Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
496/18.4T9EVR.E1
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: BURLA TRIBUTÁRIA
OMISSÃO IMPURA
Data do Acordão: 03/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Tratando-se de um crime de resultado, a falta de previsão expressa na redação do n.º 1 do artigo 87.º do RGIT da burla tributária omissiva não afasta a possibilidade de cometimento do crime por omissão, posto que se revele possível recorrer à extensão da tipicidade decorrente aplicação da cláusula de equiparação da omissão à ação contida no artigo 10.º do CP, demonstrando-se na situação concreta a existência de um dever jurídico que pessoalmente obrigue o agente a evitar o resultado e concluindo-se, com segurança, através de uma valoração autónoma da ilicitude do crime, que “o desvalor da omissão corresponde no essencial ao desvalor da ação”.
II - A não comunicação à Segurança Social de circunstância que determinaria a cessação do pagamento das prestações de subsídio de desemprego que fora atribuído à arguida tem absoluta correspondência, na referida valoração autónoma da ilicitude do crime, com o desvalor da ação que poderia ter sido levada a efeito como o mesmo propósito e com o mesmo resultado, qual seja o da concretização pela Segurança Social de uma atribuição patrimonial indevida ao agente.
III - A “atribuição patrimonial” para efeitos do preenchimento do preceito incriminador da burla tributária consubstancia-se no efetivo pagamento das prestações periódicas do subsídio social de desemprego e não no deferimento do pedido respetivo.
(Sumário da relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - Relatório.
Nos presentes autos de processo comum singular que correm termos no Juízo de Instrução Criminal de Évora, do Tribunal Judicial da Comarca de Évora, com o n.º 496/18.4T9EVR, foi proferido despacho de não pronúncia dos arguidos CAR, nascido a 03/11/1977, e ABE, nascida a 26/08/1968, (…), pela prática, em coautoria e na forma consumada, de um crime de burla tributária, previsto e punido pelo artigo 87.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05/06, na sua redação atual.
Inconformado com tal decisão, veio o Ministério Público interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:
“1. A decisão instrutória proferida pelo Mmº JIC enferma do vício de incorreta interpretação do direito aplicável ao caso concreto;
2. O crime de burla tributária, previsto no art.º 87º do Regime Geral das Infrações Tributárias, não é refratário à conduta por omissão, desde que se encontrem verificados os pressupostos do artºs 10º do Código Penal;
3. A conduta omissiva do beneficiário do subsídio de desemprego, por via da não comunicação da alteração das condições que estiveram por base na atribuição do respetivo subsídio, configura um meio fraudulento adequado e idóneo para determinar a administração da segurança social a representar uma realidade inexistente, para os efeitos do preceituado no art.º 87º, nº 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias;
4. Sobre o beneficiário do subsídio de desemprego, e sobre todo aquele que o contrata sabendo deste circunstancialismo, impende o especial dever jurídico de comunicar à administração da segurança social qualquer facto suscetível de determinar a cessação do pagamento das prestações do subsídio de desemprego;
5. O especial dever jurídico de comunicar à administração da segurança social, qualquer facto suscetível de determinar a cessação do pagamento das prestações do subsídio de desemprego, nos termos do preceituado no art.º 42º, nº 2, ali., a), b) e c), do Decreto-lei nº 220/2006, de 03/11, integra o pressuposto de aplicação do artºs 10º, nº 2 do Código Penal;
6. O beneficiário que aufere subsídio de desemprego e que se emprega em momento posterior à sua atribuição, não comunicando esse facto à administração da segurança social, dentro do prazo estabelecido para o efeito, nos termos dos art.º 42º, nº 2, ali. a) e nº 3, do Decreto lei nº 220/2006, de 03/11, incorre na prática do crime de Burla Tributária, p. e p. no art.º 87º do Regime Geral das Infrações Tributárias, independentemente do valor com que se locupletou;
7. O mesmo se diga em relação aquele que lhe deu emprego sabendo desta circunstância, à qual não podia ser alheio, tanto mais que, existem obrigações que pendem sobre a entidade patronal (como a de realizar os descontos para a Segurança Social), que não concretiza sem primeiro comunicar a contratação.
8. Nesta medida, o valor dos descontos retidos pela entidade patronal, corresponde ao prejuízo causado à Segurança Social e ao enriquecimento que a entidade patronal auferiu.
9. Donde, é nosso entendimento, salvo melhor opinião, que se verificam os elementos objetivos e subjetivo do tipo de crime em causa relativamente aos arguidos ABE e CAR.
10. Assim, no nosso entendimento o despacho de não pronúncia proferido viola os seguintes preceitos legais: artigo 87.º do RGIT, 10.º, n.º 2 do CP e 42º, nº 2, alí. a), b) e c), do Decreto-lei nº 220/2006, de 03/11.
11. Por este motivo, deve o mesmo ser revogado e proferido despacho de pronúncia quanto aos arguidos ABE e CAR.”
Termina pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que pronuncie ambos os arguidos pela prática, em coautoria e na forma consumada, de um crime de burla tributária, previsto e punido pelo artigo 87.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 5/2001, de 05/06, na sua redação atual, pelo qual foram acusados.
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O recurso foi admitido.
Notificados os arguidos da interposição do recurso, os mesmos não apresentaram qualquer resposta.
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O Exmo. Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo-se pronunciado no sentido da sua procedência.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
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II – Fundamentação.
II.I Delimitação do objeto do recurso.
Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.
Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.
No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, é apenas uma a questão a apreciar e a decidir:
- Saber se, face à matéria de facto considerada suficientemente indiciada nos autos, se encontram verificados os pressupostos de que depende a imputação aos arguidos de um crime de burla tributária, previsto e punido pelo artigo 87.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05/06 na sua redação atual e se, consequentemente, os mesmos deverão ser pronunciados pela prática em coautoria do referido crime.

II.II - A decisão recorrida.
Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que releva para a apreciação do recurso:
“(…) 1) FACTOS SUFICIENTEMENTE INDICIADOS:
1. No dia 15 de Janeiro de 2016, a arguida ABE requereu, junto do Centro de Emprego de Évora, a atribuição do subsídio social de desemprego, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 220/2006, de 03/11, na sua redação atual, o qual lhe foi deferido, com início em 15 de Janeiro de 2016, pelo período de 675 (seiscentos e setenta e cinco) dias, no montante diário de €13,97 (treze euros e noventa e sete cêntimos).
2.A pretensão da arguida foi deferida em função da situação de desemprego por si invocada.
3. Sucede que a arguida ABE iniciou, a 8 de Fevereiro de 2016, atividade laboral remunerada para a empresa NHA, cuja gerência era exercida pelo arguido CAR, tendo sido por este contratada.
4. Acordaram depois os arguidos ABE e CAR em não comunicar à Segurança Social o início daquela atividade laboral remunerada por parte da arguida para a empresa gerida pelo arguido.
5. Assim, a arguida continuou a receber, mensalmente, da Segurança Social a referida prestação de desemprego até Setembro de 2016.
6. Beneficiou a arguida de subsidio de desemprego no montante total de €3.246,40 (três mil, duzentos e quarenta e seis euros e quarenta cêntimos), correspondente ao período que mediou entre Fevereiro e Setembro de 2016, período de tempo em que a arguida cumulou o subsidio de desemprego com a retribuição decorrente do contrato de trabalho com a empresa gerida pelo arguido CAR.
7. A Segurança Social apenas continuou a atribuir subsídio de desemprego à arguida ABE a partir de Fevereiro de 2016 na convicção de que a arguida se mantinha na situação de desemprego uma vez que a mesma não lhe deu conhecimento, como sabia estar obrigada, de que a situação de desemprego havia cessado em 8 de Fevereiro de 2016.
8. Com tal omissão, logrou a arguida ABE fazer com que continuasse a beneficiar da atribuição da prestação de desemprego, bem sabendo que, a partir de 8 de Fevereiro de 2016 a ela não tinha mais direito.
9. Auferiu a arguida ABE a referida prestação social bem sabendo os arguidos que era indevida, mas ainda assim agiram conforme descrito, querendo e logrando alcançar beneficio ilegítimo.
10. Não desconheciam os arguidos que, ao iniciar atividade laboral remunerada, o beneficiário de prestação de desemprego está obrigado a comunicar à Segurança Social o inicio da mesma.
11. E era, também, do conhecimento dos arguidos que o subsídio de desemprego é uma prestação social que visa a reparação na eventualidade de desemprego dos beneficiários abrangidos pelo regime geral.

2) FACTOS NÃO SUFICIENTEMENTE INDICIADOS:
- O arguido CAR não comunicou a admissão da arguida como sua trabalhadora à Segurança Social para que esta continuasse a receber a referida prestação de desemprego.
- Em 8., CAR.
- Os arguidos agiram da forma descrita, o que fizeram livre, deliberada e conscientemente bem sabendo serem as suas condutas proibida e punidas por lei, tendo os arguidos a necessária capacidade para se determinarem de acordo com essa avaliação.
(…)
A factualidade não indiciada decorre de falta de prova suficiente para afirmar a sua indiciação e o tribunal abstém-se de pronunciar quanto à matéria contraditória, valorativa e conclusiva e sem relevo para a decisão a proferir.
Particularmente, não existem elementos que indiciem a falta de comunicação da entidade empregadora ou que a falta de comunicação de CAR determinasse a convicção da Segurança Social.
Em síntese, não há qualquer elemento de prova testemunhal e/ou documental que permita concluir pela intervenção do arguido no procedimento atinente à atribuição de subsídio de desemprego. De igual modo, não existem elementos para afirmar o conhecimento e a vontade delituosos.
De facto, pode ter beneficiado reflexamente da situação mas esse aspeto não é elemento do tipo criminal.
Ademais, constituindo o emprego de ABE uma circunstância superveniente ao requerimento de pedido de atribuição que impunha a comunicação à Segurança Social, não se logra em criar a convicção relativa ao dolo do tipo e da culpa desta arguida, tendo a arguida persistido, censuravelmente, na violação do dever de comunicação sancionado a título de contraordenação.
4) DO ASPECTO JURÍDICO
Os arguidos estão acusados da prática de um (01) crime de burla tributária, previsto e punido pelo artigo 87.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias.
Dispõe o n.º 1 do artigo 87.º da Lei n.º 15/01, de 05 de Junho, que aprovou o Regime Jurídico das Infrações Tributárias, que “quem, por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos, determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efetuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro é punido com prisão até três anos ou multa até 360 dias”. A dignidade penal do ilícito tributário no ordenamento jurídico português resulta da importância do sistema fiscal como veículo privilegiado de realização da justiça retributiva já que, nos termos do artigo 103.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa aquele visa não só a satisfação das necessidades financeiras do Estado e demais entidades públicas, mas também uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza (cfr. Augusto Silva Dias, in “Crimes e contraordenações fiscais”, IDPEE/FDUC, Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, vol. II – Problemas Especiais, p. 439 ss.).
O bem jurídico protegido por este tipo legal de crime consiste, para além da integridade do património do Estado, a salvaguarda da confiança das administrações tributária e da segurança social sobre a capacidade contributiva dos contribuintes.
Os elementos constitutivos do crime de burla tributária são os seguintes:
i) Uso de erro ou engano sobre os factos, provocado por meios fraudulentos, como falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante;
ii) Que sejam aptos ou idóneos a determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efetuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro.
É, ainda, um crime material ou de resultado, pelo que a efetiva atribuição patrimonial e o correspondente enriquecimento ilegítimo interessam à sua consumação.
Trata-se de um crime de execução vinculada, exige-se, assim, que o crime seja cometido através um especial modo de agir, no concreto por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos (cfr. Isabel Marques da Silva, in “Regime Geral das Infracções Tributárias”, Cadernos IDEFF, n.º 5, 3.ª Edição, Almedina, pág. 160).
Como se relata no Ac RE de 8 de Novembro 2005, processo n.º 1598/05-1, disponível em www.dgsi.pt, “de acordo com a configuração do tipo, exige-se o uso de um meio fraudulento «activo», ou seja, uma conduta astuciosa comissiva que directamente induziu o erro ou engano e não uma mera conduta omissiva do agente”.
O tipo subjectivo integra um crime doloso, podendo o dolo assumir qualquer das suas modalidades (directo, necessário ou eventual) – cf. art.º 14 do Código Penal.
Nos termos do artigo 26.º do Código Penal “é punível como autor quem executar o facto (…) ou tomar parte direta na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros (…)”. No tocante à forma de participação do agente no crime, a coautoria consiste na execução conjunta do facto por uma ou mais pessoas com base num acordo dos agentes sobre a divisão de tarefas com vista à realização do facto. Foi, assim, consagrada, entre nós, a teoria do domínio do facto funcional.
Assim, para se verificar a participação criminosa sob a forma de coautoria é necessário que:
a) Se verifique uma decisão conjunta ou um acordo, tendo em vista a obtenção de um determinado resultado e uma execução igualmente conjunta;
b) A participação direta na execução do facto, conjuntamente com outro ou outros, num exercício conjunto do domínio do facto, numa contribuição objetiva para a sua realização.
Nesta execução conjunta não é indispensável que o agente intervenha em todos os atos ou tarefas em ordem a ser alcançado o resultado final, antes relevando que, a atuação de cada agente, ainda que parcial, se integre no todo e conduza essencialmente à consumação do tipo legal de crime que se tenha em vista.
Em matéria jurisprudencial, as posições dos tribunais superiores dividem-se a respeito da responsabilidade jurídico-criminal do beneficiário que não comunica circunstâncias cessantes da prestação do subsídio de emprego.
Numa corrente, a jurisprudência considera tratar-se de responsabilidade contraordenacional, como foi o caso dos acórdãos proferidos no proc. n.º 9/06.0 TALLE.E1, de 30-10-2014, (relatado por FILOMENA SOARES), 16/12.4TDEVR.E1, de 28-01-2014 (relatado por SÉNIO ALVES) e proc. n.º 1598/05-1, de 8-11-2005 (relatado por FERNANDO RIBEIRO CARDOSO).
Noutra corrente, existem acórdãos que levam a enquadrar a conduta omissiva do agente na prática do crime de burla tributária nos casos abrangidos pelo art. 10.º, n.º 2, do Código Penal, conforme, a título de exemplo, o acórdão proferido no proc. n.º 1298/11.4TAABF.E1, de 08-01-2013 (relatado por SÉRGIO CORVACHO).
Independentemente da posição sobre a burla tributária enquanto crime comissivo por omissão, entendemos no que respeita ao arguido requerente da instrução a conduta imputada na acusação e vertida em parte na factualidade não tem relevância penal porquanto:
(i) Além do assentimento, o arguido CAR não teve qualquer intervenção no procedimento de atribuição da prestação do subsídio de desemprego.
Falece a extensão da tipicidade através do art.º 26.º do Código Penal que exige ao agente que tome parte directa na sua execução (do facto criminoso), para além do acordo ou juntamente com outro ou outros.
(ii) A acusação não alega, e nem se demonstra, que o arguido CAR tinha – estruturando-se o crime comissivo por omissão – o dever de garante em relação àquela concreta prestação de subsídio e à Segurança Social.
Falece a extensão da tipicidade pelo art.º 10.º, n.º2, do Cód. Penal.
(iii) Em face do acórdão proferido no proc. n.º 1298/11.4TAABF.E1, não é assacada qualquer responsabilidade jurídico criminal à entidade empregadora. Mutatis mutandis, não poderá ser assacada ao aqui arguido.
(iv) O arguido CAR não é beneficiário da atribuição do subsídio de desemprego e não tinha a obrigação de comunicação de qualquer circunstância que determinasse a suspensão ou a cessação da prestação.
(v) O arguido CAR foi sempre terceiro e sem intervenção no procedimento de atribuição do subsídio de desemprego.
(vi) A sua omissão nada determinou junto da Segurança Social.
(vii) A relação de trabalho não se encontra constituída entre a arguida ABE e CAR, mas sim entre ABE e NHA, Lda.
(viii) A responsabilidade das entidades patronais – in casu, NHA, Lda, e não CAR – apenas é susceptível de integrar o disposto no art.º 106.º, do RGIT, mas quando a vantagem patrimonial supere o valor de €7.500,00.
(ix) A vantagem patrimonial em questão não é superior a €7.500,00.
Em síntese, e face da factualidade considerada suficientemente indiciada e os argumentos expendidos, não estão reunidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo criminal relativamente ao arguido CAR.
O arguido CAR não participou em qualquer dos factos típicos e não determinou o erro da Segurança Social.
No que respeita à arguida não requerente da instrução, a factualidade suficientemente indiciada apenas tem relevância contraordenacional. Trata-se de um motivo superveniente para a cessação do subsídio de desemprego e integra a violação de dever de comunicação durante o período de concessão da atribuição patrimonial conforme consta dos arts. 42.º e 64.º do Decreto-lei n.º 220/2006.
A previsão legal do art.º 42.º, n.º2, do Decreto-lei n.º 220/2006, de 3 de Novembro afasta a punição do crime de burla tributária por omissão, por aplicação conjunta do art.º 10.º, n.º1, in fine, do Cód. Penal e art.º 87.º do RGIT, à situação em apreço.
E, ressalvado o devido respeito por opinião contrária, concordamos com a jurisprudência maioritária do Tribunal da Relação de Évora, a qual aderimos na íntegra.
Consequentemente, a arguida ABE não cometeu o crime de burla tributária previsto no art.º 87.º do RGIT.
Os autos não fornecem elementos probatórios suficientes para o preenchimento dos crimes supra referenciados, não permitindo efetuar um juízo de provável de condenação, e devem os arguidos ser não pronunciados.(…)”.

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II.III - Apreciação do mérito do recurso.
Nos presentes autos vêm os arguidos acusados e não pronunciados pela prática, em coautoria e na forma consumada, de um crime de burla tributária, previsto e punido pelo artigo 87.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05/06, na sua redação atual.
Dispõe o artigo 87.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05/06 na sua redação atual, nos seguintes termos:
“Artigo 87.º
Burla tributária
1 - Quem, por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos, determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efetuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro é punido com prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2 - Se a atribuição patrimonial for de valor elevado, a pena é a de prisão de 1 a 5 anos para as pessoas singulares e a de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas coletivas.
3 - Se a atribuição patrimonial for de valor consideravelmente elevado, a pena é a de prisão de dois a oito anos para as pessoas singulares e a de multa de 480 a 1920 dias para as pessoas coletivas.
4 - As falsas declarações, a falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou a utilização de outros meios fraudulentos com o fim previsto no n.º 1 não são puníveis autonomamente, salvo se pena mais grave lhes couber.
5 - A tentativa é punível.”
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Como nota prévia, e com vista a melhor compreendermos o tipo penal ao qual se reportam as questões de natureza jurídica que somos chamados a apreciar no presente recurso, façamos uma breve referência aos elementos constitutivos do tipo e aos bens jurídicos que a sua previsão visa tutelar.
Os bens jurídicos protegidos pela incriminação são os patrimónios da administração tributária e da administração da segurança social.
Constituem elementos objetivos deste tipo legal:
- O recurso a falsas declarações, falsificação, viciação de documento, ou outros meios fraudulentos;
- O nexo de causalidade entre tais atuações e a situação de erro ou engano que leva às atribuições patrimoniais efetuadas pela administração tributária ou da segurança social;
- O enriquecimento ilegítimo do agente ou de terceiro.[1]
O crime de burla tributária aproxima-se do crime de burla previsto no artigo 217.º do Código Penal, sendo certo que, pese embora não refira expressamente “o erro ou engano astuciosamente provocado”, esse elemento encontra-se presente na referência aos “meios fraudulentos”, obviamente suscetíveis de provocar o erro ou engano que constitui elemento do tipo penal de burla previsto no artigo 217º do CP.
O engano referido no artigo 87.º do RGIT continua a equivaler à simples mentira[2] e, ao invés do que sucede com a burla comum, não se exige que os atos praticados pelo burlado tenham que causar-lhe um prejuízo patrimonial, sendo suficiente que o determinem a efetuar atribuições patrimoniais que, sem a atuação do agente, não teriam lugar.
Num primeiro momento, deve verificar-se uma conduta que diretamente induza o erro ou engano. Essa conduta pode, como a própria norma indica, consubstanciar-se numa “falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante”, falsificação essa que integra, por sua vez, a tipicidade do tipo legal de crime de falsificação de documento, encontrando-se as respetivas normas penais, numa relação de concurso aparente por consunção (nº 4 do artigo 87º do RGIT).
Num segundo momento deve verificar-se a atribuição patrimonial de que resulte um enriquecimento ilegítimo do sujeito ativo ou de terceiro. Em ambos os momentos, deve existir uma sucessiva relação de causa-efeito.
O último elemento objetivo do tipo consiste na obtenção pelo agente ou por terceiro de um enriquecimento ilegítimo, na medida em que este é relevante como elemento constitutivo do crime.
No que concerne ao elemento subjetivo do tipo, o crime de burla tributária apresenta-se como um crime doloso, podendo o dolo assumir qualquer uma das suas modalidades – direto, necessário ou eventual – exigindo-se ainda o dolo específico de querer que a administração tributária ou a segurança social efetuem as referidas atribuições patrimoniais.
Trata-se, pois, de um crime de resultado – demandando a sua consumação a existência de um enriquecimento consubstanciado numa vantagem ilícita conseguida por meios ilícitos – tipificado como um crime de burla especial, em que o processo típico é de execução vinculada, com previsão de elementos integradores mais formais e resultando da solução normativa adotada que a medida da pena depende do valor da atribuição patrimonial.[3]
No iter criminis atinente à prática do crime de burla tributária que agora nos ocupa haverá lugar, em termos dogmáticos, à punibilidade da tentativa (nº 5 do artigo 87º do RGIT) e à relevância da desistência (quando ao preenchimento do tipo se oponha uma conduta voluntária, impeditiva e definitiva do agente, axiologicamente reconhecida pela ordem jurídica)[4].
*
Conhecidos os elementos fundamentais do crime de burla tributária, detenhamo-nos então sobre a situação dos autos.
Com vista à melhor apreensão e tratamento dos argumentos apresentados pelo Ministério Público no recurso, esquematizamos as questões aí suscitadas nos seguintes termos:
a) As condutas omissivas poderão subsumir-se à previsão do tipo penal de burla tributária ou o mesmo admite apenas condutas ativas, integrando as primeiras apenas a previsão do respetivo ilícito contraordenacional?
b) Admitindo-se a prática do crime de burla tributária por omissão, a conduta do arguido requerente da instrução, consignada nos factos provados, poderá subsumir-se-lhe na modalidade de participação do agente no crime consubstanciada na coautoria?
c) Considerando que a relação laboral da arguida não foi estabelecida com o arguido requerente da instrução, mas sim com a empresa pelo mesmo representada, poderá verificar-se responsabilidade pessoal de tal arguido na situação em causa nos autos?
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Vejamos cada uma delas.
a) Das condutas admitidas pelo tipo penal de burla tributária.
No seu recurso, concretamente nas conclusões 3. a 5., alega o Ministério Público a este propósito, que
“3. A conduta omissiva do beneficiário do subsídio de desemprego, por via da não comunicação da alteração das condições que estiveram por base na atribuição do respetivo subsídio, configura um meio fraudulento adequado e idóneo para determinar a administração da segurança social a representar uma realidade inexistente, para os efeitos do preceituado no art.º 87º, nº 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias;
4. Sobre o beneficiário do subsídio de desemprego, e sobre todo aquele que o contrata sabendo deste circunstancialismo, impende o especial dever jurídico de comunicar à administração da segurança social qualquer facto suscetível de determinar a cessação do pagamento das prestações do subsídio de desemprego;
5. O especial dever jurídico de comunicar à administração da segurança social, qualquer facto suscetível de determinar a cessação do pagamento das prestações do subsídio de desemprego, nos termos do preceituado no art.º 42º, nº 2, ali., a), b) e c), do Decreto-lei nº 220/2006, de 03/11, integra o pressuposto de aplicação do artºs 10º, nº 2 do Código Penal;”
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A redação do n.º 1 do artigo 87.º do RGIT, acima transcrito, não contém a previsão expressa da burla tributária omissiva, uma vez que não se encontra na redação da norma qualquer expressão relativa ao “aproveitamento” pelo agente do “erro ou engano” em que se encontra o burlado, ou seja, a Administração Tributária ou da Segurança Social. A falta do elemento literal, não afasta, porém, a nosso ver, a possibilidade de cometimento do crime por omissão, posto que se revele possível, com observância do princípio da legalidade constitucionalmente consagrado no artigo 29.º da CRP, recorrer à extensão da tipicidade decorrente da cláusula de equiparação da omissão à ação contida no artigo 10.º do CP.[5] [6]
São três os requisitos estabelecidos pelo artigo 10.º do CP para permitir a equiparação da omissão à ação:
- Estarmos na presença de um crime de resultado;
- Não ser outra a intenção da lei;
- Recair sobre o omitente um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar o resultado estabelecido na norma incriminadora.
Vimos já, nas considerações prévias sobre o tipo legal, tratar-se o crime de burla tributária de um crime de resultado, encontrando-se, pois, verificado o primeiro dos requisitos estabelecidos pelo artigo 10º do CP.
As divergências de entendimento que têm alimentado as discussões doutrinárias e jurisprudenciais sobre a questão jurídica em análise reportam-se ao preenchimento dos dois restantes requisitos, mormente, quanto à verificação ou não verificação da ressalva contida na parte final da mencionada norma penal, ou seja, não ser outra “a intenção da lei”.
Perfilam-se a este propósito, duas correntes maioritárias[7], às quais alude a decisão recorrida.
Os defensores da inadmissibilidade da burla tributária por omissão apresentam principalmente dois tipos de argumentos. O primeiro assenta na circunstância de o artigo 87.º, n.º 1 do RGIT exemplificar o que sejam “meios fraudulentos” por referência a comportamentos ativos. O segundo consiste no entendimento de que uma conduta omissiva não se mostra idónea para “determinar” um ato de atribuição patrimonial por parte da Administração Tributária, pois que a atribuição patrimonial se verifica no momento de deferimento do pedido por parte do beneficiário, sendo que a conduta omissiva será apenas determinante da manutenção/continuação do pagamento de uma prestação já atribuída, o que corresponde apenas à forma de cumprimento da obrigação a que a Segurança Social se vinculou.[8]
A tese da defesa da admissibilidade da burla tributária por omissão, que, na génese, assenta nos argumentos também avançados a favor da admissibilidade da burla comum por omissão[9], tem vindo a ganhar cada vez mais seguidores, designadamente ao nível jurisprudencial[10] e parece-nos, efetivamente, a que melhor se adequa ao espírito e à letra da lei, respeitando em absoluto o princípio da legalidade com respaldo no artigo 29.º da CRP.
Assim, e na senda do que acima explanámos relativamente à necessária extensão da tipicidade decorrente da aplicação da cláusula de equiparação da omissão à ação contida no artigo 10.º do CP, e verificado que se encontra o primeiro dos requisitos impostos por tal norma, nos termos infra explicitados – tratar-se de um crime de resultado – entendemos revelar-se possível preencher a mencionada cláusula de equiparação da omissão à ação conquanto se demonstre na situação concreta a existência de um dever de garante, ou seja, de um dever jurídico que pessoalmente obrigue o agente a evitar o resultado.
No que diz respeito à ressalva à equiparação da omissão à ação nos crimes de resultado prevista na parte final do n.º 1 do artigo 10.º através da locução: “salvo se outra for a intenção da lei”, estamos em crer, seguindo de perto os ensinamentos de Figueiredo Dias, que tal ressalva não opera automaticamente nos crimes de execução vinculada. Ao invés, cremos que também em tais ilícitos criminais, como é o caso do crime de burla tributária, será possível afirmar a referida equiparação, posto é que, através de uma valoração autónoma da ilicitude do crime, se forme convicção de que “o desvalor da omissão corresponde no essencial ao desvalor da ação.[11]
Em situações como a dos autos, em nosso entender, a mencionada “valoração autónoma” da ilicitude do crime de burla tributária impõe a conclusão segura de que o desvalor da omissão – consubstanciada na não comunicação à Segurança Social de circunstância que determinaria a cessação do pagamento das prestações de subsídio de desemprego que fora atribuído à arguida – tem absoluta correspondência com o desvalor da ação que poderia ter sido levada a efeito com o mesmo propósito e com o mesmo resultado. Em ambas as situações, estará em causa a necessidade de se garantir o conhecimento da situação real dos contribuintes – quanto aos pressupostos legais de que depende a atribuição ou manutenção das prestações – que poderão vir a beneficiar (no caso da conduta ativa), ou que já beneficiam (no caso da conduta omissiva), do subsídio de desemprego, por forma a impedir a sua atribuição ou a sua manutenção indevida por parte da Segurança Social.
Impõe-se, pois, que nos questionemos: do ponto de vista da ilicitude criminal, emerge como menos desvaliosa a conduta omissiva consubstanciada na falta de comunicação da perda dos requisitos do que a conduta ativa consubstanciada na comunicação de requisitos falsos? Cremos, honestamente, que não. Sobretudo se tivermos em consideração que ambos os comportamentos conduzem ao mesmo resultado indesejado e criminalmente punido pelo tipo penal previsto no artigo 87º do RGIT, qual seja, o da concretização pela Segurança Social de uma atribuição patrimonial indevida ao agente. Ademais, a exigência de uma lesão patrimonial provocada por erro ou engano é comum à perpretação do crime de burla tributária por ação e por omissão.
Não colhe, a nosso ver, o argumento apresentado na decisão recorrida no sentido de que o comportamento omissivo da arguida não é idóneo a determinar a Administração, “in casu” a Segurança Social, a proceder a “atribuições patrimoniais”, permitindo apenas a sua continuação, pelo que não estaria preenchida a norma incriminadora do artigo 87.º do RGIT. De outra sorte, entendemos que a “atribuição patrimonial” para efeitos do preenchimento do preceito incriminador da burla tributária se consubstancia no efetivo pagamento das prestações periódicas do subsídio social de desemprego, pois que, conforme se consignou no Acórdão da Relação de Évora de 08.01.2013[12], numa linha argumentativa que subscrevemos,“(…) o preenchimento da tipicidade do crime em causa, pelo menos na forma de consumação, exige que a atribuição patrimonial provoque enriquecimento do agente ativo da conduta incriminada ou de um terceiro. (…) Ora, como parece evidente, a atribuição de um subsídio, por si só, não tem o condão de enriquecer quem quer que seja, o que sucede apenas com o pagamento efetivo das respetivas prestações”.
No que diz respeito à circunstância de a exemplificação do que sejam “meios fraudulentos”, se encontrar feita no artigo 87º do RGIT somente por referência a condutas ativas, diremos que o facto de a norma penal em causa conter um elenco meramente exemplificativo e não taxativo do que sejam tais meios fraudulentos indicia que a própria norma aceita outros para além dos que especialmente prevê, incluindo os omissivos – desde que os mesmos visem o enriquecimento à custa do Estado – sendo certo que a referência expressa em tal elenco apenas a condutas ativas poderá explicar-se pelo facto de serem essas “os mais comuns” no preenchimento do tipo.[13]
Discordamos também, em absoluto, do argumento apresentado na decisão recorrida de acordo com o qual a não comunicação à Segurança Social da circunstância que determinaria a cessação da atribuição das prestações de subsídio de desemprego à arguida – ou seja, o facto de ter começado a trabalhar – deverá ser simplesmente sancionada no plano contraordenacional em nome do princípio da subsidiariedade. E discordamos porquanto, a nosso ver, tal argumento não encontra qualquer sustentação jurídica.
De facto, dando seguimento à linha de argumentação que acima explicitámos e que defendemos, legitimada que está a criminalização da referida conduta omissiva – não comunicação à Segurança Social da circunstância que determinaria a cessação da atribuição das prestações de subsídio de desemprego à arguida – não encontramos fundamento jurídico válido para a invocação do princípio da subsidiariedade nos termos em que o faz a decisão recorrida. Consabidamente, o sancionamento simultâneo de uma conduta no âmbito penal e no âmbito contraordenacional, ou seja, a verificação de um concurso de infrações ideal efetivo porquanto o mesmo facto atinge bens jurídicos penais e contraordenacionais, determina a aplicação da regra prevista no artigo 2.º, n.º 3 do RGIT, que, reiterando o disposto no artigo 20.º do RGCO, estabelece que: “ Se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contraordenação, o agente será punido a título de crime, sem prejuízo da aplicação das sanções acessórias previstas para a contraordenação”. A preferência pela aplicação da sanção criminal foi a solução encontrada pelo legislador português, na certeza de que a punição a título de crime esgota o desvalor de todo o comportamento ilícito que se pretende sancionar, solução que assegura a coerência do sistema e a prevalência da tutela dos bens jurídicos que reclamam proteção mais intensa e que, por tal razão, assumem dignidade penal.
No que tange à posição de garantia a que alude o n.º 2 do artigo 10.º do CP, é manifesto que, na situação que somos chamados a apreciar nos presentes autos, a mesma se funda na norma que estabelece a obrigação de comunicação do facto que determina a cessação ou suspensão da prestação correspondente ao subsídio de desemprego atribuída pela Segurança Social, ou seja, no artigo 42.º, n.º 2, alínea a) do DL n.º 220/2006, de 3 de novembro, que dispõe: “Os beneficiários das prestações de desemprego estão ainda obrigados, durante o período de concessão das prestações, a comunicar ao serviço da segurança social da área de residência ou instituição de segurança social competente qualquer facto suscetível de determinar:
a) A suspensão ou cassação das prestações;”.
É verdade que, conforme alega o recorrente, sobre o arguido CAR, ou, mais rigorosamente, sobre a empresa que o mesmo geria, recaía também a obrigação de comunicar à Segurança Social o início da relação laboral com a arguida. Porém, diferentemente do que se alega no recurso, não corresponde à verdade que tenha resultado indiciado que o identificado arguido se “locupletou”“com o montante devido a título de descontos que deveria ter realizado para a Segurança Social e que não realizou”. Tal factualidade não resultou, nem poderia ter resultado indiciada na instrução dos autos, conquanto a conduta que se imputa aos arguidos na acusação se reporta à atuação dos mesmos com o propósito de permitir o recebimento indevido de subsídio de desemprego pela arguida, nenhuma referência sendo feita à obtenção de vantagens indevidas pelo arguido.
Bem andou, assim, o juiz de Instrução ao referir na decisão recorrida que o arguido “pode ter beneficiado reflexamente da situação mas esse aspeto não é elemento do tipo criminal.”
Verificamos, pois que, ao contrário do que propugna o recorrente, a posição especial de garante, ou seja, o “dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar o resultado”, exigido pelo nº 2 do artigo 10º do CP, se verifica apenas relativamente à arguida ABE, por ser a beneficiária das prestações, não se encontrando preenchido no que diz respeito ao arguido CAR, falecendo assim, quanto ao mesmo, a extensão da tipicidade pela aplicação da cláusula de equiparação da omissão à ação contida no artigo 10º do CP e, consequentemente, a integração do tipo penal de burla tributária que lhe vinha imputado na acusação.

b) Da coautoria e da responsabilidade pessoal do arguido enquanto legal representante da entidade empregadora.
As considerações expendidas no item precedente, mormente a conclusão a que chegámos de não integração da conduta omissiva imputada ao arguido requerente da instrução, CAR, no tipo penal de burla tributária que lhe vinha imputado na acusação – face à inexistência do dever de garante exigido para permitir a extensão da tipicidade pela aplicação da cláusula de equiparação da omissão à ação contida no artigo 10º do CP – tornam despicienda a análise das questões acima elencadas relativas à problemática da coautoria e da responsabilidade pessoal do arguido enquanto legal representante da entidade empregadora.
Porém, e pese embora tais questões se mostrem prejudicadas, sempre diremos brevemente, que, relativamente às mesmas assiste razão ao recorrente quanto à primeira, mas não quanto à segunda.
Assim, assentando em que o recorrente não põe em causa a matéria de facto dada como suficientemente indiciada na decisão instrutória, verificamos, através da análise do elenco factual constante de tal decisão que, ao contrário do que refere o Ministério Público no recurso, o despacho recorrido dá como não suficientemente indiciado que:
“- O arguido CAR não comunicou a admissão da arguida como sua trabalhadora à Segurança Social para que esta continuasse a receber a referida prestação de desemprego.
- Em 8., CAR.
- Os arguidos agiram da forma descrita, o que fizeram livre, deliberada e conscientemente bem sabendo serem as suas condutas proibida e punidas por lei, tendo os arguidos a necessária capacidade para se determinarem de acordo com essa avaliação.”.
Mais constatamos que, para além da não indiciação do dolo específico nos termos agora transcritos, não foram tidos como suficientemente indiciados factos dos quais resulte que o arguido tenha tomado parte direta na execução do facto, por acordo com a arguida, pelo que, ainda que se não tivesse concluído, como se concluiu, pela não integração do tipo penal por omissão por parte do arguido por inexistência do dever de garante exigido pelo artigo 10º do CP, sempre concluiríamos pela inexistência dos pressupostos da coautoria estabelecidos pelo artigo 26º do CP (2ª preposição), norma que, como sabemos, consagra a teoria do domínio funcional do facto.
Finalmente, no que tange ao argumento consignado na decisão recorrida, nos termos do qual, não tendo a relação laboral da arguida sido estabelecida com o arguido requerente da instrução, mas sim com a empresa pelo mesmo representada, não poderá verificar-se responsabilidade pessoal de tal arguido na situação em causa nos autos, afigura-se-nos que o mesmo não procede, pois que a eventual responsabilidade criminal da entidade empregadora – designadamente pela prática do crime de fraude fiscal p.e p. no artigo 106.º do RGIT, caso se encontrassem verificados os pressupostos de punibilidade aí estabelecidos, designadamente ser a vantagem patrimonial fraudulentamente obtida superior a €7.500,00 – não colide com a possibilidade de o seu legal representante incorrer na prática do crime de burla tributária em coautoria, caso a sua conduta se subsumisse à prática de tal ilícito penal, o que, vimos já, não se verifica na situação dos autos.
***
Nesta conformidade e pelas razões expostas, somos a concluir que os autos fornecem os elementos probatórios suficientes para o preenchimento do crime de burla tributária previsto e punido pelo artigo 87.º, n.º 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias apenas pela arguida ABE, não permitindo, de outra sorte, tais elementos probatórios realizar um juízo provável de condenação relativamente ao arguido CAR, pelo que se proferirá decisão de pronúncia da primeira e de não pronúncia do segundo, procedendo o recurso parcialmente.
***
III- Dispositivo.
Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento parcial ao recurso, decidindo, consequentemente:
A) Alterar decisão recorrida, nos seguintes termos:
- Pronunciar a arguida ABE pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de burla tributária, previsto e punido pelo artigo 87.º, n.º 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05/06, na sua redação atual.
- Manter as medidas de coação aplicadas nos autos a tal arguida.
- Manter o pedido de indeminização civil formulado pelo Instituto da Segurança Social, IP – Centro Distrital da Segurança Social de Évora contra a demandada ABE.
B) Manter quanto ao mais a decisão recorrida.
Sem custas.

(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelas signatárias)

Évora, 8 de março de 2022

Maria Clara Figueiredo
Maria Margarida Bacelar


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[1] Neste sentido Paulo José Branco Rodrigues Antunes, Infrações Fiscais e seu Processo, Regime Geral 2001-2002 Anotado, págs. 102-103).
[2] cfr. J. Marques Borges, Os Crimes Contra o Património em Geral, Rei dos Livros, pág. 22.
[3] Neste sentido cfr. João Ricardo Catarino e Nuno Victorino, Regime Geral das Infrações Tributárias Anotado e Comentado, 2004, Vislis, págs. 424-425 e Acórdão da Relação de Évora de 08.11.2005, disponível em dgsi.pt.
[4] Cfr., a este propósito, Teoria Premial de Bentham em Augusto Silva Dias, Apontamentos de Direito Penal I, Universidade Lusíada, Lisboa, Outubro de 2002
[5] Norma aplicável subsidiariamente às infrações criminais previstas no RGIT, por via da alínea a) do seu artigo 3.º.
[6] Neste sentido, Ana Mónica Salvador de Manuel, Dissertação de Mestrado sobre burla tributária por omissão, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2017.
[7] Não podendo deixar de referir-se a posição minoritária defendida por alguns autores, entre os quais se destacam Fernanda Palma, Rui Pereia, Cavaleiro de Ferreira e Germano Marques da Silva, no sentido de que quanto aos crimes de execução vinculada, como é o caso da burla tributária, a intenção da lei é a de que a perpretação desse crime por omissão não seja punida, com o argumento de que apenas as ações que se insiram no modo de agir especial descrito na norma são típicas, deixando de fora todas as outras ações causais, entre as quais as condutas omissivas. Neste sentido, cfr. Maria Fernanda Palma /Pereira, Rui Carlos, “O crime de burla no código penal de 1982-95”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. 35, n.º 2, Lisboa, 1994, pag 326; Manuel Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal: Parte Geral, Tomo I, Coimbra, Almedina, 2010. pp. 103-104; Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2009.
[8] Em defesa de tal linha argumentativa, encontramos, entre outros, os seguintes acórdãos, todos disponíveis em www.dgsi.pt: Acórdãos do TRE de 08-11-2005, relatado pelo Desembargador Fernando Ribeiro Cardoso; de 07-12-2012 relatado pela Desembargadora Maria Filomena Soares; de 28-01-2014, relatado pelo Desembargador Sénio Alves (acrescentando-se neste ainda um terceiro argumento assente no princípio da subsidiariedade do direito penal) e de 30-10-2014, relatado pela Desembargadora Maria Filomena Soares; Ac. do TRC de 26-01-2011, relatado pelo Desembargador Eduardo Marins; Ac. do TRG de 30-11-2015, relatado pelo Desembargador João Lee Ferreira.
[9] Cfr. a este propósito Almeida Costa, «Comentário ao Art. 217.º do Código Penal», in Comentário Conimbricense do Código Penal: Parte Especial, Tomo II, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, pp. 308-309, defendendo que “(...) o facto de se tratar de um delito de execução vinculada não constitui impedimento absoluto da equiparação da omissão à ação (…) o “modus operandi” da burla representa, apenas, uma das modalidades que pode assumir a ofensa a interesses de natureza patrimonial, não lhe atribuindo o direito positivo português um qualquer desvalor adicional em relação às que subjazem, por exemplo aos crimes de furto e dano. À semelhança do que se passa no tocante aos últimos, não se detetam, pois, razões de fundo que obstem à punição da burla a título de comissão por omissão, desde que preenchidos, os requisitos gerais do artº 10º do CP”.
[10] Defendendo esta linha de entendimento se pronunciaram, entre outros, os seguintes acórdãos, todos disponíveis em www.dgsi.pt: Ac.do TRP de 28-05-2014, relatado pela Desembargadora Lígia Figueiredo; Acórdãos do TRE de 08-01-2013, relatado pelo Desembargador Sérgio Corvacho e de 03-11-2015 relatado pelo Desembargador Alberto Borges.
[11] Neste sentido, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Tomo I, 3.ª ed., GESTLEGAL, 2019, pag. 1071.
[12] Acórdão da Relação de Évora de 08.01.2013 relatado pelo Desembargador Sérgio Corvacho.
[13] Neste sentido, Ana Mónica Salvador de Manuel, ob. cit, pag 45.