Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1271/13.8PAPTM.E1
Relator: ALBERTO BORGES
Descritores: OMISSÃO DE AUXÍLIO
Data do Acordão: 01/09/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário: I – No crime de omissão de auxílio, previsto e punido pelo artigo 200.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, o elemento material basta-se com a omissão ou falta de cumprimento de dever de prestação de auxílio, independentemente da verificação de qualquer resultado, isto é, não releva o resultado da conduta omissiva do agente, mas apenas a falta do cumprimento do dever de auxílio adequado a afastar o perigo (concreto) - para a vida ou a integridade física da vítima - que criou, em consequência do acidente.
II – Além disso, para o cometimento do crime é irrelevante que a vítima tenha sido socorrida por terceiros, pois tal não afasta a obrigação de auxílio que sobre o agente impenda em consequência do perigo criado pela produção do evento.
III – Porém, este crime exige a concretização do perigo, que há-de resultar demonstrado das circunstâncias concretas do caso, pois que não basta a existência de um perigo abstrato ou presumido.
IV – E a obrigação de auxílio que recai sobre o agente só existe em caso de “grave necessidade”.
V – Em conformidade, não se verifica a prática do referido crime se não resulta da matéria de facto que em consequência do acidente o ofendido ficou numa situação de perigo iminente de lesão grave da sua integridade física (para além das lesões concretas que sofreu em consequência do acidente) e que do embate (do veículo ligeiro de passageiros conduzido pelo arguido no motociclo conduzido pelo ofendido) tivesse resultado um grave perigo para a vida do ofendido.
Decisão Texto Integral: Proc. 1271/13.8PAPTM.E1

Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Secção Criminal, J3, correu termos o Processo Comum Singular n.º 1217/13.8PAPTM, no qual foi julgado o arguido BB (…), pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo:
- de um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido nos termos dos artigos 148 n.º 1 e 69 n.º 1 alínea a), ambos do Código Penal;
- de um crime de omissão de auxílio, previsto e punido nos termos do artigo 200 n.ºs 1 e 2 do Código Penal;
- de uma contra-ordenação causal, prevista e punida nos termos dos artigos 38 n.ºs 1, 2 alínea c) e 5, 138 n.º 1, 145 n.º 1 alínea f) e 147 n.ºs 1 e 2, todos do Código da Estrada.
O Ministério Público, em representação do Estado Português, deduziu pedido de indemnização civil contra CC Seguros, SA, peticionando a sua condenação no pagamento da quantia de € 9.022,34 (nove mil e vinte e dois euros e trinta e quatro cêntimos), a título de indemnização pelos prejuízos causados, acrescida dos juros vencidos e vincendos, à taxa legal, até integral pagamento.
DD constituiu-se assistente e deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido e CC Seguros, SA, peticionado que aqueles sejam condenados no pagamento da quantia de € 833,32 (oitocentos e trinta e três euros e trinta e dois cêntimos), a título de danos patrimoniais, e de € 5.000,00 a título de danos não patrimoniais, pedido que foi ampliado a fol.ªs a fls. 468 contra a demandada CC Seguros, SA, sendo a ampliação admitida por despacho de fol.ªs 566.
A fls. 536 a 539 foi proferido despacho a julgar verificada a exceção dilatória de ilegitimidade passiva e consequente absolvição do demandado/arguido BB da instância cível.
Posteriormente foi admitida a intervir nos presentes autos a seguradora EE, SA, em substituição da CC Seguradora, SA.
Nos termos do disposto no artigo 358 n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal, foi comunicada uma alteração não substancial dos factos e, bem assim, uma alteração da qualificação jurídica, conforme consta da ata de audiência de julgamento.
A final veio a decidir-se:
A. Julgar a pronúncia procedente, por provada e, em consequência:
A.1. - Absolver o arguido BB da prática das contra-ordenações previstas e punidas pelos artigos 13, 145 n.º 1 al.ª f) e 147 n.ºs 1 e 2, todos do Código da Estrada;
A.2. - Condenar o arguido BB:
- pela prática, em autoria matéria e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo 148 n.º 1 do Código Penal, por referência aos artigos 13, 145 n.º 1 al.ª f) e 147 n.ºs 1 e 2 do Código da Estrada, na pena de 5 (cinco) meses de prisão;
- pela prática, em autoria matéria e na forma consumada, de um crime de omissão de auxílio, previsto e punido pelo artigo 200 n.ºs 1 e 2 do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão;
- e, em cúmulo jurídico, na pena única de 12 (doze) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova, a elaborar pela DGRSP, onde se deverá, para além do mais, a frequência num curso vocacionado para a prevenção rodoviária/condução segura;
- condenar o arguido, ainda, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 (cinco) meses, advertindo-o de que tem o prazo de 10 (dez) dias, após o trânsito em julgado desta sentença, para entregar a sua carta de condução e licença de condução na secretaria deste tribunal ou em qualquer posto policial, a fim de cumprir a pena acessória, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência, previsto e punível pelo artigo 348 n.º 1 alínea b) do Código Penal, e, bem assim, de que, caso não cumpra a pena acessória agora determinada, incorre na prática de um crime de violação de proibições previsto e punível pelo artigo 353 do Código Penal.
B. Julgar totalmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pelo Ministério Público em representação do Estado Português e, em consequência, condenar a demandada EE, SA, no pagamento da quantia de € 9.022,34 (nove mil e vinte e dois euros e trinta e quatro cêntimos), a título de indemnização pelos danos patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da notificação do pedido de indemnização civil até integral pagamento;
C. Julgar parcialmente procedente, por parcialmente provado, o pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente DD e, consequentemente, condenar a demandada civil EE, SA, no pagamento das seguintes quantias:
- a quantia de € 872,28 (oitocentos e setenta e dois euros e vinte e oito cêntimos), a título de indemnização pelos danos patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da notificação do pedido de indemnização civil até integral pagamento;
- a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de compensação por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, a contar a contar da notificação da presente decisão.
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2. Recorreu o arguido desta sentença, concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões:
1 - O recorrente não se conforma com a condenação que sofreu pela prática de um crime de omissão de auxílio, p. e p. nos termos do art.º 200 n.ºs 1 e 2 do Código Penal, porquanto, atenta a prova produzida em audiência de julgamento, não resulta que o tenha praticado.
2 - O fundamento do dever especial ou potenciado de auxilio pressuposto no tipo qualificado do n.º 2 do art.º 200 e, logo, da agravação da punição reside na ingerência, mas tal ingerência não deve ser confundida com a ingerência fundamentadora de um dever de garante, pois caso se afirme que sobre o agente recai tal dever de garante, então não estaremos já perante uma omissão pura, mas sim perante uma eventual comissão por omissão - art.º 10 n.º 2 do Código Penal.
3 - Quando o comportamento omissivo do agente se sucede a uma conduta lesiva prévia ilícita e negligente, o agente apenas cometerá o crime de omissão de auxílio previsto nos termos do n.º 2 do art.º 200 do Código Penal se o perigo que a sua atuação criou não exceder o dano produzido.
4 - Só se verificará um concurso real ou efetivo de infrações entre o crime de ofensa à integridade física por negligência e o crime de omissão de auxílio (ocorrendo este na sequência daquele) quando o perigo de lesão criado exceda a lesão efetivamente infligida pela conduta ofensiva (por exemplo, o agente produz uma lesão no corpo da vítima, colocando-a em situação de perigo para a vítima).
5 - A decisão em crise não demonstrou que o ofendido tenha estado numa situação de perigo que excedesse o dano físico que sofreu em consequência do acidente ocorrido - aliás, nem esse perigo acrescido (perigo para a vida ou perigo de agravamento do estado físico do ofendido) foi sequer alegado de forma concreta na acusação pública ou investigado no decurso do inquérito.
6 - O único resultado investigado e apurado foram as lesões físicas produzidas no corpo do ofendido, não se indiciando a verificação de um qualquer perigo que excedesse esse dano e nem sequer é possível afirmá-lo em face da prova produzida.
7 - Por este motivo, o recorrente deverá ser punido somente pelo crime de ofensa à integridade física por negligência, impondo-se a sua absolvição da prática do crime de omissão de auxílio que lhe era imputado.
8 - Acresce que, para haver omissão de auxílio não basta que a vida ou a saúde de alguém corra perigo, é necessário que a vítima não possa pedir ou obter socorro pelos seus próprios meios, pois o pressuposto do dever de realizar uma ação salvadora e impeditiva da lesão é, desde logo, e necessariamente, a impossibilidade de quem se encontra carecido de socorros, não os poder obter por si.
9 - Não foi o que se verificou no caso vertente, já que a ofendido, apesar da queda, não ficou inválido nem impedido de levantar-se, o que fez, quase logo de imediato, até para se deslocar para a berma da estrada.
10 - Ademais, conforme resulta da prova produzida, foi logo assistido no local por outro motard, que, inclusivamente, pediu e obteve a ajuda do 112, o que diminui drasticamente a censura e a culpa do arguido e até poderia descaracterizar a qualificação jurídico-penal dos factos e a sua ilicitude, com a decorrente absolvição.
11 - Acresce que não estamos perante um caso de grave necessidade, a que se refere o tipo legal, uma vez que, caso de grave necessidade, para efeitos do art.º 200, é a situação de emergência em que se encontra um ser humano, carecendo em absoluto de uma intervenção alheia, adequada a afastar o perigo encontra um ser humano, carecendo em absoluto de uma intervenção alheia, adequada a afastar o perigo que ameaça bens jurídicos pessoais, que por si só é incapaz de superar.
12 - O requisito da grave necessidade - diga-se, da indispensabilidade do auxílio - está aqui em crise na medida em que ficou provado que o próprio ofendido foi capaz de se levantar e deslocar para a berma da estrada a fim de se proteger dos automóveis que circulavam naquela via e nunca ficou inválido nem na impossibilidade de telefonar para o número nacional de urgência 112; não obstante, o ofendido foi logo socorrido e conduzido por uma ambulância ao Hospital a fim de ser medicamente assistido.
13 - Comete o crime de omissão de auxílio “quem, em caso de grave necessidade, nomeadamente provocada por desastre, acidente, calamidade pública ou situação de perigo comum, que ponha em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa, deixar de lhe prestar o auxílio necessário ao afastamento do perigo, seja por acção pessoal, seja promovendo o socorro... “, mas, conforme ensina o Comentário Conimbricense (tomo I, pago 849) que “o conceito de grave necessidade significa e exige que se trate de um risco ou perigo iminente de lesão substancial (grave) dos referidos bens jurídicos. Assim, caem fora do âmbito deste tipo de crime as situações de perigo de lesão não iminente e as situações de perigo de leves lesões corporais ou da liberdade (mesmo que iminentes)”.
14 - É um crime que exige o dolo, ainda que na forma de dolo eventual. Sendo um crime de perigo concreto, exige-se o dolo do perigo concreto, pelo que, “não se tratando de um crime de perigo abstracto, mas sim de perigo concreto, naturalmente que o erro sobre qualquer um dos elementos integrantes do tipo objectivo do ilícito de omissão de auxílio excluirá o dolo e, consequentemente, a punibilidade. Assim, não existirá dolo (...) quando o omitente erroneamente pensou que o perigo não era iminente e, portanto, não prestou imediatamente o auxílio necessário, embora estivesse na disposição de o vir a prestar, se tal se tornasse indispensável” (pags.853/854).
15 - Ou seja, no caso destes autos, independentemente do facto das lesões apresentadas pelo ofendido, poderem ser qualificadas até como substanciais, era necessário que se tivesse, primeiro alegado e depois provado, que o recorrente, logo após o acidente e antes de abandonar o local, teve consciência da natureza e extensão das lesões que causara ou, ao menos, que «representou» que podia ter causado lesões substanciais, conformando-se com essa eventualidade (dolo eventual).
16 - A prova desse elemento subjetivo do crime (o qual não foi sequer alegado pela acusação) dependeria da existência de sinais exteriores que revelassem que o ofendido necessitava de ser socorrido, sob pena das consequências serem graves.
17 - O choque do motociclo do ofendido ocorreu na traseira do veículo automóvel do recorrente, não tendo este percebido a gravidade do acidente para o condutor do outro veículo.
18 - Por isso, salvo melhor opinião, é que o tribunal a quo considerou o facto 11, ao admitir que o recorrente “não previu, mas podia e devia ter previsto, a possibilidade de, com a sua conduta, poder vir a atentar contra a integridade física e/ou vida dos motociclistas ou outros utentes que circulassem na estrada”.
19 - O recorrente atuou de forma imprudente e negligente, é verdade, mas o dolo que o tipo de omissão de auxílio exige encontra-­se afastado, uma vez que o acidente se deu pelo risco da circulação rodoviária.
20 - O recorrente não se arredou das consequências da sua conduta estradal, embora imprudente, uma vez que nem sequer se apercebeu no embate entre os dois veículos (entre o pneumático dianteiro do motociclo do ofendido e o pára-choques traseiro do automóvel do recorrente).
21 - O recorrente não pediu socorro porque, importa dizê-lo, no caso não se lhe afigurou necessário. E tal se pode afirmar, porque o ofendido, aparentemente, não possuía lesões corporais, pois até se levantou e depressa se deslocou para a berma da estrada, a fim de evitar o embate com outros veículos que ali podiam circular.
22 - Este facto é revelador, para qualquer um, que o ofendido estava em condições de se poder deslocar sozinho e, que o acidente, afinal, não tinha produzido lesões à integridade física que reclamassem a prestação dum efectivo e necessário socorro.
23 - Não obstante as lesões descritas em 9 dos factos provados, a verdade é que as mesmas não foram impeditivas de o ofendido se levantar do asfalto e rapidamente deslocar-se para a berma da estrada.
24 - Consequentemente, também por este motivo o recorrente tem que ser absolvido pelo crime de omissão de auxílio.
(…)
36 - Nestes termos, deve ser revogada a douta sentença condenatória aqui recorrida e substituída por outra que absolva o recorrente pela prática de um crime de omissão de auxílio e o condene somente pela prática de um crime de ofensa à integridade física por neglicência, em pena de multa.

3. Respondeu o Ministério Público ao recurso interposto, concluindo a sua resposta nos seguintes termos:
1 - Do elenco dos factos dados como provados na sentença, que não foram impugnados, resultam preenchidos os elementos típicos do crime de omissão de auxílio, p. e p. pelo art.º 200 n.ºs 1 e 2 do CP, sendo, aliás, a situação típica para a qual o crime foi pensado.
2 - No caso concreto, verificou-se um concreto perigo para a vida ou integridade física que excedeu as lesões físicas infligidas, já que o ofendido sofreu, por força do embate sofrido, lesões físicas significativas e correu perigo para a vida ou integridade física após o embate, já que caiu ao chão em via de trânsito intensa, tendo corrido risco de ser atropelado, e teve necessidade de ser assistido imediatamente por terceiros e receber assistência médica e tratamento médico posterior.
3 - Também se verificou, no caso concreto, o requisito da grave necessidade, já que o ofendido caiu ao solo em via de trânsito intensa após o embate, sofreu lesões físicas consideráveis e teve de ser socorrido por terceiros e de receber assistência médica, não se exigindo que tivesse ficado impossibilitado de reagir ou que não tivesse possibilidade de ser socorrido por terceiros.
4 - Quanto ao preenchimento dos elementos subjetivos, o crime de omissão de auxílio exige apenas o dolo do perigo concreto dos bens jurídicos da vida ou integridade física, e não o dolo do resultado, bastando que o agente tenha representado, como consequência da sua conduta, que o ofendido enfrentou perigo para a vida ou integridade física (conforme resulta do elenco dos factos dados como provados, sobretudo, do ponto 12), não se exigindo que ao abandonar o local tivesse consciência da extensão das lesões que causara através de sinais exteriores.
(…)
11 - Os argumentos apresentados no recurso não têm qualquer viabilidade de procedência, pelo que se mostra o recurso manifestamente improcedente, devendo ser rejeitado, por manifesta improcedência, nos termos do disposto no art.º 420 n.ºs 1 al.ª a) e 3 do CPP.
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4. O Ministério Público junto deste tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso (fol.ªs 881).
5. Cumprido o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP e colhidos os vistos legais, cumpre decidir, em conferência (art.º 419 n.º 3 al.ª c) do CPP).
6. Foram dados como provado na decisão recorrida os seguintes factos:
1. No dia 29 de agosto de 2013, pelas 09:00 horas, o arguido BB circulava pela Estrada Nacional 125, em …, Faro, conduzindo o veículo ligeiro de passageiros de matrícula …, sua pertença, no sentido Loulé/Faro.
2. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, e no mesmo sentido de marcha, circulava o motociclista DD, agente principal da Polícia de Segurança Pública, conduzindo o motociclo de matrícula …, pertença do Estado Português, afeta ao serviço da Polícia de Segurança Pública e devidamente caracterizada como tal.
3. Sensivelmente ao quilómetro 102,500 da referida estrada, a faixa de rodagem descreve uma ligeira curva para a esquerda, atento o referido sentido de marcha, é composta por duas vias de trânsito reservadas ao sentido Loulé/Faro, separadas entre si por um traço longitudinal descontínuo, tendo estas a largura total de 7,10 metros, e é ladeada por uma berma pavimentada com 2,20 metros de largura.
4. Antes do início daquela curva, a referida faixa de rodagem é ladeada, à direita, por uma via de aceleração, denominada EN 125-10, que desemboca e dá acesso à EN 125.
5. O arguido, que circulava inicialmente pela EN 125-10, acedeu à via direita da EN 125 e, escassos metros depois, dirigiu o seu veículo para a via esquerda.
6. Porque iniciou tal manobra sem que prestasse a devida e necessária atenção ao demais trânsito, nomeadamente, verificando previamente a tal manobra se por aquela via esquerda circulava qualquer outro utente da via, embateu com o lado esquerdo traseiro do seu veículo na roda da frente do motociclo conduzido por DD, provocando a sua queda e arrastamento pelo solo.
7. O embate ficou a dever-se à circunstância do arguido, em momento anterior ao início da mudança de circulação da via direita para a esquerda, não ter tomada as precauções adequadas a evitar embater noutro veículo que por ali circulasse.
8. O arguido sabia que devia circular pelo lado direito da faixa de rodagem e que antes de sair da via de aceleração para entrar na via principal deveria certificar-se que podia realizar a referida manobra sem perigo de colidir com outro veículo que circulasse naquela via, nomeadamente um motociclista, como sucedeu.
9. De tal embate resultaram no motociclista DD, nomeadamente, as seguintes lesões no seu corpo e saúde, as quais foram causa direta e necessária de 120 dias de doença, todos com afetação da capacidade geral e profissional:
i) traumatismo do ombro esquerdo e escoriações no membro inferior esquerdo, antebraço esquerdo e região do mento;
ii) entorse do tornozelo direito, contusão do joelho esquerdo e luxação acromioclavicular esquerda de grau I.
10. Atuando da forma descrita, o arguido agiu com falta de cuidado, que podia e devia ter observado, omitiu cautelas exigíveis e indispensáveis para quem conduz veículos automóveis, e causou, por inconsideração, um resultado que podia e devia prever.
11. O arguido não previu, mas podia e devia ter previsto, a possibilidade de, com a sua conduta, poder vir a atentar contra a integridade física e/ou vida dos motociclistas ou outros utentes que circulassem na estrada.
12. O arguido, não obstante se ter apercebido que o embate do seu veículo no motociclo, conduzido pelo DD, provocou a sua queda, nomeadamente, por força do barulho gerado pela queda do motociclo e derrapagem no solo, e que o estado de saúde deste inspirava cuidados pela forma como foi projetado ao chão, não imobilizou o seu veículo e prosseguiu a sua marcha, não prestando ao DD qualquer tipo de ajuda, nem nada tendo feito para que fosse socorrido, designadamente acionando os meios de emergência.
13. Atuou o arguido deliberada, livre e conscientemente, ao abandonar o local do embate sem providenciar pelo auxílio médico necessário, tendo representado como possível o agravamento do estado de saúde da vítima, ou mesmo a sua morte, pela falta de assistência imediata, circunstância com a qual se conformou.
14. O arguido sabia que estas suas condutas eram proibidas e punidas por lei e que o faziam incorrer em responsabilidade criminal e contra-ordenacional.
(…)
33. O arguido não assumiu a autoria dos factos objeto dos presentes autos nem manifestou arrependimento pela sua prática.
(…)
60. No momento do acidente, e em consequência direta e necessária do mesmo, o assistente temeu pela sua vida, tendo ficado apreensivo e cabisbaixo durante vários dias.
61. O facto de o arguido ter abandonado o local do acidente sem ter prestado qualquer assistência ou auxílio ao aqui assistente provocou neste sentimentos de indignação, revolta, perturbação e incómodo.
(…)

7. E não se provou, designadamente, que:
(…)
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8. É sabido, mas não será demais recordar, que as conclusões do recurso delimitam o âmbito do mesmo e destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as pessoais razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida (art.ºs 402, 403 e 142 n.º 1, todos do CPP).
Elas devem conter, por isso, um resumo claro e preciso das questões que o recorrente pretende ver apreciadas pelo tribunal superior.
Como escreve Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, 350, elas “são extraordinariamente importantes, exigindo muito cuidado… devem ser concisas, precisas e claras, porque são as questões nelas sumariadas que hão-de ser objecto de decisão”.
Feitas estas considerações, e atentas as conclusões do recurso apresentado, delas se retiram as seguintes as questões colocadas pelo recorrente à apreciação deste tribunal:
1.ª – Se, em face da factualidade dada como provada na sentença recorrida, não devia o arguido ter sido condenado pela prática do crime de omissão de auxílio, por aquela não preencher os elementos integrantes do mesmo;
2.ª – (…).
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8.1. - 1.ª questão
Dispõe o art.º 200 n.ºs 1 e 2 do CP:
1. Quem, em caso de grave necessidade, nomeadamente provocada por desastre, acidente, calamidade pública ou situação de perigo comum, que ponha em perigo a vida, a integridade física a liberdade de outra pessoa, deixar de lhe prestar o auxílio necessário ao afastamento do perigo, seja por ação pessoal, seja promovendo socorro, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.
2. Se a situação referida no número anterior tiver sido criada por aquele que omite o auxílio devido, o omitente é punido com penas de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias”.
Na sentença recorrida, a este propósito, escreveu-se:
Estamos perante um crime de dolo, indiretamente de perigo concreto para a “vida, saúde, integridade física e liberdade de outrem”, e cujo bem jurídico protegido é a solidariedade social como o direito natural de socorro que assiste a toda a pessoa vítima de acidente.
É um crime de omissão pura, incluído na categoria dos delitos formais, não existindo, por conseguinte um dever jurídico que obriga a evitar um qualquer resultado (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 01.03.1990, BMJ n.º 395, pág. 230).
… para que fique preenchido tal delito basta que, voluntariamente, o agente omita o dever de solidariedade social de, por ação pessoal sua ou promovendo a de outrem, deixe de prestar socorro à vítima, cuja vida está em perigo, sendo irrelevante a circunstância de o sinistrado ter morrido ou não imediatamente e de a vítima poder, no momento, dispor de auxílio de outras pessoas que não o criador do perigo (vide, neste sentido, aresto do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 12.10.1995, C.J., Tomo IV, pág. 53).
Acresce que, e no que concerne ao n.º 2 do citado normativo legal, “quem cria, contra o dever, um perigo para bens jurídicos protegidos, constitui-se no dever – e na verdade um dever jurídico – penalmente fundado e relevante – de o remover antes que ele se transforme numa lesão definitiva dos valores ou interesse que ameaça” (Figueiredo Dias, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 116, n.º 3707, pág. 54).

“É irrelevante, em termos de afastar o ilícito, no crime de omissão de auxílio, a existência de várias pessoas no local, dado que o normativo penal atribui o dever de prestação de socorro ao próprio arguido, não valorando a sua permuta com terceiro, em modo desculpante” (cfr., neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 18.06.1996, e disponível in www.dgsi.pt).
De realçar, ainda, o firmado no aresto do Tribunal da Relação de Évora datado de 03.03.2003 e disponível no sítio da internet www.dgsi.pt, segundo o qual “comete o crime de omissão de auxílio qualificada, p. e p. no art.º 200 n.º 2 do CP, com dolo eventual, o condutor de um veículo que, consciente do acidente que provocara e bem assim de que no veículo embatido seguiam pessoas, abandona o local, alheando-se por completo da situação de grave necessidade em que as mesmas poderiam encontrar-se e que representou como possível, não cuidando de se certificar do seu real estado de saúde nem lhe prestando o auxílio necessário ao afastamento da situação de perigo”.
Ora, no caso dos autos, afigura-se, com clareza, dos factos provados que tal dever de auxílio surgiu para o arguido desde o momento em que, e não obstante se tenha apercebido que o embate do seu veículo no motociclo, conduzido pelo assistente provocou a sua queda, nomeadamente por força do barulho gerado pela queda do motociclo e derrapagem no solo, e que o estado de saúde deste inspirava cuidados pela forma como foi projetado ao chão, não imobilizou o seu veículo e prosseguiu a sua marcha não prestando ao assistente qualquer tipo de ajuda, nem nada tendo feito para que fosse socorrido, designadamente acionando os meios de emergência.
Desconsiderando o dever de socorro que sobre ele impendia, temos certo que o arguido preencheu os elementos objetivos do ilícito em análise. Aliás, sempre se diga que se qualquer cidadão está onerado com o dever geral de assistência em relação a qualquer pessoa que se encontre em grave necessidade que ponha em perigo a sua vida, integridade física ou liberdade, mesmo quando esse cidadão não tenha contribuído de qualquer forma para tal situação, facilmente se concluiu que sobre aquele que tiver criado ou contribuído para criar a situação geradora de perigo para bens pessoais, recai um dever qualificado de auxílio, em virtude do qual a omissão da conduta é, neste último caso, mais gravemente punida do que no primeiro. Atenta a matéria de facto tida por provada e já exposta, facilmente se constata que sobre o arguido recaía o especial dever jurídico de evitar a produção do resultado, nos termos do n.º 2 do artigo 10 do Código Penal.
No mais, diga-se que, no caso, à semelhança da generalidade dos casos, a prestação de auxílio limitava-se a muito pouco: não se lhe exigia uma ação pessoal de socorro, apenas providenciar por socorro da vítima, traduzido no chamamento ou pedido a outrem que chamasse o serviço de emergência médica, ou tão só certificar-se de que alguém já tinha providenciado por socorro.
O arguido podia ter cumprido facilmente com essa tarefa sem correr o mínimo risco.
No entanto, a isso fugiu, indiferente – vide, neste sentido, entre outros, o aresto do Tribunal
da Relação do Porto, datado de 25.02.2004 e disponível no sítio da internet www.dgsi.pt.
… o arguido atuou deliberada, livre e conscientemente ao abandonar o local do embate sem providenciar pelo auxílio médico necessário, tendo representado como possível o agravamento do estado de saúde da vítima, ou mesmo a sua morte, pela falta de assistência imediata, circunstância com a qual se conformou, agindo, assim, com dolo eventual (artigo 14 n.º 3 do Código Penal).
… o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei e que o fazia incorrer em responsabilidade criminal…”.
Pretende o recorrente, em síntese, que a sua conduta não integra o crime de omissão de auxílio, porquanto, só se “verificará um concurso real ou efetivo de infrações entre o crime de ofensa à integridade física por negligência e o crime de omissão de auxílio… quando o perigo de lesão criado exceda a lesão efetivamente infligida pela conduta ofensiva (por exemplo, o agente produz uma lesão no corpo da vítima, colocando-a em situação de perigo…)”.
Vejamos.
O arguido, para além das lesões físicas que causou ao ofendido DD, as quais foram causa direta e necessária de 120 dias de doença, todos com afetação da capacidade geral e profissional (lesões que consistiram em traumatismo do ombro esquerdo e escoriações no membro inferior esquerdo, antebraço esquerdo e região do mento, em entorse do tornozelo direito, contusão do joelho esquerdo e luxação acromioclavicular esquerda de grau I) - e como consta da matéria de facto dada como provada - não obstante se “ter apercebido que o embate do seu veículo no motociclo conduzido pelo DD provocou a sua queda, nomeadamente, por força do barulho gerado pela queda do motociclo e derrapagem no solo, e que o estado de saúde deste inspirava cuidados pela forma como foi projetado ao chão, não imobilizou o seu veículo e prosseguiu a sua marcha, não prestando ao DD qualquer tipo de ajuda, nem nada tendo feito para que fosse socorrido, designadamente acionando os meios de emergência”, o que fez de modo deliberado, livre e consciente, “tendo representado como possível o agravamento do estado de saúde da vítima, ou mesmo a sua morte, pela falta de assistência imediata, circunstância com a qual se conformou”.
Esta factualidade não vem impugnada, pelo que a mesma se tem como assente, porém, ela não é suficiente para se concluir que o arguido cometeu o crime de omissão de auxílio pelo qual foi condenado.
Por um lado, este crime - como bem se demonstrou na decisão recorrida - é considerado um crime de omissão pura e de perigo, porquanto, “o seu elemento material se basta com a omissão ou falta de cumprimento de dever de prestação de auxílio, independentemente da verificação de qualquer resultado, isto é, quer os bens jurídicos ameaçados… venham ou não a ser efetivamente atingidos ou venha ou não a ser agravada a situação de perigo que sobre eles impende por efeito da conduta omissiva…” (acórdão da RC de 18.10.2000, Col. Jur., Ano XXV, tomo IV, 58 e seguintes, em excerto retirado do acórdão da RP de 3.10.2001, in www.dgsi.pt), em suma, não releva o resultado da conduta omissiva do agente, mas apenas a falta do cumprimento do dever de auxílio adequado a afastar o perigo (concreto) - para a vida ou a integridade física da vítima - que criou, em consequência do acidente;
Por outro lado, ainda, é irrelevante que o arguido tenha sido socorrido por terceiros, pois tal não afasta a obrigação de auxílio que sobre o agente impenda em consequência do perigo criado pela produção do evento.
Porém, atento o disposto no disposto no art.º 200 n.º 1do CP, este crime exige a concretização do perigo, que há-de resultar demonstrado das circunstâncias concretas do caso, pois que não basta a existência de um perigo abstrato ou presumido (como se escreveu no acórdão da RP de 25.02.2004, Col. Jur., Ano 2004, tomo I, 219, “a produção do perigo tem de ser constatada pelo Juiz. Por perigo deve entende-se um estado desacostumado e anormal no qual para o observador atento pode aparecer como provável à vista das concretas circunstâncias atuais a produção de um dano cuja possibilidade resulta evidente”.
Por outro lado, a obrigação de auxílio que recai sobre o agente só existe em caso de “grave necessidade” - “Quem, em caso de grave necessidade... deixar de… prestar o auxílio necessário ao afastamento do perigo…” - ou seja:
- quando, tratando-se de lesão da integridade física, esse perigo (concreto) seja iminente e configure uma “lesão substancial”, grave (onde não cabem, portanto, “as situações de perigo de lesão não iminente e as situações de perigo de leves lesões corporais”, conforme escreve Américo Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense, Parte Especial, Tomo I, 849);
- quando essa necessidade - de auxílio - se apresente como grave, o que pressupõe, por um lado, a impossibilidade do agente, por si só, afastar o perigo que ameaça bens jurídicos pessoais, isto é, a incapacidade de desenvolver a atividade de defesa adequada às circunstâncias, por outro, a existência de consideráveis sinais exteriores, facilmente percecionados por qualquer pessoa, reveladores da premente necessidade de auxílio, ou seja - como se escreve no acórdão do STJ de 29.01.2003, in www.dgsi.pt - “… a urgência da atuação, atentas as graves consequências que desse estado poderão advir para o necessitado. Caso de grave necessidade… é a situação de emergência em que se encontra um ser humano, carecendo em absoluto de uma intervenção alheia, adequada a afastar o perigo que ameaça bens jurídicos pessoais que por si só é incapaz de superar” (neste mesmo sentido se pronuncia Maria Leonor Assunção, inContributo para a interpretação do artigo 219 do Código Penal (O crime de omissão de auxílio)”, em excerto transcrito pelo recorrente.
No caso em apreço, e sendo certo que nem o recorrente nem o Ministério Público impugnaram a matéria de facto - que, por isso, se tem como assente, sendo irrelevantes as considerações que um e outro fazem acerca de factos que não constam da matéria de facto dada como provada (referimo-nos, concretamente, às circunstâncias em que a vítima, depois da queda, é socorrida) - a grave necessidade a que se reporta o art.º 200 n.º 1 do CP, entendida nos termos supra expostos, não se encontra demonstrada em face dos factos dados como provados, designadamente, das circunstâncias da queda do ofendido, do seu arrastamento pelo solo e das lesões provocadas, pois que daí não se infere:
- por um lado, que o ofendido tivesse ficado numa situação de perigo iminente de lesão grave da sua integridade física (para além das lesões concretas que sofreu em consequência do acidente);
- por outro, que do embate tivesse resultado um grave perigo para a vida do ofendido (da matéria de facto dada como provada tal perigo não resulta demonstrado).
E sendo assim, como é, não estamos perante um caso de grave necessidade da prestação de auxílio para afastar tais perigos, não demonstrados.
Procede, por isso, a primeira questão suscitada pelo recorrente.
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8.2. - 2.ª questão
(…)
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9. Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal deste tribunal em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido e, consequentemente:
- em revogar a sentença recorrida no que respeita ao crime de omissão de auxílio - dele absolvendo o arguido - e, consequentemente, no que respeita ao cúmulo jurídico efetuado;
- em manter, quanto ao mais, a sentença recorrida.
Sem tributação.
(Este texto foi por mim, relator, integralmente revisto antes de assinado)

Évora, 09/01/2018
Alberto João Borges (relator)
Maria Fernanda Pereira Palma