Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
299/17.3PBELV.E1
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: MAUS TRATOS A ANIMAIS DE COMPANHIA
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 06/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. O crime de maus tratos a animais de companhia, previsto no artigo 387.º do Código Penal (na redação da Lei n.º 69/2014 de 29 de agosto) é materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 27.º e 18.º, § 2.º e 29.º, § 1.º, da Constituição:
a) Por não encontrar na ordem axiológica jurídico-constitucional uma imposição ou necessidade de tutela (penal) do bem-estar animal, em termos que possa justificar a restrição de direitos fundamentais que lhe vem impregnada, conforme resulta no § 2.º do artigo 18.º da Constituição;

b) E por a descrição típica do ilícito apresentar um nível de indeterminação dos seus elementos objetivos, incompatível com o princípio da legalidade penal, expresso pelo brocardo latino nullum crimen, nulla poena, sine lege stricta, a que se reporta o § 1.º do artigo 29.º da Constituição.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I – RELATÓRIO

a. No Juízo Local de Elvas, do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre procedeu-se a julgamento em processo comum perante tribunal singular de AA, nascido a …, com os demais sinais dos autos, a quem fora imputada a prática, como autor, dos seguintes ilícitos penais:

- um crime de maus tratos a animal de companhia, previsto no artigo 387.º, § 1.º e 2.º do Código Penal (CP), com referência ao artigo 388.º-A do mesmo código;

- e de um crime de detenção de arma proibida, previsto no artigo 86.º, § 1.º, al. c), com referência ao artigo 2.º, § 1.º, al. a) e § 3.º, als. l), p). ab) e ac), artigo 3.º, § 2.º, als. l) e p) da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro.

O arguido não apresentou contestação.

A final o tribunal proferiu sentença, na qual condenou o arguido pela prática, como autor, de:

- um crime de maus tratos a animal de companhia, previsto no artigo 387.º, § 1.º e 2.º CP, na pena de 100 dias de multa, à razão diária de 6€; e na pena acessória de privação do direito de detenção de animais de companhia pelo período de 6 meses (artigo 388.º-A § 1.º CP);

- e de um crime de detenção de arma proibida, previsto no artigo 86.º, § 1.º, al. c), com referência ao artigo 2.º, § 1.º, al. ar) e § 3.º, als. l), p). ab) e ac), artigo 3.º, § 2.º, als. l) e p) da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 250 dias de multa, à razão diária de 6€.

Operado o cúmulo jurídico das penas correspondentes ao concurso de crimes, a pena única foi-lhe fixada em 300 dias de multa, à razão diária de 6€ e na pena acessória de privação do direito de detenção de animais de companhia pelo período de 6 meses.

b. Inconformado, veio o arguido interpor recurso, rematando as pertinentes motivações com as seguintes conclusões (transcrição):

«1. O Tribunal “a quo”, imputa ao recorrente a autoria do disparo da arma de fogo, somente porque uma testemunha (que não compareceu na audiência de discussão e julgamento, o que impossibilitou o contraditório) o viu no local.

2. Ou seja, não viu quem disparou, como efetuou o disparo que com arma foi efetuado o disparo.

3. Aquela via, EN …, é a que o recorrente todos os dias percorre para a propriedade agrícola que explora em arrendamento.

4. Ao contrário do que resulta da douta sentença, não existe qualquer prova que consolide a imputação ao recorrente do facto danoso.

5. Não estamos mais do que um exercício de probabilidades, sem fundamento e que, forçosamente pretende imputar ao recorrente a prática de um ato, para a qual não foi feita qualquer prova, nem documental, nem testemunhal.

6. Ninguém viu a quem pertencia a autoria do disparo, somente uma testemunha (a tal que faltou), viu o recorrente afastar-se do local.

7. Não viu o autor do disparo, como também não viu na posse do recorrente qualquer arma de fogo que, lhe permitisse deduzir que teria sido perpetrado por este.

8. A arma que posteriormente foi apreendida ao recorrente, não foi sujeita a nenhum exame pericial que permitisse constatar que, teria sido usada para disparar contra o canídeo.

9. Em matéria criminal tudo deve ser certo e preciso.... Uma condenação não pode se basear em indícios, e não existindo provas concretas que tenha sido o acusado o autor do crime, há de ser ele absolvido.

10. Da douta sentença recorrida não releva que a conclusão do tribunal “a quo” se tenha alicerçado em fundamentação de forma coerente que, o recorrente tenha sido o autor do disparo.

11. A simples passagem de um qualquer transeunte por aquele local e aproximando-se do animal, não pressupõe que o mesmo era o autor do disparo.

12. Não se condena ninguém, sob pena do sistema judicial se subverter, com base unicamente em juízos de valor, que não são mais que apreciações subjetivas das regras da experiência, da normalidade e senso comum.

13. No caso concreto, a normalidade é, sem dúvida, um qualquer transeunte, neste caso o recorrente, ao ver um animal naquelas condições, parar o carro e verificar o que tinha acontecido ao animal. Daí a imputar-se a autoria do disparo vai uma grande distância.

14. Talvez a penalização que esteja adstrito, seja de ordem moral e cívica, pois abandonou o local sem precaver o socorro ao canídeo, mas nunca atribuir-se a autoria do disparo,

15. O Tribunal “a quo” condenou o recorrente pelo crime de maus tratos a animais na pena de 100 (cem) dias de multa e pelo crime de detenção de arma proibida em 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa.

16. Entende o recorrente, sem condescender no que concerne à ausência total de provas sobre a sua autoria do crime de maus tratos a animais de companhia, que atenta a moldura penal, a condenação é exageradíssima.

17. O recorrente nada contribuindo para a repetição do julgamento, viu a pena que lhe foi aplicada ser agravada (???), com a mesma prova que tinha sido produzida.

18. O recorrente a ser condenado pelos dois crimes de que vinha acusado, nunca o poderia ser (sob pena de grassa injustiça) em pena superior aquela que havia sido arbitrada no julgamento anterior.

19. Na douta sentença recorrida, condenou-se o recorrente na “… pena acessória de privação do direito de detenção de animais de companhia, prevista no artigo 388.º-A, n.º 1 do Código Penal, pelo período de 6 meses.”

20. O recorrente vive da agricultura, tem lavoura, animais de criação (porcos, ovinos e equídeos).

21. A criação e guarda destes animais, implica e obriga necessariamenteà detenção de canídeos, os quais são preparados para essa tarefa, como também para a guarda da propriedade.

22. Condenar-se alguém que faz da sua vida a agricultura e criação daquele género de animais é desconhecer-se o contexto e a realidade do meio onde se está inserido.

23. Quem aplica a justiça deve, mais tem a obrigação, de conhecer essa realidade sob pena da aplicação da mesma ser desfasada da realidade e por conseguinte inócua em relação ao seu objetivo final: dar a cada um o que é seu.

24. É impensável, em pleno Alentejo, na atividade agrícola, em propriedades isoladas, com gado a apascentar, inibir-se a detenção de animais de companhia, neste caso, canídeos.

25. Pelo que não se pode aceitar, sob pena de grave prejuízo para o recorrente que, a este seja aplicada a pena acessória de privação da detenção de canídeos.

NORMAS VIOLADAS: - art.º 127.º do CPP; art.º 32.º n.º 2 da CRP

Nestes termos, nos melhores de Direito e com o sempre mui douto suprimento desse Venerando Tribunal, deve o presente recurso ser considerado procedente e, por via disso, deve a douta sentença recorrida ser parcialmente anulada e decidir-se no sentido da absolvição do recorrente do crime de maus tratos a animais de companhia e da pena acessória da privação de detenção de animais de companhia e/ou caso assim se não entenda reduzir a pena aplicada para os limites da condenação no julgamento repetido e a anulação da pena acessória.»

c. O recurso foi recebido. E a ele respondeu o Ministério Público junto do Tribunal de 1.ª instância, defendendo que:

«1. Não foi violada qualquer norma jurídica substantiva ou processual na douta decisão recorrida.

2. Ao recorrer sobre matéria de facto, como é o caso, do recurso do arguido, aplicam-se as regras constantes do artº. 412º nºs. 3, alíneas a), b) e c) e nº. 4 do CProcPenal, regras essas, que o arguido não observou, pelo que, encontra-se restringida a apreciação desse Venerando Tribunal à matéria de Direito.

3. O Julgador é livre de apreciar a prova segundo as regras da experiência comum e a sua livre convicção. Nisto consiste o princípio da livre apreciação da prova previsto no artº. 127º do C.Proc.Penal.

4. Em face da fundamentação de facto constante da douta sentença recorrida, verifica-se que tal princípio foi observado.

5. A sentença condenatória anteriormente proferida não pode servir de termo de comparação para aquela que foi agora proferida, nem de fundamento de violação das garantias constitucionais do arguido, assim como, também a sua confissão nessa mesma (outra) sessão de julgamento não pode ser tida em conta para efeitos condenatórios na sentença agora proferida, conferindo-se legitimidade ao arguido para discordar da condenação por ter ficado – desta vez – em silêncio, apesar de – da outra vez – ter confessado os factos.

6. Com efeito, quer o anterior julgamento, quer a anterior sentença, são juridicamente inexistentes, por nunca ter ocorrido depósito da sentença anteriormente proferida, não tendo, consequentemente, ocorrido trânsito em julgado, relativamente à mesma, existindo, por outro lado, um despacho transitado em julgado que anula a anterior sessão de julgamento e ordena a repetição de prova.

7. O arguido foi condenado na pena acessória de privação do direito de detenção de animais de companhia, pelo período de 6 meses.

8. Os animais detidos para fins de exploração agrícola, pecuária ou agroindustrial não integram o conceito legal de animais de companhia, nos termos e para os efeitos do disposto no artº. 389º nºs. 1 e 2 do CPenal.

9. Assim, a condenação do arguido na pena acessória – que se impunha e se encontra devidamente fundamentada – em nada interfere com a sua atividade profissional e, por essa razão, também aqui, deve soçobrar a pretensão do arguido.

10. Nestes termos, deverá o presente recurso ser julgado improcedente, mantendo-se, na íntegra, a douta sentença recorrida.

d. Neste Tribunal Superior o Ministério Público pronunciou-se nesse mesmo sentido, pugnando pela manutenção do julgado.

e. No exercício do contraditório o recorrente nada acrescentou. Cumprindo apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Delimitação do objeto do recurso

O objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – artigos 403.º, § 1.º, 410.º, § 2.º e 412.º, § 1.º CPP.

E, nessa sequência, as questões suscitadas pelo recorrente são as seguintes:

i) Não foi feita prova de o arguido ser o autor do disparo causador da morte do canídeo;

ii) A pena aplicada pelo crime previsto no artigo 387.º CP é desajustada dos parâmetros normativos.

2. Na sentença recorrida deram-se como provados e não provados os seguintes factos:

«1. No dia 13.06.2017, pelas 22:20h, o arguido AA, munido de uma arma de fogo, e vendo um animal de raça canina no cruzamento da EN … com a Rua de …, disparou a referida arma de fogo, atingindo o animal em causa.

2. O disparo efetuado pelo arguido veio a atingir o animal no dorso, tendo em seguida abandonado o local, deixando o animal sem qualquer assistência veterinária o que veio a provocar a morte do mesmo.

3. O arguido agiu com o propósito, concretizado, de molestar fisicamente canídeo em causa, causando-lhe dor e sofrimento, em consequência do qual veio a resultar na morte do animal.

4. Mais acresce que, no dia 05.07.2017, pelas 15:22h, detinha na sua posse no interior da casa rural sita na …, 140 cartuchos próprios para armas de fogo da classe D, calibres 12 e 20 e uma espingarda da marca …, modificada, de alma lisa, com dois canos cortados com um cumprimento de 37,50cm, de precursão central e tiro a tiro, de calibre 12, encontrando-se ainda a coronha cortada e apresentando um cumprimento de 21,5cm de molde a permitir a sua ocultação, pertencente à classe A.

5. No mesmo dia, detinha na sua posse, no interior do veículo automóvel da marca …, matrícula …, 29 cartuchos de calibre 12, pertencente à classe D.

6. E ainda, no interior da residência sita na …, em …, 3 cartuchos de calibre 12 e 20, pertencentes à classe D e uma munição de calibre 22, pertencente à classe C.

7. O arguido não era titular de licença de uso e porte de arma.

8. O arguido sabia que para ser portador da arma e munições deveria ter licença para o efeito, e não obstante quis, como fez, detê-las naquelas condições.

9. Agiu, o arguido de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que praticava atos proibidos e punidos por lei.

Resultou ainda provado que:

10. O arguido é gerente de uma empresa … e aufere em média 650€ mensais.

11. Vive sozinho numa casa arrendada e paga duzentos euros de renda com as despesas incluídas.

12. Tem dois filhos maiores e autónomos.

13. Tem o quarto ano de escolaridade.

14. O arguido foi condenado por sentença transitada em julgado em 12-06-2019, no âmbito do processo n.º 207/15.6GFELV, que correu termos no Juízo Local Criminal de Elvas, Comarca de Portalegre, na pena de 260 dias de multa à taxa diária de 6€, pela prática em 12-06-2015, de um crime de burla simples e de um crime de falsificação de boletins, atas ou documentos.

15. O arguido foi condenado por sentença transitada em julgado em 12-07-2018, no âmbito do processo n.º 1016/15.8T9EVR, que correu termos no Juízo Criminal de Elvas, Comarca de Portalegre, pena prática em 28-04-2014, de um crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, na pena de um ano de prisão suspensa por igual período e na pena de 50 dias de multa à taxa diária de 5€, penas já extintas pelo cumprimento.

16. O arguido foi condenado por sentença transitada em julgado em 03-09-2018, no âmbito do processo n.º 363/14.0PBELV, que correu termos no Juízo Local Criminal de Elvas, da Comarca de Portalegre, pela prática em 12-03-2016, de um crime de ofensa à integridade física e de um crime de dano, na pena de 190 dias de multa à taxa diária de 5,50€, pena já extinta pelo cumprimento.

17. O arguido foi condenado por sentença transitada em julgado em 26-10-2020, no âmbito do processo n.º 346/18.1PBELV, que correu termos no Juízo Local Criminal de Elvas, da Comarca de Portalegre, pela prática em 02-04-2018, de um crime de detenção de arma proibida, na pena de um ano e quatro meses de prisão suspensa por um ano e quatro meses.»

3. Motivando-se tal elenco factológico do seguinte modo:

«A convicção do Tribunal assentou no conjunto da prova produzida em audiência de discussão e julgamento e, bem assim, documental, analisada e conjugada criticamente, à luz de regras de experiência e segundo juízos de normalidade e de razoabilidade.

Quanto aos factos 1 e 2, começou por se ter em consideração as declarações proferidas pelas testemunhas B e H, agentes da PSP, as quais resultaram a admissão, do concreto dia e hora do sucedido. Com efeito, a testemunha B recebeu uma notícia que teria havido um disparo no cruzamento da EN … com a Rua de …, sendo que quando aí tinha chegado, encontrou um cão ensanguentado com ferimento de uma bala. Por outro lado, de acordo com o depoimento da testemunha H, este estaria na sua residência na Rua de … e que tinha ouvido um tiro, tendo nessa sequência se deslocado ao seu terraço tendo observado um carro branco, não tendo tido qualquer dúvida de se ter tratado de um tiro – informação também assegurada pelo Auto de notícia de fls. 8-9 bem como pelo depoimento do referido agente autuante, sendo certo que estas duas testemunhas quando chegaram ao local não encontraram aí o arguido.

Atentou-se também no teor do aditamento de fls. 12 ao auto de notícia elaborado por N o qual refere que: “ouvi um estrondo que no momento identifiquei como sendo um disparo de arma de fogo (…) acedi à varanda do imóvel, visualizando que na Estrada de … (…) se encontrava uma viatura imobilizada (embora com o motor a trabalhar e as luzes acesas) de cor branca, de marca … modelo …, tendo de imediato reconhecido sem qualquer dúvida o indivíduo que o conduzia (…) tratando-se de AA. (…) Junto à viatura constatei que se encontrava um animal canídeo de porte grande, parecendo-me no momento ser de raça “pastor alemão” que gemia bastante (…) saliento não ter qualquer dúvida que o indivíduo era efetivamente o suspeito identificado no auto de notícia, pois conheço o mesmo desta cidade, bem como conheço a sua viatura”.

Valorando os factos conhecidos, à luz do contexto em que ocorreram e com recurso às regras da experiência comum é possível extrair conclusões relativas a factos que não foram objeto de prova direta, mas que nem por isso se deverão considerar sem mais como não provados.

Vejamos.

O comportamento do arguido apurado pelo depoimento da testemunha H que se encontrava perto da rua indicada nos factos provados, que ouviu um disparo sendo que mais tarde terá encontrado um animal inanimado nesse local, em conjugação com o teor do aditamento ao auto de notícia elaborado por N a fls. 12, mostra que o arguido esteve no dia 13.06.2017 junto a um animal de raça canina no cruzamento da EN … com a Rua de …, permitindo concluir, pelas regras da experiência, da normalidade e senso comum, que a atuação do arguido naquele local e, a final, que pretendia atingir o corpo do animal em apreço.

Perante a ausência de um qualquer contraindício é esclarecedor – tendo em atenção os depoimentos das testemunhas e por nos autos, não constar outra explicação minimamente razoável para o sucedido.

A ligação entre todas estas circunstâncias inculca uma justificação: uma testemunha ouviu um disparo de uma arma de fogo, e a pessoa que elaborou o aditamento ao auto de notícia que além de também ter ouvido o disparo fez constar ter-se deslocado de imediato (dois a três segundos depois) à varanda de sua casa e avistado um indivíduo perto de um cão já ensanguentado e a gemer, não tendo qualquer dúvida que se tratava do arguido.

Por outro lado, do teor do relatório forense médico veterinário é referido que o “disparo foi efetuado a muita curta distância, atingido o lado direito do tórax do canídeo, tendo a maioria dos chumbos saído, pelo lado esquerdo do tórax” (fls. 97).

Ou seja, pela prova produzida em julgamento, para além da prova documental junta aos autos, é possível a colocação do arguido no local, permitindo o Tribunal imputar-lhe a autoria do engenho e o ato de disparar uma arma de fogo contra o canídeo.

Em face do acabado de referir existe prova que consolida a imputação, que objetiva a autoria do facto danoso.

E, naturalmente, a lógica dita que o arguido não poderia deixar de querer e prever, ao agir como agiu, que por via das suas características de uma arma de fogo poderia vir a causar do animal em causa, como efetivamente veio a suceder. Por isso, o seu comportamento revela conhecimento e vontade na realização do tipo de ilícito em causa, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, nos termos provados em e 3 e 9.

Teve-se ainda em consideração o teor dos documentos de fls. 10 e 11, do qual se extrai que o animal foi atingido no dorso.

Quanto aos pontos 4 a 9 dos factos provados, a convicção do tribunal fundou-se, em primeira linha, na análise do Auto de notícia por detenção de fls. 49 e aos autos de busca de fls. 55,57 e 62, tendo o seu teor, no essencial, sido confirmado pelos depoimentos dos três Agentes da PSP, J, N e A. Tais depoimentos revelaram-se coerentes entre si, esclarecendo os moldes em que foi organizada e em que decorreu a operação de busca e apreensão, bem como os procedimentos normais/habituais respetivos, sendo certo que nada nos autos há que nos leve a crer que não tenham sido observados tais procedimentos na busca em causa nos autos.

Sem embargo, em conjugação com a prestação de declarações dos senhores agentes da PSP, teve-se ainda em consideração o teor dos documentos a fls. 55, 57, 62 e 70-79.

A nível subjetivo, a convicção do Tribunal extraiu-se ainda com base nas regras de experiência comum e da normalidade social, atendendo à concreta conduta empreendida pelo arguido, sendo certo que qualquer cidadão medianamente diligente, como se presume ser o caso do arguido, sabe que é perigoso não podendo, por isso, deter todos os objetos supra indicados, sem se encontrar autorizado para o efeito, podendo incorrer, assim, em responsabilidade criminal.

Ora, considerando tais depoimentos e valorando-os conjugadamente com os demais meios de prova, designadamente os autos de busca e apreensão já mencionados, perpassando todos os elementos probatórios pelas regras da experiência comum, o tribunal concluiu, que aquelas armas e munições estavam na livre disponibilidade do arguido, detendo-as ele próprio, podendo usá-las, quando assim bem entendesse. Com efeito, há que considerar, em primeiro lugar, que as armas e munições foram encontradas na casa do arguido e no seu carro - espaços próprios e reservados à vida íntima das pessoas.

Os factos n.º 10 a 13 resultaram provados com base nas declarações do arguido as quais foram prestadas de modo espontâneo pelo que o tribunal lhes deu credibilidade.

Os factos 14 a 17 resultaram provados com base na valoração do teor do CRC do arguido a fls. 153-154-V.»

4. Questão prévia – da inconstitucionalidade material da norma incriminatória prevista nos artigos 387.º, § 1.º e 2.º, do Código Penal (redação aplicável, da Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto)

Cabe, de introito, assinalar dois aspetos: - o arguido não foi julgado duas vezes, porquanto, como os autos dão basta nota. Só uma sentença foi efetivamente proferida no processo (e é esta que está sob recurso); - o arguido recorre apenas relativamente à condenação pelo crime previsto no artigo 387.º do Código Penal; pelo que a condenação pelo crime de detenção de arma proibida se mostra já transitada em julgado.

Os factos imputados ao arguido, com referência ao artigo 387.º do Código Penal, foram praticados no dia 13 de junho de 2017, devendo, pois, nos termos do disposto nos artigos 2.º e 3.º CP, ter-se em vista a redação deste artigo, com a redação vigente àquela data, isto é, com a redação que a tal preceito foi dada pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto.

A incriminação em referência afigura-se-nos inconstitucional, por duas ordens de razões:

1. Por não encontrar na ordem axiológica jurídico-constitucional uma imposição ou uma necessidade de tutela (penal) do bem-estar animal, à luz do princípio da proporcionalidade em sentido amplo (1), em termos que possa justificar a restrição de direitos fundamentais que lhe vem impregnada, conforme resulta no § 2.º do artigo 18.º da Constituição contém resulta.

Com efeito, apesar de a Constituição atribuir ao legislador parlamentar larga margem de conformação das ações ou omissões criminalmente relevantes, esse poder de definir novos crimes é um poder constitucionalmente vinculado, não prescindido do referencial axiológico-constitucional.

Num Estado de direito democrático os bens jurídicos elegíveis pelo legislador penal hão de encontrar-se refletidos num «valor jurídico-constitucionalmente reconhecido» (2), isto é, possuir dignidade constitucional e ser comprovada a necessidade de tutela à luz do princípio da proporcionalidade em sentido amplo.

O conceito de bem jurídico não encontra definição consensual na doutrina penal de matriz europeia continental. Tal conceito entra na dogmática penal no séc. XIX, em decorrência da teoria do contrato social (3).

Entre nós Jorge de Figueiredo Dias (4) define-o como constituindo «a expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objeto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso». Ou «concretizações dos valores constitucionais expressa ou implicitamente ligados aos direitos e deveres fundamentais e à ordenação social, política e económica.» (5)

Han-Heirich Jescheck y Thomas Weigend (6) entendem-no como «um valor abstrato de ordem social, juridicamente protegido, cuja defesa interessa à comunidade e cuja titularidade tanto pode ser individual como comunitária.» A doutrina mais moderna, referem estes mesmos autores, releva, com razão, que os bens jurídicos não devem compreender-se como se de bens materiais se tratasse, porque se reportam às relações das pessoas com os interesses mais elevados da vida comunitária (7).

Bernd Schünemann, por seu turno, refere tratar-se de um conceito tipológico de elevado nível de abstração, em que o respetivo núcleo se constituirá, por um lado, pelos direitos inatos do ser humano, e, por outro, pela essentialia do Estado de Direito; sendo limitado pelo contratipo que é caracterizado pela imposição de certas formas de vida, por via do direito penal, de que a história regista significativos exemplos (v.g. a repugnante execução de pessoas que se recusaram a acreditar num dado dogma).

Claus Roxin (8) alude a «realidades ou fins úteis para o desenvolvimento individual e para o livre desenvolvimento da sua personalidade, como parte de um sistema orientado para esse objetivo ou para o funcionamento do próprio sistema» (9). Ou também, que os bens jurídicos são uma combinação de valores fundamentais por referência à axiologia constitucional; que são como entes que visam o bom funcionamento da sociedade e as suas valorações éticas, sociais e culturais.

«Os bens jurídicos merecedores de tutela penal são ainda aqueles que, apesar de não se encontrarem positivados na Constituição, são, ainda assim, hermenêuticamente discerníveis e isoláveis a partir das suas normas (10), encaradas estas como partes do todo em que se exprime a ordenação unitária da vida política e social de uma determinada comunidade estadual.» (11)

Imprescindível é, pois, que haja uma certa de congruência entre o bem jurídico selecionado pelo legislador penal e a ordem axiológica jurídico-constitucional.

Sucede, porém, que no ilícito típico a que nos vimos referindo, seja pela respetiva conformação descritiva, seja ainda pela sua inserção sistemática não se evidencia o bem jurídico que visa proteger! E com isso, inapelavelmente, sai vulnerado o artigo 27.º, com referência ao § 2.º do artigo 18.º da Constituição.

Há, claro, quem não comungue destas premissas, sobrevalorizando o princípio democrático (o princípio da maioria), em detrimento de uma conceção liberal e institucionalista da democracia e da organização do Estado, com seus freios e contrapesos, com clara distinção entre o que são maiorias conjunturais e pactos de vida em comum, conforme referencia Maria João Antunes. (12)

Nesta linha e em expressa referência ao temário do ilícito de maus tratos a animais de companhia, indica-se a opinião de Jorge Reis Novais (13), que considera, justamente, que o legislador ordinário é livre de conformar os tipos de crime que entenda. Concretamente afirmando que «a Constituição serve para garantir direitos fundamentais e para assegurar a separação de poderes e a organização do poder político. Não é um repositório ou um catálogo de bens jurídicos de onde se deduzam mecanicamente uma pretensa hierarquia entre valores onde uma sociedade se revê.»

A melhor síntese que expressa o nosso pensamento sobre este assunto, consta do preclaro voto proferido pelo Cons. Gonçalo Almeida Ribeiro, no acórdão n.º 867/2021, de 10 de novembro de 2021, do Tribunal Constitucional, (14) no qual se plasmou o seguinte entendimento: «A lei democrática exprime a vontade da maioria conjuntural legitimada nas urnas. Os atos legislativos não traduzem a unidade política dos cidadãos; ao invés, refletem o pluralismo das suas conceções sobre a sociedade justa e o bem comum, e o imperativo de que a controvérsia política que daí resulta seja arbitrada periodicamente através dos processos eleitorais da democracia representativa. A Constituição, pelo contrário, consubstancia um pacto de vida comum entre cidadãos divididos por compromissos mundividenciais concorrentes, a forma através da qual a pluralidade irredutível que é a matéria da comunidade política se estrutura numa unidade estável.»

É esta também a opinião que maioritariamente vemos sustentada pela doutrina nacional e o caminho que vem trilhando o Tribunal Constitucional. (15)

2. A segunda razão pela qual entendemos que o artigo 387.º CP é inconstitucional prende-se com o princípio da legalidade penal, expresso pelo brocardo latino nullum crimen, nulla poena, sine lege stricta, a que se reporta o § 1.º do artigo 29.º da Constituição. Decorre deste princípio que a norma conformadora do tipo de ilícito penal contenha os seus elementos objetivos e subjetivos bem identificados, por forma a que qualquer potencial infrator conheça (possa conhecer) bem a conduta ilícita.

Sobre esta matéria ensina Jorge de Figueiredo Dias, que: «importa que a descrição da matéria proibida e de todos os outros requisitos de que dependa em concreto uma punição seja levada até um ponto em que se tornem objetivamente determináveis os comportamentos proibidos e sancionados e, consequentemente, se torne objetivamente motivável e dirigível a conduta dos cidadãos (...) Do mesmo modo, se é inevitável que a formulação dos tipos legais não consiga renunciar à utilização de elementos normativos, de conceitos indeterminados, de cláusulas gerais e de fórmulas gerais de valor, é indispensável que a sua utilização não obste à determinabilidade objetiva das condutas proibidas e demais elementos de punibilidade requeridos, sob pena de violação irremissível, neste plano, do princípio da legalidade e sobretudo da sua teleologia garantística.»

Ora, a descrição típica do ilícito em referência apresenta um nível de indeterminação que é incompatível com o princípio enunciado.

Basta ver a indeterminação do que possa cogitar-se serem «quaisquer outros maus tratos físicos» e a não menor indeterminação do que seja o próprio objeto da infração («animal de companhia»).

Com isso saindo vulnerado o artigo 29.º, § 1.º da Constituição.

Não se questiona, evidentemente, a necessidade de proteção jurídica dos animais e da punição dos atos de crueldade sobre eles. O que nos suscita sérias reservas, desde logo de constitucionalidade, nos termos sucintamente sobreditos, é a mobilização do direito penal de justiça, para esse desiderato. O Tribunal Constitucional já se pronunciou, pelo menos, duas vezes pela inconstitucionalidade material do artigo 387.º CP, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 e agosto: através do acórdão 867/2021, da 3.ª Secção, no dia 10 de novembro de 2021, do qual foi relator o Cons. Lino Rodrigues Ribeiro, considerando estarem violados os artigos 27.º e 18.º, § 2.º, da Constituição; e da Decisão Sumária, n.º 344/2022, também da 3.ª Secção, proferida a 5 de maio de 2022, da qual foi relator o Cons. Afonso Patrão, considerando igualmente estarem vulnerados os artigos 27.º e 18.º, § 2.º, da Constituição. Em suma: porque consideramos materialmente inconstitucional o artigo 387.º CP, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, por violação dos artigos 27.º e 18.º, § 2.º e 29.º, § 1.º, da Constituição, recusamos a sua aplicação e, em consequência, concluímos pela inverificação do ilícito que se imputava ao arguido, devendo por tal razão o mesmo ser dele absolvido. Daí que, embora que por razão diversa daquelas que vieram esgrimidas no recurso, dar-se-lhe-á provimento.

III – DISPOSITIVO

Destarte e por todo o exposto decidimos:

a) Declarar materialmente inconstitucional o artigo 387.º CP, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, por violação dos artigos 27.º e 18.º, § 2.º e 29.º, § 1.º, da Constituição;

b) E por tal razão, absolver o recorrente da prática do crime de maus tratos a animais de companhia.

c) Sem custas (artigo 413.º, § 1.º CPP a contrario).

Évora, 7 de junho de 2022

J. F. Moreira das Neves (relator)

José Proença da Costa (adjunto)

Gilberto da Cunha (presidente)

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1 Faria Costa, apud, Maria João Antunes, Constituição, Lei Penal e Controlo da Constitucionalidade, 2021 (7.ª edição - reimpressão), Almedina, pp. 57.

2 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte geral, Tomo I, 2019, Gestlegal, pp.136.

3 Cf. Han-Heirich Jescheck y Thomas Weigend, Tratado de Derecho penal, Parte General, 5.ª ed., 2002, Comares Editorial, pp. 274.

4 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, tomo I, Gestlegal, 3.ª Ed., 2019, pp. 130.

5 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, tomo I, Gestlegal, 3.ª Ed., 2019, pp. 137.

6 Tratado de Derecho penal, Parte General, 5.ª ed., 2002, Comares Editorial, pp. 275.

7 Op. e loc. cit.

8 Cf. Bernd Schünemann, Direito Penal, Racionalidade e Dogmática, pp. 74/75, Marcial Pons, São Paulo, 2018;

9 Claus Roxin, Strafrecht AT 1, 3.ª Ed., 1997, § 2.º, nm. 9, cit, por Knut Amelung, El concepto «bien jurídico» en la teoria de la protección penal de bienes jurídicos. La Teoria del Bien Jurídico - ?Fundamento de Legitimación del derecho penal o juego de aborios dogmático?, Roland Hefendehl (ed), Marcial Pons, Ediciones Jurídicas y Sociales, S. A., 2007; Claus Roxin, El concepto de bien jurídico como instrumento de crítica legislativa sometido a examen, Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología (RECPC) 15-01 (2013): http://criminet.ugr.es/recpc

10 Cf. Augusto Silva Dias, «Delicta in Se» e «Delicta Mere Prohibita», 2008, Coimbra Editora, pp. 650 e ss.)

11 Declaração de voto da Cons. Joana Fernandes Costa, acórdão TC 867/2021, da 3.ª Secção, de 10nov2021.

12 Maria João Antunes, Constituição, Lei Penal e Controlo da Constitucionalidade, 2021 (7.ª edição - reimpressão), Almedina.

13 No diário Público, do dia 23nov2021.

14 Aí se referindo que tal opinião já fora lavrada noutra declaração de voto, no proc. 464/2019 do mesmo Tribunal.

15 Veja-se, por todos, Maria João Antunes, ob. cit. pp. 51 ss.