Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1382/14.2TBLLE.E1
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: OBRIGAÇÃO PECUNIÁRIA
VALOR VENAL
Data do Acordão: 03/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Estando em causa um seguro facultativo, tendo sido contratada a cobertura do risco de furto do veículo, seguro de danos, portanto, o retardamento no cumprimento da obrigação pecuniária assumida pela ré seguradora nos termos contratualmente estabelecidos, e que corresponde ao seu dever primário de prestar, obriga ao pagamento de juros moratórios sem que haja lugar ao pagamento de indemnização pela privação do uso (não contratada), uma vez que a previsão do n.º 3 do art.º 806.º do CC tem a sua aplicação limitada à responsabilidade civil extra contratual.
II. No que diz respeito ao prejuízo sofrido pela perda da viatura o valor a atender é o corresponde ao seu valor venal à data da ocorrência do sinistro.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1382/14.2TBLLE.E1
Comarca de Faro
Inst. Local Loulé - Secção Cível – J1


1- Relatório
(…) instaurou contra (…) Seguros Gerais, S.A., acção declarativa de condenação, a seguir a forma única do processo comum, pedindo a final a condenação da Ré a pagar-lhe:
a) a quantia de € 31.000,00 (trinta e um mil euros), acrescida dos juros que se vencerem, à taxa legal, desde a participação e até efectivo e integral pagamento;
b) A. a quantia de € 8.645,00 (oito mil seiscentos e quarenta e cinco euros), a título de indemnização pela privação do uso do veículo seguro, e correspondente ao quantitativo de € 19,00 por dia;
c) a mesma quantia de € 19,00 (dezanove euros) por cada dia até à data do pagamento efectivo e integral do valor seguro.
Em fundamento alegou, em síntese, ter celebrado com a ré contrato de seguro automóvel, denominado "Auto VIP", nos termos do qual, para além do mais, ficaram cobertos os riscos de furto, roubo ou furto de uso da viatura automóvel marca BMW, Série 5 Touring Diesel, Modelo 535 Touring, matrícula 13-(…)-33 por si adquirido, até ao montante de € 31.000,00.
Mais alegou que no dia 6/4/2013, o veículo foi furtado quando se encontrava estacionado em Lisboa, na Avenida das Forças Armadas, o que foi denunciado no mesmo dia na 3.a Divisão Policial de Lisboa da PSP, e foi atempadamente participado à ré que, todavia, declinou a sua responsabilidade, recusando o pagamento do capital seguro. Face à descrita conduta da ré vem sofrendo os prejuízos decorrentes da privação do veículo, do qual fazia um uso diário, o que constitui dano carecido de reparação pelo qual reclama o montante de € 19,00 dia, valor em que modestamente computa o valor de uso da viatura desaparecida, devendo a ré ser condenada no pagamento do montante indemnizatório a este título peticionado, a acrescer ao capital seguro.
*
Regularmente citada, a ré contestou por excepção, invocando a incompetência da comarca de Faro, instância local de Loulé, em razão do território, e também por impugnação, manifestando dúvidas sobre a versão invocada pelo autor uma vez que das averiguações a que procedeu, designadamente através da leitura da chave (sistema Key reader) chegou à conclusão que a última actualização é muito anterior à data da participação do furto, ao que acresce o facto de não ter sido possível colher no local quaisquer indícios de que a viatura foi efectivamente furtada, tal como comunicou ao demandante.
Impugnou finalmente, por excessivos, os prejuízos por este alegadamente sofridos.
*
Dispensada a realização da audiência prévia, prosseguiram os autos com prolação de despacho saneador, aqui tendo sido julgada improcedente a excepção da incompetência relativa arguida pela ré, identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova, sem reclamação das partes.
Teve por fim lugar audiência de discussão e julgamento, em cujo termo foi proferida douta sentença que julgou improcedente a acção, absolvendo a ré do pedido.

Inconformado, apelou ao autor e, tendo desenvolvido nas alegações apresentadas as razões da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:
“A) Não pode o recorrente conformar-se com a decisão da matéria de facto constante do n.º 1 dos factos não provados.
B) A prova produzida, nomeadamente a prova testemunhal gravada, impunha resposta diametralmente oposta.
C) Resulta do depoimento de parte e declarações de parte do A, do depoimento das testemunhas (…), (…) e (…) – testemunhas arroladas pelo A. ora apelante, prova inequívoca de que no dia 06/04/2013, o referido veículo automóvel de matrícula 13-(…)-33 foi furtado quando se encontrava estacionado em Lisboa, na Avenida das Forças Armadas, frente ao Jardim Zoológico de Lisboa – concretos momentos de gravação referidos supra nas alegações.
D) A valoração do depoimento de parte e declarações de parte do A. e do depoimento da testemunha (…) como não credíveis não encontra suporte na fundamentação da convicção do Tribunal a quo, que se limita a referir o surgimento de outras provas para assim considerar não credíveis os depoimentos das únicas pessoas que assistiram aos factos e que, de forma honesta, coerente, lógica e tranquila, depuseram sobre os factos.
E) A valoração do depoimento de parte e declarações de parte do A. e do depoimento da testemunha (…) como credíveis terão de resultar de reapreciação da prova gravada, para assim se aferir da forma como os depoimentos foram prestados.
F) Por outro lado, a prova da falibilidade do sistema a que o Tribunal a quo decide dar credibilidade resulta do depoimento da testemunha (…) e da testemunha (…) – concretos momentos de gravação referidos supra nas alegações.
G) No depoimento de parte (início às 14,42:32 e fim às 15,15:04 da sessão de julgamento de 10/12/2015) e nas declarações de parte do A. … (início às 15,15:05 e fim às 15,18:31 da sessão de julgamento de 10/12/2015) resulta a clara descrição das circunstâncias em que ocorreu a viagem do Algarve para Lisboa e ainda as circunstâncias em que foi verificado o desaparecimento da viatura 13-(…)-33.
H) O depoimento da testemunha (…) – esposa do A. e única testemunha com conhecimento directo dos factos – é em tudo consentâneo quer com o depoimento de parte e declarações de parte do A. quer com a versão trazida aos autos sobre o desaparecimento/furto do veículo 13-(…)-33.
I) O depoimento da testemunha … (início às 16,20:49 e fim às 16,41:03 da sessão de julgamento do dia 10/12/2015) demonstra claramente que o sistema de leitura de chaves denominado “Key Reader“ e as informações denominadas “CBS” se destinam essencialmente a fornecer dados técnicos para a manutenção da viatura e não a permitir a prova definitiva da sua utilização (o que claramente contraria a conclusão constante da douta sentença recorrida que afirma ter a testemunha dito que o sistema “Key Reader” se destina a colher informações sobre a utilização da viatura).
J) Demonstra ainda o mesmo depoimento que a data da última actualização não é necessariamente aquela em que a viatura foi utilizada pela última vez; que a chave não contém de per se qualquer informação, limitando-se a recolher dados da própria viatura e que em caso de avaria quer do transmissor (na viatura) quer do receptor (na chave), os dados recolhidos – designadamente a data constante como sendo a da última utilização podem não corresponder à realidade; que, em caso de avaria quer do emissor quer do receptor, podem surgir dados incorrectos ou até absurdos e ainda que em tal caso o sistema não fornece qualquer informação sobre a existência de avaria ou sobre estarem os dados corrompidos – concretos momentos de gravação referidos supra nas alegações.
K) O depoimento da testemunha (…) resultou de experiência directa que tem como técnica da BMW Caetano Baviera Algarve, tendo acrescentado que já teve experiências concretas dos factos que afirma, designadamente já se deparou com leituras de chave que transmitem dados incorrectos e/ou absurdos - concretos momentos de gravação referidos supra nas alegações.
L) A testemunha … (depoimento completamente ignorado ou valorado ou sequer referido ao longo de toda a douta sentença de que se recorre) refere expressamente que reside na mesma localidade que o A. – a cidade de Quarteira – que é um meio pequeno, que se cruzavam na localidade e que nunca se apercebeu antes do recebimento da participação de sinistro (furto do veículo em Lisboa em 06/04/2013) que o A. conduzisse outro veículo que não o 13-(…)-33. Mais afirma a testemunha que, após a participação de sinistro (participação recebida pela testemunha), não mais viu o A. conduzir a viatura BMW 535 em causa nos presentes autos – concretos momentos de gravação referidos supra nas alegações.
M) O depoimento da testemunha (…) impõe a conclusão de que o veículo efectivamente circulava em Quarteira, conduzido pelo A., até à data da participação do sinistro e que não mais o viu após tal data.
N) E impõe a valoração do depoimento de parte e das declarações de parte do A., da prova testemunhal (das testemunhas …, … e …) e da prova documental (participação de furto efectuada perante autoridade policial – PSP – em Lisboa no dia 06 de Abril de 2013 – nº 5 dos factos provados) no sentido de se alterar a matéria de facto e julgar-se provado que no dia 06/04/2013, o referido veículo automóvel de matrícula 13-(…)-33 foi furtado quando se encontrava estacionado em Lisboa, na Avenida das Forças Armadas, frente ao Jardim Zoológico de Lisboa.
O) Não pode o A. conformar-se com a decisão da matéria de facto que considerou como não provado que “o valor do veículo e respectivos extras era de € 31.000,00 (trinta e um mil euros) a 06/04/2013” (nº 2 dos factos não provados), considerando antes como provado que “o veículo matrícula 13-(…)-33 valia € 22.000,00 (vinte e dois mil euros) a 06/04/2013” (nº 8 dos factos provados).
P) Uma vez mais, a prova testemunhal produzida impunha decisão diferente.
Q) Resulta quer do depoimento e declarações de parte do A. quer do depoimento da testemunha (…) que o A. adquiriu o automóvel matrícula 13-(…)-33 por € 29.000,00 (vinte e nove mil euros) – correspondendo ao valor atribuído ao veículo BMW 525 (€ 17.000,00) que entregou em troca do veículo em causa nos autos, acrescido de € 12.000,00 que pagou a mais e para o que contraiu empréstimo bancário junto do (…). Resulta ainda que o A. lhe acrescentou alguns extras – concretos momentos de gravação referidos supra nas alegações.
R) Resulta do depoimento da testemunha (…) que o valor a atribuir às viaturas para efeito de seguro (nomeadamente de danos próprios) resulta de declaração do tomador do seguro, a qual posteriormente é confirmada pelo mediador/seguradora por introdução de dados no sistema “Eurotax”, que o valor indicado pelo tomador do seguro apenas é aceite pela seguradora/mediador se estiver de acordo com os valores constantes do referido sistema (concretamente instado, afirma que não seria aceite a declaração do tomador de seguro de um valor elevado para a viatura a segurar a não ser que tal valor se compreenda expressamente nos valores indicados pelo mencionado sistema) e ainda que fez a vistoria do veículo, aquando da contratação do seguro, para efeitos de determinação do respectivo valor e dos extras declarados e que todos os valores indicados pelo A./tomador do seguro, quanto a valor do veículo e extras, foram expressamente aceites quer pelo sistema “Eurotax” quer ainda e em consequência pela própria seguradora, ademais confirmando o teor do contrato de seguro junto aos autos – concretos momentos de gravação referidos supra nas alegações.
S) Resulta ainda do depoimento da testemunha (…) que o valor do prémio a pagar à Seguradora em contrapartida pelo seguro (designadamente de danos próprios) é tanto mais elevado quanto mais elevado for o valor aceite para o efeito.
T) O depoimento da testemunha (…) não é referido ou valorado na douta sentença recorrida, que assim o ignora sem fundamentar.
U) A seguradora tem interesse na aceitação de valor indicado pelo tomador do seguro, na medida em que tal valor influencia o valor do prémio a pagar (resulta ainda do depoimento da testemunha …).
V) Pelos depoimentos referidos, e ainda por acto expresso da seguradora na verificação e aceitação do valor do veículo e extras para efeitos de danos próprios, o valor do veículo a 06/04/2013 era de € 31.000,00 (trinta e um mil euros).
X) Com efeito, as seguradoras são empresas que se dedicam concretamente a assumir riscos e na exacta medida em que os aceitam.
Z) O que tudo impõe a alteração da decisão da matéria de facto no sentido de se considerar provado que o valor do veículo e respectivos extras era de € 31.000,00 (trinta e um mil euros) a 06/04/2013.
AA) Não pode o A. conformar-se com a decisão da matéria de facto que considerou como não provado que “a recusa da Ré em pagar ao A. o valor do capital seguro para o risco de furto, roubo ou furto de uso, tem causado perturbações na vida diária do A.” (nº 3 dos factos não provados).
AB) Uma vez mais, a prova testemunhal produzida impunha decisão diferente.
AC) Também este facto deveria ter sido considerado provado, resultando claramente demonstrado do depoimento da testemunha (…).
AD) A testemunha depõe com clareza, coerência e tranquilidade a todos os factos que lhe são perguntados, expondo com lógica e segurança sobre todos os factos que lhe são perguntados (depoimento cuja clareza, coerência, tranquilidade, inteligibilidade e lógica só podem aferir-se pela reapreciação da gravação do depoimento prestado), designadamente que o veículo em causa nos presentes autos era o único que a família tinha à data, que era com tal veículo que toda a família se deslocava, que era no veículo que levavam a filha menor à escola, que era com tal veículo que o A. se deslocava para fazer as compras necessárias para o estabelecimento que explora e também as compras necessárias e básicas para a família e ainda também (como no dos factos) em recreio.
AE) Todos os factos sobre os quais depôs a testemunha (…), designadamente quanto às perturbações na vida diária do A. que lhe foram causadas pela recusa da Ré em pagar ao A. o valor do capital seguro, têm de haver-se por provados, reapreciando-se o seu depoimento ao qual deverá ser conferida a credibilidade que advém da forma isenta, coerente, honesta e sincera como depôs, não podendo ser tal credibilidade contrariada pelo surgimento de outra prova que em si mesmo não constitui facto irrefutável e é ademais falível como se expôs já supra.
AF) Pelo que, deve ser alterada a matéria de facto, passando a considerar-se como provado que “a recusa da Ré em pagar ao A. o valor do capital seguro para o risco de furto, roubo ou furto de uso, tem causado perturbações na vida diária do A.”, condenando-se a Ré a indemnizar o A. nos exactos termos peticionados a tal título.
AG) Não pode o A. conformar-se com a decisão sobre a matéria de facto que considerou como não provado que “foi em consequência directa e necessária da recusa da Ré em pagar ao A. o valor do capital seguro para o risco de furto, roubo ou furto de uso, que o A. se viu provado do seu veículo de matrícula 13-(…)-33, desde 06/04/2013, não podendo dele fazer o uso a que o destinava (nº 4 dos factos não provados).
AH) A prova testemunhal produzida impunha decisão diferente, em face designadamente do depoimento e declarações de parte do A. e do depoimento da testemunha (…).
AI) Resposta diferente que resulta do reconhecimento de credibilidade a ambos os depoimentos conforme se alegou e concluiu supra, a avaliar em reapreciação da prova gravada.
AJ) Pelo que, deve ser alterada a matéria de facto, passando a considerar-se como provado que “foi em consequência directa e necessária da recusa da Ré em pagar ao A. o valor do capital seguro para o risco de furto, roubo ou furto de uso, que o A. se viu provado do seu veículo de matrícula 13-(…)-33, desde 06/04/2013, não podendo dele fazer o uso a que o destinava”, com as legais consequências.
AK) Não pode conformar-se ainda o A. com a decisão sobre a matéria de facto que considerou como não provado que “o A. viu-se privado daquele veículo desde 06/04/2013, não podendo dele fazer o uso a que o destinava” (nº 5 dos factos não provados).
AL) Também este facto impunha decisão diferente em face dos depoimentos.
AM) Não só o A. e a testemunha (…) o afirmam de forma coerente e estruturada, como ainda a testemunha … (depoimento completamente ignorado e jamais mencionado na douta sentença, quer em termos de valoração do próprio depoimento quer em termos de consideração ou não dos factos dele constantes) referiu claramente que não voltou a ver o A. conduzir o veículo 13-(…)-33 após a data em que a própria testemunha recebeu a participação do sinistro (o que, segundo o depoimento da testemunha, ocorreu logo após a data do desaparecimento do veículo e logo que o A. regressou de Lisboa).
AN) Pelo que, deve ser alterada a matéria de facto, passando a considerar-se como provado que o A. viu-se privado daquele veículo desde 06/04/2013, não podendo dele fazer o uso a que o destinava, com as legais consequências.
AO) Acresce ainda que padece a douta sentença recorrida de vício de falta ou insuficiência de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto e de completa falta de fundamentação (ou sequer referência) ao depoimento da testemunha … (que assim é completamente ignorado, não obstante haver deposto sobre factos relevantes para a decisão da causa.
AP) Faz ainda errada valoração da prova constante dos depoimentos cuja reapreciação se requer, não resultando inteligível o motivo pelo qual é dada relevância a uma leitura de chave que tem por base um sistema privado, falível e que se destina essencialmente a outros fins que não o da verificação da utilização do veículo.
AQ) Nada afirmando quanto à idoneidade e credibilidade das testemunhas (…) e (…), terá de entender-se que lhes reconheceu integral credibilidade, idoneidade e coerência.
AR) Não referindo qualquer incoerência ou inidoneidade ao depoimento de parte e declarações do A. e ao depoimento da testemunha (…) terão tais depoimentos de ser valorados como credíveis.
AS) Assim devendo ser valorada como credível a prova resultante designadamente do depoimento de parte e declarações do A. e dos depoimentos das testemunhas (…), (…) e (…).
AT) Alterada a decisão sobre a matéria de facto e sobre a valoração da prova produzida, nos termos e com os fundamentos supra expostos, deve a douta sentença proferida ser revogada e substituída por outra em que condene a Ré., nos exactos termos peticionados pelo A.
Contra alegou a apelada seguradora, defendendo naturalmente a manutenção do julgado.
*
Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, a questão suscitada no presente recurso obriga a verificar se ocorreu erro de julgamento quanto aos factos não provados que, ao invés do decidido deverão ser, todos eles, julgados provados, com a consequente inversão do sentido da decisão final.
*
Impugnação da matéria de facto
O recorrente impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto no que respeita aos factos dados como não provados que pretende terem resultado, todos eles, demonstrados, atendendo ao depoimento e declarações de parte prestados pelo próprio, o testemunho concordante de sua mulher Renata Oliveira, o ignorado testemunho prestado por (…) e o considerado – mas no entender do apelante menos bem interpretado – testemunho de (…), nas passagens que identificou.
Está em causa a seguinte factualidade:
1. No dia 06/04/2013, o referido veículo automóvel de matrícula 13-(…)-33 foi furtado quando se encontrava estacionado em Lisboa, na Av. das Forças Armadas, frente ao Jardim Zoológico de Lisboa.
2. O valor do veículo e respectivos extras era de € 31.000,00 (trinta e um mil euros) a 06/04/2013.
3. A recusa da Ré em pagar ao A. o valor do capital seguro para o risco de furto, roubo, ou furto de uso, tem causado perturbações na vida diária do A.
4. Foi em consequência directa e necessária da recusa da Ré em pagar ao A. o valor do capital seguro para o risco de furto, roubo, ou furto de uso, que o A. se viu privado do seu veículo de matrícula 13-(…)-33, desde 06/04/2013, não podendo dele fazer o uso a que o destinava.
5. O Autor viu-se privado daquele veículo desde 06/04/2013, não podendo dele fazer o uso a que o destinava.
Quanto ao nuclear facto transcrito sob o n.º 1, conforme se vê da motivação elaborada pelo Mm.º Juiz, subsistiu dúvida irremissível quanto à ocorrência ou não do participado furto da viatura, o que determinou naturalmente que as mesmas fossem resolvidas contra o aqui autor/apelante, parte a quem o mesmo aproveitava. E tais dúvidas, conforme o Mm.º juiz consignou, tiveram origem na falta de credibilidade que lhes mereceram o autor e sua mulher, a testemunha (…), a despeito das suas coincidentes versões, motivadas, intui-se, até porque outra razão não foi revelada, pelo resultado do exame efectuado à chave da viatura – única que o autor declarou ter-lhe sido fornecida pelo vendedor, que só no decurso do processo fez entrega da 2.ª chave – segundo o qual a última actualização tivera lugar em Dezembro de 2012, meses antes da data indicada como tendo sido a do desaparecimento da viatura.
Argumenta agora o autor que nada justifica, e o Mm.º juiz tal não sustentou com razão válida, a desconfiança que as declarações e depoimento por si prestados e, bem assim, o testemunho de sua mulher mereceram por banda do Tribunal, resultando de outro lado inequívoco das declarações da testemunha (…) que os dados fornecidos pelo sistema “key reader” não são fidedignos, assumindo ainda relevância neste mesmo contexto o testemunho do dito (…), cuja desconsideração não foi por qualquer modo fundamentada pelo Mm.º juiz. Vejamos, pois, da razão que assiste (ou não) ao recorrente.
Importa a este respeito fazer notar que, tal como usamos advertir, a faculdade de proceder à modificação da matéria de facto deverá ser usada pelo Tribunal de recurso com a maior prudência, uma vez que, há que reconhecê-lo, a oralidade e a mediação propiciam a apreensão pelo julgador da 1.ª instância de toda uma gama de elementos subtis, subtraídos ao tribunal de recurso, que tantas vezes, mais do que aquilo que a testemunha diz, acaba por ser determinante para validar ou antes desconsiderar as declarações que presta. Tal não significa, impõe-se ressalvar, que a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto se destine apenas à correcção de pontuais, concretos e eventualmente excepcionais erros de julgamento; ao invés, o Tribunal da Relação, quando reaprecia as provas -e pode/deve, para este efeito, atender a todos os meios de prova produzidos no processo- procede a um novo julgamento da matéria de facto e procura a sua própria convicção, embora tendo presente que a oralidade e mediação não estão ao seu alcance.
Do que se deixou dito decorre que, não sendo bastante para obter a modificação da decisão mero inconformismo do recorrente com o decidido pelo Tribunal “a quo”, também não é suficiente para manter a decisão a mera coerência da fundamentação expressa pelo Mm.º juiz “a quo”, sobretudo se é posto validamente em causa o valor probatório de meio que foi tido pela 1.ª instância como determinante (reportamo-nos, como é óbvio, a prova não tarifada, antes sujeita à livre apreciação do julgador).
E tendo este Tribunal de recurso procedido à audição integral da prova produzida, sem deixar de ter presente que na apreciação do depoimento e declarações de parte prestados pelo autor e, bem assim, testemunho em tudo coincidente prestado por sua mulher, a testemunha Renata, se impõem as maiores cautelas, dado tratar-se de pessoas directa e indiscutivelmente interessadas no desfecho da causa, a verdade é que a versão narrada obteve confirmação, ainda que indirecta, da demais prova produzida nos autos.
Assim, e antes de mais, é incontornável que o autor participou o furto na esquadra do Rego 3.ª Divisão da PSP de Lx no preciso dia 6 de Abril de 2013 – que recaiu num sábado –, fazendo assim todo o sentido a deslocação ao Jardim Zoológico de Lisboa, acompanhados da filha que contaria na altura cerca de 7 anos de idade. Quer o autor, em declarações de parte, quer a testemunha (…), relataram em termos concordes o local onde a viatura ficou aparcada, na via pública nas proximidades do terminal rodoviário ali existente, sabendo-se ainda, pelo testemunho do perito averiguador nomeado pela Ré, (…), que apesar de a viatura não estar equipada com Via Verde, lhe foram feitos chegar pelo ora recorrente os comprovativos das portagens referentes à viagem realizada. É óbvio que estes recibos, por si, não provam que o autor e a família se tenham feito transportar na viatura (…) mas a verdade é que não há notícia de à data o casal dispor de qualquer outra – o que terá determinado a aquisição do Seat Ibiza com a matrícula 42-(…)-05, com registo a favor daquele datado de 7 de Agosto de 2013 – sendo certo ainda que a testemunha (…), mediador na celebração do contrato com a ré e domicílio profissional na Quarteira – asseverou que a partir da data em que o autor participou o furto deixou de ver a viatura BMW, situação que perdura até hoje.
Como se vê da motivação elaborada pelo Mm.º Juiz, foi determinante para a dúvida não ultrapassada quanto ao facto do veículo ter sido ou não subtraído, os resultados da leitura fornecida pelo sistema de leitura da chave (Key Reader), o qual identificou como data da última actualização as 00:00 do dia 8 de Dezembro de 2012, o que indiciaria que teria sido essa a data da última utilização do veículo. No entanto, e como o autor sublinha nas suas alegações, a testemunha Eng.ª (…), funcionária da Caetano Baviera em Faro, tendo explicitado que o sistema fornece informação que interessa essencialmente ao serviço e que a data da actualização corresponde àquela em que, pela última vez, a chave “foi buscar informação ao carro”, não deixou de reportar a circunstância de ocorrerem erros nas leituras por mau funcionamento do receptor e/ou do transmissor, sendo certo que o sistema não alerta para o erro de funcionamento, que é detectado face à manifesta incorrecção dos dados que são fornecidos (absurdos, no dizer da testemunha, que disse ter experienciado situações dessas). De notar ainda que, tendo o Mm.º juiz feito consignar ter extraído do testemunho em causa que estarão em causa situações residuais, a verdade é que a testemunha nada disse quanto à frequência com que tais erros podem ocorrer, sendo certo apenas e só que ocorrem, nada autorizando a que se conclua das suas declarações que se trata de situações com carácter de excepcionalidade. Deixou assim a testemunha sérias dúvidas sobre a fiabilidade do sistema, não podendo assim ter-se como seguro, face ao resultado da leitura efectuada, que a viatura não tenha sido utilizada com o uso da chave examinada – de resto a única que o autor disse ter em seu poder desde a data da aquisição da viatura – pois pode tê-lo sido sem que o sistema tivesse procedido à devida actualização.
A este respeito depôs ainda a testemunha (…), perito averiguador contratado pela ré para proceder à averiguação dos factos na sequência da participação efectuada pelo autor e cujas conclusões se fundaram na leitura, cuja fiabilidade defendeu, da chave. Todavia, e respeitando o convencimento da testemunha, a verdade é que não prevaleceu sobre o depoimento naturalmente mais conhecedor da funcionária da marca, sendo certo que nenhum outro elemento foi trazido aos autos no sentido de assegurar a fiabilidade do sistema.
No que respeita à aludida testemunha (…), aludiu ainda ao facto de no ano de 2014 ter tomado conhecimento da denúncia de um furto, estando em causa igualmente um veículo da marca BMW, apresentada por um amigo do autor (conforme disse ter apurado no Facebook). Tal veículo, contudo, e conforme revelou, veio a aparecer umas semanas depois na zona de Loulé, da qual teria desaparecido, tendo sido posteriormente interveniente em acidente de que resultou a sua perda total, não se vendo em que medida tal informação assuma relevância para o que se discute nestes autos.
Face ao que vem de se expor, reconhecendo a segurança na narração dos factos patente no testemunho de (…) e também nas declarações prestadas pelo próprio autor, em tudo coincidentes aliás, com aquelas que prestou à ré seguradora, não esquecendo, como se disse no início, o particular rigor com que devem ser apreciadas, a verdade é que o Mm.º juiz não indicou efectivamente as razões pelas quais lhes não atribuiu credibilidade para lá do já mencionado resultado da leitura da chave – meio probatório sujeito à livre apreciação do julgador – sendo certo que, conforme crê ter-se deixado demonstrado, a prova a este respeito produzida não sustenta a confiança que depositou no sistema que forneceu tal elemento probatório.
A prova, é sabido, visa a demonstração dos factos mas, como também se reconhece, o julgador não aspira à verdade absoluta, ontológica, bastando-se com uma verdade judicial. A livre apreciação assenta na prudente convicção que o tribunal adquire das provas que foram sendo produzidas, com respeito pela lógica e pelas regras da experiência comum, impondo-se ainda ao juiz que avalie, em cada momento, qual a decisão que tem a maior probabilidade de estar correcta, que se assume como mais consistente e verosímil.
Ora, da apreciação concertada dos elementos de prova colhidos nos autos temos como seguro que o autor, tendo adquirido o veículo (…), registou-o a seu favor em Maio de 2012, vindo a celebrar com a ré o contrato de seguro discutido nos autos, com cobertura de danos próprios, conforme resultou apurado. Sabe-se também que o autor se deslocou a Lisboa no referido dia 6 de Abril de 2013 – os tickets das portagens que entregou à testemunha (…) assim o comprovam – e aqui participou ao final da tarde o desaparecimento da viatura, com a qual, como resultou confirmado pela testemunha (…), mediador que interveio na celebração do contrato de seguro, a partir de então nunca mais foi visto. Mais: sabe-se que em Agosto de 2013 fez registar a seu favor a aquisição de um veículo da marca Seat, modelo Ibiza, do ano de 2007, de gama portanto muito inferior à viatura desaparecida, factos que vão inequivocamente no sentido da corroboração do testemunho prestado por (…) e também das declarações prestadas pelo próprio autor, sem que resultem a nosso ver abalados pelo muito falado resultado da leitura da chave, dada a falibilidade do sistema, denunciada pela engenheira (…), técnica da BMW.
Atento o que vem de se expor, e em conclusão, quanto ao nuclear ponto 1. dos factos não provados entende-se assistir razão ao autor, procedendo a sua pretensão modificativa.
No que se refere ao valor da viatura e prejuízos decorrentes da privação da mesma, o autor confirmou naturalmente o valor pago, sendo o preço composto pela entrega de uma viatura (a qual tinha sido adquirida por troca com duas outras em data anterior) avaliada para o efeito em € 17.000,00 e € 12.000,00 em dinheiro, para o que contraiu empréstimo que ainda se encontraria a pagar. Já a testemunha (…), cujo testemunho foi convocado pelo Mm.º juiz, adiantou valores bastante inferiores, corroborado pela já mencionada testemunha (…), que opinou no sentido do valor do veículo ser significativamente inferior ao valor segurado.
Pois bem, sendo certo que as referidas testemunhas depuseram no apontado sentido, não é menos certo – e aqui há que reconhecer alguma razão ao apelante – que sobre esta matéria depôs igualmente a testemunha (…), que interveio como mediador na celebração do contrato e que explicou a metodologia utilizada para encontrar o valor seguro. Assim, e segundo declarou, antes da celebração do contrato, partindo embora do valor indicado pelo tomador do seguro, é feita uma pesquisa no sistema Eurotax – que, segundo revelou julgar saber, é o utilizado por todas as companhias seguradoras –, o qual utiliza dados relevantes como a marca, modelo, ano, cilindrada, fornecendo a final um valor de referência, não aceitando a seguradora celebrar o contrato por valores muito discrepantes. Ora, no caso em apreço, verifica-se que o valor constante da proposta e aceite pela ré é o de € 22.900,00 sem os extras, aproximado ao valor apurado nos autos.
Quanto aos extras, esclareceu a mesma testemunha, não havendo lugar a verificação do valor indicado pelo proponente, a seguradora só aceita segurá-los até uma determinada percentagem do valor do veículo, sendo que no caso foram aceites extras de valor superior a € 8.000,00, equivalente a cerca de 40% do valor atribuído à viatura, o que se afigura algo exagerado.
De todo o modo, face a tais elementos probatórios, e considerando a total ausência de prova no sentido do veículo à data do sinistro se encontrar equipado com extras no indicado montante, não se vê razão para alterar o valor que pelo Mm.º juiz lhe foi atribuído, mantendo-se, neste segmento, a decisão proferida.
Finalmente, e quanto aos danos decorrentes da privação do uso da viatura, considerando que, conforme relatou a testemunha (…), a viatura (…) era a única de que, à data, o autor dispunha para as suas deslocações do dia-a-dia, constitui um dado adquirido pela experiência que a sua privação perturbou naturalmente o seu quotidiano, assim tendo sido dado por assente. Todavia, já não se poderá afirmar que foi “em consequência directa da recusa da ré em proceder ao pagamento do capital seguro que o autor se viu privado da viatura (…)”. Deste modo, considerando até o teor eminentemente conclusivo dos pontos 3. e 4., mantém-se a resposta de não provados.
*
II. Fundamentação
De facto
Agora estabilizada, é a seguinte a factualidade a considerar
1. Pela Ap. (…) de 30/05/2012 foi inscrito na Conservatória de Registo Automóvel a favor do Autor o direito de propriedade sobre o veículo automóvel de matrícula 13-(…)-33.
2. O autor (…) celebrou com a Ré contrato de seguro automóvel, titulado pela apólice n° (…), mediante o qual A. transferiu para a Ré os riscos decorrentes da viatura automóvel marca BMW, Série 5 Diesel, Modelo 535 Touring, matrícula 13-(…)-33, com as condições gerais, particulares, e especiais, e cláusulas particulares, mencionadas no documento 1 junto pela Ré e cujo teor aqui se dá por reproduzido.
3. Nos termos do referido contrato, encontravam-se cobertos, entre outros, os riscos decorrentes de responsabilidade civil obrigatória (no valor de € 3.250.000,00), de responsabilidade civil facultativa (no valor de € 46.750.000,00), e de furto, roubo ou furto de uso (no valor de € 31.000,00).
4. Pelo referido contrato de seguro a Ré assumiu para com o Autor a cobertura dos danos por este sofridos em consequência de furto, roubo ou furto de uso, do aludido veículo automóvel do Autor, até ao valor máximo de € 31.000,00 (trinta e um mil euros), sem franquia sobre o capital seguro.
5. Aquela apólice teve o seu início em 30 de Maio de 2012, e termo em 21 de Maio de 2013.
6. No dia 06/04/2013 a viatura 13-(…)-33 foi furtada quando se encontrava estacionada em Lisboa, na Avenida das Forças Armadas, nas proximidades do Jardim Zoológico de Lisboa.
7. O Autor apresentou participação do furto daquele veículo na Esquadra 31 da 3a Divisão Policial – Benfica da PSP, tendo essa participação dado origem ao processo n° 418/13.9PWLSB.
8. O A. participou o furto daquele veículo junto dos serviços da Seguradora Ré.
9. Após averiguação conduzida por ordem da Ré, esta declinou a sua responsabilidade, com fundamento no facto de, segundo a averiguação feita, “o sinistro não ter ocorrido conforme participado”, o que comunicou ao autor por carta datada de 25 de Junho de 2013 (doc. n.º 3 junto com a petição).
10. O veículo matrícula 13-(…)-33 valia € 22.000,00 (vinte e dois mil euros) a 06/04/2013.
11. O Autor viu-se privado daquele veículo desde 06/04/2013, não podendo dele fazer o uso a que o destinava, com perturbação do seu quotidiano até à data em que adquiriu uma outra veículo, o que ocorreu meses depois.
12. Encontra-se registado em favor do A. desde 7/8/2013 a viatura da marca Seat modelo Ibiza do ano de 2007, com a matrícula (…).
*
Factos não provados
Não foram provados os seguintes factos:
2. O valor do veículo e respectivos extras era de € 31.000,00 (trinta e um mil euros) a 06/04/2013.
3. A recusa da Ré em pagar ao A. o valor do capital seguro para o risco de furto, roubo, ou furto de uso, tem causado perturbações na vida diária do A.
4. Foi em consequência directa e necessária da recusa da Ré em pagar ao A. o valor do capital seguro para o risco de furto, roubo, ou furto de uso, que o A. se viu privado do seu veículo de matrícula 13-(…)-33, desde 06/04/2013, não podendo dele fazer o uso a que o destinava.
*
De Direito
Resulta dos factos assentes que o autor, tendo celebrado com a ré seguro obrigatório, mediante o qual transferiu para esta a responsabilidade civil emergente dos riscos próprios da circulação da viatura com a matrícula (…), celebrou igualmente seguro facultativo, garantindo a cobertura de determinados riscos, entre os quais o do mesmo veículo ser objecto de furto, até ao valor de € 31.000,00, sem qualquer franquia, o que permite qualificar o seguro como de dano.
Provada está igualmente, mercê das alterações introduzidas à decisão proferida sobre a matéria de facto, a ocorrência do sinistro, enquanto “verificação, total ou parcial, do evento que desencadeia a cobertura do risco prevista no contrato” na definição do art.º 99.º do RJCS, encontrando-se portanto a ré obrigada ao pagamento da prestação contratada.
Pretende o autor a condenação da apelada no valor de € 31.000,00, correspondente alegadamente ao valor da viatura, tal como ficou a constar do próprio contrato, reclamando ainda o montante diário de € 19,00 para reparação dos danos decorrentes da privação da utilização do veículo desde a data da participação à ré até ao presente.
Começando por este último segmento do petitório, sendo um dado da experiência comum, e isso mesmo foi dado por assente, que aquele que se vê privado do veículo que utiliza sofre uma perturbação no seu quotidiano, o que se traduz num dano susceptível de reparação, o seguro de danos destina-se a eliminar apenas e só os prejuízos contratados que determinado evento causa no património do lesado. Ora, implicando o crime de furto a subtracção de determinado bem da esfera jurídica do seu titular, implicando portanto que fique privado do respectivo uso, para lá da cobertura destinada a cobrir os prejuízos causados pela perda poderia também o autor ter contratado a cobertura da privação do uso. O que não fez, pelo que estamos fora do âmbito da cobertura contratada com a ré (cfr. art.º 130.º, n.ºs 1 e 2, do RJCS).
No entanto, agora com fundamento na ilegítima recusa por parte da ré/apelada em proceder ao pagamento da prestação de capital a que se encontrava contratualmente vinculada –e que, presume-se, permitiria a aquisição de uma viatura idêntica – sustenta o autor que se encontra obrigada, por via de tal culposo incumprimento, a indemnizá-lo do dano decorrente da apurada privação do uso.
A questão assim suscitada não é nova e não tem sido decidida de modo uniforme nos nossos Tribunais. Todavia, ressalvado o respeito que sempre é devido a quem entende diversamente, cremos inexistir fundamento, pelo menos no caso que nos ocupa, para arbitrar a pretendida indemnização.
A questão foi profunda e cuidadosamente desenvolvida no acórdão do TRC de 18 de Maio de 2015[1], aí se tendo considerado em caso similar: “No entanto, já adquirimos, à certeza, que uma coisa é o dano da privação do uso da coisa segura, enquanto objecto da cobertura do seguro, outra, deveras diferente, é da reparabilidade desse dano quando seja imputável à violação, pelo segurador, de uma qualquer obrigação a que se vinculou por força do contrato, como, por exemplo, do retardamento da obrigação de satisfazer a prestação a que, por força do contrato, se adstringiu. E é na violação do dever de prontamente liquidar o sinistro e, portanto, no retardamento da obrigação de satisfazer a prestação a que, por força do contrato a apelada ficou adstrita – e não na convenção que tenha por objecto a reparação do dano da privação do uso – que apelante faz radicar o seu direito a ser indemnizado de um tal dano.
O recorrente apela, a este propósito, à violação de deveres acessórios de conduta, a que, por força do princípio da boa-fé, a recorrente estaria vinculada, mais exactamente, à falta de resolução, atempada, por parte da recorrida, no pagamento da indemnização.
Embora a problemática dos deveres acessórios seja particularmente complexa, não deve oferecer dúvida séria de que aqueles se distinguem, com clareza, em função do seu fundamento final, designadamente, do dever de prestar principal: enquanto este dever – que se funda na autonomia privada - visa a satisfação do direito do credor na prestação – aqueles – que têm a sua raiz na boa-fé – promovem o interesse do credor na integralidade da própria prestação e ainda na indemnidade dos seus interesses colaterais: património e integridade, física e psíquica, desse mesmo credor (art.ºs 398º, nº 1 e 762º, nº 2, do Código Civil). É comum o distinguir entre os deveres acessórios de informação, de segurança e de lealdade: este último obrigaria as partes, designadamente, a uma actuação séria, evitando condutas que atinjam o dever de prestar ou a sua utilidade para o credor, e vincularia, tanto o devedor como o credor – através do princípio da tutela da confiança, derivado da boa-fé – a adoptar todas as condutas necessárias para prevenir danos pessoais ou patrimoniais na esfera da contraparte. É discutível se a violação de deveres acessórios é susceptível de justificar um dever de cumprimento; tem-se, porém, por certo que a prevaricação de deveres dessa espécie é idónea a fundar uma pretensão indemnizatória.

(…)
Simplesmente, não parece que no caso haja espaço para debater o problema da violação, pela apelante, de um qualquer dever acessório, dado que – segundo a alegação mesma do recorrente – não está em causa a ofensa de um dever daquela espécie – mas a violação do dever principal ou primário de prestar, ele mesmo. Dever que outro não é senão o de satisfazer, com pontualidade, no tempo devido, a prestação a que ficou adstrita por força do contrato de seguro (art.ºs 406.º, nº 1, 1.ª parte e 762.º, n.º 1, do Código Civil). Prestação que consiste, por se tratar de um seguro de danos, no pagamento, de harmonia com o princípio indemnizatório, num quantum de indemnização, correspondente aos danos sofridos pelo segurado – prestação indemnizatória. Prestação indemnizatória que, no caso, é uma pura obrigação pecuniária de prestação única: o de pagamento da quantia de (…), equivalente ao valor do capital seguro convencionado, deduzido do valor do salvado. Portanto, a recorrida ficou adstrita a uma pura obrigação pecuniária, sendo certo que não se convencionou, no contrato de seguro, a vinculação do segurador ao dever de indemnizar o dano resultante da privação do uso do bem seguro.
Há mora do devedor quando, por acto ilícito e culposo deste, se verifique um cumprimento retardado (artº 804º, nº 2, do Código Civil). A mora é, portanto, o atraso ilícito e culposo no cumprimento da obrigação: existe mora do devedor, quando, continuando a prestação a ser possível, este não a realiza no tempo devido. Para se concluir que há mora do devedor, não basta, portanto, dizer que, no momento do cumprimento, aquele não efectuou a prestação devida; é ainda necessário que sobre ele recaia um juízo de censura ou de reprovação. Exige-se, portanto, a ilicitude e a culpa do devedor, embora, tratando-se de responsabilidade obrigacional, qualquer retardamento na efectivação da prestação seja, por presunção, atribuído a ilícito cometido com culpa pelo devedor (art.º 799º, nº 1, do Código Civil). Da mora do devedor emerge, como primeira consequência, uma imputação dos danos, constituindo-se aquele no dever na obrigação de reparar todos os prejuízos que, com o atraso, tenha causado ao credor (art.º 804º, nº 1, do Código Civil).
Temos, portanto, que a recorrida se constitui em mora no tocante à sua obrigação de pagar ao recorrente a quantia de € 13.325,00. Simplesmente, dado que a mora se refere a uma obrigação pecuniária, de origem puramente contratual, a única indemnização devida ao recorrente é a correspondente aos juros legais contados desde o dia em que o devedor se constitui nessa mora, não sendo aquele admitido sequer a provar que a mora lhe causou dano superior aos juros referidos (art.º 806º, nºs 1 e 2, do Código Civil)”[2].
Não se desconhece ainda que com fundamento na violação culposa de deveres acessórios de conduta já foi decidido arbitrar indemnização pelo denominado dano de privação do uso de que nos ocupamos[3]. Todavia, no caso em apreço, não vemos que ré tenha actuado em detrimento de tais deveres. Com efeito, tendo procedido a averiguações, acabou por declinar a sua responsabilidade, o que deu a conhecer ao autor por missiva enviada a 25 de Junho de 2013, cerca de dois meses após a participação do sinistro, e portanto sem delongas irrazoáveis.
Por outro lado, verifica-se que o autor deixou correr um ano após a comunicação da seguradora sem interpor a presente acção, afigurando-se injustificado que reclame a indemnização pela privação do uso ao longo desse período, para mais quando reclama igualmente juros de mora contados da participação. Aliás, não pode deixar de se assinalar que a procedência da pretensão do autor, que se traduziria na atribuição de um montante indemnizatório superior a € 30.000,00 só para compensação do dano de privação do uso o que se afigura desproporcionado face até à extensão do dano que aqui se apurou-, criaria ainda um desequilíbrio nas posições de segurador e segurado que sempre obrigaria, em caso de arbitramento, a uma redução aos seus justos limites.
Não obstante, e conforme se referiu já, no caso vertente estamos perante retardamento no cumprimento da obrigação pecuniária a cargo da ré nos termos contratualmente estabelecidos, que corresponde ao seu dever primário de prestar, mora que obriga ao pagamento de juros moratórios sem que haja lugar ao pagamento de uma prestação suplementar por eventuais danos superiores, uma vez que a previsão do n.º 3 do art.º 806.º do CC tem a sua aplicação limitada à responsabilidade civil extra contratual.
Deste modo, e em conclusão, tendo o autor peticionado juros de mora e não se vendo que a ré tenha violado quaisquer deveres acessórios de conduta que possam fundamentar uma obrigação de indemnizar autónoma, sendo certo que o fundamento indemnizatório invocado pelo autor/apelante foi apenas e tão só o retardamento da obrigação -principal- de prestar contratualmente assumida pela ré, improcede o pedido de reparação do dano de privação do uso.
*
No que diz respeito ao prejuízo sofrido pela perda da viatura cremos que o valor a atender é o corresponde ao seu valor venal[4] à data da ocorrência do sinistro, no caso inferior ao capital contratado.
Com efeito, e tal como se decidiu no acórdão do STJ de 23/1/2014[5] a propósito do seguro facultativo, como é o caso dos autos, estabelecendo-se em tal tipo de seguro uma quantia máxima para a cobertura do dano nele previsto, o tomador de seguro (ou o respectivo beneficiário) só poderá receber o equivalente aos prejuízos sofridos.
Com efeito, e tal como ali se ponderou “Vigorando, em sede de seguros, o já falado princípio indemnizatório, devendo aqueles, fora excepções que aqui não importam, cobrir apenas o risco assumido pelo seguro, sem o exceder, a fim de o segurado ficar indemne, mas não enriquecido. Visando o mesmo evitar que o segurado (ou o beneficiário) venham enriquecer por via do seguro contratado, recebendo uma quantia superior ao dano sofrido e cujo risco o seguro foi outorgado para cobrir.
Estando tal princípio indemnizatório expressamente consagrado no art.º 128.º do DL nº 72/2008, de 16 de Abril que instituiu o regime jurídico do contrato de seguro e que assim reza: “A prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro”.
Fazendo-se, na generalidade dos casos, a determinação do valor seguro, aquando da superveniência do sinistro, pois que a declaração do risco, em que se inclui a descrição e a avaliação do objecto do seguro, é, uma declaração unilateral do segurado que o segurador aceita sem verificação, apenas para efeito de calcular o prémio e estabelecer o valor máximo da indemnização. Sendo este regime, o do DL 72/08, o aqui aplicável e não o do DL 214/97, de 16 de Agosto (…)”[6].
Com efeito, e tal como tem sido recorrentemente decidido, “são conceitos distintos o valor seguro, que corresponde ao valor do capital seguro pelas partes convencionado e que constitui o limite até ao qual a seguradora se obriga a indemnizar o seu segurado em caso de verificação do risco, e o valor do risco, que corresponde ao valor do objecto seguro à data doo sinistro (descontado de eventuais franquias e valor dos salvados)”[7].
De volta ao caso dos autos, tendo-se apurado que o valor venal da viatura à data do sinistro era € 22.000,00 será este o valor da prestação a cargo da Ré, quantia sobre a qual são devidos juros de mora à taxa supletiva legal desde 25 de Julho de 2013 (30 dias após a data em que a seguradora concluiu as suas averiguações e delas deu conhecimento ao aqui apelante, assim se tendo constituído em mora nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 102.º e 1004.º da LCS) e até integral pagamento.

*
III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar parcialmente procedente o recurso, condenando a ré/apelada (…) Seguros Gerais, SA a pagar ao autor/apelante a quantia de € 22.000,00 (vinte e dois mil euros), acrescida dos juros de mora vencidos desde 25 de Julho de 2013 e vincendos até integral pagamento, contados à taxa supletiva legal.
Custas nesta e na 1.ª instância a cargo de autor e ré na proporção dos seus decaimentos.
*
Sumário:
I. Estando em causa um seguro facultativo, tendo sido contratada a cobertura do risco de furto do veículo, seguro de danos, portanto, o retardamento no cumprimento da obrigação pecuniária assumida pela ré seguradora nos termos contratualmente estabelecidos, e que corresponde ao seu dever primário de prestar, obriga ao pagamento de juros moratórios sem que haja lugar ao pagamento de indemnização pela privação do uso (não contratada), uma vez que a previsão do n.º 3 do art.º 806.º do CC tem a sua aplicação limitada à responsabilidade civil extra contratual.
II. No que diz respeito ao prejuízo sofrido pela perda da viatura o valor a atender é o corresponde ao seu valor venal à data da ocorrência do sinistro.
*
Évora, 08 de Março de 2018
Maria Domingas Alves Simões
Vítor Sérgio Sequinho dos Santos
Maria da Conceição Ferreira

__________________________________________________
[1] No processo 127/14.1TBSCD.C1, disponível em www.dgsi.pt
[2] O mesmo TRC havia decidido já em idêntico sentido no aresto de 18/12/2013, processo 282/12.5TBOHP.C1, assim sumariado “No seguro de coisa, o segurador está vinculado à realização de uma prestação puramente pecuniária, pelo que, no caso de atraso na realização dessa prestação, a única indemnização devida é a correspondente aos juros legais, contados desde a data da constituição em mora. II - Apesar de se tratar de um dano emergente, o segurador só responde pela privação do uso da coisa segura se assim se tiver convencionado”.
Ainda no mesmo sentido o recente acórdão do TRP de 7/2/2017, processo 842/14.0TJPRT.P1, aqui se tendo decidido:
“iv. No seguro facultativo está em causa uma obrigação pecuniária, e não uma obrigação de indemnização em sentido estrito, pelo que a mora do devedor é ressarcida mediante o pagamento de juros, à taxa legal, a contar do dia da constituição em mora, salvo se antes da mora for devido um juro mais elevado ou as partes houverem estipulado um juro moratório diferente do legal.
v. Valendo no seguro facultativo de coisas o regime convencionado e não estando cobertos os danos pela privação do uso da viatura, não é contratualmente devida a correspondente compensação, nem apelando à violação dos deveres acessórios de conduta, quando a seguradora demora cerca de dois meses em processo de averiguação, findos os quais informa o segurado do declinar da sua responsabilidade”.
[3] Cf. ac. STJ de 23/11/2017, processo 4076/15.8T8BRG.G1.S2.
No mesmo sentido e idêntico fundamento, Ac. TRP de 11/1/2018, processo 2528/15.9 T8PRD.P1, de que se destacam os seguintes pontos do sumário: “I - Ainda que o contrato de seguro facultativo o não preveja, a privação do uso de veículo pode ser objeto de indemnização a favor do segurado quando a seguradora viole culposamente relevantes deveres acessórios de conduta ligados à boa-fé na execução do contrato de seguro, assim contribuindo para a verificação daquele dano.
II - Age em violação de deveres acessórios de conduta, a justificar a atribuição de indemnização pela privação do uso do veículo, a seguradora que, depois de ter assumido inequivocamente perante o segurado a atribuição de indemnização e sua quantificação por perda total do veículo seguro, vem, cerca de três semanas depois, sem justificação adequada e violando deveres de informação, comunicar à segurada que não a vai indemnizar, como se nunca tivesse assumido tal responsabilidade e negando posteriormente a sua assunção”.
[4] Podendo invocar-se em abono de tal entendimento a solução acolhida no art.º 41.º do RJSORCA, que faz corresponder a indemnização pela perda total do veículo ao seu valor venal, ou seja, o seu valor de substituição no momento anterior ao sinistro (vide n.ºs 2 e 3 do preceito).
[5] Processo 703/10.1 TBEPS.G1, acessível em www.dgsi.pt.
No mesmo sentido, acórdão do STJ de 18/6/2015, processo 184/12.5 TBVFR.P1.S1, e do TRP de 12/9/2016, processo 138/14.7 T8GDM.P1, disponíveis no mesmo sítio, destacando-se deste último os seguintes pontos do sumário:
“II - A questão do sobresseguro e a consagração do princípio do indemnizatório, que vinha sendo objecto de expressa regulação no artigo 435.º do CComercial, é actualmente regulada pelo DL n.º 72/2008, de 16-04, nos seus artigos 128.º e seguintes. III - São coisas distintas o valor seguro do valor em risco, o primeiro corresponde ao valor do capital seguro contratado entre as partes e, como tal, o limite até ao qual a seguradora se obriga a indemnizar o seu segurado em caso de verificação do risco (acidente, furto, roubo, incêndio, etc.) e o segundo ao valor do objecto seguro à data do sinistro e, como tal, o valor que a seguradora se obriga, em concreto, a pagar ao seu segurado (descontado de eventuais franquias e, eventualmente, valor do salvado) em caso de verificação do risco, que está, aliás em consonância com o princípio indemnizatório consagrado nos artigos 128.º e 130.º do RJCS”
[6] V., em sentido idêntico, desenvolvidamente, aresto do TRL de 6/4/2017, processo 1422/14.t TJLSB.L1-2, em www.dgsi.pt.
[7] Citado aresto do TRP de 7/2/2017 a que se alude na nota 2.