a R. “(…) reside em …, Monchique, em comunhão de mesa e habitação, com JV…, de 71 anos de idade, desde o ano de 2007 (…)” (resposta ao artº 23º da contestação).

21- O falecido era uma pessoa que gostava de estar na sua casa, não promovendo o contacto com os vizinhos (resposta ao artº 28º da contestação).

22- A ré acompanhou o falecido a consultas, quer no Hospital do Barlavento Algarvio, quer no IPO em Lisboa, quando este recebeu tratamento específico para o problema oncológico que lhe foi diagnosticado (resposta ao artº 35º da contestação).

23- A ré, em ocasião em que teve de se ausentar da residência, e acontecendo telefonar para o JV… e este não atender a chamada, telefonou para um taxista de Monchique, conhecido do casal, que se deslocou à residência, para apurar se o mesmo estava bem (resposta aos artºs 53º a 55º da contestação).

24- No dia do rebentamento do tumor, a ré teve que se ausentar da residência, vindo a ser informada de que o falecido tinha sido transportado para o Hospital, pelo que a mesma se deslocou então para o Hospital do Barlavento Algarvio, tendo permanecido com o falecido (resposta aos artºs 52º a 57º da contestação)

25- O falecido ainda teve alta no dia 14 de junho, contudo, a ré pediu que o mesmo voltasse para o Hospital, uma vez que a sua saúde estava muito debilitada (resposta ao artº 59º da contestação).

26- A ré permaneceu no hospital com o falecido até à sua morte, tendo o mesmo falecido no Hospital do Barlavento Algarvio (resposta ao artº 60º da contestação)”.

2. Do mérito do recurso

2.1. Impugnação da matéria de facto

Do elenco dos “provados “insurge-se o apelante contra a integralidade da resposta dada ao facto inserto no ponto 10 (A ré e o falecido JV… conheceram-se em Portimão, tendo o falecido convidado a R. a visitar a sua habitação em Monchique, onde vivia com a sua mãe, e, posteriormente, os dois desenvolveram uma relação de amizade, sendo que, a pedido do falecido José Varela, a ré aceitou ir viver com aquele em data em que a mãe deste, que faleceu em abril de 2010, ainda era viva ) referindo que as declarações de parte prestadas por P…, Ma... e J…, assim como o depoimento da testemunha AJ… infirmam que a Ré vivesse com carácter de permanência com o falecido, o que deve ficar esclarecido.

Ademais, referem que que a menção à data do óbito da Mãe de JV… não se estribou, como era suposto, em prova documental e por isso deve ser suprimida.

Para justificar a resposta ao facto em apreço, referiu-se na sentença: “ (…) a única testemunha que mostrou conhecer com algum grau (por pequeno que fosse, o que não ficou para nós totalmente claro, como decorre do que adiante se dirá, não obstante a testemunha se ter esforçado para dar a entender que mantinha grande intimidade com o falecido) de profundidade a vida do referido JV… foi a testemunha NA…, que era amigo do falecido, e que acabou por declarar que nunca chegou a compreender que relação ele tinha com a R., salientando que o mesmo não se abria este respeito e que nunca esclareceu que a relação mantinha com a R..

Esta testemunha, no entanto, manifestou a sua convicção, pela perceção que teve das visitas, que relatou serem frequentes, que fazia a casa do falecido, que a R. não moraria ali. Este será, aliás, um aspeto algo importante do ponto de vista da relevância do seu depoimento. Todavia, ainda assim, acaba, em nosso entender, por, em face dos demais depoimentos produzidos em audiência, e que adiante se referirão, ser este depoimento insuficiente, mesmo apenas do ponto de vista de se sustentar, simplesmente, que a R. não vivia em casa do falecido JV….

Em geral, a prova que se produziu na presente causa, em especial a prova por declarações de parte, foi algo pobre, sendo patente a sua grande parcialidade.

Dir-se-á que tal não é sequer de estranhar num litígio, que pressupõe necessariamente um determinado antagonismo entre as partes. Porém, ocorre não raramente que as partes depõem de modo lógico, convicto e clarividente, denotando um conhecimento dos factos superior ao das testemunhas e que contribui, por vezes, para lograr convencer o Tribunal da sua versão desses mesmos factos (num grau que às vezes as próprias testemunhas não conseguem trazer ao processo). Não foi esse o caso dos autos, posto que, ademais, e em especial do lado dos autores, o conhecimento que os mesmos demonstraram dos factos foi bastante fragmentário e circunscrito a alguns episódios concretos e a algumas “ideias feitas”, e não permitiu estabelecer com um mínimo de segurança o quadro factual relativo à vida do falecido, no sentido de se poder sustentar com consistência a prova da versão trazida a juízo pelos autores.

É verdade que também não poderá ter-se por mais credível a versão apresentada em juízo pela ré, ainda que corroborada pela testemunha CB…, sua filha. É normal que assim seja. Porém, do cotejo dos vários depoimentos das testemunhas ouvidas em julgamento retira-se que alguns dos aspetos contidos na versão dos factos trazida a juízo pela R. poderão, eventualmente, reputar-se de verdadeiros ou, pelo menos, tornar duvidoso o invocado pelos autores.

Começando, no que concerne à prova testemunhal, por nos referirmos, de novo, à testemunha NA…, o mesmo, como se referiu, era quem aparentemente tinha maior conhecimento de vida do falecido. Outras testemunhas como MC…, NV… ou CM…, confirmaram que a testemunha NA… era visita da casa do falecido e que até chegou durante algum tempo a semear no terreno do mesmo e a manter lá animais.

Esta testemunha manifestou a convicção de que o falecido JV… tratava das suas próprias coisas e até cozinhava sem quaisquer problemas. No entanto, o seu depoimento encerra algumas falhas ao nível da respetiva clareza, posto que, não obstante tenha manifestado, de forma perentória, que JV… vivia sozinho e que R. não vivia com ele, mais adiante qualificou a relação entre ambos como “esquisita” (não conseguindo, com rigor, defini-la). Acresce que o falecido JV…, segundo transmitiu, lhe disse que a R. era uma amiga e que entendeu que ele não queria falar muito sobre isso, não se abria sobre o assunto, como acima se referiu. Assim, esta testemunha, embora reconhecendo nunca ter compreendido plenamente como eram as coisas entre o falecido e a ré, desconhecendo que relação exatamente tinham, não se coibiu de manifestar certeza quanto ao facto de ela não viver na casa do falecido. Afigura-se nos, neste particular, o seu depoimento até algo contraditório.

Por outro lado, embora depondo genericamente no mesmo sentido do declarado por esta testemunha (ainda que com menor conhecimento dos factos), algumas outras testemunhas, vizinhas ou ex-vizinhas do falecido, ou pessoas cujos familiares mantinham com ele alguma relação, e que reflexamente com ele também se relacionavam, declararam, ao invés, que o falecido tinha a R. na sua habitação.

A referida testemunha MC… declarou que o falecido JV… “tinha uma brasileira lá”. Às vezes ela estava lá outras vezes não. Também manifestou que o falecido tratava das suas coisas.

A testemunha NV…, cujo marido era visita de casa do falecido, declarou também que a R. vivia lá, ou pelo menos ia para lá. Esta testemunha manifestou também que o falecido JV… fazia as suas coisas, incluindo tratar da roupa e comida. Muito importante se nos afigurou o depoimento desta testemunha, quando permitiu situar que a R. já se encontrava a viver em casa do falecido JV… quando a mãe deste faleceu. Mais acrescentou que o falecido JV… nunca explicou porque a R. estava lá em casa. Assim, deste depoimento afigura-se-nos poder ser colhido que efetivamente a R., pelo menos nalgumas ocasiões, se apresentava como alguém que vivia na casa do falecido JVarela… e, mais, que já lá vivia antes da mãe dele falecer.

Neste particular, a testemunha CM…, doméstica e também viúva de um parente afastado do falecido JV…, declarou que o conhecia já há muitos anos e manifestou que a R. vivia em casa deste às escondidas da mãe. Esta testemunha manifestou que o falecido JV… lhe teria dito, em tempos, que “tinha dó da R.” e a deixava lá ficar. Acrescentou ainda esta testemunha que JV… tratava das suas coisas e não queria ajuda de ninguém.

No mesmo sentido, a testemunha JÁ…, professor aposentado e que morava próximo de casa do falecido JV…, que todavia admitiu não frequentar, relatou que este sabia tratar das suas coisas e mais declarou nunca ter visto a ré em casa do falecido. Cabe aqui questionar sobre se, não sendo esta testemunha visita da casa de JV…, terá especial relevo a sua declaração de que nunca viu a R..

Cremos que a relevância do depoimento desta testemunha se prenderia mais com a descrição de um episódio em que, segundo manifestou, encontrou o falecido JV… na zona da caixa do correio e o achou bastante mal. Declarou tê-lo levado a casa e não ter visto lá ninguém. Apenas admitiu ter conhecimento verbal da existência da ré, tendo ouvido dizer que supostamente viveria com o JV….

A testemunha JC…, que é bombeiro profissional desde 2013 em Monchique, manifestou lembrar-se vagamente do falecido JV… e, em especial, do episódio de urgência próximo do seu falecimento. Nesse sentido, o seu depoimento foi relevante para se perceber o que ocorreu durante esse episódio (na ocasião em que o tumor que o mesmo tinha rebentou), tendo esta testemunha manifestado que o sangue que existia na residência não provinha do seu abcesso, que rebentou, mas tendo também declarado que na altura o falecido JV… estava sozinho na sua habitação. Anotou-se também que resultou do depoimento desta testemunha ter ido numa ocasião a casa do falecido JV… buscar a filha da ré, e testemunha nos presentes autos, CB… (que declarou, por seu turno, que a sua mãe vivia com o falecido), sendo que a referida testemunha JC… manifestou ter ido buscar a filha da R. essa residência por a mesma numa ocasião ter sentido dores e ter sido necessário transportá-la com recurso aos serviços dos bombeiros. Tal contribuirá de alguma maneira para reforçar a ideia de que efetivamente a R. viveria na casa que era do falecido JV…

(…)

Em termos mais gerais, a testemunha MD…, doméstica e também ela casada com um primo afastado do falecido JV…, disse que de vez em quando ia a Monchique, com o seu marido e que chegaram a ir visitar JV…, tendo falado com ele porque tinham intenção de lhe comprar a casa. Esta testemunha transmitiu ter-se-lhe afigurado que o falecido JV… se daria bem com a ré, mas mais numa relação de amizade do que de namoro. Também manifestou afigurar-se-lhe, por convicção resultante de conversa com o falecido JV…, que a R. estaria lá algumas vezes e depois, de quando em vez, se ausentaria, regressando posteriormente. Manifestou ter-lhe parecido que a casa estava limpa e manifestou também ter tido conhecimento, pelo menos numa ocasião, de a R. ter acompanhado JV… a Lisboa a uma consulta médica.

Note-se que, e aqui detetamos mais uma contradição na prova produzida, do mesmo passo que a testemunha CM… manifestou que o falecido JV… se chegou a dispor a desfazer o seu testamento, por não estar satisfeito com a conduta da ré, inversamente, esta testemunha MD… manifestou ter-lhe o falecido transmitido que os primos não o iam visitar e não queriam saber dele. Mais manifestou esta última testemunha nunca ter tido contacto, na residência do falecido, com os primos deste.

Foram posteriormente ouvidas algumas testemunhas que são taxistas em Monchique, indo os seus depoimentos no sentido de corroborar terem transportado o falecido e a R. em várias ocasiões, nalgumas vezes apenas um, noutras vezes os dois.

A testemunha JN… manifestou que começou a transportar o falecido em conjunto com a R. no seu táxi ainda a mãe deste com ele vivia, o que corrobora a ideia de que efetivamente a R. já viveria em casa do falecido quando ocorreu o óbito da mãe deste.

As testemunhas CÁ… e Ad… transmitiram que a R. e o falecido aparentariam ser um casal. Todavia, neste ponto, semelhantes depoimentos não deixaram de ser algo especulativos e inconsistentes, do ponto de vista da formação de uma convicção segura.

A testemunha JF… manifestou ainda que numa ocasião a R. lhe ligou a pedir para ir a casa ver se estava tudo bem porque não conseguia falar com JV…. Esta testemunha declarou ainda ter ido à residência, ter visto a porta fechada, não ter encontrado ninguém e ter voltado para trás. Não soube situar a data, tendo manifestado que tal teria ocorrido provavelmente há três anos, talvez meses antes de JV… falecer. Tal não quadra erfeitamente com o alegado pela ré, no sentido de, no dia do episódio de urgência, em que o abcesso ou tumor que JV… ostentava rebentou, ter pedido a um taxista para ir a casa ver se ele estava bem. Contudo, poderá, pelo menos, corroborar a ideia de que alguma preocupação a R. tinha com o falecido, mesmo quando por algum motivo se ausentava da habitação.

Finalmente, as testemunhas SJ… e AM… não demonstraram possuir grande conhecimento sobre a vida do falecido JV…. A testemunha SJ…, agente funerária, depôs no sentido de atestar que a R. se dirigiu à sua agência para pagar o funeral, sendo que, segundo declarou, os primos também pretendiam efetuar esse pagamento.

A testemunha AM…, que esteve presente aquando do já mencionado episódio de urgência, por ter acompanhado outra pessoa que se deslocou a casa do JV…, manifestou que o mesmo estava sozinho, corroborando assim os demais depoimentos produzidos nesse sentido.”.

Lendo a motivação, resulta serem sérias as dúvidas que o Tribunal teve acerca da vivência da Ré na casa do falecido.

Não se compreende, por isso, como acabou por considerar que a mesma aí vivesse desde data anterior a 2010, nem o motivo porque desconsiderou o depoimento de NA…, supostamente a pessoa que melhor conhecia o falecido.

Ouvimos o seu depoimento (que foi colhido, assim como o das demais testemunhas infra-referidas, por vídeo - conferência e cuja audição revelou sérias dificuldades) tendo começado por explicar que tinha animais nos terrenos do falecido em Montinhos da Serra ( e por isso o via amiúde). Soube dizer a data do seu falecimento, logrou descrever a sua casa e afirmou que ele “vivia sozinho”.

Reconheceu ter visto a senhora brasileira lá algumas vezes e negou que ele vivesse com ela e que a primeira vez que a viu terá sido há 8/9 anos.

Perante a firmeza desta afirmação, enveredámos por ouvir os depoimentos de MC…, NV… e CM… que terão sido afinal decisivos para o Tribunal “a quo” sustentar o seu entendimento.

A primeira era vizinha do falecido e a última vez que esteve na sua casa foi uns meses antes da sua morte e lhe levou alimentos. Quando questionada se havia indícios de que a Ré lá vivesse com carácter de permanência, refutou-o.

NV…, também vizinha do falecido, que o via todos os dias, contradisse que ele vivesse com outra pessoa, designadamente com a Ré.

CM…, visita de casa do falecido, admitiu apenas que a Ré lá pernoitava (fazendo-o à escondidas da mãe do falecido) e aí se deslocava apenas ocasionalmente.

Sintomático é também o depoimento da filha da Ré que terá vindo do Brasil com 16 anos e que só esteve duas vezes em casa do falecido onde supostamente viveria a sua mãe …

Em suma: Não foi produzida prova minimamente consistente no sentido de que a Ré tivesse uma permanência estável e duradoura na casa do falecido, i.e. que aí tivesse o centro da sua vida doméstica.

E não é seguramente o atestado da junta da freguesia junto pela Ré na contestação que tem a virtualidade de provar o que quer que seja nesse tocante porquanto o que dele consta é obtido com base nas declarações de duas testemunhas recrutadas pela interessada.

Sendo uma competência própria das Juntas de Freguesia, nos termos da alínea rr) do nº 1 do art.º 16º da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro - REGIME JURÍDICO DAS AUTARQUIAS LOCAIS - “passar atestados”, resulta do disposto no art.º 34º nº 1 do Dec.-Lei nº 135/99, de 22 de Abril, que “ Os atestados de residência, vida e situação económica dos cidadãos, bem como os termos de identidade e justificação administrativa, passados pelas juntas de freguesia, nos termos das alíneas qq) e rr) do n.º 1 do artigo 16.º da Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro, devem ser emitidos desde que qualquer dos membros do respetivo executivo ou da assembleia de freguesia tenha conhecimento direto dos factos a atestar, ou quando a sua prova seja feita por testemunho oral ou escrito de dois cidadãos eleitores recenseados na freguesia ou ainda por outro meio legalmente admissível.”.

Acrescenta-se no nº3 que:“Não está sujeita a forma especial a produção de qualquer das provas referidas, devendo, quando orais, ser reduzidas a escrito pelo funcionário que as receber e confirmadas mediante assinatura de quem as apresentar”.

Uma vez que o atestado de residência em apreço não foi emitido com base no conhecimento directo dos factos a atestar por parte das autoridades administrativas mas com base em prova testemunhal, não goza de força probatória plena no que tange à afirmação de que a Ré vivia em comunhão de mesma e habitação com o falecido desde 2007.

E também não se pode dar como assente, à míngua de documento idóneo que o comprove ( v.g. certidão do registo civil , cfr. art.º 211 °, nº1 do Cód. Reg. Civil) que a mãe do falecido tivesse tido o seu decesso em 2010.

Por conseguinte, de acordo com a prova testemunhal produzida, a resposta ao facto vertido em 10) passará a ter a seguinte redacção: “A ré e o falecido JV… mantiveram uma relação, ao longo de alguns anos, durante a qual aquela pernoitava ocasionalmente na casa deste último, em Monchique, e aí passava alguns períodos de tempo”.

Fica prejudicado o eventual de aditamento de um novo facto, uma vez que o ponto 10 passa a acolher a redacção para aquele sugerida.

2.2. Reapreciação da solução jurídica alcançada na sentença: Natureza da cláusula inserta no testamento; da sua (in) verificação.
2.2.1. Como se viu, JV…, no testamento que outorgou em 2010 instituiu “única e universal herdeira, de todos os seus bens, móveis e imóveis, incluindo contas bancárias Ge…”, ora Ré, fazendo constar que essa “instituição (…) ficará dependente da instituída ter cuidado do testador, prestando-lhe assistência médica e medicamentosa e alimentos, se necessário, tendo carácter resolutivo caso tais cuidados não lhe sejam prestados ou não o sejam ate à sua morte”.

A lei permite a aposição de cláusulas acessórias à instituição de herdeiro (como à nomeação de legatário) e que são limitativas da sua validade ou da sua eficácia.

Das cláusulas acessórias típicas tratadas no artigo 2229º e seguintes do Código Civil destacam-se: a condição (suspensiva ou resolutiva) e os encargos.

Assim, “o testador pode sujeitar a instituição de herdeiro ou a nomeação de legatário a condição suspensiva ou resolutiva com as limitações dos artigos seguintes”, o que significa que, nos termos dos art.ºs 270 e seguintes do mesmo código , também no testamento é possível subordinar a um acontecimento futuro e incerto a produção dos respectivos efeitos jurídicos (condição suspensiva) ou a sua cessação ( condição resolutiva).

Quanto aos encargos consubstanciam-se numa obrigação imposta ao beneficiário de uma atribuição patrimonial de adoptar um certo comportamento no interesse do disponente, de terceiro, ou do próprio beneficiário, apesar de não se configurarem como contraprestação mas antes uma simples limitação daquela.

Enquanto o beneficiário onerado com o encargo modal pode ser obrigado ao seu cumprimento, se não o tiver cumprido, através da competente acção de cumprimento (art.º 2247º), o não preenchimento da condição acarreta a perda da disposição.[1]

Daí a fórmula consagrada como lugar-comum de que “ o modo obriga mas não suspende; a condição suspende mas não obriga”. [2]

Posto isto, vejamos o que dispôs o falecido JV….

No seu testamento pode ler-se que : “institui única e universal herdeira, de todos os seus bens, móveis e imóveis, incluindo contas bancárias Ge…, casada, natural de Uruaçu, Brasil, de nacionalidade brasileira, residente em …, freguesia e concelho de Monchique, instituição esta que ficará dependente da instituída ter cuidado do testador, prestando-lhe assistência médica e medicamentosa e alimentos, se necessário, tendo carácter resolutivo caso tais cuidados não lhe sejam prestados ou não o sejam ate à sua morte “ ( sublinhado nosso).

Conquanto se estabeleça um “encargo” à “instituída” – grosso modo o de cuidar do testador até à morte deste – a verdade é foi imposto como condição resolutiva e com efeitos próprios deste elemento acidental.

É, aliás, incontestável que o modo ( encargo) e a condição (potestativa) resolutiva podem coincidir na mesma prestação.[3]

Aliás, a qualificação da disposição em análise como “encargo” stricto sensu à luz do disposto no art.º 2224º e subordinada ao regime das normas subsequentes, esbarra com a circunstância de não se poder exigir que a beneficiária fique vinculada ao cumprimento de uma prestação que desconhece, cujo momento temporal de execução já decorreu e que consequentemente, não poderia ser adstringida a cumprir, nem outrem subsequentemente em sua substituição (artºs 2247º e 2248º, nº2 do Cód. Civil).

A conclusão alcançada – de que foi aposta uma condição resolutiva à instituição de herdeiro – é de resto a mais consentânea com disposto no art.º 2187º do Cód. Civil e que tem correspondência no contexto do testamento: Se Ge… não cuidasse dele, testador, até à sua morte não se verificaria (ou deixaria de se verificar) relativamente a ela a instituição de herdeiro.

2.1.2. Da (in) verificação da condição.

Poderá afirmar-se, face à matéria provada, que a instituída herdeira cuidou do "de cujus" e lhe prestou assistência médica e medicamentosa e alimentos, se necessário, até à sua morte?

É incontornável que JV… careceu, a partir do momento em que passou a sofrer um agravamento dos seus sérios problemas de saúde (Julho de 2016) de um activo acompanhamento por parte da instituída herdeira.

E prevenindo a hipótese de isso suceder com o advento da velhice, decidiu, no testamento que outorgou, estabelecer uma compensação à Ré caso a mesma se viesse a revelar sua cuidadora na fase final da sua vida, conceito que não se bastava com a mera prática pontual e secundária de actos de assistência e auxílio.[4]

Ademais, prestar “assistência médica” implicaria, para quem vive num sítio da serra de Monchique, a possibilidade de, graças ao apoio da Ge…, que esta, se necessário, estivesse presente para chamar o médico ou a ambulância ou os bombeiros para o transportar ao estabelecimento hospitalar mais próximo; “assistência medicamentosa” implicava que fosse ela, estando ele doente ou com grandes dificuldades físicas, a comprar e ir buscar os medicamentos de que ele necessitasse e “Prestação de alimentos” demandava um constante acompanhamento habitacional, pelo menos a partir do momento em que sobreviesse grave doença, como sobreveio.

Ora não há prova nenhuma de que a instituída alguma vez prestasse apoio efectivo ao JV… nos termos salientados; sabe-se que já numa fase final da doença (tumor cancerígeno) o "de cujus" estava sozinho em casa e foram terceiros que ali o encontraram esvaindo-se em sangue ( cfr. ponto 17).

Parece-nos evidente que a instituída não estava a acompanhar o de cujus, ou seja, a permanecer junto dele, como se imporia face ao estado de saúde do falecido que sofria de dores e mal-estar físico, angústia e tristeza ( cfr.ponto 16).

Aliás, como resultou provado nesta instância, a instituída nunca viveu com o de cujus, limitava-se a “pernoitar em casa dele” e a passar “aí alguns períodos de tempo”.

E, também, não se provou que ela estivesse a acompanhar de modo efectivo o de cujus quando começou a sofrer em 2016 da doença que o iria vitimar, nem sequer na parte final dessa mesma doença oncológica.

É certo que a apelada o acompanhou no hospital na fase terminal da doença, mas o que importava, atento o teor da cláusula, era que o tivesse efectivamente acompanhado pelo menos a partir do momento que ele passou a sofrer de tal enfermidade.

Era isso que, no mínimo, o" de cujus" pretendia quando fixou a aludida cláusula condicional no testamento, ou seja, que não estivesse, na doença, sozinho na sua casa, nem mesmo esporadicamente assistido.

Por isso, porque não se provou que a instituída tivesse acompanhado com efectividade JV… ao longo do seu período de doença e até à sua morte (Julho de 2016/Junho de 2017)) sendo certo que nem num momento fundamental para um doente (rebentamento do tumor: facto 17 e 24) a Ge… esteve presente, a conclusão alcançada é que a mesma não cumpriu a condição estabelecida para se manter relativamente a ela a instituição de herdeira.

É que, como se disse, a condição resolutiva produz inicialmente os efeitos normais do negócio, até à ocorrência do evento condicionante que os extinguiu.

Por consequência, não tendo a apelada cumprido a incumbência de cuidar do testador, prestando-lhe assistência médica e medicamentosa e alimentos, se necessário, até à sua morte, deixou de se verificar a instituição de herdeiro outorgada, o que se impõe reconhecer e declarar.

E assim sendo a herança de JV… reverte para os seus herdeiros legítimos (art.º 2131ºdo Cód. Civil) que são os Autores identificados supra nos pontos 6, 7 e 8, que integram a quarta classe de sucessíveis ( art.º 2133º nº1 d)).


III- DECISÃO

Face ao exposto, acorda este colectivo em, revogando a sentença recorrida, julgar a acção procedente e em consequência:
a) Declara-se que não tendo a apelada cumprido a incumbência de cuidar do testador, JV…, prestando-lhe assistência médica e medicamentosa e alimentos, se necessário, até à sua morte deixou de se verificar a instituição de herdeira de Ge… constante do testamento público, lavrado em 22 de dezembro de 2010, de folhas trinta e seis a folhas trinta e seis verso, do Livro número Dois-T para testamentos públicos e escrituras de revogação de testamentos, no Cartório Notarial de Portimão, sito na Rua Dom Carlos I, n.º37, rés-do-chão, na freguesia e concelho de Portimão, perante a Notária Dra. Bruna Almeida Santos;

b) Reconhecem-se os Autores …, como herdeiros legítimos de JV… integrando a classe de sucessíveis da alínea d) do nº1 do art.º2133º do Cód. Civil.

c) Condena-se a Ré a restituir à Herança do falecido todos os bens imóveis, móveis e saldos das contas bancárias dela integrantes à data do óbito;

d) Determina-se o cancelamento de todos os registos que houverem sido lavrados, a favor da Ré, com base no testamento a que se alude em a).

Custas pela apelada.
Évora, 7 de Maio de 2020
Maria João Sousa e Faro (relatora)
Florbela Moreira Lança
Ana Margarida Leite
______________________
[1] Assim, Pires de Lima e Antunes Varela in CC anotado, vol.VI. pag.387.
[2] In “ Ensaio sobre o conceito do modo” de João Antunes Varela, Ed. Atlântida, 1955, pag. 283.
[3] Idem, ob.cit.
[4] Em situações análogas, vejam-se os acórdãos do STJ de 10-9-2015 ( Lopes do Rego) no qual se afirma que : “ Na verdade, a qualificação do instituído como cuidador do de cujus implica a vontade de compensação de uma particular onerosidade suportada pelo real e efectivo cuidador na fase final da vida do de cujus, afectado por relevantes patologias incapacitantes, obrigando a uma dedicação intensa e limitadora da autonomia pessoal, no interesse primacial e em benefício do bem estar do de cujus – não se verificando tal condição, justificadora da própria vocação sucessória, quando o testador esteve institucionalizado, em consequência de graves patologias incapacitantes que o afectaram, suportando o respectivo custo com a pensão auferida, apenas se provando a prática pontual e secundária de actos de assistência e auxílio.” e de 2-11-2017 ( Salazar Casanova) em que se afirma que: “ A posição subjetivista em matéria de interpretação das disposições testamentárias – ver art. 2187.º do CC – significa que se impõe atender à vontade do testador; afigura-se que a disposição do testador que, prevenindo o seu decesso depois do decesso do respetivo cônjuge, institui herdeiro “a pessoa que estiver a tratar e cuidar de si há mais de três meses”, similar à disposição testamentária do respetivo cônjuge, tem em vista compensar quem nos últimos momentos da vida o tratou, alimentando-o, dando-lhe medicação, levando-o ao médico, tratando da sua higiene.
Não se verificando a prática de atos minimamente significativos de apoio, tratamento ou cuidado por parte dos interessados que se limitaram praticamente a algumas visitas no lar de terceira idade onde o de cujus foi internado, sem suportarem nenhum custo, não pode considerar-se preenchida a aludida condição, não podendo, portanto, ser-lhes reconhecida a qualidade de herdeiros testamentários”.