Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
14/21.7GJBJA.E1
Relator: LAURA GOULART MAURÍCIO
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
Data do Acordão: 06/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. É certo que não é exigível a indicação temporal precisa dos factos, no entanto, é essencial que haja, pelo menos, uma vaga alusão ao tempo da prática dos mesmos, balizando-os minimamente, por forma a permitir concluir que os factos fundamentam a aplicação de uma pena, até porque, como é sabido, o decurso do tempo tem reflexos nomeadamente ao nível da prescrição do procedimento criminal.
II. Por mais sintética e imprecisa que seja, a descrição deve, pelo menos, permitir retirar a ilação da data(s) da prática do(s) dos facto(s).
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca de Beja, Juízo de Competência Genérica de Ourique, no âmbito dos autos com o NUIPC 14/21.7GJBJA foi, em 25 de janeiro de 2022, proferida a seguinte decisão (transcrição):
“A assistente tem legitimidade para deduzir acusação particular.
Ressalvado o quadro de apreciação que segue, o processo mostra-se isento de nulidades que o invalidem totalmente, inexistindo outras exceções ou questões prévias de que cumpra conhecer.
***
Da rejeição da acusação particular
A fls. 210-211, e acompanhada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO a fls. 214, a assistente AA deduziu acusação particular contra a arguida BB, imputando-lhe a prática de 1 (um) crime de injúria, previsto e punível pelo artigo 181.º do Código Penal.
Fundamenta tal imputação na seguinte (transcrita) factualidade:
«1.º - A Assistente e a Arguida são vizinhas, vivendo na mesma rua desde há vários anos.
2.º - Sempre tiveram uma ótima relação, a qual se começou a deteriorar com a vinda de familiares da assistente para viverem em sua casa.
3.º - Com a presença destes familiares em sua casa, a assistente ficou com menos tempo para poder usufruir da companhia da arguida, a qual, eventualmente, terá sentido ciúmes.
Sucede que,
4.º - Em datas não concretamente apuradas, mas sempre que a arguida avista a assistente na rua, junto às suas habitações, começa a chamar-lhe nomes.
5.º - Nomeadamente, dirige-lhe as expressões: “filha da puta”, “ela quer é chupar”, “a velha papa os velhos todos”.
6.º - A Arguida, não se coíbe de utilizar tais expressões na presença da assistente, dos seus familiares, incluído menores ou de quaisquer outras pessoas que no momento se encontrem a passar na rua.
Ora,
7.º - Não obstante da falsidade de tais factos, a Arguida não se absteve de os afirmar, movida apenas pelo objetivo torpe de injuriar a Assistente, o que logrou conseguir.
8.º - Agiu assim a Arguida livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
9.º - Os factos cuja prática foi imputada à Assistente são ofensivos da sua honra e consideração.».
Ora, por expressa remissão do artigo 285.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, é aplicável à acusação particular, no que ao caso mais importa, o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do mesmo diploma, à luz do qual a acusação contém, sob pena de nulidade, «[a] narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada».
Por outro lado, e tal como também por exemplo se assinala no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30-09-2015 (proferido no âmbito do Proc.º n.º 775/13.7GDGDM.P1, disponível para consulta em www.dsgi.pt), tem vindo a ser reiteradamente posto em relevo pela jurisprudência dos tribunais superiores que «[a]s imputações genéricas, sem uma precisa especificação das condutas e do tempo e lugar em que ocorreram, por não serem passíveis de um efetivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado no art.º 32.º, n.º 1, da CRP, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente», em razão do que devem ser consideradas não escritas.
No mesmo sentido aponta o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 09-01-2017 (também disponível em www.dsgi.pt, neste caso sob o Proc.º n.º 628/11.3TABCL.G1), sublinhando que «os “factos” que constituem o “objeto do processo” têm que ter a concretude suficiente para poderem ser contraditados e deles se poder defender o arguido e, sequentemente, a serem sujeitos a prova idónea».
Revertendo à situação dos autos, constata-se que a acusação particular em apreço não traduz uma precisa – nem sequer mínima – especificação do tempo e sobretudo, do lugar e do concreto contexto em que ocorreram as condutas que são imputadas à arguida, ficando do nosso ponto de vista por perceber, além do mais, o porquê da imputação de apenas um crime (e não mais, ainda que em concurso real).
Com efeito, a assistente alega apenas, no que aqui releva, que «Em datas não concretamente apuradas, mas sempre que a arguida avista a assistente na rua, junto às suas habitações, começa a chamar-lhe nomes. (…) Nomeadamente, dirige-lhe as expressões: “filha da puta”, “ela quer é chupar”, “a velha papa os velhos todos”.».
Num tal contexto, em que sobretudo não se referem quaisquer locais e datas (nem sequer meses ou anos) em concreto em que a arguida terá apelidado a assistente com as expressões mencionadas no ponto 5.º da acusação – para além de se inviabilizar a correta apreciação da competência territorial do Tribunal – está a nosso ver irremediável e inaceitavelmente coartado o efetivo e pleno exercício do contraditório constitucionalmente consagrado a favor da primeira.
Aqui chegados, temos que na fase do julgamento, ao nível do saneamento do processo, e em caso de não ter havido instrução, avulta a regra contida no artigo 311.º, n.º 2, do C.P. Penal, nos termos da qual «se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada (…)», sendo que nos termos do n.º 3 do mesmo preceito, a acusação se considera manifestamente infundada, para além do mais, quando não contenha a narração dos factos [cfr. alínea b)].
Tal é o que se verifica in casu, na medida em que, como vimos, as imputações não contextualizadas espácio-temporalmente dirigidas à arguida devem considerar-se não escritas.
Pelo exposto, ao abrigo do artigo 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea b), do C.P. Penal, decido rejeitar, por manifestamente infundada, a acusação particular deduzida a fls. 210-211 pela assistente AA contra a arguida BB.
Custas a cargo da assistente, com taxa de justiça que fixo em 2 (duas) unidades de conta, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido a fls. 51-59 [cfr. artigos 515.º, n.º 1, alínea f), do C.P. Penal, e 8.º, n.º 9, e Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais].
Notifique.
D.N. (dando baixa estatística).
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Oportunamente, nada mais sendo requerido, arquivem-se os autos.”
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Inconformada com a decisão, a assistente AA interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:
1. O Tribunal a quo considerou a acusação particular manifestamente infundada por, supostamente, a mesma não conter a narração dos factos.
2. A interpretação que o Tribunal a quo fez das normas aplicáveis não será a acertada, salvo melhor perspetiva.
3. Para além de, à partida, os factos constituírem crime, compulsada a acusação, a mesma contém a identificação da arguida e a narração dos factos; mais, indica as disposições legais aplicáveis, bem como as provas.
4. Salvo melhor opinião, no momento do recebimento do libelo, o mesmo só pode ser recusado se o Tribunal o considerar manifestamente infundado e tal só pode suceder quando não contenha os elementos já citados.
5. Argumenta o Tribunal a quo que o libelo não traduz uma precisa – nem sequer mínima – especificação do tempo e sobretudo, do lugar e do concreto contexto em que ocorreram as condutas que são imputadas à arguida.
6. Ora, não se concorda com tal análise, uma vez que em 4º da acusação particular consta a indicação: junto às suas habitações… E, em 1º da mesma esclarece-se: A Assistente e a Arguida são vizinhas, vivendo na mesma rua desde há vários anos.
7. Constando no processo, sobejamente, a rua e o lugar da casa de morada das intervenientes, a acusação somente deixou de redundar, o óbvio.
8. Quanto à especificação de tempo, sempre se dirá que as indicações: sempre que a arguida avista a assistente na rua… e na presença da assistente, dos seus familiares, incluído menores ou de quaisquer outras pessoas que no momento se encontrem a passar na rua sejam suficientemente descritivos por forma a permitir que a arguida se possa defender dos mesmos, estando concretizada.
9. Convenha-se que seria especialmente penoso e desajustado, a Assistente memorizar todos os malgrados momentos em que a arguida a surpreende com injúrias.
10. Daí a expressão na letra da lei: se possível, o lugar, o tempo, e a motivação da sua prática…
11. Como defendido entre a Doutrina mais avalizada, a omissão na acusação particular de componente considerado importante para que se dê um julgamento justo e equitativo, com todas as garantias de defesa, pode ser suprida por elementos dos autos.
12. Assim, não pode a acusação particular ser rejeitada.
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O recurso foi admitido e fixado o respetivo regime de subida e efeito.
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O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, pugnando pela procedência do mesmo, e formulando as seguintes conclusões:
1. Por despacho de 25 de Janeiro de 2022 o Tribunal a quo rejeitou a acusação particular deduzida pela assistente, nos termos do disposto nos nºs 1 e 3 do artigo 285º, do Código de Processo Penal, com fundamento no facto de a mesma ser manifestamente infundada, nos termos do disposto no artigo 311º, nºs 2, al.a) e 3, al.b), do Código de Processo Penal.
2. Deste despacho vem a assistente AA recorrer alegando, para tanto, que a acusação particular contém a identificação da arguida e a narração dos factos; mais indica as disposições legais aplicáveis, bem como as provas.
3. Concluindo, pela admissão da acusação particular deduzida e pelo pedido de designação de data para realização de audiência de discussão e julgamento.
4. Ora, estabelece o nº3, do artigo 283º, do Código de Processo Penal, no que ora releva, que “A acusação contém, sob pena de nulidade: (…); b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstancias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; (…)”.
5. Assim, e conjugada a norma acabada de referir com o disposto no artigo 181º, nº1, do Código Penal infere-se que o local e o momento da prática dos factos, imputados a arguida, não integram o tipo objectivo de crime de injúria, tratando-se de elementos a ser introduzidos na acusação e se possível.
6. Acresce dizer que se encontram balizadas as circunstancias espaciais em que os factos ocorreram - junto à residência da assistente e arguida que são vizinhas.
7. Ora, tais residências resultam concretizadas nos autos, nomeadamente ao Termo de Identidade e Residência prestado pela arguida.
8. No que tange ao período temporal da prática dos factos, a assistente faz a seguinte descrição na acusação particular: “sempre que a arguida avista a assistente na rua”.
9. Facto que poderá ser melhor apurado na audiência de discussão e julgamento, sem que daí resultem precludidos os direitos de defesa da arguida.
10. Pelo exposto, considera o Ministério Público que o recurso interposto pela assistente merece provimento e, consequentemente, deverá ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que, recebendo a acusação particular, designe data para a realização da audiência de julgamento.
Face ao supra exposto e pelos fundamentos invocados, entende-se que deve obter provimento o recurso interposto e, em consequência, ser revogado o despacho recorrido, assim se fazendo Justiça.
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No Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer nos seguintes termos:
“Nada obsta ao conhecimento do recurso, interposto tempestivamente por quem tem legitimidade e interesse em agir, sendo de manter o regime e efeito que lhe foi atribuído, não se vislumbrando qualquer fundamento de rejeição.
É entendimento pacífico da nossa jurisprudência que o objecto e o âmbito do recurso se afere e delimita pelas conclusões da respectiva motivação, reportando-se às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, isto é, as concretas controvérsias centrais a dirimir, sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso (entre outros, Acs. do STJ de 17-9-97, Col. Jur., Acs. STJ, V, 3, 173 e de 1-11-01, Proc. n.º 3408/00 - 5.ª secção).
I – Em 25-1-2022, o Mm.º Juiz em funções no Juízo de Competência Genérica de Ourique, proferiu o seguinte despacho:
- “…ao abrigo do artigo 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea b), do C.P. Penal, decido rejeitar, por manifestamente infundada, a acusação particular deduzida a fls. 210-211 pela assistente AA contra a arguida BB.”
Essencialmente porque: “… constata-se que a acusação particular em apreço não traduz uma precisa – nem sequer mínima – especificação do tempo e sobretudo, do lugar e do concreto contexto em que ocorreram as condutas que são imputadas à arguida, ficando do nosso ponto de vista por perceber, além do mais, o porquê da imputação de apenas um crime (e não mais, ainda que em concurso real).
Com efeito, a assistente alega apenas, no que aqui releva, que «Em datas não concretamente apuradas, mas sempre que a arguida avista a assistente na rua, junto às suas habitações, começa a chamar-lhe nomes. (…) Nomeadamente, dirige-lhe as expressões: “filha da puta”, “ela quer é chupar”, “a velha papa os velhos todos”.».
Num tal contexto, em que sobretudo não se referem quaisquer locais e datas (nem sequer meses ou anos) em concreto em que a arguida terá apelidado a assistente com as expressões mencionadas no ponto 5.º da acusação – para além de se inviabilizar a correta apreciação da competência territorial do Tribunal – está a nosso ver irremediável e inaceitavelmente coartado o efetivo e pleno exercício do contraditório constitucionalmente consagrado a favor da primeira.”
Discordando de tal decisão, interpôs recurso a assistente pretendendo a revogação da decisão e sua substituição por outra que receba a acusação particular e designe data para julgamento.
Na sua resposta, a Magistrada do Ministério Público adere à posição da assistente, concluindo no mesmo sentido.
A arguida não respondeu ao recurso.
II – Considerando as questões suscitadas na motivação de recurso da assistente e secundadas pela Magistrada do Ministério Público na sua fundada resposta, manifestamos a nossa concordância com a apreciação factual e jurídica explanada em ambas as peças processuais, que apontam de forma clara e assertiva os motivos e fundamentos que evidenciam as respectivas pretensões, pelo que se acompanham tais posições e se adere às devidas argumentações, também opinando no sentido da procedência do recurso, mostrando-se supérfluo o aditamento de qualquer anotação.
Nesta conformidade somos de parecer que o recurso interposto pela assistente e acompanhado pelo Ministério Público deve ser julgado procedente, revogando-se o douto despacho recorrido substituindo-se por outro que receba a acusação particular e designe data para julgamento.”
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Cumprido o disposto no art.417º, nº2, do C.P.P., respondeu a assistente aderindo ao Parecer emitido pelo Exmº PGA.
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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência.
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Fundamentação
Delimitação do objeto do recurso
Nos termos do disposto no art.412º, nº1, do C.P.P., e conforme jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes das motivações apresentadas, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no art.410º, nº2, do C.P.P., mesmo que o recurso se encontre limitado a matéria de direito – cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, págs.74; Ac.STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, págs.96, e Ac. do STJ para fixação de jurisprudência de 19.10.1995, publicado no DR I-A Série de 28.12.1995.
São, pois, as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o Tribunal ad quem tem de apreciar.
No caso sub judice, a questão suscitada pela assistente/recorrente é saber se deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que receba a acusação particular e designe dia para a realização de audiência de julgamento.
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Apreciando e decidindo
Dispõe o artigo 311º nº 2 do CPP que «se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) de não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284º e do n.º 4 do artigo 285º, respetivamente».
A acusação considera-se manifestamente infundada, segundo a norma do nº 3 do referido artigo:
a) quando não contenha a identificação do arguido;
b) quando não contenha a narração dos factos;
c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam;
d) se os factos não constituírem crime.
Nos termos do artigo 32.º da Constituição Política da República Portuguesa:
1 - O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
(...)
5 - O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.
Isto significa que a acusação e o julgamento têm que estar sedeados em órgãos diferentes: em ordem a conciliar o interesse público da perseguição criminal e as exigências da imparcialidade, isenção e objetividade do julgamento, a investigação e acusação, por um lado, e o julgamento, por outro, terão que caber a entidades diferentes. Quem acusa não julga e quem julga não pode acusar.
Deste mesmo princípio decorre outra consequência: a de o poder de cognoscibilidade do juiz estar delimitado pelo conteúdo da acusação, sendo esta que determina o objeto do processo. É o chamado princípio da vinculação temática.
"O princípio acusatório (n.º 5, 1.ª parte) é um dos princípios estruturantes da constituição processual penal. Essencialmente, ele significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial. Cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não conduzir oficiosamente a investigação da responsabilidade penal do arguido (princípio do inquisitório).
A «densificação» semântica da estrutura acusatória faz-se através da articulação de uma dimensão material (fases do processo) com uma dimensão orgânico-subjetiva (entidades competentes). Estrutura acusatória significa, no plano material, a distinção entre instrução, acusação e julgamento; no plano subjetivo, significa a diferenciação entre juiz de instrução (órgão de instrução) e juiz julgador (órgão julgador) e entre ambos e órgão acusador.
O princípio da acusação não dispensa, antes exige, o controlo judicial da acusação de modo a evitar acusações gratuitas, manifestamente inconsistentes, visto que a sujeição a julgamento penal é, já de si, um incómodo muitas vezes oneroso e não raras vezes um vexame. Logicamente, o princípio acusatório impõe a separação entre o juiz que controla a acusação e o juiz de julgamento (cf. Acs TC n.ºs 219/89 e 124/90)." () J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª edição revista, p. 522).
O art. 283°, n.° 3 do CPP consagra os elementos que devem constar de uma acusação, cominando a sua omissão com nulidade. De acordo com o disposto na alínea b), deverá a acusação conter "a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada ".
Ou seja, nos termos da alínea b), do nº3 do artigo 283º do CPP a acusação contém, sob pena de nulidade, os factos relevantes para a imputação do crime.
Desta forma, são lógicas as exigências de conteúdo constantes dos preceitos acima referidos, na medida em que são impostas pela evidente premência, naquele contexto, de demarcar os factos concretos suscetíveis de integrar o ilícito de cuja prática está o arguido acusado.
“… regendo-se o processo penal pelos princípios do acusatório e do contraditório, a necessidade de uma tal demarcação tem subjacentes duas ordens de fundamentos: - um, inerente ao objetivo imediato (….): a comprovação judicial da pretensa indiciação (que, para que se possa demarcar o âmbito do objeto específico desta fase do processo e para que o arguido se possa defender, tem que reportar-se a imputação de factos concretos delimitados); - e, outro, implícito a uma finalidade mediata, mas essencial no caso de se vir a decidir pelo prosseguimento do processo para julgamento: a demarcação do próprio objeto do processo, reflexo da sua estrutura acusatória com a correspondente vinculação temática do Tribunal, que, por sua vez, na medida em que impede qualquer eventual alargamento arbitrário daquele objeto, constituindo uma garantia de defesa do arguido, possibilita a esta a preparação da defesa, assim salvaguardando o contraditório.” (Ac. RL de 19/10/2006, Rec. 7143.06, 9ª Secção).
Ora, revertendo ao caso em análise, mesmo que se considere que a acusação não é totalmente omissa quanto ao local da prática dos factos, porquanto no artigo 1º da mesma se refere que “A Assistente e a Arguida são vizinhas, vivendo na mesma rua desde há vários” e no artigo 4º se refere que “ (…) sempre que a arguida avista a assistente na rua, junto às suas habitações, começa a chamar-lhe nomes”, sempre com recurso à identificação da arguida constante dos autos, para onde se remete na acusação quando na mesma se diz “ AA, assistente nos autos designados em epígrafe, vem, muito respeitosamente DEDUZIR ACUSAÇÃO PARTICULAR, Contra: BB, arguida melhor identificada no processo à margem referenciado”, já o mesmo não se dirá quanto ao momento da prática dos factos.
Com efeito, neste particular a acusação é totalmente omissa. Na verdade, atentando nos artigos 4º e 5 da acusação, onde se refere que “ 4.º - Em datas não concretamente apuradas, mas sempre que a arguida avista a assistente na rua, junto às suas habitações, começa a chamar-lhe nomes.
5.º - Nomeadamente, dirige-lhe as expressões: “filha da puta”, “ela quer é chupar”, “a velha papa os velhos todos”, não é localizar temporalmente os factos, não estando sequer minimamente balizados, sendo que, como referido no despacho recorrido “ (…) constata-se que a acusação particular em apreço não traduz uma precisa – nem sequer mínima – especificação do tempo (…) em que ocorreram as condutas que são imputadas à arguida, ficando do nosso ponto de vista por perceber, além do mais, o porquê da imputação de apenas um crime (e não mais, ainda que em concurso real).”
E, na presente situação, não se menciona que é impossível referir a data ou as datas da prática dos factos, sendo que tal omissão só é de aceitar se realmente não for possível menciona-la.
É certo que não é exigível a indicação temporal precisa dos factos, no entanto, é essencial que haja, pelo menos, uma vaga alusão ao tempo da prática dos mesmos, balizando-os minimamente, por forma a permitir concluir que os factos fundamentam a aplicação de uma pena, até porque, como é sabido, o decurso do tempo tem reflexos nomeadamente ao nível da prescrição do procedimento criminal.
Por mais sintética e imprecisa que seja, a descrição deve, pelo menos, permitir retirar a ilação da data(s) da prática do(s) dos facto(s).
Ora, a acusação deve ser considerada manifestamente infundada, e consequentemente rejeitada, com base na al. b) do nº3 do artº 311º do CPP, quando resultar evidente que não contém a narração dos factos.
De outro modo, não se justifica submeter a arguida a julgamento, pois não seria possível aplicar-lhe uma pena. Corria-se o risco de serem provados os factos constantes da acusação e tornar-se inviável a condenação.
E não contendo a acusação narração de factos que se traduzam na prática de crime punível, tal é mais do que suficiente para rejeitar a acusação, sendo esta a única possibilidade que se impõe.
Termos em que, com tais fundamentos, se julga improcedente o recurso.
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Decisão
Face ao exposto, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.
- Custas pela recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça.
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Elaborado e revisto pela primeira signatária
Évora, 21 de junho de 2022
Laura Goulart Maurício
Maria Filomena Soares
Gilberto da Cunha