Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1434/16.4 T8SLV.E1
Relator: SÍLVIO JOSÉ TEIXEIRA DE SOUSA
Descritores: INSOLVÊNCIA
UNIÃO EUROPEIA
ÂMBITO
EXECUÇÃO
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
Data do Acordão: 02/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
i) depois da abertura de um processo principal de insolvência num Estado-Membro, aquele tem alcance universal”;
ii) como tal, as autoridades competentes de outro Estado-Membro não podem, em princípio, “ordenar, ao abrigo da legislação do seu Estado-Membro, medidas de execução, relativas aos bens do devedor declarado insolvente, situados no seu território”;
iii) o conhecimento, pelo Tribunal do processo executivo, da declaração de insolvência do executado, por parte de um Tribunal de um Estado-Membro da União Europeia, configura uma impossibilidade originária da lide executiva, donde o caso não ser de absolvição da instância, mas sim de, sem mais, determinar a extinção da instância, com a consequente declaração de nulidade de todos os atos que foram praticados nos autos. (sumário do relator)
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora:

Relatório


A presente execução para pagamento de quantia certa, em que é exequente J…, residente em Glasgow, Escócia, e executado M… Brown, também residente no Reino Unido, fundada em título executivo europeu, culminou com despacho a absolver da instância o requerido, com fundamento na impossibilidade da sua instauração, em consequência da insolvência do dito executado, o que relevou como “exceção dilatória inominada”.

Inconformada com o decidido, apelou a mencionada exequente, concluindo do modo seguinte[1]:


- Atento o caráter insuficiente e inconclusivo da informação disponível sobre a declaração de insolvência e a circunstância de a exequente/recorrente não ter a qualidade de credora da insolvência - condição não demonstrada nos autos -, o Tribunal a quo aplicou erradamente o artigo 88º. do CIRE, tendo, em consequência, errado ao absolver o executado da instância;


- Deve o despacho ora impugnado ser revogado, com o consequente prosseguimento dos autos;


- Caso assim não se entenda, deve o mesmo despacho ser revogado e substituído por outro que suspenda a instância.


Contra-alegou o executado/recorrido, pugnando pela manutenção do decidido.


O recurso tem por objeto a seguinte questão: saber se o despacho impugnado deve ou não ser mantido.


Foram colhidos os vistos legais.

Fundamentação


A- Os factos


Decisão recorrida:


“O executado foi declarado insolvente, em 29.10.2012, no âmbito de um processo de insolvência que correu termos no Tribunal de Glasgow, Reino Unido. Pelo que tendo o mesmo sido declarado insolvente no âmbito de um processo que correu termos num país da União Europeia, importa, de facto, atentar à disciplina constante do Regulamento (CE) nº 1346/2000 do Conselho, de 29 de maio de 2000, regulamento que se encontrava em vigor, à data da mencionada declaração de insolvência, tendo, entretanto, sido revogado pelo Regulamento (CE) nº 848/2015 do Conselho, de 20 de maio de 2015.


Ora, nos termos do art. 15º. do mencionado Regulamento os efeitos da declaração de insolvência sobre um processo judicial, que se ache pendente num tribunal de outro Estado Membro, regem-se pela lei deste último.


Pelo que importa chamar à colação o art. 88º. do C.I.R.E. que determina que “ 1- A declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer ação executiva intentada pelos credores da insolvência; porém, se houver outros executados, a execução prossegue contra eles”.


Acresce que é tendo sido determinado o arresto dos bens do insolvente, a insolvência, ainda que, nos países de origem inexista tal diferenciação, não terá caráter limitado (ou seja não foi decretada na suposição de que o património do executado inexistia ou seria insignificante para satisfazer os créditos dos credores), desde logo, porque se assim fosse, a referida providencia não teria lugar. Ora, em face da declaração de insolvência do executado, e tendo esta, inclusivamente, sido anterior à instauração da presente ação, sucede que os presentes, face ao disposto no artº. 88º., nº 1 do C.I.R.E., não poderiam sequer ser instaurados, por a tal obstar a mencionada declaração de insolvência.


Pelo que importa julgar verificada a referida impossibilidade, a qual releva como exceção dilatória inominada, absolvendo, consequentemente, o executado da instância, com custas a cargo da massa insolvente - art. 88º., nº 1 do CIRE e 278º, nº 1, al. e) e 576º, nº 1 e 2, 577º. e 551., nº 1, todos do Cod. Proc. Civ.


Registe e notifique.”


B - O direito/doutrina/jurisprudência


- O direito de ação executiva “(…) é um direito de carácter público porque se dirige e refere à atividade de órgãos do Estado, e não um direito de caráter privado, tendo em vista a conduta de um particular; é, em suma, um direito contra o Estado ou para com o Estado, representado nos órgãos executivos e não um direito contra o devedor”[2];


- O credor, desde que munido de título executivo, “(…) tem o direito ou o poder de mover a ação executiva, o que significa que os órgãos do Estado, incumbidos de exercer a atividade executiva, são obrigados a praticar os atos necessários, segundo a lei, para dar satisfação ao exequente, uma vez que este dê o impulso necessário”[3];


- “No sentido legal, a defesa por exceção abrange apenas a que, baseada em factos capazes de obstar à apreciação do mérito da ação, provoca a absolvição da instância ou a remessa do processo para outro tribunal e a que, fundada em factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado pelo autor, determina a improcedência (total ou parcial) do pedido (…)”[4];


- “O núcleo ou grupo das exceções que obstam ao conhecimento do mérito da ação (sem obstarem à proposição de nova ação sobre o mesmo objeto), como sucede com a incompetência absoluta do tribunal, a ilegitimidade, a falta de personalidade jurídica, a incapacidade judiciária ou a irregularidade de representação não devidamente sanadas, a litispendência ou a coligação ilegal de partes, dão a lei e a doutrina o nome de exceções dilatórias (…)”[5];


- “ … a) As exceções dilatórias visam produzir a absolvição do réu da instância; b) As exceções perentórias visam produzir a absolvição do réu do pedido. As primeiras, quando procedentes, não extinguem a ação; somente a retardam; por isso, se chamam dilatórias. A procedência das segundas extingue ou perime a ação, daí a designação de perentórias” [6];


- “As exceções dilatórias (…) envolvem um vício processual - a violação de uma norma de processo (…); as exceções perentórias assentam sobre normas de carater substancial ou material” [7];


- A decisão que determine a abertura de um processo de insolvência, proferida por um órgão jurisdicional de um Estado-Membro, é reconhecida em todos os Estados-Membros, logo que produza efeitos no Estado da abertura do processo [8];


- Salvo disposição em contrário do Regulamento (CE), nº 1346/2000 do Conselho, a lei aplicável ao processo de insolvência e aos seus efeitos é a lei do Estado-Membro em cujo território é aberto do processo, designado “Estado de abertura do processo” [9];


- Os efeitos do processo de insolvência, numa ação pendente relativa a um bem cuja administração ou disposição o devedor está inibido, rege-se exclusivamente pela lei do Estado-Membro em que a referida ação se encontra pendente[10];


- “(…) os artigos 3º., 4º, 16º., 17º. e 25º. do Regulamento 1346/2000 devem ser interpretados no sentido de que, depois da abertura de um processo principal de insolvência num Estado-Membro, aquele tem alcance universal. Assim, as autoridades competentes de outro Estado- Membro, no qual não foi aberto nenhum processo secundário de insolvência, estão obrigadas, sem prejuízo dos motivos de não reconhecimento previstos no regulamento, a reconhecer e executar todas as decisões relativas ao processo principal de insolvência e, portanto, não podem ordenar, ao abrigo da legislação do seu Estado-Membro, medidas de execução, relativas aos bens do devedor declarado insolvente, situados no seu território, quando a legislação do Estado-Membro da abertura do processo o não permita e quando os requisitos a que está sujeita a aplicação dos artigos 5º. e 10º. do Regulamento não estejam preenchidos. Esta interpretação mantém-se válida para os artigos 3º.,7º., 8º., 13º., 19º., 21º., 32º, e 33º. do Regulamento 2015/848” [11];


- A declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer ação executiva intentada pelos credores da insolvência[12];


- “Impede-se, além disso, o prosseguimento de ações executivas já em curso contra o insolvente, bem com a instauração de novas ações. A consequência é a nulidade dos atos que em qualquer delas tinham sido praticados após a decretação da insolvência, o que deve oficiosamente se declarado logo que no tribunal do processo a situação seja conhecida” [13].


C - Aplicação do direito aos factos


A exequente J… solicitou ao Estado Português a intervenção dos seus órgãos, “incumbidos de exercer a atividade executiva”, no sentido de levar a cabo as ações necessárias, tendo em visto o pagamento de um crédito, certificado por um titulo executivo europeu, que deu à execução.


Em consequência, os referidos órgãos procederam à apreensão de 1/2 de um imóvel, localizada em Portugal, pertencente ao executado M….


Entretanto, tomou o Tribunal “do processo” conhecimento da declaração de insolvência do referido executado, proferida, em 2012, por um Tribunal do Reino Unido


Está, por isso, a presente ação executiva impedida de prosseguir, uma vez que, como se afirma no citado acórdão do TJUE, não tendo sido aberto em Portugal nenhum processo secundário de insolvência, os tribunais portugueses estão obrigados, a reconhecer e executar todas as decisões relativas ao processo principal de insolvência e, portanto, não podem ordenar, ao abrigo da legislação do seu Estado-Membro, medidas de execução, relativas aos bens do devedor declarado insolvente, situados no seu território.


No caso nacional, concordantemente, o artigo 88.º, n.º 1, do CIRE, estatui que a declaração de insolvência obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer ação executiva intentada pelos credores da insolvência.


Assim, verifica-se, por via legal, a impossibilidade originária da lide, já que a insolvência foi decretada previamente à instauração desta ação executiva, donde o caso não ser de absolvição da instância, mas sim de, sem mais, determinar a extinção da instância, com a consequente declaração de nulidade de todos os atos que foram praticados nestes autos, e concretamente da decretada penhora.


Não é, pois, de subscrever a pretensão da exequente/recorrente J…, veiculada através do recurso.


Em síntese[14]: “depois da abertura de um processo principal de insolvência num Estado-Membro, aquele tem alcance universal”; como tal, as autoridades competentes de outro Estado-Membro não podem, em princípio, “ordenar, ao abrigo da legislação do seu Estado-Membro, medidas de execução, relativas aos bens do devedor declarado insolvente, situados no seu território”; o conhecimento, pelo Tribunal do processo executivo, da declaração de insolvência do executado, por parte de um Tribunal de um Estado-Membro da União Europeia, configura uma impossibilidade originária da lide executiva, donde o caso não ser de absolvição da instância, mas sim de, sem mais, determinar a extinção da instância, com a consequente declaração de nulidade de todos os atos que foram praticados nos autos.


Decisão


Pelo exposto, decidem os juízes desta Relação, julgando a apelação improcedente, manter, ainda que por outro fundamento, o despacho recorrido.


Custas pela recorrente.


Évora, 13 de fevereiro de 2020


Sílvio José Teixeira de Sousa (relator)


Manuel António do Carmo Bargado


Albertina Maria Gomes Pedroso

[1] Conclusões elaboradas por esta Relação, a partir das prolixas “conclusões” da recorrente.
[2] Prof. Alberto dos Reis, in Comentário ao Processo de Execução, vol. I, 3ª edição, pág. 16.
[3] Prof. Alberto dos Reis, in Comentário ao Processo de Execução, vol. I, 3ª edição, pág. 16.
[4] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª edição, 1985, págs. 291 e 292, e artigos 571º., nº 2, 2ª parte, e 576º. do Código de Processo Civil.
[5] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª edição, 1985, pág. 292, e artigo 577º. do Código de Processo Civil.
[6] Prof. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 4ª edição, 1985, pág. 78.
[7] Prof. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 4ª edição, 1985, pág. 80.
[8] Artigo 16º., nº 1 do Regulamento (CE), nº 1346/2000 do Conselho, de 29 de maio de 2000.
[9] Artigo 4º., nº 1 do Regulamento (CE), nº 1346/2000 do Conselho, de 29 de maio de 2000.
[10] Artigo 15º. do Regulamento (CE), nº 1346/2000 do Conselho, de 29 de maio de 2000.
[11] Acórdão C 444/07 do Tribunal de Justiça da União Europeia, edição de janeiro de 2002, da Newsletters do Ponto de Contacto Portugal.
[12] Artigo 88º., nº1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
[13] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª edição, pág. 362.
[14] Artigo 713º., nº7 do Código de Processo Civil.