Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
392/21.8PCSTB.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: PROVA POR RECONHECIMENTO
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O ato de uma testemunha, na audiência, identificar o arguido como sendo o autor dos factos em julgamento insere-se no âmbito da prova testemunhal e não no âmbito da “prova por reconhecimento” (não sendo aplicável nessa situação, por conseguinte, o disposto no artigo 147º do C. P. Penal).
Em consequência, e ao contrário do que parece entender-se na motivação do recurso, o “auto de reconhecimento” feito nestes autos não constitui o elemento probatório decisivo para determinar a autoria dos factos por banda do arguido.

Dito de outro modo (talvez mais simples): ainda que o “auto de reconhecimento” fosse inválido, a prova da autoria dos factos está feita através do depoimento, prestado na audiência de discussão e julgamento, da testemunha BB.

Em segundo lugar, o acórdão revidendo, ainda que se refira ao “auto de reconhecimento de fls. 47”, no qual a testemunha BB identificou o arguido como autor dos factos em causa, não enferma de qualquer erro na apreciação da prova, nem o “reconhecimento” levado a cabo na fase de inquérito enferma de qualquer patologia, porquanto, e repete-se, a testemunha já conhecia o arguido (já o tinha transportado no seu táxi, por diversas vezes), não tendo quaisquer dúvidas em lhe imputar a autoria do roubo de que foi vítima.

Mais: nesse “reconhecimento” do arguido, efetuado nos termos do “auto de reconhecimento de fls. 47”, esteve também presente o Ilustre defensor oficioso do arguido, o qual não invocou, naquele ato processual, a existência de qualquer irregularidade ou de qualquer invalidade.

Por último, e perante o exposto, carece de sentido tudo o que vem alegado neste segmento da motivação do recurso, nomeadamente a alegação segundo a qual o arguido foi “reconhecido” por uma fotografia sua posta no Facebook.

Contudo, mesmo que assim fosse, ainda que a entidade policial tivesse chegado à identidade do arguido através de uma fotografia sua posta no Facebook, tal configuraria uma mera identificação prévia, perfunctória e informal, a qual é consentida pelo disposto no artigo 147º, nº 5, do C. P. Penal, sendo tal identificação válida como meio de prova desde que seguida do formalismo e dos requisitos de validade do “reconhecimento” previstos nos nºs 1, 2 e 3 do mesmo artigo.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - RELATÓRIO

No âmbito do Processo Comum, com intervenção do Tribunal Coletivo, com o nº 392/21.8PCSTB, do Juízo Central Criminal de … (Juiz 1), e mediante pertinente acórdão, o arguido AA foi condenado pela prática, em autoria material, de um crime de roubo, p. e p. pelo artigo 210º do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão.

*

Inconformado com a condenação, o arguido interpôs recurso, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

“1ª - O arguido foi condenado pela prática de um crime de roubo, p. e p. pelo artigo 210º do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão.

2ª - O tribunal considerou como provados os seguintes factos:

1) No dia 31-05-2021, pelas 07h.30m, o arguido ocupou o táxi com a matrícula …, estacionado na praça de táxis existente na Avenida …, em …, sendo o condutor daquele BB (facto provado nº 1).

2) Já no interior do táxi, o arguido solicitou a BB que o transportasse até à Avenida…, em … (facto provado nº 2).

3) Aí chegados, o arguido pediu a BB que virasse à direita (facto provado nº 3).

4) Quando BB imobilizou o supra referido veículo automóvel, junto a um prédio aí existente, o arguido saltou do banco traseiro, onde seguia, retirou a chave da viatura da ignição, e desferiu um número não concretamente apurado de murros no braço de BB, que este colocou junto da cabeça para proteger o rosto, causando-lhe hematomas e dores (facto provado nº 4).

5) Após, o arguido apoderou-se de uma bolsa, contendo no seu interior vários documentos e uns óculos graduados de marca …, no valor de 600,00€ (seiscentos euros), propriedade de BB (facto provado nº 5).

6) Na posse dos supra referidos objetos, com exceção da chave que devolveu, o arguido abandonou o local, levando consigo a bolsa que continha os mencionados objetos, que fez seus (facto provado nº 6).

7) BB em momento algum autorizou o arguido a fazer seus os objetos acima referidos, que lhe pertenciam (facto provado nº 7).

8) O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, com o propósito concretizado de, por meio de violência física e com ilegítima intenção de apropriação, se apoderar da bolsa e dos documentos, que pertenciam a BB, contra a vontade deste.

3ª - O tribunal formou a sua convicção apesar das declarações do arguido, que foram no sentido negatório da prática dos factos, às quais não deu credibilidade.

4ª - Alicerçou ainda a sua decisão no relatório social do arguido e na pesquisa às bases de dados da Segurança Social, para corroborar que a versão negatória dos factos apresentada pelo arguido não tinha qualquer verdade.

5ª - O tribunal andou mal ao indeferir o requerimento apresentado pelo Ilustre Defensor Oficioso do arguido, não permitindo a inquirição do Sr. CC, testemunha fundamental para o apuramento da verdade material, sendo este o único que poderia esclarecer se as afirmações do arguido relativas ao dia e hora dos factos eram verdade ou mentira, podendo essas declarações alterar radicalmente o rumo tomado pelo acórdão.

6ª - Com efeito, deveria o tribunal a quo ter deferido o requerimento para produção de prova testemunhal de CC, nos termos do artigo 340º, nº 1, do CPP, com vista à boa decisão da causa e ao apuramento da verdade material.

7ª - Conclui-se, então, que deve a decisão de indeferimento do requerimento de inquirição de testemunha ser revogada e ser ouvida a testemunha, que se considera fundamental para o apuramento da verdade material.

8ª - A decisão do tribunal a quo revela manifesta insuficiência probatória para a decisão da matéria dada como provada.

9ª - Além dessa insuficiência probatória, consideramos ainda existir um erro notório na apreciação da prova, violando-se o artigo 147º, nºs 1 e 2, do CPP, relativo ao reconhecimento de pessoas.

10ª - É, pois, forçoso concluir que o tribunal a quo, relativamente à identificação do arguido, baseou-se no reconhecimento que se encontra inquinado, por todas as razões acima longamente explanadas, aplicando-se o disposto no artigo147º, nº 7, do CPP.

11ª - O tribunal a quo errou na apreciação e valoração que atribuiu à prova onde alicerçou a sua convicção de que o arguido era o autor material do crime.

12ª - A sentença recorrida padece do vício do erro notório na apreciação da prova a que alude o artigo 410º, nº 2, al. c), do CPP, que ocorre sempre que se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, contraditória ou violadora das regras da experiência comum, de forma notória, ou ainda quando determinado facto é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado contido na decisão, e ainda quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, o que aconteceu.

13ª - O reconhecimento do arguido, nos termos do artigo 147º do CPP, precedido de um rastreio particular feito pelos ofendidos no Facebook, local onde encontraram por acaso e sem qualquer explicação o perfil e a fotografia do mesmo (pre-reconhecimento ocular do ofendido), o qual visionou repetidamente e o fez juntar aos autos antes da diligência de reconhecimento, inquina de forma notória esse mesmo reconhecimento na sua validade substancial.

Termos em que, nos demais de direito e com o douto suprimento de S/ Exas., deve ser dado provimento ao recurso e, por via dele, ser revogada a sentença recorrida, considerando-se o reconhecimento inválido, nos termos do artigo 147º, nº 7, do CPP, e enviando-se o processo para novo julgamento, a fim de ser inquirida a testemunha fundamental CC, absolvendo-se a final o arguido, tudo com as demais consequências legais, fazendo-se a devida Justiça”.

*

A Exmª Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta ao recurso, pugnando pela improcedência do mesmo, e concluindo tal resposta nos seguintes termos (em transcrição):

“1. Não existe insuficiência para a decisão da matéria de facto, porquanto o acórdão recorrido formou a sua convicção com base nas declarações prestadas pela vítima em audiência de julgamento.

2. Não existe nenhuma contradição no depoimento prestado pela vítima, porque as declarações pela mesma prestadas só poderiam ser valoradas no circunstancialismo do artigo 356º, nºs 2, alínea b), e 5, do Código de Processo Penal, o que não aconteceu.

3. O reconhecimento fotográfico foi realizado a partir de um perfil de Facebook que não foi encontrado ao acaso, mas sim exibido à vítima por outra testemunha, que declarou conhecer o recorrente há vários anos e pretender confirmar com a primeira se era aquela a pessoa que o havia atacado.

4. O reconhecimento pessoal não é afetado de qualquer invalidade, por ter sido precedido de um reconhecimento fotográfico, tratando-se do procedimento estipulado pelo artigo 147º, nº 5, do Código de Processo Penal.

5. Consta do auto de reconhecimento que os figurantes eram ambos de raça negra, circunstância que não foi posta em causa pelo arguido, mas sim pelo seu Defensor em primeiro interrogatório judicial, não tendo daí extraído nenhuma consequência em momento posterior, mas anterior ou contemporânea à audiência de julgamento, pese embora o Juiz de Instrução Criminal tenha feito constar do despacho que não se podia pronunciar por não existir imagem dessas pessoas.

6. A menção ao facto de o autor dos factos ter o braço engessado, não só não pode ser valorada nos termos do disposto no artigo 356º, nºs 2, alínea b), e 5, do Código de Processo Penal, como não é líquida por se referir um braço “ligado/engessado”, sendo que uma ligadura pode ser colocada por qualquer pessoa fora de instituições de saúde.

7. Não há lugar à aplicação do princípio in dubio pro reo, porque ao julgador não se colocou nenhuma dúvida impossível de resolver com recurso à prova produzida, não se tendo imposto a produção de prova suplementar, quer a requerida pelo recorrente, quer aquela que apenas mencionou já em sede de recurso”.

*

Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, entendendo também que o recurso não merece provimento.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal, não foi apresentada qualquer resposta.

Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objeto do recurso.

No presente caso, e em breve resumo, são quatro as questões suscitadas no recurso, segundo o âmbito das correspondentes conclusões, as quais delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem (nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal):

1ª - Necessidade de “reenvio” do processo para novo julgamento, a fim de, nele, ser inquirida a testemunha (fundamental) CC.

2ª - Invalidade do “reconhecimento” efetuado à pessoa do arguido (“reconhecimento” feito fora das regras estabelecidas pelo artigo 147º do C. P. Penal).

3ª - Existência dos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova (artigo 410º, nº 2, als. a) e c), do C. P. Penal).

4ª - Impugnação alargada da matéria de facto (não existindo prova da autoria dos factos por banda do arguido, este deve ser absolvido).

2 - A decisão recorrida.

O acórdão revidendo é do seguinte teor (na parte aqui relevante - quanto aos factos provados relativos à incriminação e, bem assim, no tocante à respetiva motivação -):

“Factos provados:

1) No dia 31-05-2021, pelas 07h30m, o arguido ocupou o táxi com a matrícula …, estacionado na praça de táxis existente na Avenida …, em …, sendo o condutor daquele BB.

2) Já no interior do táxi, o arguido solicitou a BB que o transportasse até à Avenida …, em ….

3) Aí chegados, o arguido pediu a BB que virasse à direita.

4) Quando BB imobilizou o supra referido veículo automóvel, junto a um prédio aí existente, o arguido saltou do banco traseiro, onde seguia, retirou a chave da viatura da ignição, e desferiu um número não concretamente apurado de murros no braço de BB, que este colocou junto da cabeça para proteger o rosto, causando-lhe hematomas e dores.

5) Após, o arguido apoderou-se de uma bolsa, contendo no seu interior vários documentos e uns óculos graduados de marca …, no valor de 600,00€ (seiscentos euros), propriedade de BB.

6) Na posse dos supra referidos objetos, com exceção da chave que devolveu, o arguido abandonou o local, levando consigo a bolsa que continha os mencionados objetos, que fez seus.

7) BB em momento algum autorizou o arguido a fazer seus os objetos acima referidos, que lhe pertenciam.

8) O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, com o propósito concretizado de, por meio de violência física e com ilegítima intenção de apropriação, se apoderar da bolsa e dos documentos, que pertenciam a BB, contra a vontade deste.

(….)

Motivação:

No alicerçamento da sua convicção, ponderou o tribunal as declarações do arguido, que foram no sentido negatório da prática dos factos.

Com efeito, disse-nos ser impossível estar no táxi naquela data e hora, posto que nesse dia tinha ido trabalhar (trabalhava para “…”, como servente, desde abril desse ano, tendo-o feito até junho do mesmo ano).

Precisando, referiu ter estado durante pouco tempo à experiência numa obra, tendo a mulher do dono celebrado um contrato de trabalho com o mesmo, cuja cópia não possui, por ter ficado com o patrão.

Nesse dia, a carrinha da empresa tinha ido recolhê-lo pelas 7h15m ou 7h20m, na Rua …, pelo que nega a autoria dos factos.

Tendo sido confrontado com o teor do seu relatório social, na parte dele em que justamente a pessoa para a qual trabalhou informal e pontualmente não lhe renovou o contrato, por assiduidade irregular do mesmo (já que, no dizer dessa pessoa, faltava sem aviso prévio), e nessa exata medida, a razão pela qual se recordava com tanta precisão do dia em causa, manteve a sua afirmação.

Ante a menção de o dia 31-05-2021 ter coincidido com um Domingo (dia em que, como se sabe, a atividade de construção cessa), insistiu lembrar-se da data, precisamente por ter ido trabalhar durante o fim-de-semana, e só ter regressado a casa na segunda-feira.

Todavia, as pesquizas que foram efetuadas em sede de julgamento, atinentes às contribuições para a segurança social do arguido, não suscitaram margens para dúvidas, porquanto o documento que foi junto (conforme consta da ata respetiva), atinente a tal segmento, confirma o teor daquele outro, que já se mostra junto a fls. 50/51 dos autos, que atesta que a última remuneração declarada pelo arguido (justamente para a empresa referida pelo mesmo, na qual iniciou funções a 14-04-2021) data de abril de 2021 (e, nessa exata medida, o arguido trabalhou para a aludida empresa durante cerca de 15 dias, somente não o tendo feito em 31 de maio, como pelo mesmo foi dito).

A esta versão dos factos contrapôs-se a que foi trazida a julgamento pela testemunha BB, com … anos de idade, motorista de táxi de profissão, que já conhecia o arguido (o qual costuma usar o serviço de táxi) antes do evento ocorrido (cuja data já não consegue recordar, ainda que seja a da apresentação da queixa, algo que fez no mesmo dia).

Referiu-nos a testemunha que tudo aconteceu cerca das 7.30h da manhã, em que apanhou o arguido junto da …, levando-o até à Avª ….

O arguido, que tinha um braço com uma ligadura, pediu-lhe desculpa por não trazer máscara para a COVID consigo, tendo-lhe a testemunha oferecido uma que tinha no interior do táxi. Quando chegaram àquela avenida, e encostou à direita, junto de um prédio ali existente, parando, o arguido saltou do banco de trás da viatura, onde seguia, e, tendo retirado a chave da ignição, começou a dar-lhe socos no braço, com o qual a testemunha protegia o rosto da agressão, sendo que, na expressão da testemunha, o arguido “ia-lhe partindo o braço”, expressão que não suscitou dúvidas ao tribunal, tendo em conta a disparidade de idades e de compleição física, entre a testemunha (de estrutura frágil), e o arguido (pessoa robusta, com cerca de um metro e oitenta de altura), não sendo difícil concluir que, em face dessa agressão, a vítima tenha sofrido dores e ficado com hematomas.

O arguido conseguiu retirar uma bolsa que a testemunha tinha no banco do pendura, com a qual saiu do táxi, tendo-lhe “jogado” as chaves da viatura para o seu interior.

Dentro dessa bolsa, a testemunha tinha uns óculos de sol graduados, de marca …, que valiam € 600.00.

Inicialmente, pensou que também lhe tivesse levado um telemóvel, pelo qual deu falta. Contudo, depois de o ter procurado, constatou que o mesmo tinha ficado no chão, não o tendo levado o arguido.

Não tem quaisquer dúvidas de que o autor do assalto foi o arguido, pessoa que já conhecia antes (sendo que o auto de reconhecimento de fls. 41 claramente o atesta, tendo a testemunha confirmado tê-lo feito, e, ali, reconhecido a pessoa em causa).

Este depoimento foi prestado de uma forma objetiva e serena, não nos tendo suscitado quaisquer dúvidas quanto à imparcialidade com que foi produzido (assim sucedeu, quanto à afirmação de que o arguido não lhe levou o telemóvel, a despeito do que inicialmente pensara), e à sua veracidade intrínseca, quer quanto aos factos ocorridos, quer quanto à respetiva autoria.

Foi o tipo de depoimento que surge de tal sorte límpido, que não carece de qualquer outro meio probatório que o reforce, não tendo ficado o tribunal com réstia de dúvida, de que a ocorrência fáctica se produziu nos exatos termos que foram descritos (abalando totalmente o teor das declarações que em sentido contrário - e de forma em que se evidenciou o interesse direto que evidentemente possui no desfecho decisório - o arguido trouxe a julgamento).

3 - Apreciação do mérito do recurso.

a) Da audição da testemunha CC.

Alega-se na motivação do recurso que existe absoluta necessidade de reenvio do processo para novo julgamento, a fim de, nele, ser inquirida a testemunha CC, por esta testemunha ser fundamental para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.

Na opinião do recorrente, “o tribunal andou mal ao indeferir o requerimento apresentado pelo Ilustre Defensor Oficioso do arguido, não permitindo a inquirição do Sr. CC, testemunha fundamental para o apuramento da verdade material, sendo este o único que poderia esclarecer se as afirmações do arguido relativas ao dia e hora dos factos eram verdade ou mentira, podendo essas declarações alterar radicalmente o rumo tomado pelo acórdão”.

Cumpre decidir.

I - A audição da testemunha CC foi requerida, pelo arguido, no decurso da audiência de discussão e julgamento, ao abrigo do disposto no artigo 340º, nº 1, do C. P. Penal.

Esse requerimento foi indeferido pelo Tribunal de primeira instância, por considerar que a inquirição da testemunha CC não possuía interesse para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.

Se a audição da testemunha CC consubstanciasse uma diligência que pudesse reputar-se essencial para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa, a omissão dessa audição constituiria uma nulidade, dependente de arguição, conforme disposto no artigo 120º, nº 2, al. d), do C. P. Penal.

Assim sendo, tal nulidade teria, necessariamente, de ser logo invocada pelo arguido (cfr. o preceituado no artigo 120º, nº 3, al. a), do C. P. Penal), e não o foi.

Por conseguinte, não tendo sido feita a arguição tempestiva da aludida (eventual) nulidade, nem tendo o arguido recorrido do despacho judicial que indeferiu a audição da testemunha CC, e não sendo essa (eventual) nulidade de conhecimento oficioso, a mesma encontra-se, neste momento processual, sanada.

II - A audição da testemunha CC não possuía então (na audiência de discussão e julgamento), como não possui agora (no momento da apreciação do mérito do recurso), qualquer relevo, não sendo necessária para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa.

Ou seja, a audição da testemunha CC, ao abrigo do disposto no artigo 340º do C. P. Penal, a requerimento do arguido ou por iniciativa do Tribunal, não possui qualquer pertinência, nada de substantivo podendo aportar ao presente processo.

Senão vejamos.

A testemunha CC (pessoa para quem, segundo as declarações do arguido prestadas na audiência de discussão e julgamento, o arguido estava a trabalhar, na construção civil, no dia e hora dos factos, a um Domingo, pelas 7,30 horas da manhã), a confirmar a versão do arguido, traria ao Tribunal um “alibi”, o qual conduziria à absolvição do arguido.

Ou seja, o arguido não poderia ter cometido os factos delitivos em apreço, porquanto, na hora dos mesmos, estava a trabalhar, na construção civil, para o seu patrão (a testemunha CC), em local muito distante do dos factos em discussão.

Com o devido respeito pela versão do arguido, invocando esse “alibi”, e perante os elementos de prova carreados para o processo (e devidamente explicitados no acórdão revidendo), tal versão carece, em absoluto, de verosimilhança e de adesão à realidade das coisas (sendo até absurda).

Perante a prova produzida (designadamente face ao depoimento, límpido e inequívoco, prestado pela testemunha BB - vítima do ato delitivo cometido pelo arguido, e que, na audiência de discussão e julgamento, sem margem para dúvidas, identificou o arguido como autor dos factos -), nenhum relevo possui ouvir CC.

Ainda que a testemunha CC confirmasse as declarações do arguido (dizendo que, no dia e à hora dos factos, o arguido estava na sua companhia, a trabalhar na construção civil), tal depoimento não abalaria (minimamente que fosse) a prova contrária produzida (designadamente o depoimento da testemunha BB).

Com efeito, e como bem refere a Exmª Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância (na resposta ao recurso), a razão de ciência dessa eventual afirmação da testemunha CC “seria sempre posta em causa por mais que uma razão: por um lado, tinha que afiançar, com 100% de certeza, que recolheu o recorrente antes das 7h30m do dia em questão (já que, nas declarações que prestou, o arguido afirmou que era recolhido pela testemunha cerca das 7h15m, junto ao posto de abastecimento de combustível … existente na Avenida … em …), e, por outro lado, tinha que poder afiançar igualmente que o arguido foi trabalhar no dia em questão (o que se mostra difícil, já que consta dos autos documento comprovativo que a última remuneração do arguido se refere ao mês de abril de 2021, de onde resulta que, mesmo que continuasse a trabalhar para a mesma empresa, não existirá registo da sua comparência no trabalho nesse dia)”.

Em jeito de síntese: o depoimento da testemunha CC, qualquer que ele fosse, não colocaria em causa, minimamente, a credibilidade do depoimento prestado pela vítima (a testemunha BB).

Assim sendo, e em conclusão: não é necessário ouvir, como testemunha, CC, nem o processo tem de ser reenviado para novo julgamento, a fim de, nele, ser ouvido tal cidadão.

Face ao que vem de dizer-se, e nesta primeira vertente, o recurso não merece provimento.

b) Da prova por reconhecimento.

Alega-se na motivação do recurso que o ato de “reconhecimento” efetuado nestes autos à pessoa do arguido é inválido, enfermando de nulidade, por violação do disposto no artigo 147º do C. P. Penal (o recorrente, nessa sua alegação, refere-se ao “reconhecimento” efetuado pela testemunha BB - a vítima dos factos delitivos em apreço -).

Cabe decidir.

I - Em primeiro lugar, BB (vítima dos factos) foi ouvido como testemunha na audiência de discussão e julgamento, e constatamos, como constatou o Tribunal recorrido, que a mesma não teve quaisquer dúvidas que foi o arguido o indivíduo que o abordou e assaltou, nos precisos termos dados como provados no acórdão sub judice.

É que, na altura dos factos, a testemunha BB já conhecia o arguido, e conhecia-o muito bem, pois já o havia transportado, por diversas vezes, como cliente, no seu táxi.

Assim, logo nessa altura, a testemunha BB pôde verificar quem era o autor dos factos, não existindo qualquer necessidade, por isso mesmo, de proceder ao “reconhecimento” do arguido (conforme decorre do disposto no artigo 147º, nº 1, do C. P. Penal).

Seria até absurdo: a testemunha BB tinha de proceder ao “reconhecimento” de uma pessoa, com todo o legal formalismo (artigo 147º do C. P. Penal), quando é certo que já, muito claramente, conhecia essa pessoa.

É que, o ato de uma testemunha, na audiência, identificar o arguido como sendo o autor dos factos em julgamento insere-se no âmbito da prova testemunhal e não no âmbito da “prova por reconhecimento” (não sendo aplicável nessa situação, por conseguinte, o disposto no artigo 147º do C. P. Penal).

Em consequência, e ao contrário do que parece entender-se na motivação do recurso, o “auto de reconhecimento” feito nestes autos não constitui o elemento probatório decisivo para determinar a autoria dos factos por banda do arguido.

Dito de outro modo (talvez mais simples): ainda que o “auto de reconhecimento de fls. 47” fosse inválido (e não é, como veremos de seguida), a prova da autoria dos factos está feita através do depoimento, prestado na audiência de discussão e julgamento, da testemunha BB.

II - Em segundo lugar, o acórdão revidendo, ainda que se refira ao “auto de reconhecimento de fls. 47”, no qual a testemunha BB identificou o arguido como autor dos factos em causa, não enferma de qualquer erro na apreciação da prova, nem o “reconhecimento” levado a cabo na fase de inquérito enferma de qualquer patologia, porquanto, e repete-se, a testemunha já conhecia o arguido (já o tinha transportado no seu táxi, por diversas vezes), não tendo quaisquer dúvidas em lhe imputar a autoria do roubo de que foi vítima.

Mais: nesse “reconhecimento” do arguido, efetuado nos termos do “auto de reconhecimento de fls. 47”, esteve também presente o Ilustre defensor oficioso do arguido, o qual não invocou, naquele ato processual, a existência de qualquer irregularidade ou de qualquer invalidade.

III - Por último, e perante o exposto, carece de sentido tudo o que vem alegado neste segmento da motivação do recurso, nomeadamente a alegação segundo a qual o arguido foi “reconhecido” por uma fotografia sua posta no Facebook.

Contudo, mesmo que assim fosse, ainda que a entidade policial tivesse chegado à identidade do arguido através de uma fotografia sua posta no Facebook, tal configuraria uma mera identificação prévia, perfunctória e informal, a qual é consentida pelo disposto no artigo 147º, nº 5, do C. P. Penal, sendo tal identificação válida como meio de prova desde que seguida do formalismo e dos requisitos de validade do “reconhecimento” previstos nos nºs 1, 2 e 3 do mesmo artigo.

Em conclusão: também nesta vertente (reconhecimento do arguido efetuado pela vítima dos factos delitivos em apreço) o recurso é de improceder.

c) Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova.

Alega-se na motivação do recurso que o acórdão revidendo enferma dos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova (artigo 410º, nº 2, als. a) e c), do C. P. Penal).

Há que decidir.

I - A insuficiência, a que se reporta o artigo 410º, nº 2, al. a), do C. P. Penal, é um vício que ocorre quando a matéria de facto é insuficiente para a decisão de direito, o que se verifica porque o tribunal deixou de apurar a matéria de facto que lhe cabia apurar dentro do objeto do processo, tal como este está circunscrito pela acusação e pela defesa, sem prejuízo do mais que a prova produzida em audiência justifique. Tal vício consiste na formulação incorreta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada.

Alega o recorrente que existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, porquanto a prova produzida é insuficiente para a condenação operada no acórdão revidendo.

Em grande confusão, salvo o devido respeito, incorre o recorrente nessa sua alegação.

Com efeito, nada disso tem a ver com insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

É que, o recorrente não invoca a falta de factos (dados como provados) necessários para a decisão de direito, factos esses que o tribunal devesse averiguar, desta forma confundindo (estranhamente, diga-se) uma situação de apreciação da prova com o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Tal como o recorrente põe a questão, o que o mesmo diz é que há insuficiência de prova para a matéria de facto dada como provada. Ora, essa invocação, manifestamente, não consubstancia o vício agora em apreciação.

Como bem esclarecem Simas Santos e Leal Henriques (in “Recursos em Processo Penal”, 7ª ed., 2008, Editora Rei dos Livros, págs. 72 e 73), ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando existe uma “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher”.

Nada disso se verifica na situação exposta pelo recorrente, pelo que, manifestamente, o acórdão revidendo não enferma do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

II - Por sua vez, ocorre o vício do erro notório na apreciação da prova, e usando (de novo) as sintéticas palavras de Simas Santos e Leal Henrique (ob. citada, pág. 77), quando é detetável uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou (…). Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um Homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o Tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das legis artis”.

Ora, as alegações do recorrente, a propósito da fundamentação da matéria de facto, não permitem concluir pela existência de qualquer erro ou vício de raciocínio na apreciação da prova. Não traduzem, de forma patente ou ostensiva, como é exigível, qualquer erro na apreciação do conjunto das provas produzidas na audiência de discussão e julgamento, erro esse que salte aos olhos de qualquer pessoa de média formação, e erro decorrente da simples leitura do acórdão sub judice.

Quanto ao erro notório na apreciação da prova, vem sendo entendimento unânime da doutrina e jurisprudência que ele apenas se terá como verificado em apertadas circunstâncias.

Tal vício nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que os recorrentes entendem ser a correta, face à prova produzida; ele só pode ter-se como verificado quando o conteúdo da respetiva decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, patenteie, de modo que não escaparia à análise do Homem comum, que no caso se impunha uma decisão de facto contrária à que foi proferida.

Nos termos sobreditos, a discordância do recorrente perante a matéria de facto é inócua para os fins agora em análise, uma vez que, objetivamente, nada resulta do teor da decisão que constitua erro notório na apreciação da prova.

Posto o que precede, e em toda esta vertente, o recurso nenhum provimento merece.

d) Da impugnação alargada da matéria de facto.

Alega-se na motivação do recurso que não existe prova da autoria dos factos por banda do arguido (e, por isso, o mesmo deve ser absolvido da prática do crime de roubo pelo qual vem condenado).

Cumpre decidir.

Desde logo, constata-se que a única matéria de facto colocada em crise na motivação do recurso é a autoria dos factos por parte do arguido (e não os factos propriamente ditos).

O recorrente questiona, pois, e sem mais, a imputação dos factos à sua própria pessoa.

Depois, verifica-se que a decisão dessa questão (autoria dos factos) decorre, por sequência lógica, de tudo o que já ficou explicitado e decidido no presente acórdão.

Resumidamente, foi decidido o seguinte:

- A desnecessidade de audição de CC (o qual, na visão do recorrente, traria ao processo um “alibi”, ou seja, viria dizer que o arguido, na data e hora dos factos, estava com ele, longe do local dos factos, pelo que não pode o arguido ser o autor do crime).

- A inteira validade da identificação do arguido como sendo o autor do crime em análise (identificação feita pela vítima de tal crime).

- A acertada apreciação e valoração da prova relativa à autoria dos factos (o depoimento, totalmente credível, pormenorizado e convincente, prestado na audiência de discussão e julgamento pela testemunha BB - taxista e vítima do roubo em apreço -).

Perante os apontados elementos probatórios, quer o Tribunal de primeira instância quer este Tribunal de recurso, e sem a existência de qualquer dúvida (não havendo, por isso, necessidade de apelar à aplicação do princípio in dubio pro reo), entendem que o arguido foi o autor material do crime praticado.

No acórdão revidendo não houve, pois, qualquer erro de julgamento, sendo certo que esse erro não pode ser confundido com a existência de uma mera divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida na audiência e a convicção que o Tribunal formou (segundo o princípio da livre apreciação da prova - artigo 127º do C. P. Penal -).

Acresce que, o Tribunal a quo fundamentou devidamente a sua opção decisória (explicitou, de modo claro e apreensível, as razões da sua convicção).

Em conclusão: procedendo a ponderação e convicção autónomas, e autonomamente formuladas nesta instância de recurso, e sem embargo dos inultrapassáveis limites de apreciação nesta mesma instância, ditados pela natureza (de remédio) do recurso, pelo momento de apreciação dos elementos probatórios (apreciação de segunda linha e em suporte estático), e pelos termos, modelo e modo de impugnação inerentes ao recurso em análise, constatamos, sem dificuldade, que a prova produzida na audiência de discussão e julgamento impõe uma decisão inteiramente conforme com a que foi tomada pelo tribunal a quo.

Assim, e ao contrário do que invoca o recorrente, não ocorre in casu qualquer erro na apreciação da prova (relativamente à autoria dos factos por banda do arguido).

Por tudo o que se deixou dito, o recurso interposto pelo arguido é totalmente de improceder.

III - DECISÃO

Pelo exposto, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora decidem negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.

*

Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 13 de julho de 2022

João Manuel Monteiro Amaro (relator)

Nuno Maria Rosa da Silva Garcia (adjunto)

Maria Fernanda Pereira Palma (presidente da Secção)